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Arq Bras Cardiol 2003; 80: 593-9. Escosteguy e cols Infarto agudo do miocárdio: perfil clínico-epidemiológico 5 9 3 Hospital dos Servidores do Estado/SUS/Rio de Janeiro Correspondência: Claudia Caminha Escosteguy- Av Alexandre Ferreira, 361 22470-220 Rio de Janeiro, RJ. E- mail: cescosteguy@hse.saude.gov.br Recebido para publicação em 04/04/02 Aceito em 26/08/02 Arq Bras Cardiol, volume 80 (nº 6), 593-9, 2003 Claudia Caminha Escosteguy, Margareth Crisóstomo Portela, Roberto de Andrade Medronho, Maurício Teixeira Leite de Vasconcellos Rio de Janeiro, RJ Infarto Agudo do Miocárdio: Perfil Clínico-Epidemiológico e Fatores Associados ao Óbito Hospitalar no Município do Rio de Janeiro Artigo Original As doenças cardiovasculares têm um papel prepon- derante nos indicadores de morbi-mortalidade no Brasil, sendo a primeira causa de mortalidade proporcional no país desde a década de 60 do século XX. Em 1998, 25% dos óbi- tos masculinos e 31,3% dos femininos foram por doenças cardiovasculares1. A doença isquêmica do coração, incluin- do o infarto agudo do miocárdio, é o componente principal dessa mortalidade nas cidades da Região Sul e Sudeste1,2. O infarto agudo do miocárdio é um evento agudo que sempre requer internação hospitalar, tendo um diagnóstico clínico relativamente simples e bem estabelecido, geralmen- te baseado no tripé história clínica, evolução eletrocardio- gráfica e curva enzimática3,4. O seu manuseio conta com inúmeras opções terapêuticas, com eficácia demonstrada por evidências científicas, que têm sido amplamente divul- gadas através de diretrizes práticas por várias sociedades internacionais e, também, pela Sociedade Brasileira de Car- diologia3,5. Entretanto, alguns estudos mostram que a existência ou mesmo o conhecimento dessas diretrizes não tem garan- tido uma prática assistencial baseada em evidências cientí- ficas. É grande a variação do perfil de uso de intervenções terapêuticas no infarto agudo do miocárdio relatada na lite- ratura, muitas vezes mostrando a não adesão a protocolos bem estabelecidos6-16. Recentemente, um estudo sobre per- fis de tratamento farmacológico no infarto agudo do miocár- dio no município do Rio de Janeiro mostrou a subutilização de intervenções com eficácia documentada no infarto agu- do do miocárdio, tais como trombolíticos IV, ácido acetilsa- licílico, betabloqueadores e nitratos IV, e uso relativamente disseminado de bloqueadores de cálcio, sem base em evi- dências científicas17. A variação relatada na mortalidade hospitalar também tem sido grande, podendo estar relacionada, entre outras razões, a diferenças no perfil de gravidade dos casos, assim como a diferenças na qualidade da assistência médica, in- cluindo seu processo7, 10-15, 17-22. Objetivo - Analisar o perfil e fatores associados ao óbito hospitalar nas internações por infarto agudo do miocárdio no Sistema Único de Saúde (SUS), no municí- pio do Rio de Janeiro. Métodos - Amostra aleatória estratificada por hospi- tal de 391 prontuários sorteados entre os casos de infarto agudo do miocárdio registradas no Sistema de Informa- ções Hospitalares em 1997. Resultados - Confirmação diagnóstica 91,7%; 61,5% homens; idade média =60,2 ± 2,4 anos; delta tempo mediano até hospitalização 11h; 25,3% diabéticos; 58,1% hipertensos; 82,6% em classe Killip I à admissão. A letalidade hospitalar 20,6%. Trombólise intravenosa 19,5%; ácido acetilsalicílico (AAS) - 86,5%; betablo- queadores - 49,0%; inibidores da enzima conversora do angiotensina (IECA) - 63,3%; bloqueadores de cálcio - 30,5%. Fatores associados a aumento da chance de óbito: idade (61-80 anos: OR=2,5; >80 anos: OR=9,6); classe Killip (II: OR=1,9; III: OR=6,0; IV: OR=26,5); diabetes (OR=2,4); taquicardia ventricular (OR=8,5); fibrilação ventricular (OR=34,0); isquemia recorrente (OR=2,7). O uso de AAS (OR=0,3), betabloqueadores (OR=0,3) e IECA (OR=0,4) associaram-se à redução dessa chance. Conclusão - Letalidade geral foi alta. Houve subuti- lização de algumas intervenções eficazes (trombolíticos, AAS, betabloqueadores IV). O modelo logístico do- cumentou o efeito benéfico do uso de AAS, betabloquea- dores e IECA sobre o risco de morte hospitalar. Palavras-chave: infarto agudo do miocárdio; mortalidade hospitalar; análise multivariada. 5 9 4 Escosteguy e cols Infarto agudo do miocárdio: perfil clínico-epidemiológico Arq Bras Cardiol 2003; 80: 593-9. Considerando todos esses aspectos, este estudo tem como objetivo analisar o perfil clínico-epidemiológico de uma amostra representativa dos casos de infarto agudo do miocárdio internados no Sistema Único de Saúde (SUS), no município do Rio de Janeiro, identificando os principais fa- tores associados à variação no risco de morte hospitalar, in- cluindo aqueles relativos à gravidade dos casos e ao pro- cesso da assistência médica. Métodos Estudo seccional de uma amostra aleatória de 391 prontuários médicos, estratificada por hospitais, sorteada a partir do universo das 1.936 internações registradas com diagnóstico principal de infarto agudo do miocárdio na base da AIH (Autorização de Internação Hospitalar) do Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS) em 1997, no municí- pio do Rio de Janeiro. O cálculo do tamanho da amostra le- vou em consideração a proporção de pacientes e óbitos, com um erro relativo de 10% e um nível de significância de 5%, em um modelo de amostragem estratificada com aloca- ção proporcional e sem reposição23. Os pacientes foram sorteados, a partir dos 22 hospitais incluídos na amostra; do universo inicial de 38 hospitais, e excluídos aqueles que atenderam menos de 10 casos no ano estudado. O trabalho de campo envolveu coleta de dados nos prontuários médi- cos para a confirmação do diagnóstico do infarto agudo do miocárdio, dados sobre fatores de risco e gravidade, e da- dos sobre o uso de intervenções diagnósticas e terapêuti- cas, estando detalhado em outra publicação24. O protocolo de estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesqui- sa da Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ. O diagnóstico de infarto agudo do miocárdio foi con- firmado segundo os critérios de caso definitivo ou provável adotados pelo projeto MONICA da Organização Mundial de Saúde25. A classificação clínica do estado hemodinâmi- co dos pacientes foi feita segundo Killip & Kimball26. Análises univariada e multivariada através dos pro- gramas Epi Info 6.04d e SASTM (versão 6.0). O teste do χ2 foi usado para testar a significância estatística de diferenças observadas nas proporções das categorias das variáveis estudadas; considerou-se estatisticamente significativo um valor de p<0,05 bi-caudal. Quando necessário foi usado o teste exato de Fisher. Foram calculados intervalos de con- fiança de 95% (IC 95%) das proporções e razões de chance (OR, de odds ratio) estimadas. Para o estudo dos fatores as- sociados à variação no risco de óbito hospitalar foi utilizada análise multivariada por regressão logística; neste caso, o teste de Wald foi usado para testar a significância das va- riáveis independentes incluídas no modelo. Para a análise do ajuste global do modelo utilizou-se o teste da razão de verossimilhança (-2 LOG L). Foi analisada a concordância entre as probabilidades preditas pelo modelo e respostas observadas; a presença de interação entre as variáveis; o diagnóstico da regressão através da análise dos resíduos e observações extremas, e o seu possível impacto sobre o modelo. Através de modelagem hierárquica foi testado efei- to randômico no nível dos hospitais, a partir da hipótese de existência de uma correlação intraclasse relativa às unida- des hospitalares. Resultados Foram revistos 384 dos 391 prontuários sorteados (perda de 1,8%). O diagnóstico de infarto agudo do miocár- dio foi confirmado em 91,7% (IC 95%=88,3-94,2), segundo os critérios já referidos. Entre os pacientes, 61,5%eram ho- mens e 38,5% mulheres, com idade média de 60,2 ± 2,4 anos. Apresentaram delta tempo entre início dos sintomas e hos- pitalização de até 6h 21,9% dos casos; a mediana de delta tempo foi 11h. A análise do delta tempo foi limitada por um percentual de 37,8% de ignorado, na maioria das vezes rela- cionado à ausência de relato no prontuário. A letalidade hospitalar foi 20,6% (IC 95%=16,7-25,0). O quadro clínico de apresentação foi típico de infarto agudo do miocárdio em 313 casos (81,5%); em 16 (4,2%) não estava descrito no prontuário. Em 21 dos 55 casos restantes houve relato de dor torácica não característica de infarto agudo do miocárdio; em 14 casos a apresentação foi insufi- ciência ventricular esquerda; em seis foi descrita parada cardiorespiratória (14,3%); três ocorreram pós-procedimen- to cardiológico; dois em pós-operatório de cirurgia não car- diológica; os demais variados. O município de residência era o Rio de Janeiro em 80,7% dos casos; 11,7% eram residentes de municípios da Baixada Fluminense. Entre os casos, 29,7% foram oriundos de emergências públicas, (geralmente do próprio hospital que emitiu a AIH) e 10,9% de postos de pronto atendimento ou ambulatórios públicos; entretanto, o percentual de igno- rado quanto à procedência dos casos foi elevado (25,5%). A tabela I mostra a distribuição de algumas caracterís- ticas da amostra. Para fatores de risco, como obesidade e se- dentarismo, a falta de informação no prontuário foi tão ele- vada (67,1% e 78%) que inviabilizou a análise. Entre os fato- res de risco, a informação sobre hipertensão arterial e diabe- tes foi a de melhor qualidade. Esses dois fatores foram mais prevalentes nas mulheres do que nos homens (hipertensão: 64,2% vs 54,2%; p=0,02; diabetes: 32,4% vs 20,8%; p=0,03). À exceção do sexo, faixa etária e classe Killip à admissão, a distribuição dos fatores apresentados na tabela I variou bastante entre os hospitais da amostra, e já detalhada ante- riormente24. Entre os 28 pacientes com classe Killip não descrita à admissão, três apresentaram quadro respiratório associado que impediu a classificação; cinco tinham relato de insufi- ciência ventricular esquerda sem definir o Killip; em 20 a in- formação não estava disponível no prontuário. Esses 28 ca- sos cursaram com letalidade elevada. Durante a internação, 65,4% dos pacientes permaneceram em Killip I. A tabela II mostra a freqüência de algumas complica- ções com as respectivas letalidades. Além delas, houve re- lato de um caso de embolia pulmonar, sem óbito. Entre as complicações não cardiológicas mais freqüentes destaca- ram-se 22 casos de pneumonia (5,7%) e três de hemorragia Arq Bras Cardiol 2003; 80: 593-9. Escosteguy e cols Infarto agudo do miocárdio: perfil clínico-epidemiológico 5 9 5 digestiva (0,8%). Outros diagnósticos secundários não car- diológicos relatados foram doença pulmonar obstrutiva crônica (22 pacientes), gastrite (9), insuficiência renal crôni- ca (8), doença vascular periférica (4) e úlcera péptica (3). Dos 17 casos de fibrilação ventricular, sete foram do tipo primária (1,8%). A letalidade imediata em fibrilação ven- tricular primária foi de três dos sete casos (42,9%); a hospi- talar de quatro casos, pois um caso em que a arritmia foi re- vertida apresentou lesão cerebral anóxica e faleceu por obs- trução de cânula traqueal. A fibrilação ventricular primária associou-se a uma chance de óbito hospitalar expressa por OR=5,4 (IC 95%=0,9-37,2; p=0,04) em relação à ausência da complicação. Os 10 casos de fibrilação ventricular secundá- ria da amostra associaram-se a letalidade de 90% com OR=84,2 (IC 95%=10,8-3.701,6; p<0,0001) em relação à ausência da complicação. O eletrocardiograma foi realizado em 360 pacientes (93,8%; IC 95%=90,7-95,9). O padrão eletrocardiográfico da localização do infarto agudo do miocárdio foi: 151 casos (39,3%) de parede anterior, 129 (33,6%) de parede inferior, 60 (15,6%) de infarto agudo do miocárdio sem onda Q e 12 (3,1%) com padrão de bloqueio de ramo esquerdo (BRE). Em 24 pacientes (6,3%) da amostra o eletrocardiograma não foi realizado (5) ou o resultado não estava relatado no prontuá- rio (19); nos oito casos (2,1%) restantes o eletrocardiogra- ma foi realizado, mas o infarto agudo do miocárdio afastado. As letalidades correspondentes aos padrões eletrocardio- gráficos foram: anterior - 18,5%; inferior - 14,7%; sem onda Q - 11,7%; BRE - 33,3%. A letalidade dos casos com eletrocar- diograma não realizado/ignorado foi particularmente alta - 75%, com OR=14,7 (IC 95%=5,3-46,7; p<0,0000001) em rela- ção à simples realização de eletrocardiograma, não impor- Tabela I - Distribuição de algumas características da amostra de infarto agudo do miocárdio relatadas no prontuário Fator f % IC 95% Letalidade (%) OR1 IC 95% p Sexo Masculino 236 61,5 56,4-66,3 17,8 1 - - Feminino 148 38,5 33,7-43,6 25 1,5 0,9 - 2,6 0,09 Faixa etária2 ≤ 60 a 187 49,0 43,8-54,1 12,8 1 - - 61 80 a 180 47,1 42,0-52,3 25,6 2,7 1,3 - 4,2 0,002 > 80 a 15 3,9 2,3-6,5 53,3 7,8 2,3 - 26,7 0,0005 Classe Killip à admissão I 317 82,6 78,3-86,1 12,3 1 - - II 19 5,0 3,1-7,8 42,1 5,2 1,8 - 15 0,002 III 9 2,3 1,1-5,2 55,6 8,9 2 - 41,7 0,003 IV 11 2,9 1,5-5,2 90,9 71,3 9 -1.524 <0,000001 Não descrita 28 7,3 5-10,5 60,7 11 4,5 - 27,4 <0,000001 Hipertensão arterial 223 58,1 53,0-63,0 17,9 2 0,9 - 4,8 0,06 Tabagismo 160 41,7 36,7-46,6 13,1 1,2 0,5 - 2,8 NS Diabetes melittus 97 25,3 21,1-30,0 27,8 4,2 2 - 9 0,00003 Dislipidemia 71 18,5 14,8-22,8 9,9 3 0,6 - 18,3 NS História familiar 96 25 20,8-29,7 13,5 1,9 0,6 - 7,1 NS Infarto prévio 61 15,9 12,5-20,0 18 1,9 0,7 - 4,7 NS Angina prévia 154 40,1 35,2-45,2 15,6 1,3 0,4 - 4,7 NS AVC3 prévio 21 5,5 3,5-8,4 19,5 2 0,5 - 7,1 NS 1-OR de óbito na presença do fator versus ausência ou versus a categoria de referência explicitada; 2-excluídos 2 casos com idade ignorada, sendo 1 óbito. 3-acidente vascular cerebral. Tabela II - Freqüência de algumas complicações hospitalares do infarto agudo do miocárdio relatadas na amostra Complicação f % IC 95% Letalidade (%) OR1 IC 95% p Angina pós-IAM 69 18 14,3 - 22,3 20,3 1 0,5 - 2 NS Reinfarto 9 2,3 1,1 - 4,6 44,4 3,2 0,7 - 15,2 NS Isquemia recorrente2 72 18,8 15 - 23,1 22,2 1,4 0,7 - 2,7 NS Taquicardia ventricular 17 4,4 2,7 - 7,1 52,6 4,8 1,7 - 13,4 0,001 Fibrilação ventricular 17 4,4 2,7 - 7,1 76,5 14,8 4,3 - 63,7 <0,00001 Parada cardíaca primária 19 4,9 3,1 - 7,8 84,2 25,6 6,9 - 139,2 <0,00001 Bloqueio de ramo direito ou esquerdo 31 8,1 5,6 - 11,4 45,2 3,7 1,6 - 8,3 0,0004 Fibrilação/flütter atrial 21 5,5 3,5 - 8,4 23,8 1,2 0,3 - 3,6 NS Pericardite 16 4,2 2,5 - 6,8 12,5 0,6 0,1 - 2,5 NS Bloqueio atrioventricular total 12 3,1 1,7 - 5,8 41,7 2,9 0,7 - 10,8 0,08 Acidente vascular cerebral 6 1,6 0,9 - 3,5 50 4 0,5 - 30,1 NS Ruptura de septo interventricular 3 0,8 0,2 - 2,5 66,7 7,9 0,4 - 467,3 NS Disfunção/ruptura de músculo papilar 3 0,8 0,2 - 2,5 33,3 1,9 0,03- 37,7 NS 1-OR de óbito na presença da complicação versus não relato; 2- angina pós-IAM e/ou reinfarto; 3-inclui um AVC pós trombólise com estreptoquinase 5 9 6 Escosteguy e cols Infarto agudo do miocárdio: perfil clínico-epidemiológico Arq Bras Cardiol 2003; 80: 593-9. tando qual o padrão resultante. Infarto agudo do miocárdio de ventrículo direito foi relatado em 13 casos (3,4%), com um óbito (letalidade=7,7%). Dosagem de enzimas cardíacas foi relatada em 289 pa- cientes (75,3%; IC 95%=70,6-79,4). O uso de radiografia de tórax foi relatado em 190 pa- cientes (49,5%; IC95%=44,4-54,6), em freqüência semelhan- te ao de ecocardiograma (175 pacientes; 45,6%; IC 95%= 40,5-50,7). O teste de esforço precoce pré-alta foi usado em apenas 30 pacientes (7,8%; IC 95%=5,4-11,1). Na amostra, 51 pacientes (13,3%; IC 95%=10,1-17,2) foram submetidos a cateterismo cardíaco, dos quais 19 (37,5%) realizaram o procedimento forado hospital de ori- gem, porém ainda durante a internação que gerou a AIH. Os hospitais universitários apresentaram o maior uso de cate- terismo (48,4%). A letalidade hospitalar associada aos ca- sos submetidos a cateterismo foi 2%. De um modo geral houve variação significativa no uso das intervenções diag- nósticas entre os hospitais da amostra. A tabela III mostra a freqüência de algumas interven- ções terapêuticas na amostra; o percentual de informação ignorada foi reduzido. O uso de unidade de terapia intensiva ou de unidade coronariana (UTI/UC) representa sua inter- nação durante algum período da internação analisada. O uso de angioplastia coronariana e de revascularização mio- cárdica durante a internação do infarto agudo do miocárdio foi infreqüente; entre as oito angioplastias realizadas, in- cluiu-se o único caso de reperfusão mecânica primária da amostra, que foi ao óbito. Nesta mesma tabela, inibidor da ECA refere-se ao grupo de fármacos inibidores da enzima conversora do angiotensinogênio. Dos 75 casos que rece- beram trombólise farmacológica, 68 foram submetidos à in- tervenção no próprio hospital que gerou a AIH e sete em outros locais. Houve variação significativa na amostra quanto ao uso de intervenções terapêuticas, à exceção do ácido acetilsalicílico e nitratos. A tabela IV mostra os resultados do modelo logístico final de estudo da variação do risco de óbito hospitalar. A modelagem controlou variáveis que expressavam gravida- de (incluindo Killip à admissão, idade, sexo, padrão eletro- cardiográfico do infarto agudo do miocárdio), complicações, comorbidades (incluindo diabetes), internação em UTI/UC e uso de intervenções. As variáveis associadas de forma independente a uma chance aumentada de óbito foram faixa etária crescente, classe Killip à admissão crescente, dia- betes, isquemia recorrente, taquicardia ventricular, fibrila- ção ventricular e eletrocardiograma não realizado ou ignora- do. O uso de ácido acetilsalicílico, de betabloqueador e de inibidor da enzima conversora da angiotensina associaram- se a uma menor chance de óbito. A opção de manter Killip II no modelo apesar de não ter alcançado significância esta- tística foi baseada na plausibilidade biológica de um maior risco de morte em relação à categoria de referência Killip I, assim como no fato da sua inclusão ou exclusão não modifi- car as estimativas dos demais parâmetros. A variável eletrocardiograma não realizado/ignorado (que englobou os casos em que o exame não foi realizado ou não havia informação sobre o seu resultado) foi incluída enquanto um possível indicador de problemas de assistên- cia ou de qualidade da informação. A não realização de ele- trocardiograma frente à suspeita diagnóstica de infarto agu- do do miocárdio deve ser considerada um indicador de pro- cesso de assistência deficitário, ainda que em parte dos casos, sua gravidade com evolução rápida para óbito possa ser um fator dificultante. A concordância do modelo apresentado foi 90,1%, não tendo sido detectado efeito randômico no nível dos hospi- tais. Os testes para interação entre variáveis não sugeriram a sua presença (foram sistematicamente não significativos). A análise dos resíduos foi realizada e a retirada de casos ex- tremos não modificou substancialmente as estimativas, documentando a estabilidade do modelo. De uma forma geral, o perfil dos resultados descritos desde a análise exploratória até a modelagem foi semelhante entre a amostra como um todo e o subgrupo de casos de infarto agudo do miocárdio confirmado/possível, ressaltan- do-se que a maioria dos casos preencheu os critérios de confirmação do infarto agudo do miocárdio, que não interfe- riu na modelagem nem alcançou significância estatística. A opção da análise da amostra como um todo foi feita para não interferir com a sua representatividade e para obter estima- tivas mais precisas Tabela III - Freqüência e letalidade associada a algumas intervenções terapêuticas relatadas na amostra de infarto agudo do miocárdio Intervenção f % IC 95% Letalidade (%) OR1 IC 95% p Uso de UTI ou UC 312 81,3 76,9 - 85 19,2 0,8 0,4 - 1,7 NS Angioplastia coronária 8 2,1 0,97 - 4,2 12,5 0,6 0,01 - 1,7 NS Revascularização miocárdica 4 1 0,3 - 2,8 25 1,4 0,03 - 17,8 NS Ácido acetilsalicílico 332 86,5 82,5 - 89,6 14,2 0,1 0,03 - 0,2 <0,000001 Nitrato VO e/ou IV 315 82 77,7 - 85,7 14,8 0,2 0,1 - 0,4 0,000001 Heparina SC e/ou IV 312 81,3 76,9 - 85 16,4 0,3 0,2 - 0,7 0,0007 Inibidor da ECA 243 63,3 58,2 - 68,1 14,8 0,5 0,3 - 0,8 0,004 Betabloqueador 188 49 43,9 - 54,1 8 0,2 0,1 - 0,4 <0,000001 Bloqueador de cálcio 117 30,5 26 - 35,4 14,5 0,7 0,4 - 1,3 NS Trombólise IV 75 19,5 15,8 - 23,9 13,3 0,6 0,3 - 1,3 NS Lidocaína 35 9,1 6,5 - 12,6 34,3 2,7 1,2 - 6 0,009 1-OR de óbito do uso da intervenção versus o não uso. Arq Bras Cardiol 2003; 80: 593-9. Escosteguy e cols Infarto agudo do miocárdio: perfil clínico-epidemiológico 5 9 7 Discussão A grande contribuição deste estudo é o fato de repre- sentar uma amostra aleatória de todas as internações regis- tradas no SUS com o diagnóstico de infarto agudo do mio- cárdio, estabelecendo um retrato com o menor enviesamen- to possível do que ocorreu no município do Rio de Janeiro e registrado, no período estudado. De uma forma geral, a letalidade de 20,6% evidenciada na amostra, distancia-se bastante das cifras reduzidas que são alcançadas em ensaios clínicos randomizados15 ou centros selecionados 7,13 ou estimadas a partir da projeção da eficácia das tecnologias disponíveis para tratamento dos casos27. Entretanto, outros estudos internacionais de casos não selecionados têm relatado letalidades hospitalares ele- vadas associadas ao infarto agudo do miocárdio. Nos EUA, o segundo National Registry of Myocardial Infarc- tion de 1994 a 1998 relatou 19,7% de óbitos, quando se tra- balhou sem exclusão de casos27. Estudos multicêntricos eu- ropeus relatam 18% a 21,7% de óbitos na década de 90 10-12. Entre os estudos nacionais de casos não seleciona- dos destacam-se dois que utilizam a AIH, com 17,1% de letalidade no estado de São Paulo em 1997 18 e 18,4% no es- tado do Rio de Janeiro em 1995.22 Estudo recente mostrou uma mortalidade de 30 dias de 22% em um hospital univer- sitário de Botucatu, São Paulo28. Já Passos e cols. 13 descre- veram 12,9% de letalidade em Salvador no período de 1993- 1994; porém selecionaram hospitais participantes por crité- rios de qualidade de informação e assistência. A estrutura de sexo e faixa etária da amostra foi seme- lhante à relatada na literatura para estudos nacionais 13,22,27, e não variou na amostra. A mediana de delta tempo observa- da foi semelhante à outra estimativa brasileira27. A prevalência de hipertensão arterial foi semelhante a outro estudo norte-americano28 e inferior à relatada por Pas- sos e cols. (67%)13 e por Zornoff e cols. (63%)28. As preva- lências de diabetes e dislipidemia foram semelhantes às de outros estudos 13,28,29. O percentual de ignorado quanto à presença dos fatores de risco foi elevado, representando, na maioria das vezes, a não existência da informação no prontuário. A gravidade dos casos desta amostra de infarto agudo do miocárdio está pormenorizada em outra publicação24, não parecendo ser maior do que a relatada por outros grupos. O percentual de Killip I à admissão observado foi muito supe- rior aos 56% relatados pelo registro inglês de Nottingham12, e mais próximo dos 77,8% do estudo de Passos e cols.13. Esse estudo baiano relatou uma letalidade de 6,3% entre os casos que se apresentaram em Killip I à admissão, cerca da meta- de da observada na presente amostra (tab.I). A incidência de 1,8% de fibrilação ventricular primária foi inferior aos 4,7% descritos no estudo multicêntrico Worcester Heart Attack, que encontrou uma letalidade hos- pitalar associada de 44% 30. A variação do uso de cateterismo dependeu dadispo- nibilidade de hemodinâmica no hospital da AIH; mas alguns hospitais sem hemodinâmica tinham protocolos de condu- ção do pacientes para realizar o exame em outro hospital, ainda durante a internação. Estudos internacionais têm rela- tado freqüências variadas de uso de cateterismo cardíaco durante a internação do infarto agudo do miocárdio, em ge- ral maiores que a média de 13,3% observada nesta amostra (tab.III). Estudos europeus relatam entre 32% e 53% de uso11,16. Foi descrita uma variação de 52 a 81% de uso entre localidades norte-americanas que participaram do estudo GUSTO 15. Neste estudo, apesar do uso do ácido acetilsalicílico ter sido bem difundido (86,5%), está aquém do esperado frente à sua indicação quase universal em infarto agudo do miocárdio, administração simples, custo reduzido e eficácia documentada 3,31. Outra publicação referente a esta amos- tra17 constatou que apenas 72,3% dos pacientes tratados com ácido acetilsalicílico receberam o tratamento desde o primeiro dia de internação; além disso, documentou uma perda de oportunidade de realização de trombólise em 32% dos casos com indicação explícita do tratamento. Este fato também tem sido relatado em outros países: o National Re- gistry of Myocardial Infarction-2 mostrou que 24% dos pa- cientes com indicação clara de trombólise não receberam a terapêutica 32. A freqüência geral de uso de trombólise far- macológica neste registro foi 35% e 32% em um estudo norueguês 10. Dois estudos nacionais relataram 36,8% e 39% de trombólise, respectivamente 13,28. Outro estudo estimou que o percentual de indicação de trombólise em infarto agudo do miocárdio no Brasil seria cerca de 40% dos casos 27. Um recente estudo nacional relatou 41% de uso de trombólise farmacológica e 15% de angioplastia primária em infarto agudo do miocárdio; ainda assim a letalidade hospitalar foi alta: entre os casos submetidos à angioplastia primária foi 18,5% 33. Já o Registro CENIC da Sociedade Brasileira de He- modinâmica e Cardiologia Intervencionista 34 relatou uma letalidade hospitalar de 5,9% nos seus casos de angioplastia primária . Tabela IV - Modelo logístico final para estudo do risco de óbito hospitalar na amostra de infarto agudo do miocárdio Variável OR IC 95% p Faixa etária 61 a 80 anos 2,5 1,2 - 5,3 0,02 > 80 anos 9,6 1,95 - 47,5 0,005 Classe Killip à admissão Killip II 1,9 0,5 - 7,2 NS Killip III 6 1,4 - 25,9 0,02 Killip IV 26,5 2,9 -242,1 0,004 Diabetes 2,4 1,1 - 5,1 0,03 ECG não realizado/ignorado 11,8 3,5 - 39,9 0,0001 Taquicardia ventricular 8,5 2,5 - 29,6 0,0007 Fibrilação ventricular 34,0 7,9 -146,9 0,0001 Isquemia recorrente 2,7 1,2 - 6,2 0,02 Uso de ácido acetilsalicílico 0,3 0,1 - 0,8 0,01 Uso de betabloqueador 0,3 0,1 - 0,7 0,005 Uso de inibidor da ECA 0,4 0,2 - 0,95 0,04 - 2 LOG L intercepto e covariáveis=225,5; χ2 para covariáveis=164,9 com 13 GL (p=0,0001). Concordância=90,1%. 5 9 8 Escosteguy e cols Infarto agudo do miocárdio: perfil clínico-epidemiológico Arq Bras Cardiol 2003; 80: 593-9. Referências 1. Ministério da Saúde. 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O uso de inibidores da enzima conversora da angio- tensina foi elevado (63,3% dos casos), semelhante ao relata- do para um registro norte-americano de casos de infarto agu- do do miocárdio (59,3%) 8, maior do que os 43% relatados na Suíça 15 e os 41% relatados por outro estudo brasileiro28. De uma forma geral o uso de bloqueadores de cálcio foi elevado, uma vez que não há evidências científicas de sua eficácia na fase aguda do infarto agudo do miocárdio, a não ser em casos específicos. A grande variação observada nos perfis de uso de tecnologias que têm indicações e eficácia bem estabelecidas com base em evidência científica tem sido objeto de análise de outros países5,7,8. Aparentemente, uma das principais ex- plicações para esta variação não está na variação da indica- ção das intervenções, e sim em níveis diferenciados de ade- são aos protocolos baseados em evidência científica de efi- cácia, ou mesmo de seu conhecimento. Em relação à modelagem multivariada, as associações independentes encontradas entre faixa etária mais elevada, diabetes e classe Killip crescente à admissão são consisten- tes com a literatura3,4. Apesar das possíveis limitações quanto ao diagnósti- co de taquicardia ventricular, o mesmo permaneceu asso- ciado a uma chance elevada de óbito hospitalar na análise multivariada. Foi analisado tanto o efeito da fibrilação ven- tricular primária quanto da secundária; ambas persistiram as- sociadas a uma maior chance de óbito, mas o número reduzi- do de casos levava a estimativas pouco precisas. A variável isquemia recorrente não foi estatisticamente significativa na análise bivariada (tab.II), mas foi incluída na modelagem pela plausibilidade biológica de associação com maior risco de morte 4, que ficou evidenciada no modelo logístico. As intervenções que apresentaram associação com menor chance de óbito foram o uso de ácido acetilsalicílico, de betabloqueador e de inibidores da enzima conversora de angiotensina. O uso de trombólise não apresentou signifi- cânciaestatística, o que pode relacionar-se ao tamanho da amostra. O controle, na análise, da possível presença de confundimento por indicação (que pode surgir ao analisar- se o efeito de intervenções fora dos ensaios clínicos contro- lados) foi feito através da inclusão, no modelo, de variáveis relacionadas à gravidade do caso e à indicação das inter- venções. Neste estudo, a possibilidade de existência de correla- ção interna no nível dos hospitais foi investigada através de modelagem hierárquica, que não detectou efeito randômico significativo, o que pode estar relacionado ao tamanho da amostra, tanto do ponto de vista de número de observações do nível superior (os hospitais), como do número de obser- vações do primeiro nível (o caso), uma vez que o cálculo da amostra tomou como base a proporção de óbitos no municí- pio como um todo. De qualquer forma, este fato ratifica a opção pelo modelo logístico. Concluindo, apesar da letalidade geral alta, o perfil de gravidade, principais fatores de risco e a freqüência das complicações estudadas foram semelhantes ou mais favo- ráveis do que em outros estudos. Diabetes, faixa etária ele- vada, classe Killip, isquemia recorrente, taquicardia ventri- cular e fibrilação ventricular associaram-se de forma inde- pendente a uma chance aumentada de óbito hospitalar. Houve associação entre o uso de ácido acetilsalicílico, betabloqueadores e inibidores da enzima conversora da an- giotensina com uma menor chance de óbito hospitalar. A documentação da subutilização de intervenções eficazes sugere a possibilidade de se esperar melhores resultados dos da assistência hospitalar ao infarto agudo do miocár- dio no município estudado. Arq Bras Cardiol 2003; 80: 593-9. Escosteguy e cols Infarto agudo do miocárdio: perfil clínico-epidemiológico 5 9 9 14. McGovern PG, Pankow JS, Shahar E, et al. Recent trends in acute coronary heart disease. Mortality, morbidity, medical care and risk factors. N Engl J Med 1996; 334: 884-90. 15. Pilote L, Califf RM, Sapp S, et al,. Regional variation across the United States in the management of acute myocardial infarction. N Engl J Med 1995; 333: 565-72. 16. Bourquin MG, Wietlisbach C, Rickenbach M, Perret F, Paccaud F. 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