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CARDOSO, Ciro. Crítica a duas questões relativas ao anti realismo epistemológico contemporâneo

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CRÍTICA DE DUAS QUESTÕES RELATIVAS AO ANTI-
REALISMO EPISTEMOLÓGICO CONTEMPORÂNEO 
 
 
Ciro Flamarion Cardoso* 
 
 
Resumo. Discute-se criticamente o anti-realismo epistemológico próprio das atitudes 
teóricas pós-modernas, a partir do diagnóstico de que estas se fundam no 
entendimento falacioso de que qualquer codificação significa, necessariamente, não só 
uma seleção ou simplificação como também uma deformação ou deturpação da coisa 
codificada. Num primeiro momento, na revisão dessa tese, pautando-se pelos 
ensinamentos da paleoantropologia e da neurobiologia contemporâneas, questiona-se 
se o sistema nervoso humano deturpa a realidade ao pô-la ao alcance da mente pela 
coordenação das informações sensoriais. Em seguida, partindo da indagação de qual 
relação existe entre a narrativa e os fatos que descreve, entra-se no debate 
epistemológico sobre a a veracidade das explicações dos textos históricos. 
Palavras chave. epistemologia; pós-modernismo; teoria da história. 
 
 
 
CRITICISM OF TWO ISSUES REGARDING CONTEMPORARY 
EPISTEMOLOGICAL ANTI-REALISM 
 
ABSTRACT. This paper is a critical discussion of the epistemological anti-realism 
peculiar to post-modern theories from the diagnosis that they are based on the false 
notion that any codification necessarily means not only a selection or simplification 
bult also a deformation or adulteration of the object codified. In a first step in 
revising this thesis and supported by contemporary paleoanthropology and 
neurobiology it is questioned if the human nervous system adulterates reality while 
putting it at the reach of the mind through the coordination of sensorial information. 
Then questioning if there exists a relation between the narrative and the facts 
described follows an epistemological debate on the truthfulness of historical textbooks 
explanations. 
Key words. epistemology, post-modernism, theory of history. 
 
 
 
 
 
 
 
* Professor Titular de História Antiga da Universidade Federal Fluminense. 
Ciro Flamarion Cardoso 48
Problema antigo, luta sempre renovada 
 
O anti-realismo epistemológico, ponto central das posições pós-
modernas, não é, entretanto, uma invenção delas: é, de fato, bastante antigo. 
Posturas radicais a respeito foram defendidas muito antes que existisse o pós-
modernismo. 
Assim, por exemplo, para David Hume, em pleno século XVIII, a 
legitimidade do conhecimento dependeria inteiramente da natureza humana e 
de seus princípios, isto é, as operações mentais, aquilo cuja constância permite 
explicar o resto do que deve ser explicado. Mas se, para Descartes, o 
sentimento de si do indivíduo é o ponto de partida, para Hume não passa de 
uma crença, de uma rede de impressões cuja explicação não pode ser 
independente da natureza humana. Esta última, por meio dos princípios de 
semelhança, contigüidade e causalidade, promove as associações que originam 
idéias complexas a partir das sensações. Se a causalidade, princípio de 
associação, configura unicamente uma crença, sendo ela também uma idéia 
complexa, as bases metafísicas da prova da existência de Deus são destruídas, 
do mesmo modo que o realismo, posto que a realidade das coisas fora de nós 
passa a ser percebida como sendo, por sua vez, uma crença inferida por hábito 
a partir das impressões sensoriais − comprovadamente pouco confiáveis, 
imperfeitas −, o que se estende, aliás, ao próprio sujeito cognoscente. Na 
verdade, mesmo se Hume definia a si mesmo como um cético mitigado, é 
difícil imaginar, antes ou depois do filósofo em questão, um ataque mais 
demolidor às bases mesmas do racionalismo.1 
Mais perto de nós, leiamos a passagem seguinte de um livro que 
Cassirer publicou originalmente em 1944: 
O homem não pode escapar de seu próprio sucesso, não lhe 
resta mais remédio do que adotar as condições de sua própria vida: já não 
vive somente num universo puramente físico mas, sim, num universo 
simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião constituem partes deste 
universo, formam os diversos fios que tecem a rede simbólica, a trama 
complicada da experiência humana. Todo progresso no pensamento e na 
experiência refina e reforça esta rede. O homem já não pode enfrentar a 
realidade de modo imediato; não pode vê-la, digamos, frente a frente. A 
realidade física parece retroceder na mesma proporção em que avança sua 
atividade simbólica. Em lugar de tratar com as próprias coisas, em certo 
sentido conversa constantemente consigo mesmo. Envolveu-se em formas 
lingüísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou em ritos 
 
1 Para um bom resumo das questões envolvidas, ver Aurox, Weil, 1975: p. 115-117. 
Diálogos, DHI/UEM, 02: 47-64,1998. 
Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistemológico contemporâneo 
 
49
religiosos de tal forma que não pode ver ou conhecer coisa alguma senão 
através da interposição deste meio artificial. (Cassirer, 1975: 47-8) 
Nota-se que, muito antes de se poder falar em pós-modernismo, 
bastante antes mesmo do estruturalismo de Lévi-Strauss, as conseqüências da 
descoberta da dimensão semiótica para as concepções acerca da natureza 
humana − desembocando, nessa opção radical, no homo simbolicus − já 
haviam propiciado com toda clareza um pansemiotismo que faz pendant ao 
anti-realismo. 
A verdade, entretanto, é que certas lutas precisam ser empreendidas 
uma e outra vez, empregando as armas que cada época põe à disposição dos 
críticos das posições anti-realistas. Estas últimas e o realismo epistemológico 
continuarão a ter de enfrentar-se, simplesmente porque não há como provar 
que alguma das alternativas em combate seja certa ou errada. No máximo é 
possível dizer, com Mario Bunge (1976: 319-321), que a ciência pressupõe o 
realismo epistemológico; mas certamente não o prova, o que abre uma brecha 
suficiente àqueles que preferem acreditar que a busca da verdade está além das 
possibilidades dos seres humanos. 
 
Pode o Homem conhecer a realidade − física, social − a ele exterior? 
 
Criticando a teoria marxista do conhecimento, variante da teoria do 
reflexo, escreveu Jacques Monod (1970: 56), prêmio Nobel de Biologia: 
...os progressos da neurofisiologia e da psicologia experimental começam a 
revelar-nos alguns dos aspectos, pelo menos, do funcionamento do sistema 
nervoso. O bastante para que seja evidente que o sistema nervoso central 
não pode, sem dúvida nem deve, entregar à consciência uma informação 
que não esteja codificada, transposta, enquadrada em normas 
preestabelecidas; em suma, assimilada e não simplesmente restituída. 
Esta interpretação contém implicitamente uma falácia tomada como 
postulado: a de que qualquer codificação signifique, necessariamente, não só 
uma seleção ou simplificação como, também, uma deformação ou 
deturpação da coisa codificada. 
Será verdade que o sistema nervoso humano deturpe a realidade ao 
pô-la ao alcance da mente pela coordenação, no cérebro, das informações 
sensoriais? É estranho − e lamentável − que os debates a respeito da 
possibilidade ou não do realismo costumem deixar de lado o que a 
paleoantropologia e a neurobiologia contemporâneas possam ter a dizer sobre 
o assunto. 
Diálogos, DHI/UEM, 02: 47-64,1998. 
Ciro Flamarion Cardoso 50
O que torna nossa espécie − o Homo sapiens sapiens ou, segundo outro 
sistema de classificação, simplesmente Homo sapiens − algo à parte no mundo 
animal não é, acredita-se hoje, a capacidade de fabricar instrumentos; e, sim, a 
linguagem sofisticada que a caracteriza, única no quadro da zoologia terrestre 
(Lewin, 1988: 170-186). Mesmo se, nestas últimas décadas, psicólogos e 
especialistas em primatologia constataram experimentalmente um nível de 
“discurso” impressionante no relativo a chimpanzése gorilas no cativeiro, 
usando linguagens de sinais gestuais − já que o aparelho de fonação dos 
monos antropóides atuais não lhes permite falar, no sentido humano do verbo 
−, trata-se de algo impressionante pelo fato de antes se crer na impossibilidade 
de qualquer discurso da parte desses monos: fica muito aquém, no entanto, 
mesmo da capacidade de falar e expressar-se de uma criança pequena. 
 O desenvolvimento da garganta nos humanos atuais, caracterizado 
por uma faringe longa e uma laringe situada muito mais abaixo do que em 
qualquer outro mamífero, incluindo todos os outros primatas, impede − e é o 
único caso disto entre os mamíferos − que possamos engolir e respirar ao 
mesmo tempo, o que parece um problema grave (Laitman, 1984: 20-27). Por 
esta razão, se tal desenvolvimento esteve ligado ao da fala, como é provável, e 
foi selecionado pela evolução, que vantagens evolutivas a fala apresenta para o 
animal humano? O que é o mesmo que perguntar: como pôde emergir na 
evolução de nossa espécie? 
A resposta que primeiro vem à mente é que a linguagem humana 
constitui um poderoso instrumento de comunicação, o mais sofisticado e 
diversificado que existe neste planeta. Olhando para a evolução dos homínidas 
primitivos, no final do Terciário e durante o Quaternário, um dos aspectos 
marcantes, nela, foi a emergência de um modo de vida de coleta 
vegetal/animal e mais tarde de caça, mais complexo do que o de qualquer 
mono antropóide. A comunicação eficiente permitiria um controle mais 
aperfeiçoado sobre tal modo de vida e uma monitoração melhor do meio 
ambiente; propiciando, portanto, uma vantagem evolutiva que superaria a 
desvantagem da possibilidade de morrer engasgado ao tentar engolir e respirar 
ao mesmo tempo. Em outras palavras, a linguagem humana sofisticada seria o 
resultado da economia cooperativa de coletores/caçadores e suas 
complexidades: seria um elemento posto a serviço das tecnologias de 
subsistência (entre elas a produção de instrumentos).2
Esta maneira de ver, que parecia convincente, começou a ser 
desafiada pioneiramente, a partir dos anos 60, por Ralph Holloway, da 
 
2 Esta visão do processo foi adotada, por exemplo, em Leakey, Lewin, 1977: p. 148-177. Os 
autores posteriormente adotaram a opinião de Holloway, de que se falará a seguir. 
Diálogos, DHI/UEM, 02: 47-64,1998. 
Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistemológico contemporâneo 
 
51
Columbia University. Holloway defendeu a noção de que o desenvolvimento 
do cérebro se ligou ao da linguagem, e o da linguagem, mais às demandas 
derivadas das interações e controles sociais do que às da tecnologia de 
subsistência. Em função da complexidade das relações sociais − perceptível 
também, em grau muito apreciável, mesmo nos monos antropóides atualmente 
existentes −, o crescimento e a sofisticação do cérebro humano vincular-se-
iam à necessidade de construir um modelo especialmente complexo da 
realidade, incluindo nisto o mundo material mas talvez sobretudo os outros 
membros da mesma espécie, para entendê-los melhor e jogar eficazmente o 
“xadrez social”, que inclui alianças cambiantes e a tentativa de manipular 
alguns desses membros, em lugar de prender-se em forma principal a 
injunções nascidas da comunicação com outrem e da elaboração da tecnologia 
de subsistência.(Holloway, 1983:105-114; Leakey, Lewin, 1992: 252-311) 
A função central do cérebro é construir um modelo de realidade 
que permita ao animal existir neste mundo, nele funcionando e sendo 
bem sucedido. Quanto mais complexos sejam a vida de um animal e os tipos 
de interação com o mundo e com outros animais nela implicados, mais 
complexa, também, tem de ser a estrutura do modelo de realidade 
mentalmente construído. Assim, se um dos sentidos for 
especialmente importante para a maneira de viver e atuar de um animal, a(s) 
área(s) do cérebro associada(s) a tal sentido desenvolver-se-á(ão) 
especialmente. Um sapo vive num mundo sobretudo visual, uma serpente 
num mundo principalmente olfativo. Um cão elabora com alguma 
complexidade visão (não-estereoscópica nem em cores), olfato e audição. Cada 
sentido oferece uma avenida de acesso ao mundo: quantos mais sentidos 
forem importantes para um animal, mais complexas têm de ser as avenidas 
correspondentes mas, também, os circuitos mentais que permitam integrá-las 
num todo, num modelo complexo do mundo. O modo de fazer isto, entre os 
animais, é por meio do desenvolvimento do cérebro. Ora, a passagem de 
anfíbio para réptil, de réptil para mamífero − como formas surgidas 
sucessivamente na evolução das espécies − significou, em cada caso, cérebros 
maiores e mais complexos. De modo análogo, entre os mamíferos, o cérebro 
dos primatas é em média duas vezes maior em relação ao tamanho e ao peso 
do corpo do que os cérebros dos outros mamíferos; e, entre os primeiros 
homínidas conhecidos, os australopitecos, e o homem atual, o cérebro em 
média triplicou. (Leroi-Gourhan, 1983; Leakey, 1994: 139-157) 
O grande cérebro dos primatas não parece poder explicar-se, seja 
porque sua subsistência exija uma intelectualidade tão mais desenvolvida, seja 
porque explorem melhor seu meio ambiente no sentido da subsistência. 
Quanto ao primeiro ponto, cada primata do passado ou do presente partilha 
Diálogos, DHI/UEM, 02: 47-64,1998. 
Ciro Flamarion Cardoso 52
o(s) meio(s) ambiente(s) em que vive e atua com muitas espécies não-primatas; 
e não pode ser demonstrado que sua exploração da natureza para a busca de 
alimentos seja superior a de tais espécies. O mesmo quanto à relação, por 
exemplo, entre mamíferos e dinossauros: se a possibilidade de explorar nichos 
ecológicos fosse maior nos mamíferos, o número de espécies deles deveria ser 
superior, nicho a nicho, ao das espécies de dinossauros; ora, tal número é 
grosso modo similar. E, no entanto, não há qualquer dúvida de que os 
mamíferos tenham uma capacidade superior à dos dinossauros de construir 
um modelo do mundo, ou de que tal capacidade seja maior, nos primatas, do 
que nos outros mamíferos, ou ainda que, nos humanos, esteja muito acima da 
dos demais primatas. 
O que hoje se crê é que, embora a relação de subsistência com o 
meio ambiente natural não seja mais eficiente ou exigente no caso dos 
primatas do que nos dos outros mamíferos, a coisa muda se a comparação 
versar sobre o meio ambiente social. O “xadrez social” jogado pelos primatas 
é mais complexo do que o xadrez comum, já que as regras, derivadas de 
alianças e antagonismos mutáveis no tempo, se transformam ou até se 
invertem, o mesmo se aplicando ao papel e à hierarquia das “peças” 
intervenientes no jogo. A importância desse jogo nas relações sociais, ao 
estabelecer-se, leva à necessidade de uma infância protraída − de que os 
filhotes passem muito tempo aprendendo o modelo mental do mundo, no 
tocante à subsistência mas também à interação social −, sendo isto indicador 
de uma retroalimentação entre diferentes níveis das interações sociais. 
Assentada esta “escola de vida” entre os primatas como mecanismo de 
sucesso, biologicamente falando, ela introduziu mecanismos de seleção 
próprios. Os primatologistas estão de acordo em que não são os espécimes 
mais fortes e mais agressivos aqueles que, entre primatas, conseguem mais 
acasalamentos: são os mais capazes de jogar com sucesso o “xadrez social”. 
Em função do anterior, alguns especialistas chegam a inverter o que 
se afirmava antes: a necessidade de ganhar mais tempo para a socialização é 
que teria forçado a melhorar as técnicas de subsistência entre os primatas, 
ainda mais no caso dos humanos; por exemplo, quanto a estes últimos, 
introduzindo carne na dieta, o que aconteceu, no tocante à caça de animais de 
tamanho considerável, 1,6 milhão de anos atrás, na fase do Homo erectus; ou 
talvez aindaantes, com o Homo habilis (Lewin, 1988: 178-180). 
A psique humana compreende três componentes básicos. A 
cognição inclui aprendizagem, lógica, raciocínio, capacidade de resolver 
problemas. A emoção envolve coisas como sofrimento, depressão, excitação, 
alegria. E a consciência é aquilo que permite ao homem dar-se conta do que 
ele sabe, bem como tentar prever o futuro, o que inclui o conhecimento de sua 
Diálogos, DHI/UEM, 02: 47-64,1998. 
Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistemológico contemporâneo 
 
53
mortalidade: com a consciência, a vida percebe-se a si mesma no mundo, 
domesticando simbolicamente o tempo e o espaço. A consciência provê o 
“olho interior” que possibilita a auto-análise e em seguida a aplicação do que 
nela se aprenda, estendendo os seus resultados ao esforço de inteligência e 
previsão das motivações de outrem − esforço este que informa os 
antagonismos, as alianças, as defesas, as manipulações, no complexo jogo 
social humano (Leakey, 1994: 139-157). 
A linguagem dos homens − sem paralelo em sua complexidade no 
mundo animal deste planeta − é acima de tudo um instrumento de construção 
de um modelo complexo do mundo físico e social, mais ainda do que um 
modo de comunicar e passar adiante instruções. O estudo paleoantropológico 
das origens e evolução da linguagem articulada humana é dificultado pelo fato 
de que o cérebro não se conserva nos fósseis − tem de ser estudado através de 
moldes do interior dos crânios, o que é muito imperfeito, pois não basta uma 
idéia de como é a superfície do cérebro para compreender como funciona, 
onde nele se localizam as diferentes funções −, o mesmo se aplicando ao 
aparelho fonador, que é cartilaginoso ou de carne e tem de ser inferido 
indiretamente, por exemplo, analisando-se a formação progressiva de uma 
base cranial curva nos homínidas, em contraste com uma base do crânio reta 
nos outros primatas. A origem da fala articulada , no entanto, não tem por que 
ocupar-nos aqui.3
O neurobiólogo Harry Jerison (1991) estudou a trajetória da 
evolução cerebral e, em função dela, da mente, desde o início da vida em terra 
firme. Baseando-se em seu estudo, eis aqui as conseqüências tiradas por 
Richard Leakey (1994:144): 
Qualquer dono de cachorro sabe que existe um mundo olfativo 
aberto ao ser canino, mas não ao humano. As borboletas podem ver a luz 
ultravioleta: nós não podemos. O mundo dentro da cabeça − no caso do 
Homo sapiens, do cão ou da borboleta − é, pois, formado pela natureza 
qualitativa do fluxo de informação do mundo exterior para o mundo 
interior, e pela capacidade que tiver o mundo interior de processar a 
informação. Há uma diferença entre o mundo real ‘lá fora’ e aquele 
percebido na mente, ‘aqui dentro’. 
E ainda: 
“Na medida em que os cérebros aumentaram no curso do 
tempo da evolução, mais canais de informação sensorial puderam ser 
 
3 Ver, entretanto, para algumas das variadas opiniões a respeito: Bunak,1973: p. 127-134; 
Lieberman, 1975; Lyons, 1988: p. 141-166; Tattersall, 1995: p. 245; Leakey, 1994: p. 119-138. 
Diálogos, DHI/UEM, 02: 47-64,1998. 
Ciro Flamarion Cardoso 54
manipulados de maneira mais completa, sua informação integrada mais 
cabalmente. Os modelos mentais, por tal razão, passaram a equacionar as 
realidades ‘lá fora’ e ‘aqui dentro’ mais de perto, embora, como foi 
mencionado há pouco, com lacunas inevitáveis na informação.” 
Assim, voltando à opinião de Jacques Monod com que comecei, ela 
está em desacordo com a corrente principal do raciocínio tanto paleontológico 
quanto neurobiológico da atualidade. E, dada a tendência explicativa que 
domina agora nessas áreas, seria ainda menos válido afirmar que estejamos 
pouco capacitados ao conhecimento adequado da realidade social. 
 
Narrativa e mundo real: continuidade ou descontinuidade? 
 
Que relação existe entre a narrativa e os fatos que descreve? Este é 
um importante debate epistemológico, tendo a ver diretamente com a 
veracidade (ou não) das explicações que assumem a forma de um relato, como 
ocorre freqüentemente no caso dos textos históricos. Portanto, com os 
debates envolvendo realismo e anti-realismo (neste caso acompanhado de uma 
tentativa de estetização) no domínio específico do conhecimento histórico: 
trata-se de decidir se a história produz textos científicos ou, meramente, 
textos da mesma ordem dos da literatura ficcional. 
Os historiadores tradicionais praticavam o realismo do objeto e 
acreditavam na veracidade das narrativas históricas, desde que estas seguissem 
certas regras de elaboração. Em anos recentes, porém, num assalto a tal 
posição que não é o primeiro mas usa um vocabulário e argumentos por vezes 
diferentes dos anteriores, filósofos, teóricos da literatura e certos historiadores 
partem do princípio de que os fatos reais humanos não se agrupam como nas 
narrativas, pelo qual, qualquer texto narrativo que deles pretender dar conta os 
falseia necessariamente pela sua própria forma narrativa de ser. Em história, 
este é um dos caminhos que conduzem ao ceticismo epistemológico, 
habitualmente por meio do que se convencionou chamar de “virada 
lingüística”, configurada na França pela “desconstrução” propugnada por pós-
estruturalistas como, por exemplo, Jacques Derrida e Gilles Deleuze, nos 
Estados Unidos, em especial, pelas propostas filosóficas de Richard Rorty, em 
seguida por autores como Hayden White e Dominick LaCapra. (Kelley, 1996: 
39-43) Neste texto, estarei seguindo as opiniões, contrárias a tal posição, de 
David Carr, o qual afirma que, longe de deformar os fatos que relata, a 
narrativa prolonga seus traços fundamentais. Em outras palavras, existiria uma 
Diálogos, DHI/UEM, 02: 47-64,1998. 
Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistemológico contemporâneo 
 
55
comunidade formal de características entre a narrativa e a realidade humana, 
tanto a individual quanto a coletiva.4
As teorias que afirmam a descontinuidade entre narrativa e realidade 
argumentam com freqüência que a organização do texto em forma de relato 
impõe aos fatos a que se refere uma estrutura em forma de relato com 
começo, meio e fim − estrutura que procede do fato de narrar, não dos 
próprios fatos vividos no mundo real. A narrativa não passa de produto de 
uma construção do imaginário (da “imaginação histórica”, diz Hayden White); 
não tem qualquer veracidade, mesmo quando apoiada em fontes, pois não se 
trata de uma questão de documentação: tratar-se-ia de uma descontinuidade 
profunda. Não há começo, meio e fim na vida individual ou coletiva: há mera 
seqüência de eventos que “terminam” onde se quiser, mas nunca concluem, 
posto que sempre existem um antes e um depois. Se acreditarmos nas 
reconstruções narrativas, transformar-nos-emos em prisioneiros de um mito. 
A narrativa simplifica − elimina ruído, no sentido dado ao termo pela teoria da 
comunicação − e estrutura as coisas, mas isto nada tem a ver com o real, não o 
representa adequadamente. Trata-se de uma característica do texto, de um 
efeito textual: pertence unicamente aos textos, não à realidade. 
Em outros termos: textos e realidades se situam em planos distintos, 
que não há como aproximar. Ao se operar uma assimilação dos planos, cai-se 
na ilusão, no escapismo, no desvio; ou mesmo, tal operação pode constituir 
um instrumento de poder e manipulação. 
Os que pensam assim dividem-se em suas opiniões quanto ao 
mundo real. Alguns acreditam numa realidade contingente, aleatória, na qual 
agem quando muito probabilidades estocásticas. Outros crêem numa realidade 
determinada e causal. Mas, em qualquer hipótese, tratar-se-ia de uma realidade 
externa ao conhecimento humano ou, pelo menos, estranha às tentativas de 
reduzi-la a uma narrativa que de fato a representasse, reproduzisse ouimitasse. 
A estratégia, na crítica às posições derivadas da “virada lingüística”, 
pode variar. Convém, então, esclarecer em que sentido vão as contribuições de 
David Carr de que aqui nos ocupamos. Trata-se acima de tudo de uma 
resposta a teorias como as de Louis O. Mink e Hayden White, autores que, 
para Carr (1991:89), 
...propõem ser a coerência narrativa uma superposição extravagante mas 
estranha e deturpadora [em relação à realidade social − C.F.C.], um sonho 
de coerência onde de fato ela absolutamente não existe. Para eles, a loucura 
 
4 Sintetizaremos as opiniões do autor segundo dois textos: Carr, 1986: p. 15-27 e Carr, 1991. 
Não vemos razão de multiplicar as notas de rodapé ao proceder a tal síntese: fique claro que, 
cada vez que mencionamos as noções defendidas por Carr, a base são estes dois textos. 
Diálogos, DHI/UEM, 02: 47-64,1998. 
Ciro Flamarion Cardoso 56
consiste em supor que o mundo real tem coerência narrativa, quando o 
realista convicto deveria supostamente reconhecer que não a tem. 
Diante de teóricos que, como Hayden White e (ainda mais 
radicalmente) Hans Kellner, neguem a existência, lá fora, de uma história que 
precise ser contada (White, 1994: 23-48; Kellner, 1989), uma forma possível de 
crítica consiste em demostrar que a história em questão existe sem dúvida lá 
fora, isto é, no relativo aos indivíduos e grupos humanos; e que, portanto, 
pode e deve ser contada. É esta a estratégia de Carr. Seus argumentos contra a 
descontinuidade e a favor da continuidade entre a narrativa e o mundo social 
real se organizam em dois níveis: o dos indivíduos e o das coletividades. 
Tratemos de resumir, de início, o que tem a dizer no tocante ao patamar 
individual. 
Segundo Husserl, mesmo a experiência mais passiva inclui a 
retenção do passado imediato e a antecipação tácita do futuro, que chama de 
“protensão”. Não é possível viver algo como presente se não for em 
confronto com aquilo a que tal momento sucede e com o que antecipamos 
que sucederá ao momento em questão. Na vida ativa, com maior razão, 
consultamos experiências passadas e prevemos o futuro: o presente é só um 
trânsito do passado ao futuro. Se o que ocorre na experiência é um 
instrumento ou um obstáculo a nossos projetos, desejos e esperanças, a vida 
não se configura como uma seqüência desestruturada de eventos isolados. 
A estrutura da ação (passado/presente/futuro, começo/meio/fim) é 
comum ao texto e à vida, à narrativa e à realidade. Quem propõe a 
descontinuidade, afirmando que na vida real não há começo, meio e fim, 
esquece não só o nascimento e a morte como, também, inúmeras formas 
menos definitivas de estruturações dotadas de inícios e conclusões. Por que 
um início não seria real, na vida, só pelo fato de que antes dele aconteceram 
outras coisas? Ou por que não o seria um fim, só porque depois vieram outros 
eventos? 
A estrutura dos acontecimentos da vida é complexa quanto às 
estruturações temporais: configurações imbricam-se em durações distintas, que 
se entrelaçam e recebem definição e significado a partir da própria ação. O 
fato de que haja diferenças entre os projetos humanos e o que deles de fato 
resulta traz suspense; mas não faz da ação ordinária um caos desconexo. 
Outro modo de argumentar a favor da descontinuidade consiste em 
dizer que na vida não há um narrador (um historiador), nem um público leitor. 
O relato não só organiza: escolhe, simplifica, elimina as interferências e o 
ruído. Unicamente uma minoria de fatos e ações se incorpora ao relato. Na 
vida, nada disso é verdadeiro: permanecem todas as interferências e 
incoerências, todo o ruído. Outrossim, a posição ex post do narrador que 
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Crítica de duas questões relativas ao anti-realismo epistemológico contemporâneo 
 
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escreve um texto permite correlações e deduções totalmente invisíveis (e 
impossíveis de estabelecer) para os que viveram o processo que se pretende 
estar narrando ou relatando. Por isso mesmo, retrospectivas e antecipações são 
possíveis no relato, não na vida real. Na verdade, três pontos de vista acerca da 
seqüência de que se estiver tratando são os que interferem: 1) do narrador; 2) 
do público; 3) dos personagens. No caso da história, os personagens não têm 
acesso à organização dos eventos que, a posteriori, é proposta pelo historiador: 
na vida real, ninguém narra os eventos nem os transforma num relato, posto 
que narrar supõe um conhecimento externo e superior. 
 
Para criticar esta postura, Carr retoma Husserl: o presente é um 
ponto de vista que se abre para o passado e para o futuro. O futuro figura, na 
experiência, como uma potencialidade do que ainda vai acontecer. As ações 
humanas são teleológicas, orientadas a um fim; isto é, orientadas para um 
futuro que se projeta. O centro da atenção, na vida ativa, longe de residir no 
presente, está no futuro. Na visão de Heidegger, não se trata das ferramentas 
mas, sim, do trabalho a realizar. 
Isto acontece tanto quando estamos em plena ação quanto ao haver 
um distanciamento reflexivo e deliberado, como por exemplo ao formularmos 
projetos, avaliarmos e revisarmos as circunstâncias que mudam, o já realizado 
e o que falta em dada seqüência de tarefas, etc. A deliberação é antecipação do 
futuro, é o que unifica a ação em passos, etapas, meios e fins. É óbvio que ela 
não pode estar limitada ao presente. É claro, também, que na vida há 
incoerências e ruído ou estática que, ao deliberarmos acerca do que fazer, não 
temos como eliminar; simplesmente, nós reconhecemos a sua existência e os 
descartamos das análises. 
O futuro é aqui só imaginado ou planejado: não se trata, 
obviamente, da posição ex post do historiador, pois esta última é real, não 
aparece limitada por circunstâncias que, na vida real, podem furar toda e 
qualquer previsão ou projeção do futuro. O que importa, porém, para o 
argumento, é que mesmo um futuro projetado ou previsto cria, na vida real, a 
possibilidade de transformá-la em relato coerente − para nós mesmos ou para 
outros com que falemos − e em função do qual se possa agir. A atividade 
narrativa, neste sentido, é parte inseparável do plano de ação, não é só algo 
incidental ou externo. A vida não somente se vive, ela se relata, se conta o 
tempo todo: vivemos o relato, relatamos a vida. Com freqüência mudamos o 
relato, ou seja, nossa visão acerca da vida, para levarmos em conta novos 
eventos incidentes; mas também tentamos, na medida do possível, mudar os 
eventos para salvar o relato, isto é, o plano, a versão, o futuro projetado. É 
absolutamente falso pretender que primeiro vivamos e só depois contemos o 
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Ciro Flamarion Cardoso 58
que fizemos − falseando-o ao narrá-lo −, já que a narração retrospectiva não é 
oposta à visão do agente, é apenas um refinamento e extensão de um ponto de 
vista que está embutido na própria ação anteriormente efetuada. Em suma, a 
ação narrativa é prática antes de ser cognitiva ou estética. Minha história de 
vida é contada − a mim mesmo ou a outros − já enquanto vou vivendo e, não, 
unicamente depois; ela é contada no decorrer do próprio processo de viver. 
Uma posição similar à de Carr foi exposta por Eric Hobsbawm 
(1997: 38): 
...a parte maciçamente predominante da ação consciente humana que se 
baseia na aprendizagem, na memória e na experiência constitui um vasto 
mecanismo para confrontar constantemente o passado, o presente e o 
futuro. As pessoas não podem deixar de tentar prever o futuro através de 
alguma forma de ler o passado. Elas têm de o fazer. Os processos 
ordinários da vida humana consciente, para não mencionar a tomada 
pública de decisões, exigem-no. 
Vou agora tratar dos argumentos de David Carr, no tocante à 
continuidade entre narrativa e mundosocial real, quanto ao nível coletivo. 
A palavra “nós” às vezes significa só uma forma abreviada de reunir 
atores individuais. Mas nem sempre. A vida social inclui casos importantes em 
que os indivíduos participantes atribuem, mediante a própria participação, a 
sua experiência e as suas ações a um sujeito maior, a um agente coletivo de que 
cada um deles faz parte. 
Podemos, então, estender do eu para o nós o que se disse 
anteriormente: o tempo social humano, tal como o tempo individual, constrói-
se tendo como base seqüências configuradas ou estruturadas que integram 
fatos e projetos da ação e da experiência comuns. Também neste caso, a 
estrutura do tempo social real é narrativa. Em cada presente, é a projeção 
prospectiva/retrospectiva que lhe dá sentido e configuração, unificando os 
fatos e ações num projeto reconhecível quanto aos objetivos. 
Há, por certo, uma particularidade, ao se tratar de coletividades: a 
divisão do trabalho multiplica os pontos de vista e os papéis. Narrador, 
público e personagens podem ser pessoas diferentes. Certos indivíduos podem 
falar em nome do grupo e relatar o que “nós” estamos querendo ou fazendo. 
É preciso, sem dúvida, que o relato em questão seja aceito pelo grupo. Nem 
todos os grupos são um “nós” consciente: pode tratar-se de um “eles” 
somente estatístico, unificado por residência, sexo, etnia, posição numa 
estratificação econômica, etc. Entretanto, as próprias características objetivas 
que configuram um “eles” estatístico − alguma(s) dessa(s) característica(s) − 
em certas circunstâncias podem servir de base ao surgimento de uma 
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comunidade, de um “nós” consciente e disposto a uma ação concertada: nós 
os socialistas, nós os negros, nós as mulheres, nós os democratas etc. 
Para que aconteça algo assim, é preciso um relato articulado, aceito e 
interiorizado que diga das origens e destinos da comunidade de que se tratar e 
interprete o presente em função do passado reconstituído e do futuro 
projetado. Sem isto, não há como conservar o grupo coeso contra ameaças 
externas e eventual fragmentação interna, nem como mantê-lo agindo como 
grupo. De novo, a função narrativa é prática antes de ser cognitiva, é parte e 
condição sine qua non das ações sociais organizadas. Não se trata, também 
aqui, de uma reconstituição ex post, mas de algo embutido na própria ação. 
Obviamente, as comunidades em questão, os grupos de que se falava, podem 
ser efêmeros ou duráveis, mais ou menos vastos e importantes: nações-Estado, 
grupos lingüísticos ou religiosos, uma igreja, uma faculdade, um partido ou 
facção etc. 
O “eu” e o “nós” de que se falou não configuram realidades físicas: 
mas têm existência real, não são meras ficções; e se baseiam sempre em 
relatos ou narrativas. Por isto, os textos históricos, narrativas eles também, não 
são um desvio ou deturpação da estrutura dos fatos ou processos de que 
falam, que narram: são uma extensão legítima de suas características 
intrínsecas. 
O processo narrativo prático de primeiro nível, constitutivo de uma 
pessoa ou de uma comunidade, pode converter-se legitimamente em processo 
narrativo de segundo nível, cognitivo. Isto acarretará mudanças no conteúdo. 
Um historiador pode contar a história de uma comunidade de um modo muito 
diferente de como a comunidade narrava-se a si mesma por meio de seus 
dirigentes, cronistas, jornalistas, clérigos, etc. Mas a diferença não residirá na 
forma. As narrativas de segundo nível não refletem ou reproduzem, 
simplesmente, as de primeiro nível que tomam como tema: elas as mudam e 
melhoram o relato, mesmo porque sem dúvida se aproveitam da posição ex 
post do historiador. Mas não é verdade que a forma narrativa, própria do 
segundo nível, inexista no primeiro e que, por isto, narrativa e realidade vivida 
sejam irreconciliáveis, existam em planos distintos que não façam intersecção. 
Até aqui os argumentos de Carr. Recordarei que há outras formas − 
preferidas por Paul Ricoeur num nível filosófico e retórico, ou por Roger 
Chartier numa discussão intrínseca à “operação histórica” − de opor-se aos 
efeitos anti-realistas da “virada lingüística”. Ricoeur, por exemplo, propõe 
reformular o realismo espontâneo do objeto que, na sua maioria, praticam 
implícita ou explicitamente os historiadores, mediante a ligação da história-
disciplina com uma teoria da ação e por uma consideração, à maneira de 
Michel de Certeau, dos elementos que justificam a continuidade entre a práxis 
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Ciro Flamarion Cardoso 60
dos historiadores e a práxis humana em geral (desembocando num “realismo 
crítico”) (Ricouer, 1994: 7-24). Roger Chartier, que também invoca de Certeau, 
defende o status da história como prática científica devido à existência, nela, de 
regras que permitem controlar operações por meio das quais se produzem 
determinados enunciados científicos (Chartier, 1994: 111; Hobsbawn, 1997: 
266-277). Por fim, há aqueles que escolhem o caminho da ética, enfatizando os 
efeitos socialmente deletérios decorrentes, sem escapatória, da evacuação nos 
estudos históricos da noção de verdade − evacuação resultante da 
“desconstrução” e da “virada lingüística” (Vidal-Naquet, 1987; Himmelfarb, 
1995: 122-161). 
 
À guisa de conclusão 
 
Em seu último livro, o historiador Christopher Lasch, falecido em 
1994, traça os contornos do que chama de “novas elites”, de natureza 
profissional e gerencial, baseadas mais na manipulação de informação e de 
conhecimentos profissionais do que no controle da propriedade ou do capital; 
fascinadas, no entanto, pelo jogo do mercado e engajadas numa luta frenética 
para aumentar os seus ganhos. Intelectualmente, caracteriza-as uma “cultura 
do discurso crítico” − e, eu acrescentaria, do “politicamente correto”. Estas 
novas elites também se distinguem das do passado por se reconhecerem muito 
mais como integrantes de um sistema internacional que não aceita fronteiras 
do que como estando ligadas a um Estado-nação específico. 
Declarando-se tolerantes por princípio, os membros dessas novas 
elites, 
Quando confrontados com resistência a [suas] iniciativas, traem 
o ódio venenoso que jaz não muito abaixo da face sorridente da 
benevolência de classe média. A oposição (...) [lhes] faz esquecer as virtudes 
liberais que afirmam defender. Tornam-se petulantes, auto-justificativos, 
intolerantes. No calor da controvérsia política, acham impossível ocultar 
seu desprezo por aqueles que teimosamente se recusam em ver a luz: 
aqueles que ‘simplesmente não entendem’, na linguagem satisfeita consigo 
mesma do politicamente correto. (Lasch, 1995: 28) 
Isto se ajusta como uma luva aos pós-modernos. Também eles 
pretendem estar combatendo a intolerância, a “evacuação de saberes 
alternativos” a partir de discursos que, dos “lugares de onde falam”, exercem 
um “poder do saber” que revela um “saber do poder” − ou do “desejo de 
dominação”. Sim, mas... Mas, farisaicamente, ninguém costuma ser mais 
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intolerante do que um pós-moderno no debate intelectual. Mesmo porque, 
para quem jogou o racionalismo às urtigas, seja com os argumentos que for, o 
remédio é tentar calar o adversário a golpes de afirmações apodíticas e 
retóricas. Ou a golpes de ironia: recorde-se, a respeito, o “riso filosófico 
silencioso” recomendado por Foucault diante dos que insistam em falar do 
homem depois de ter o filósofo francês proclamado a sua morte. Não me 
parece, outrossim, que a semelhança com o que diz Lasch sobre as novas elites 
seja casual: pelo contrário, elas são a base social fundamental do pós-
modernismo, sobretudo em partes do mundo quecontam mais na emergência 
e reprodução da corrente, como os Estados Unidos ou os países da Europa 
Ocidental. (Callinicos, 1991: 170-171) 
A arrogância pode ocultar debilidades ou aporias insolúveis. Isto é 
verdade também no plano epistemológico. Vou exemplificar. Lawrence 
Cahoone inclui, entre os fundamentos da postura dos pós-modernos, o que 
chama de crítica da transcendência das normas, levada a cabo em favor da 
afirmação de sua imanência. Seria falso pretender que uma categoria de coisas 
− as normas − possa independer da semiose, da experiência, ou de interesses 
sociais delimitados. Isto os leva a responder às pretensões normativas de 
outros mediante a exposição dos processos de pensamento, escrita, negociação 
e poder que, segundo eles, as produziram. Ocorre, entretanto, que os pós-
modernos não se privam de ter suas próprias pretensões normativas: pelo 
contrário, são bastante vociferantes a respeito. Como impedir, então, que o 
feitiço se volte contra o feiticeiro e seu discurso normativo seja submetido a 
uma análise crítica metodologicamente de corte pós-moderno, mas que torne 
impossíveis todas as pretensões pós-modernas ao estabelecimento de normas 
(as que partam do multiculturalismo como valor, por exemplo)? (Cahoone, 
1996: 15-16). 
Este artigo teve objetivos limitados. Quis mostrar, escolhendo dois 
pontos bem delimitados no campo do debate atual entre realismo e anti-
realismo, que as posições pós-modernas a respeito são, no fundo, bastante 
débeis. No tocante aos itens especificamente abordados, num caso ignoram de 
todo a questão das bases do conhecimento do mundo e do social pelos 
primatas e pelo homem atual como vem sendo enfocada recentemente pela 
paleoantropologia e pela neurobiologia: um enfoque que vai em sentido 
contrário ao que seria necessário para apoiar o anti-realismo. No outro, os 
argumentos de David Carr − que, ironicamente, volta contra os pós-modernos 
uma parte de seu próprio arsenal filosófico, ao usar na crítica a eles Husserl e 
Heidegger − mostram carecer de substância o divórcio entre narrativa e 
realidades humanas (individuais e coletivas) que alguns integrantes da “virada 
lingüística” pretenderam estabelecer, por meio de uma abordagem retórica 
Diálogos, DHI/UEM, 02: 47-64,1998. 
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parcial − trópica e, no âmbito da trópica, concentrada na ironia − da história 
escrita pelos historiadores. 
O anti-realismo, nas ciências sociais, não é politicamente inocente. 
Independentemente das intenções − e a sabedoria popular afirma que o 
caminho do inferno está atapetado de boas intenções −, conduz à idéia de que 
todas as versões se equivalem, enquanto qualquer pretensão a um horizonte 
mais holístico ou geral seria ilusória, impossível, perversa ou voltada para a 
manipulação. Não é possível enfrentar o establishment para valer, isto é, num 
sentido que não seja o de meras lutas parcializadas, sem uma visão holística do 
social a partir da qual se proponham alternativas. Concluirei citando uma 
passagem de Eric Hobsbawm (1997: 277) que conta com minha total 
aprovação: 
Uma história destinada unicamente aos judeus (ou aos afro-americanos, 
ou aos gregos, ou às mulheres, ou aos proletários, ou aos homossexuais) 
não pode ser boa história, embora possa ser uma história consoladora para 
os que a praticam. 
 
 
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Diálogos, DHI/UEM, 02: 47-64,1998. 
	CRITICISM OF TWO ISSUES REGARDING CONTEMPORARY EPISTEMOLOGIC
	Problema antigo, luta sempre renovada
	Narrativa e mundo real: continuidade ou descontinuidade?
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