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marx e a perspectiva do poder - r.d. ribeiro

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vQLHOGl
Renato janlnt
Ribeiro í professor
Ulular de Ética e
Filosofia Política na
Universidade dê SSo
Paulo (USP). www.
rrnottjonfno.prei.br
RENATO )ANINE RIBEIROMARX EA
PERSPECTIVA DO PODER
Marx foi um grandepensador. Não seesgota no comunis-
mo, longe disso. Um dos pontos
mais importantes - óbvio e ao
mesmo tempo quase não perce-
bido — de sua obra é ele ter cha-
mado seu primeiro grande .livro
de "Manifesto" - o Manifesto do
Partido Comunista, de 1848. O
que quer dizer "manifesto"? É o
que aparece, se evidencia. se_d&^
a ver. Ora, ao tratar da política
num "manifesto" Marx quer di-
zer que a política nio deve mais
ser algojecreto, resguardado do
comum dos mortais, mas algo
que estará ao alcance de todos.
Os iluministas do século
XVIII ji tinham pensado nesta di-
reção, mas não haviam levado as
consequências tão longe quanto
Marx faria. Isso significou rom-
per com uma longa tradição de-
segredo em tomo da política. O
debate inglês em torno do des-
potismo dos reis, no começo do
século XVII, tem como principal
tema o direito ao segredo. Um
véu, como o tabernáculo do An-
tigo Testamento, separa, os sú-
ditos dos "mistério: da realeza"
- diz o filósofo Francis Bacon,
ministro de Jaime l, em. 1620.
- Também fazia parte da po-
lítica, absolutista o direito divino
dos reis, isto é, a tese de que eles
foram escolhidos por Deus para
governar e não tinham contas a
prestar a ninguém neste mundo.
Dal, ideias como a da, "razão de
Estado" — que só o rei ou seu
principal ministro conhece - e a
necessidade de sigilo em tudo o
que for político. NSo é apenas o
segredo sobre os assuntos da po-
lítica: é a política como segredo.
Os segredos
dos súditos
• Mas também os deputados
que representam o povo, na Câ-
mara dos Comuns inglesa, afir-
mam ter direito ao sigilo dos de-
bates. Na Inglaterra havia uma
arbitraria "prerrogativa do rei",
mas também privilégios parla-
mentares - dos quais o principal
é ser proibido contar ao monar-
ca o que tal ou qual deputado
disse. O presidente da Camará
Baixa,, como ainda acontece em
todos os países de língua Inglesa,
é chamado de "speaker", orador
— porque é ele quem transmite,
ao, rei e aos lordes, as decisões
dos deputados, mas sem dizer
.quem disse o quê. Esse segre-
do preserva a segurança dos
deputados. Se Alguém conta o
que um deles disse na Câmara,
pode ser preso. Ou seja, numa
sociedade que não é aberta,
cada segmento tem poder na
medida em que pode ter segre-
dos. Cada um tem tanto poder
quanto segredo tem. O segredo
é a alma do poder de cada um. E
o maior dos segredos é o da re-
aleza, seja porque conhece fatos
ignorados dos súditos, seja por-
que se baseia nos arcana imparii
mistérios da realeza. É como se
ela fosse sagrada.'
Duas formas
de escrever
• Leo Strauss, um dos maiores
estudiosos da teoria política no
século XX; dizia que nos sécu-
los iniciais da modernidade havia
duas formas diferentes de escre-
ver Filosofia. Uma era, aberta.,
em lingua vernácula, publicada
em livros-^ dutra era em latim.
às vezes em cartas pessoais. A
primeira, destinada ao grande
público. A segunda, não. Nela se
tratava detemas delicados, como
a existência ou não dos castigos
divinos. Um caso interessante é '
o do debate entre Hobbes e o
bispo Bramhall. O filósofo abre
o coração e diz que não acredita
no livre irbltriq (convicção que
ele nunca abre em seus textos
públicos!). O bispo, indignada.
— para ele é pior nio haver in-,
ferno do que não haver Deujs
— publica as cartas de Hobbes,
querendo denunciar esse herege
e, quem^sabe, queimi-lo. Vejam
o que.Hobbes entendia: tudo o
que diz respeito a salvação da
alma, ou melhor, à. danaçio da
a|rpa, isto é, aos fundamentos da
moral, tenda a. ir para o latim, as
cartas, os arquivos escondidos.
São os arcanos da moral.
Quando Macx escreve o seu
Man/festo, ele rompa com essa
ideia. Desde as Lutes vinha ca-
. mlnhando o ideal de colocar por
escrito as ideias, toda: elas. Com
Marx, a política deve ser toda
manifesta: não deve haver mais
segredos, mistérios ou arcanos.
II FIlOSOFIAciénctaícvIda
•f-
Alias, é o mesmo que Nietzsche
vai fezerquando discute a moral
em público, ou Freud, quando
expõe o poder do sexo. Mas
não é só isso. Marx pensa a po-
lítica a partir da perspectiva da
classe trabalhadora e revolucio-
nária: isso quer dizer que tudo o
que ele propõe, para o proleta-
riado, gira em tomo da Ideia de
que este assuma o poder. Uso é
totalmente diferente de reivin-
dicar. Quando alguém reivindi-
ca alguma coisa, está aceitando
a desigualdade no poder. Eu rei-
vindico um melhor salário: pos-
so até falar agressivamente, mas.
aceito que quem decide o salá-
rio é o patrão, Ou que quem
decide uma política pública é
o governante, eleito ou não.
Com Marx, isso muda de
figura. A classe trabalhadora é
concitada a deixar a posição sú-
plice de quem pede e a tomar
o lugar de quem decide, man-
da, organiza o mundo. Há aqui
urna ideia muito forte de po-
der. O poder não é só repres-
sivo. (Fòucaulc dirá isso muito
tempo depois, mas estará ela-
borando o que .Marx já anun-
ciou). O poder cria. O. poder
não corta, apenas. Sim, ele cor-
ta liberdades. Por isso mesmo,
Marx quer pôr fim ao Estado.
Quer que "o governo sobre os
homens" seja substituído pela
"administração das coisas". O
poder público hão tem de con-
trolar nossos amores, a educa-
ção que ministramos - enfim,
esse Marx é bastante libertário.
Emancipação
• Mas o poder constrói. Por
isso, a única maneira de eman-
cipar a classe trabalhadora á
ela tomar o poder - e para
isso precisa pensar da perspec- .
tiva do podar. Isso parece ba-
nal, mas é difícil: é olhar todas
as coisas com o viés de quem
as organiza e ordena. Sugiro
que você faça esse exercício.
É pensar como vai organizar a
casa, o local de trabalho, o lo-
gradouro público, o shopping,
a cidade. Isso nos retira, da po-
sição queixosa. Não estamos
mais reclamando, estamos as-.
sumindo o leme da sociedade.
Tornamo-nos criadores do
mundo que é nosso. Isso tam-
bém implica duas coisas. Pri-
meira, que o mundo não está
dado'. Ele está em permanen-
te transformação. Olhe uma
mesa, deve haver uma perto
de onde você está. Uma coisa
é dizer: essa mesa foi construí-
da por um marceneiro, está af,
degradando-se (como tudo) a
cada dia que passa. Outra coisa
é: essa mesa, que está af, imo é .
mais. a mesa do marceneiro; é
a mesa em que escrevo, almo-
ço, coloco vasos - em outras
palavras, ela só existe na me-
dida em que está sendo cons-
tantemente reposta, quase eu
• poderia dizer recriada, por
nossas ações que .lhe atribuem
novas funções. Essa é (sem o
jargão) a visão de Marx. Se-
gunda, que essa transformação
tem por motor a ação huma- •
ria. Não é o desgaste inevitável
das coisas, a usura do tempo,
a decadência do mundo e dos
seres. É a criação continua,
pelo homem, de seu mundo
- e as modificações que ele
impõe ao que está fora dele,
em torno seu. Em vez da deca-
dência, o progresso, e gerado
pela nossa ação. Essa convic-
ção permite explicar posições
que podem soar curiosas. Por
exemplo, em 1945, fazendo'
parte do ministério de coalizão
nacional que governou a Fran-
ça depois da derrota nazista,
o líder comunista Mauríce
Thorez se opunha às greves.
Ora, do ponto de vista da luta
de classes, estava errado. Mas,
para quem olha as coisas do
viés do poder, tinha razão. E
também vale a posição oposta.
Os movimentos sociais de ins-
piração marxista não podem
se contentar em melhorar a
condição de seus membros.
Devem mudar a posiçSo deles.
Indicadores de renda ajudam
pouco, neste caso. O que se
propõe não é mais dinheiro,
conforto ou sequer melhor
educação. É uma re-
volução que significa
assumir — e com-
partilhar — o poder.
Isso pode parecer
utópico, mas é algo
que está no cerne
. do marxismo. Sem
esse propósito,
pode haver bene-
merência social, lutasindical, mas não hi
o que talvez seja.
a principal inspira-
ção de Marx: que a
classe trabalhadora
tome o poder. Mui-
to mudou, muito de Marx não
deu certo, mas quem quer co-
nhecê-lo tem que saber, pelo
menos, que esse é um dos ei-
xos centrais de suas ideias. •
O que caracteriza
o comunismo não
. é a abolição da
propriedade em
geral, mas a abolição
da propriedade
burguesa, Ora, a
propr.ie.dade privada
atual, a propriedade
burguesa, é a última
e mais perfeita
.expressão do modo
de produção e de
apropriação baseado
nos antagonismos
de classe, na
;. exploração de uns
pelos outros 5
Trecho do
Manifesto
do Partido
Comunista, de
Kad Marx. e
Friedrich Engels
P
FICHA TÉCNICA:
Manifesto comunista
KarlMarxe
Fricdrich Engefc
.Editora: Boitempo
254 páginas
FILOSOfIAdíncUtvkb 13
P
P
P
KARL MAKX • FRIEDRICH ENGELS
manifesto comunista

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