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FERNANDES,C.A. & SANTOS,J.B.C “A imagem como enunciado operador de memória”. 2007. A Imagem como Enunciado Operador de Memória Cleudemar Alves Fernandes (GPAD-UFU) João Bôsco Cabral dos Santos (GPAD-UFU) O estudo que ora apresentamos destina-se a uma articulação da noção de memória discursiva, conforme proposta por Pêcheux (1999), com a noção de enunciado proposta por Foucault (1995). Mais especificamente, focalizaremos a imagem como operador de memória, e mostraremos seu funcionamento nos discursos como um enunciado, tendo em vista o método arqueológico foucaultiano. A discussão da inter-relação memória, enunciado e arquivo será sustentada a partir da análise de uma peça midiática de divulgação institucional. Trata-se de um cartaz produzido pela União da Juventude Socialista, divulgado em 2005, que faz uma contestação ao presidente dos Estados Unidos da América (EUA), George Bush, acerca da ocupação dos EUA no Iraque; e faz também um apelo à juventude em geral para que se posicione em prol da paz no mundo. Nesse cartaz, anexo a este estudo, encontramos uma imagem fotográfica do então presidente dos EUA George Bush, caracterizado com um bigode idêntico ao de Adolf Hitler, a suástica no lugar da letra “s”, no nome desse presidente, e ainda enunciados verbais na parte inferior do cartaz; a saber: “Tire as patas do Iraque” e “A juventude pede paz”. Os enunciados verbais apresentam-se inter-relacionados aos icônicos, uma vez que a imagem, inscrita na memória discursiva, conforme mostraremos, receberá o estatuto de enunciado. A Imagem como operador de memória e enunciado A noção de memória discursiva, conceito bastante recorrente na literatura afim, é apresentada por Pêcheux (1999, p. 52) como “aquilo que, face a um texto que surge a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita”. Esta acepção de memória implica regularização e repetição de dada materialidade discursiva; no entanto, a historicidade que atesta o discurso e sua possibilidade material faz com que nada seja repetição do já-dito. O passado, quando retomado, apresenta-se como condição para ler o presente. Trata-se da irrupção de acontecimentos discursivos marcados por descontinuidade; ou seja, um dizer ao ser repetido, é sempre outro, sempre um outro não-fixo, um outro em movências, que pode ser desmanchado pelo aparecimento de uma outra série até então não constituída. Contudo, todo discurso é atravessado por uma memória manifesta pelo retorno de acontecimentos e enunciados de um mundo sociocultural passado sob novas condições sócio-histórico-ideológicas. Esses aspectos apresentam-se em ocorrências lingüísticas e em imagens, conforme observaremos no cartaz tomado para análise. Acerca da memória discursiva, Foucault (1995) também atesta que todo discurso resulta de um já-dito e esse já-dito é sempre um jamais dito. Por conseguinte, os sentidos nunca são imanentes e nem fixos, são produzidos na enunciação, e os enunciados são historicamente ressemantizados. A “memória refere-se [...] a um conjunto complexo e pré- existente ao organismo, [...] constituindo um corpo sócio-histórico de traços”1, acrescentamos com Pêcheux (1990, p. 286). Pêcheux (1999, p. 11) mostra ainda que “a estruturação do discursivo vai constituir a materialidade de uma certa memória social”. Esse espaço de memória como condição do funcionamento discursivo constitui um corpo sócio-histórico-cultural. A recorrência ao passado expõe o espaço de memória como condição de seu funcionamento discursivo. Os discursos exprimem uma memória coletiva na qual os sujeitos estão inscritos. É uma memória coletiva, até mesmo porque a existência de diferentes tipos de discurso implica a existência de diferentes grupos sociais. Um discurso engloba a coletividade dos sujeitos que compartilham aspectos socioculturais e ideológicos, e mantém-se em contraposição a outros discursos. Trata-se de acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, e de uma interdiscursividade, refletindo materialidades que intervêm na sua construção. Situam-se nesses apontamentos os aspectos socioculturais e históricos peculiares à existência dos sujeitos e dos discursos. Conforme argumenta Gregolin (1997, p. 56), “a interpretação de temas re-significados mostra que o discurso, a História e a memória constroem movimentos de sentidos”, e analisar o discurso implica fazer aparecer objetos e enunciações que aparecem e desaparecem, coexistem e transformam-se em um espaço discursivo e possibilitam, ainda, verificar a (re)significação de certos temas em dada formação discursiva. Se os fatos discursivos apresentam uma forma material, interessa-nos apreender a imagem, assinalada por Pêcheux (1999) como operador de memória; uma vez que assim considerada, a imagem comporta em si um “programa de leitura”, traz sempre um “percurso escrito discursivamente em outro lugar”. Eis então o funcionamento da imagem como operador de memória discursiva. Dessa feita, julgamos oportunas as considerações foucaultianas acerca de enunciado, conceito profícuo à Análise do Discurso, uma vez que a imagem, conforme apontamos, pode ser considerada, enquanto materialidade discursiva, como um enunciado. Acerca da noção de enunciado em Foucault (1995), destacamos, inicialmente, que o enunciado se distingue de frase, proposição, ato de fala, porque: a) está no plano do discurso; b) não está submetido a uma estrutura lingüística canônica (não se encontra o enunciado encontrando-se os constituintes da frase); c) não se trata do ato material (falar e/ou escrever), nem da intenção do indivíduo que o realiza, nem do resultado alcançado: “trata-se da operação efetuada [...] pelo que se produziu pelo próprio fato de ter sido enunciado” (FOUCAULT, 1995, p. 94). Se considerarmos a noção de discurso apresentada por Foucault (1995) como conjunto de enunciados que derivam de uma mesma formação discursiva, devemos interrogar, como propõe esse autor, no discurso mesmo sobre suas regras de formação e, conseqüentemente, interrogar sobre a emergência do enunciado, “como um grão que aparece na superfície de um tecido de que é o elemento constituinte; como um átomo do discurso” (FOUCAULT, 1995, p. 90). Tomado como função enunciativa, a compreensão do enunciado implica explicitar o exercício dessa função, suas condições de produção, suas regras de controle, o campo em que se realiza. Diante dessa problematização, Foucault (1995, p. 100) coloca a seguinte interrogação: “o que ocorreu para que houvesse enunciado?” Trata-se de buscar na exterioridade de um enunciado determinado, as regras de sua aparição; a relação que mantém com o que enuncia; “aquilo a que se refere, o que é posto em jogo por ele”. Nesse ínterim, há uma relação que: envolve os sujeitos, passa pela história, implica um campo correlato, e envolve a materialidade do enunciado. 1 Conforme tradução de Maria do Rosário Gregolin, do original em francês: “la mémoire est à référer [...] à um ensemble complexe, préexistant et extérieur à l’organisme, [...] constituant um corps socio-historique de traces”. Tradução de circulação restrita. Concernente à relação sujeito e enunciado, sempre há um sujeito, ou uma instância produtora. No enunciado há uma posição-sujeito, ou uma função que pode ser exercida por vários sujeitos. A análise do enunciado na Análise do Discurso deve investigar qual é essa posição-sujeito, que se inscreve na história, lugar em que o enunciado deve ser analisado. Face à historicidade própria à existência do enunciado,a produção de sentidos vincula-se à memória e re-atualiza outros enunciados. Há sempre um conjunto de formulações que o antecedem e o sucedem; que o relaciona ao passado e ao futuro. Nesse movimento, dada a relação intrínseca com a história, um enunciado torna-se sempre outro, mesmo havendo um regime de materialidade repetível, como a imagem, por exemplo. A propósito, há sempre uma espessura material que constitui o enunciado, que compreende substância, suporte, lugar e data. Em síntese, as características da função enunciativa corroboram a “interrogar a linguagem, não na direção a que ela remete, mas na dimensão que a produz” (FOUCAULT, 1995, p. 129). Assim é que tomamos a imagem – forma material inscrita em dada memória discursiva –, como um enunciado, pois sua análise requer apreender os elementos próprios à existência e funcionamento do enunciado, conforme propõe Foucault (op. cit.), o que vislumbramos operacionalizar na Análise do Discurso. Trata-se de uma materialidade marcada por uma posição-sujeito, uma inscrição na história, correlacionada a um campo associativo. São justamente estes os aspectos que procuraremos mostrar com a análise que se segue. O Funcionamento da imagem como enunciado A peça midiática em análise refere-se a um cartaz, produzido e divulgado pela União da Juventude Socialista, em 2005. Conforme assinalamos, este cartaz, em sua maior parte, traz a imagem do rosto do Presidente dos EUA, George Bush, caracterizado com um bigode que o relaciona, pela semelhança, a Adolf Hitler. Abaixo da foto, atravessando todo o cartaz, encontra-se o nome “BUSH” com a imagem da suástica no lugar da letra “S”. Após esse nome, na parte inferior do cartaz, apresentam-se os dois enunciados verbais “Tire as patas do Iraque” e “A juventude pede paz”. Há, ainda, no canto superior esquerdo as iniciais e identificação institucional da União da Juventude Socialista (USJ). Em se tratando de imagem, destacamos a dimensão do rosto de Bush com o bigode de Hitler, como um enunciado funcionando como operador de memória. No contexto atual de produção da imagem como enunciado – Ocupação do Iraque pelos EUA, em 2005 – inscreve- se um imaginário social que remete ao contexto da segunda guerra mundial, em especial à influência nazista, representada no imaginário social como algo repulsivo e associado ao nome de Hitler. Essa retomada de um elemento passado como forma de dizer o presente se dá pela repetição de um enunciado que se torna outro (a imagem do bigode de Hitler, tomado como enunciado re-significado em Bush), pois a história não é a mesma, e não o sendo, os sujeitos enunciadores exercem diferentes posições-sujeito ideologicamente marcadas. A memória, enquanto condição de produção e funcionamento do discurso, aparece pelo acionamento do não-verbal, inter-relacionado aos enunciados verbais, reiterados inicialmente pelo uso da suástica – símbolo do Nazismo – colocada no lugar da letra “S”. Esse acionamento do não-verbal, que revela a imagem como operador de memória, remete- nos a um processo de interdiscursividade, próprio à historicidade da enunciação. Nesse processo, os sentidos e os sujeitos inscrevem-se na história, o que nos possibilita visualizar seus posicionamentos. No embate entre discursos de contestação ao político em questão, revela-se o posicionamento dos sujeitos enunciadores, caracterizado pelo entrecruzamento de diferentes discursos: i) a palavra socialismo, singularizando a juventude enquanto instância de um sujeito coletivo – União da Juventude Socialista; ii) o símbolo do Nazismo, a suástica que tem lugar no imaginário social como algo repugnante; iii) a palavra “patas” no enunciado verbal dirigido a Bush que o correlaciona a um animal irracional; iv) o substantivo “Iraque”, nesse mesmo enunciado, apresentado como vítima dos EUA; v) o enunciado “A juventude pede paz”, trazendo para o espaço de enunciação toda a juventude e não apenas os integrantes da União Socialista e vi) ainda, nesse mesmo enunciado, a palavra “paz” que remete a um discurso religioso. Esse cartaz, tomado como materialidade discursiva, revela uma posição-sujeito ideologicamente marcada. Essa posição caracteriza-se por uma inter-relação de diferentes enunciados na composição dessa materialidade. Verificamos, a partir dele, um campo correlato de enunciados, formando uma constelação, que reflete, primordialmente, uma posição-sujeito frente ao presidente Bush e sua ação frente ao conflito com o Iraque. Considerando esse campo de enunciados, correlacionados entre si, destacamos posicionamentos de manifestação do sujeito enunciador. Considerando o momento político atual, os elementos dispostos nesse cartaz reiteram a posição-sujeito acima mencionada, de oposição a atuação dos EUA diante do conflito. Nesse cartaz, os elementos utilizados para sua composição se inscrevem na memória discursiva, têm diferentes lugares na história e atestam a interdiscursividade na produção do discurso e constituição do sujeito discursivo. Como elemento de memória, cada enunciado integra também outras produções discursivas, atestando posições-sujeito que, quando de circulações anteriores desses enunciados, estavam em lugares outros. Há, nesse sentido, um discurso visando à construção da imagem negativa – compreendida como representação social e ideológica – do Presidente Bush, tendo em vista uma depreciação materializada na imagem desse sujeito pelo uso do bigode de Hitler. A presença da história na produção e transformação dos sentidos está vinculada à posição-sujeito, pode ser considerada um dispositivo político que se articula com base em preceitos religiosos, o que pode ser atestado pelo apelo à paz no último enunciado verbal. Isto posto, a memória, enquanto condição de produção e funcionamento do discurso, aparece pelo acionamento do verbal e do não verbal. Além dos enunciados verbais, temos as imagens materializadas como enunciados em momentos diferentes e com sentidos diferentes. Os sentidos e os sujeitos inscrevem-se na história, o que nos possibilita visualizar seus posicionamentos. Esses aspectos podem ser visualizados pela alteridade entre o icônico e o verbal. Reitera-se, assim, elementos como a imagem fotográfica do Presidente George Bush, a imagem de Hitler sobreposta à imagem desse presidente pelo emblema do bigode, a suástica no lugar de uma letra do nome desse presidente, como representação de uma inscrição dessa figura em uma formação discursiva nazista, e ainda a imagem metafórica de animalização da figura de Bush como animal invasor do território iraquiano, como pode ser atesto pelo enunciado “Tire as patas do Iraque”. Na seqüência, instaura-se o enunciado de apelo – “A juventude pede paz” – remetendo à posição-sujeito enunciador UJS para o lugar social no qual se inscreve. Considerações Finais A evocação da memória possibilitou-nos constituir a enunciação de acontecimentos históricos submetidos a processos de clivagem e re-significação. O atravessamento desses mecanismos de natureza histórica, entretanto, atua na enunciação enquanto descontinuidade que desloca a exterioridade de acordo com a natureza da inscrição enunciativa. A continuidade interna do pré-construído subjacente à enunciação funciona como um espaço potencial de coerência no que se refere às instâncias enunciativas monumentalizadas pela memória. A imagem tomada como um operador de memória e considerada como um enunciado pode ocupar lugar no cerne da arqueologia foucaultiana, e remete-nos à noção de arquivo. Compreendido como conjunto de enunciados efetivamente produzidos em dada época, o arquivo é apresentado por Foucault (1995, p 149) como “a lei do que pode ser dito, o sistema querege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares”. Dessa feita, arqueologia é a “descrição que interroga o já-dito no nível de sua existência [...] descreve os discursos como práticas específicas no elemento do arquivo” (FOUCAULT, 1995, p. 151). Ainda com a palavra Foucault (1995, p. 149), “trata do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens há tantos milênios [...] tenham aparecido graças a um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo”. É justamente esse o funcionamento da imagem, como materialidade discursiva, na peça midiática em análise. A inter-relação dos enunciados destacados corrobora uma perspectiva de estudos em análise do discurso assinalada por Pêcheux (1984, p. 56) como “arqueológica foucaultiana”, cuja preocupação é a de “considerar as condições históricas de existência dos discursos em sua heterogeneidade”. Dessa maneira, percebemos a memória como uma interdiscursividade de sentidos entrecruzados. Esse entrecruzamento compila imagens funcionando como operadores de memória a partir de uma função enunciativa dessas imagens no discurso. Trata-se de uma interdiscursividade que baliza inscrições de uma instância enunciativa do sujeito em práticas discursivas. REFERÊNCIAS FERNANDES, Cleudemar Alves. A Noção de Enunciado em Foucault e sua Atualidade na Análise do Discurso. In: __; SANTOS, João Bôsco Cabral. Percursos da Análise do Discurso no Brasil. São Carlos: Claraluz, 2007 (no prelo). FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. GREGOLIM, Maria do Rosário Valencise. Discurso e Memória: Movimentos na Bruma da História. In: Cadernos da Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP. Marília: UNESP, 1997. p. 45-58. PÊCHEUX, Michel. Spécificité d’une discipline d’interprétation. In: BUSCILA. Nº 1, fevereiro, 1984. p. 56-58. ______. Lecture et mémoire: projet de recherche. In: MALDIDIER, Denise. L’Inquiétude du Discours – textes de Michel Pêcheux. Paris: Éditions des Cendres, 1990. p. 285-293. ______. O Papel da Memória. Trad. de José Horta Nunes. In: ACHARD, Pierre et al. O Papel da Memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57.
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