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Carol Hughes MEU PASSADO ME CONDENA

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Meu passado me condena
(Nurse at Golden Water)
Carol Hughes
A vida com Garry foi um inferno. Até o último minuto, ele traiu e humilhou Helen. Agora, que estava viúva, ela só queria fugir de todas aquelas lembranças, que amarguravam o seu coração. O emprego de enfermeira na Nova Zelândia era a chance de reconstruir sua vida. Mas Helen parecia atrair a tragédia. Pela segunda vez, apaixonou-se pelo homem errado: o Dr. Liam Rogers. Ao saber o seu nome, Liam passou a odiá-la: a noiva dele tinha sido um dos muitos casos de Garry. Desesperada, Helen percebeu que ia fazê-la pagar pelos erros dos outros!
Bianca nº 22
Titulo original: "NURSE AT GOLDEN WATER"
Publicado originalmente em 1978 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra
Tradução: LUZIA ROXO PIMENTEL
Copyright para a língua portuguesa: 1980
EDITORA EDIBOLSO LTDA. — São Paulo
Uma empresa do GRUPO ABRIL
Composto na ARTESTILO
e impresso nas oficinas da
ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL
Foto da capa: KEYSTONE
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CAPITULO I
A enfermeira-chefe me olhou por cima dos óculos, sorrindo.
— Acho que deve aceitar esse trabalho, é um caso especial, enfermeira Linnell. Você tem tido muitos problemas e me sinto preocupada. Será muito bom mudar de ambiente. — Ela sorriu. — Ouvi dizer que Golden Water é um lugar muito romântico e bastante calmo. Mesmo que tenha de trabalhar, a paz e a beleza ajudarão a superar essa crise. É um dos lugares mais bonitos da Nova Zelândia. Você não quis tirar nenhuma folga. Acho que sei o porquê: quer se manter ocupada. O trabalho é um ótimo tratamento contra a tristeza, eu sei, mas creio que uma mudança lhe fará muito bem.
Olhou durante alguns minutos para os papéis que estavam sobre sua mesa. Depois ergueu os olhos novamente.
— Pense no assunto, Helen. — disse baixinho. — Até amanhã espero uma resposta. O Dr. Rogers disse que a paciente é uma pessoa idosa, presa a uma cadeira de rodas, que não pode cuidar de si mesma. Você é a pessoa ideal. Pense no assunto.
Com a voz controlada das últimas semanas, respondi:
— Obrigada. Agradeço sua preocupação comigo. Não preciso pensar mais. Vou cuidar da... Sra. Ward, não é? Você foi muito gentil me oferecendo esse emprego. Também acho que a mudança será boa. Na verdade... — hesitei, e a enfermeira-chefe pareceu curiosa — na verdade, já estava pensando em pedir transferência para outro hospital.
Faria tudo para sair da casa que dividira com Garry há tão pouco tempo, pensei. Afastar-me dos amigos de Garry, que estavam sempre me olhando com ar de piedade. Sempre pensava neles como amigos de Garry e não meus. Pertenciam ao mundo da televisão, ao sofisticado ambiente das diversões, e não tinham afinidades com uma enfermeira.
A voz da enfermeira-chefe interrompeu as amargas recordações.
— Podemos conseguir uma transferência, naturalmente. Mas, no momento, ainda acho que o trabalho em Golden Water será muito melhor. Claro que pode se atirar completamente ao trabalho de um outro hospital como Greenpark. Ficará tão cansada que não precisará nem de comprimidos para dormir. Entretanto, acho que um esquema de trabalho pesado demais não a ajudará muito, pelo menos agora... mas um cenário tranqüilo derreterá o gelo do seu coração. Tranqüilidade é o que você precisa, Helen.
Senti lágrimas nos olhos. A preocupação e a amizade dela ameaçavam o meu autocontrole. Fiz que sim, com a cabeça, incapaz de falar.
— Muito bem! Agora mesmo vou dizer ao Dr. Rogers que você já decidiu. — O tom de voz dela agora parecia indiferente. — Tenho certeza que ele se sentirá aliviado. Procure-me amanhã, logo depois do café, antes que as coisas fiquem movimentadas demais por aqui. Poderemos discutir os detalhes do seu novo emprego.
Naquele momento, o telefone tocou na mesa dela. Percebi que a conversa havia terminado, agradeci rapidamente e saí, fechando a porta.
Ainda estava de plantão e não tive tempo de pensar mais no assunto. Mas, no fundo, suspeitava que ela tivesse dado um jeitinho de me designar para aquele trabalho. Imaginei o papel que o desconhecido Dr. Rogers faria naquela história.
Mais tarde, ao sair do plantão, fui até o alojamento das enfermeiras. Sorri para as colegas que passeavam em direção ao hospital. Sentia-me indiferente, mecânica, como uma marionete que repete sempre os mesmos movimentos e gestos, sem nenhuma emoção. Mas, agora havia alguma coisa para me deixar mais animada. Estava aliviada, pois sabia que ia escapar daqueles olhares cheios de pena, das palavras falsas de simpatia dos amigos de Garry. Qualquer mudança seria melhor do que a rotina nas últimas três semanas.
Tomei banho e troquei de roupa no alojamento, depois fui para o estacionamento pegar o carro.
O apartamento que Garry e eu dividíamos ficava perto, no quinto andar de um edifício novo, luxuoso, cuja vista magnífica, dava para uma praça e também para a cidade, ao longe. À noite, ficávamos olhando as luzes coloridas. Sentíamo-nos envolvidos pela beleza, estimulados por aquela visão. Bem, pelo menos eu havia me sentido assim. Não estava acostumada com o luxo e as coisas que só o dinheiro consegue.
Entrei no apartamento e me senti vazia, triste, muito triste mesmo lembrando os momentos alegres, perdidos agora para sempre. Puxei a cortina da imensa janela e fiquei olhando a paisagem, que antes, achava tão bonita, e agora me parecia comum, familiar demais.
Teria de entregar o apartamento, naturalmente. Vender os móveis objetos de decoração, quadros e outras coisas que havia comprado junto com Garry. Pensando bem, Garry tinha comprado a maioria das coisas, naturalmente com a minha apaixonada aprovação.
— Você gosta disso, não querida? — ele perguntava, com aquele sorriso encantador, apontando algo que lhe agradava.
— Claro que gosto. É lindo! — eu dizia, às vezes achando exótico demais ou muito extravagante para o meu gosto discreto. Observando o apartamento, agora, percebi que ele refletia muito mais a personalidade de Garry Linnell do que a minha: a garota quieta e tímida que tinha se casado com ele há dez meses.
No grande espelho da parede, vi minha imagem. Observei-a indiferente, como se estivesse estudando uma pessoa estranha. "Tímida" não era a palavra exata para descrever minha pessoa, mas servia perfeitamente para o meu estado de espírito, pensei. Helen Linnell não era uma mulher feia. Estava pálida demais apenas, mas possuía belos e grandes olhos azuis.
Sob o conjunto de linho verde, havia um corpo bonito, elegante. Meus cabelos castanhos...Garry insistia que eram louro-dourados...estavam mais compridos e eu havia feito um rabo-de-cavalo. Meu porte sempre fora invejável e eu procurava andar com elegância. Pelo menos nisso minhas lições de ioga me ajudavam muito. Além disso, eu sabia também respirar de modo correto e comia os alimentos mais saudáveis. Enfim, minha saúde era ótima e eu havia adquirido hábitos equilibrados. As aulas de ioga também me ensinaram a manter a aparência tranqüila, enquanto meu mundo desabava em ruínas.
Olhei o cinzeiro de vidro alaranjado, que muitas vezes transbordou com os cigarros que Garry fumava, enquanto se concentrava no novo show de televisão que estava produzindo! Quando se tratava de trabalho, ele era muito dedicado e responsável. Talvez por isso, pensei indiferente, tivesse casado comigo.
Algo pareceu crescer dentro de mim, como uma grande bolha querendo vir à superfície. Sentei no sofá e fechei os olhos. Mas não consegui desligar minha imaginação. Revi as manchetes dos jornais: No desastre aéreo, na Austrália, pessoas importantes da televisão perderam a vida. Entre as vítimas, Garry Linnell e Sharon Harland.
Eu era ingênua o bastante para ser completamente enganada por Garry, mas não possuía um temperamento ciumento ou desconfiado. Há quatro meses havia saído do sonho cor-de-rosa de um casamento feliz para sempre. Garry, no fundo, era um playboy: nunca seria fiel a mulher alguma.
Mesmo encarando a realidade, procurei esconder que sabia dos fatos, camuflei minha mágoae o orgulho ferido. Meu coração estava machucado, mas inteiro, pois a paixão inicial havia desaparecido. Garry era egoísta demais e não se preocupava com ninguém. E, é claro, também era muito encantador quando desejava. As primeiras semanas do casamento tinha sido um paraíso. Depois afundei num mundo nebuloso. Garry logo se cansou daquela garota sem sofisticação com quem havia se casado, principalmente porque não consegui me transformar.
Eu tinha sido um desafio. Cuidei dele durante a operação de apendicite e mantive sempre minha eficiência, procurando não me deixar impressionar pelo seu charme, jeito atraente e imagem pública de produtor de televisão. Desafiado pela minha atitude de "dama de gelo" decidiu me conquistar. Todas as outras enfermeiras estavam apaixonadas e logo ele se transformou no "encanto" do hospital.
Quando saiu de lá, tentou marcar encontros comigo. Devo ter percebido a instabilidade, inconstância e vazio dele. Mantive-o à distância, inventando até um noivado com um jovem médico. Não funcionou. Quando Garry Linnell decidia algo, geralmente ninguém insistia. Depois de um namoro cheio de investidas da parte dele, desisti.
Sentia-me apaixonada. Pelo menos, pensei que estivesse. Na verdade, estava sendo mimada, cortejada e não conseguia me desligar daquele romance. Quem conseguiria? Casamo-nos com todo o aparato da publicidade, fotógrafos e câmeras de televisão. Meus pais vieram de South Island. Eles e meus amigos do hospital pareciam estranhamente deslocados naquela recepção iluminada, cheia de pessoas chiques, os amigos de Garry. A família dele, seus pais e duas irmãs, viviam na Inglaterra e nunca os encontrei.
Que bobos fomos nós — pensava agora — abrindo os olhos. O mais bobo dos dois foi Garry. Um homem do mundo, cheio de experiência, deveria saber que nosso casamento jamais daria certo. Tudo era desencontrado demais, desde o começo. Agora, ele estava morto como o nosso casamento, que há alguns meses havia se transformado em uma seqüência de dias infelizes.
Naturalmente logo fiquei sabendo tudo sobre a adorável Sharon Harland e o lugar que ocupava na vida do meu marido. Era uma atriz talentosa, cantava, e tinha estrelado muitas das produções de Garry. O orgulho sempre evitou que eu fizesse perguntas diretas a ele. Não indaguei nem mesmo sobre as viagens inexplicáveis e improvisadas a Wellington, a South Island e, algumas vezes, até a Austrália. Ignorei as insinuações indiretas dos amigos, deixei-os pensar que eu não passava de uma tola, desligada, incapaz de pensar em outra coisa a não ser na enfermagem e na vida doméstica! Graças a Deus não desisti de trabalhar. Nos primeiros dias de casamento, Garry dizia sempre:
— Querida, você não precisa continuar nessa rotina horrível. Pelo menos posso manter minha esposa como ela merece.
Fiquei firme e teimei em não sair do hospital.
— Sei disso, querido — respondi a ele —, mas adoro o meu trabalho. Mais tarde acho que vou parar de trabalhar, para começar uma família.
Quando disse isso, Garry explodiu:
— Uma família! Oh. Deus, não comece a ficar toda maternal. Crianças! Odeio esses monstrinhos!
Secretamente, senti-me chocada com a reação violenta dele. Será que nunca ia querer crianças? Minha infância tinha sido tão feliz, numa fazenda, com dois irmãos e uma irmã. Meus pais eram maravilhosos. Sobre crianças, não falei mais nada a Garry, mas logo percebi que ele não estava exagerando quando disse que as odiava. Por causa disso, um pouco da magia da minha nova vida começou a desaparecer.
Logo a desilusão apagou as luzes das minhas mais românticas esperanças e sonhos. Nosso casamento não tinha completado um ano e já estava desmoronando. No fundo do coração, sabia da realidade nua e crua, mas continuei orgulhosa, carregando o fardo horrível que é um casamento só de aparências, e mergulhei no trabalho intenso para esquecer de tudo. Então Garry anunciou sua viagem à Austrália, falou sobre a contratação de um escritor para uma nova série de filmes... Foi muito vago, mas deixou claro que seria uma viagem de trabalho. Fiquei indiferente. Quanto tempo esta farsa vai durar?, perguntei a mim mesma.
Então, o destino entrou em ação. O avião caiu no deserto australiano... Garry Linnell e Sharon Harland... mortos... mortos...
Levantei-me incapaz de agüentar meus próprios pensamentos. Não adiantava nada ficar ali sentada, me atormentando com o que havia acontecido há três semanas. Agora era a viúva de Garry Linnell e tinha de refazer o meu futuro.
Fiquei surpresa quando o advogado me passou os papéis de Garry. Ele não deixara nenhuma economia. Na verdade, herdei algumas dívidas. Como Garry vivia de modo extravagante, gastando o mais que podia sem pensar no futuro, não herdei nada.
Pensei no tal lugar chamado Golden Water. Parecia ser calmo. Era exatamente o que meus nervos precisavam. Comecei a arrumar a mala: roupas, livros e mais umas coisinhas. A maioria dos objetos do apartamento pertencia a Garry. Senti que nunca tinha sido dona de nada daquilo.
Golden Water... Golden Water... o nome era simpático. Senti a mesma excitaçào de quando a enfermeira-chefe havia mencionado o "...caso especial da Sra. Ward, de Golden Water". Talvez... talvez houvesse esperança de uma vida nova... até feliz...
Fiquei surpresa e contente, quando um grupo de enfermeiras me ofereceu uma pequena festa de despedida, entregando-me uma mala de viagem e um buquê de cravos perfumados. As que não estavam de plantão vieram se despedir e, na manhã seguinte parti no meu pequeno Volkswagen.
Saí em direção à estrada que me levaria àquele lugar, ao Sul. Ao interior. Queria escapar...não do hospital, nem de meu trabalho, mas de lembranças exageradamente dolorosas daquele casamento fracassado que terminou de modo tão trágico.
Senti o cheiro do cravo que havia prendido na lapela. Um cheiro gostoso e confortante. Lembrei das moças do hospital, minhas amigas. Pessoas dedicadas, sinceras. Não como os amigos de Garry, que não se importavam com nada a não ser com eles próprios. Evitei julgar Garry, afinal agora ele não podia se defender. Ele viveu intensamente, uma vida curta e brilhante. Não tinha porque sentir pena, mas até sentia. Eu não sentia nada pelos amigos dele, aquela gente dura, embrutecida, que estava sempre ao seu redor para usar de seu prestígio.
De repente, as lágrimas, que havia controlado por tanto tempo, jorravam. A via expressa terminou. Cheguei ao campo. Peguei uma estrada chamada Great South Road, cheia de caminhões. Fingi para mim mesma que estava interessada no guia rodoviário e comecei a procurá-lo no porta-Iuvas; parei o carro, folheei o guia deixando as lágrimas caírem. Finalmente a bolha tinha conseguido chegar à superfície. Depois de chorar, o alívio foi enorme.
Readquiri meu autocontrole, enxuguei os olhos, passei maquilagem e batom. Disse a mim mesma que estava maravilhosa, coloquei óculos escuros, e achei que minha mãe tinha razão quando dizia que "um bom choro" resolve muitas coisas.
Liguei o carro e peguei novamente a estrada, pensando em meus pais. Sentiram-se chocados e preocupados comigo quando ouviram a notícia da morte de Garry. Mamãe veio de avião, me fazer companhia e queria que eu a acompanhasse de volta à casa. "Casa", para mim, agora era aquele apartamento, e não a fazenda em Canterbury, tão alegre nos meus dias de infância.
Eu estava com vinte e dois anos, era a mais jovem da família e havia nascido quando mamãe chegava quase aos quarenta anos. Papai havia se aposentado e sentia-se feliz em cuidar do jardim, cultivando uma coleção de cactus. Mamãe era diretora do Círculo de Jardinagem local e ajudava nas festas da igreja. Tudo parecia distante demais do meu próprio mundo. Senti que não tinha o direito de perturbar a tranqüilidade dos meus pais. Mamãe voltou para casa depois que lhe garanti que mais tarde iria visitá-los. Achei até que ela partiu um pouquinho aliviada.
Ao meio-dia cheguei à velha ponte. Olhei as montanhas azuladas, ao longe, a água de um riacho correndo parao mar, o sol, a grama. A enfermeira-chefe tinha dito que Golden Water era um dos lugares mais bonitos da Nova Zelândia. Fiquei contente de estar indo para lá.
Passei por um vilarejo, ao pé da montanha e próximo do mar. Virei o carro em direção aos vales. A estrada ficou cheia de curvas. Saí do vale e entrei no planalto repleto de samambaias do lado da estrada. Perto do topo de uma pequena elevação encontrei uma área para piqueniques. Parei o carro, peguei minha garrafa térmica com café e um pacote de sanduíches.
Que lugar lindo aquele! Cheio de pássaros e o barulhinho das águas de um riacho descendo a montanha, no meio das árvores. Naquele ar puro e perfumado, procurei uma mesa rústica e almocei. Borboletas dançavam a meu redor, sem se importar comigo. Tendo crescido no campo, de repente percebi que sentia muitas saudades daquele ambiente, principalmente depois de cinco anos trabalhando como enfermeira na cidade.
Uma hora depois as montanhas tinham ficado para trás. A estrada estava rodeada de vegetação nativa. Ao longe, um riacho refletia o sol. Li numa placa: "Próxima cidade — Golden Water". Peguei com força o volante e fui rumo à nova vida.
Talvez eu estivesse muito cansada, desatenta. O carro entrou numa descida em velocidade alta. Logo adiante vi uma nuvem de poeira e outro carro, bem próximo, à minha frente. Ia bater: segurei o volante e virei na direção do barranco. A frente do carro se enterrou entre as samambaias e só o cinto de segurança evitou que eu batesse com a cabeça no vidro.
— O que está fazendo? — berrou uma voz irritada. — Não sabe que correr numa estrada como esta é perigoso?
Um homem, naturalmente, pensei, enquanto desprendia o cinto de segurança e descia do carro. Será que não iria fazer nenhuma pergunta ansiosa do tipo "como você está?" ou "machucou-se?" Era apenas um motorista irritado, como eu. O pior é que eu tinha entrado naquela descida depressa demais.
Saí e dei de cara com um homem bronzeado, de cabelos loiros e olhos azuis. Usava uma camisa desbotada, aberta no colarinho e short empoeirado. Olhei o carro dele. Um Bentley novinho...ou seria outra marca? Tudo brilhava e se podia notar ali a importância dos cuidados do dono. Aliviada, percebi que ambos os carros tinham escapado sem arranhões.
— Desculpe — falei, sentindo-me trêmula. — Acho que o meu carro...ficou um pouco fora de controle...e a estrada é lisa demais.
A raiva desapareceu do rosto dele. Sorriu e vi que os dentes pareciam ainda mais brancos no rosto bronzeado. Era um homem rijo, autoconfiante. Um homem de ação. Um fazendeiro? Então reparei nas suas mãos: longas, bem cuidadas, sensíveis. Seria um artista?
— Você está bem? — A voz dele agora tinha um som profundo. — Olhe, sente-se no meu carro enquanto tiro o seu do barranco. Acho que não houve danos, mas não custa verificar.
— Ótimo — respondi —, tenho uma garrafa térmica com café — ofereci sorrindo, meio insegura. — Acho que há o suficiente para nós dois. — Sentia-me ainda trêmula e precisava do café.
— Está bem. Espere um pouco. Onde está o café? — O homem abriu a porta do próprio carro enquanto conversava, e me ajudou a entrar.
— Em um pacote pequeno, com o resto dos sanduíches, no banco de trás. Mas, primeiro você...
— Claro, vou empurrar o seu carro um pouquinho. Tivemos sorte, porque este lugar não é movimentado.
Ele entrou no carro e ligou-o. Olhei o estofamento confortável. Ali não havia nada de plástico. Era um carro muito especial, apenas para conhecedores... como um bom vinho.
Ele estacionou o Daimler, ou sei lá o nome, no acostamento. Depois procurou no banco de trás do meu carro e trouxe a garrafa térmica. Fiquei só olhando.
— Beba tudo — disse. Seus olhos se enrugavam nos cantinhos quando ria. — É a ordem do médico — continuou, servindo-se também de um pouco de café.
Engoli o líquido quente. Ainda sentia a boca seca e percebi que havia ficado mais nervosa do que imaginara. Estendi a ele a xícara vazia.
— Ótimo, não deixou nenhuma gota — disse, sacudindo a cabeça. — Bem, foi muito bom tomar o cafezinho, porque terminei de almoçar há meia hora. Ainda não me apresentei. Sou Liam Rogers, o médico daqui.
— O Dr. Rogers! — Fiquei olhando para ele. Aquele homem era o médico que eu havia imaginado como um senhor de meia-idade, completamente antiquado. Se não fosse assim, por que estaria clinicando em um lugar tão remoto? Mesmo os jovens médicos da cidade não combinavam com a imagem daquele. Não tinha cabelos revoltos, não usavam short com camisa velha nem carros caríssimos.
— Parece surpresa! — Ele estava me olhando de modo simpático, amigável, com um dos braços apoiado na janela do carro. — Acho que não pareço muito com um médico, não é? — Fez um gesto com o outro braço, apontando o campo, como se aquilo explicasse tudo. É, parece estranho, mas tudo se explicou. Ele era parte daquele ambiente. — Você não é daqui. Veio fazer uma visita?
Sorri, sentindo-me aliviada e confiante.
— Como tem passado, Dr. Rogers? — respondi formalmente, lembrando minhas boas maneiras. — Sou Helen Linnell e vim para cuidar da Sra. Ward. A enfermeira-chefe falou sobre o senhor, e acredito que a Sra. Ward seja sua paciente e...
— Você é Helen Linnell? A sra Garry Linnell?
Uma estranha expressão passou pelo rosto dele. Rapidamente, como uma sombra, o sorriso desapareceu e os olhos se apertaram. Endireitou-se.
— A enfermeira-chefe citou seu nome, no telefone, mas me interessei mesmo pelo fato dela estar enviando uma profissional competente para a Sra. Ward. Imaginei que fosse alguma enfermeira gorda, de cabelos grisalhos e óculos.
— Bom... desculpe se não combino com suas expectativas — disse, aborrecida com a reação dele. — Sua paciente também espera alguém com essas características?
— Acho que Dolly Ward não se importa muito, desde que você seja uma pessoa que saiba ouvir — respondeu, sério. — Vamos dar uma olhada no carro, para que você prossiga logo a viagem. A casa da Sra. Ward é grande, branca, bem perto da praia, onde passa o rio Golden Water, que deu nome a baía.
Observei o Dr. Rogers se dirigir para o meu carro. Ele havia se tornado todo controlado e formal quando mencionei meu nome. Tinha certeza que a enfermeira-chefe lhe falara sobre mim, mas isso talvez aparentemente não tivesse significado nada para ele até aquele momento. Mas... que diferença fazia? Eu era apenas uma enfermeira que vinha cuidar de uma velha senhora que só andava em cadeira de rodas.
Por que meu nome teria algum significado especial para o Dr. Rogers ou para qualquer outra pessoa?
Ele deu partida e, com muita habilidade, manobrou o carro para fora do barranco. Apenas alguns torrões de terra estavam grudados no pára-choques. O veículo estava perfeito. Desceu depressa e me entregou as chaves.
— Pronto, Sra. Linnell. Amanhã nos encontraremos de manhã, quando fizer o meu plantão. Até amanhã.
Parecia espontâneo, mas havia nele uma certa formalidade que me deixou inibida.
— Obrigada — disse, controlada. — Foi muito gentil, Dr. Rogers. Até amanhã.
Soltei o freio e fui embora. Liam Rogers tinha tocado meu coração com sua gentileza e amizade. Mas, depois de saber que eu era Helen Linnell, havia se distanciado inesperadamente. Por quê?
Fiz uma curva e fiquei encantada com o cenário. Esqueci o Dr. Rogers, a Sra. Ward e todos os meus problemas pessoais. Aquilo ali era o paraíso, pensei. Agora sabia por que chamavam aquele lugar de Golden Water.
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CAPITULO II
Abaixo havia uma pequena baía. Ao longe, o mar, mas a costa era de um tipo diferente. Eu havia subido e cruzado a península. Só uma ponta de floresta se alongava em direção à água. O resto da baía era suave, formando um arco arredondado. Árvores espalhavam-se por toda a praia e principalmente onde o rio desembocava no mar. Era primavera e a água tinha um tom dourado porque estava coberta de flores amarelas. A areia também parecia dourada, cor de ouro-pálido, macio, frio e suave. Observava os telhados das casas, aparecendo em meio à vegetação.Aquele esplendor das flores amarelas kowhai era incrível, e eu quase já havia esquecido o quanto a natureza é bela. Dirigi em direção à casa da Sra. Ward, ansiosa para chegar.
O Dr. Rogers havia dito que a casa da Sra. Ward era uma construção grande e branca, que ficava perto do promotório. Continuei na mesma estrada e vi que a casa acompanhava o contorno da baía. Observei os jardins floridos e um pequeno iate ancorado ao longe. Vi várias lanchas a motor e veleiros.
Uma estrada particular enfeitada com plantas nativas saía da longa avenida. As porteiras brancas traziam as seguintes palavras: "Golden Water". Mais adiante ficava um casarão em estilo espanhol, escondido por árvores e rodeado de jardins bem-cuidados.
Parei o carro em frente à escadaria da entrada principal. Vi um homem de meia-idade, carregando apetrechos de jardinagem. Ele me olhou e se aproximou. Seu rosto era gentil e bronzeado.
— Boa tarde. Você deve ser a enfermeira. A srta. Linnell, não? — Ele me cumprimentou assim, no estilo informal da Nova Zelândia.
— Boa tarde — respondi sorrindo e saindo do carro. — Sou a enfermeira Linnell. E não sou senhorita.
— Mesmo? Parece tão jovem... — Ele piscou-me estendendo a mão. — Sou Don Murray, o jardineiro-faz-tudo da Sra. Ward. Muito prazer.
— Ei! Ei, vocês aí! — Uma voz de mulher soou, e o homem se virou para onde estava uma cadeira de rodas, num dos cantos da casa.
— Lá está a velha senhora. Ela tem muita personalidade — disse Don, procurando explicar os gritos.
Então, aquela era a minha paciente, pensei com meus botões. As idéias preconcebidas pareciam ir por água abaixo. Primeiro, com a imagem que fizera do Dr. Rogers. Onde estava o doutor velhinho que tinha imaginado? Agora, com a Sra. Ward. Sabia que ela tinha por volta de oitenta anos e que tinha problemas cardíacos. Então achei que ela era uma velhinha frágil, angelical, sempre procurando suas pílulas e sonolenta a maior parte do tempo, como muitos paclentes da seção geriátrica do hospital. Mas ali estava alguém que não parecia sonolenta nem angelical. A mulher na cadeira de rodas se aproximou.
— Puxa, até que enfim você chegou, enfermeira Linnell! — ela disse com um sotaque irlandês. — Pensei que já tivesse se perdido. Sou Dolly Ward. — E a mulher estendeu a mão suave e sem marcas, como a de alguém com metade de sua idade. — Seja muito bem-vinda a Golden Water.
— Ela está fazendo o papel de Rosie O'Grady — Don murmurou baixinho. — Quase não escuta, você terá de falar bem alto.
— Como tem passado, Sra. Ward? Meu nome é Helen Linnell — falei devagar, pronunciando bem as palavras, apertando a mão dela e olhando naqueles olhos azuis, vivos, que pareciam não ter perdido a intensidade com o passar dos anos.
Observei minha paciente do ponto de vista profissional. Estava com ótima cor. Parecia bem cuidada, sem dúvida era inteligente e estava maquilada. Tinha um rosto bem gordo, com pregas que caíam do queixo e do maxilar. Estava acima do peso — pude ver isso pelo corpo imenso sob os cobertores, saliente sobre as almofadas de seda. Os cabelos eram grisalhos, curtos e crespos. Achei que devia ter sido bem bonita quando jovem.
— Bem, vamos dar uma volta pelo terraço e parar onde haja um belo sol — disse a Sra. Ward, esquecendo-se do sotaque irlandês. — Don, por favor, peça à Eva que traga chá para nós quatro. Acho que já está na hora de tomarmos uma xícara.
O jardineiro dirigiu-se à parte de trás da casa. Fiquei sozinha com minha paciente. Ela sorriu. Esse sorriso deve ter sido arrasador há sessenta anos, pensei.
— Você é uma garota muito bonita, Helen. Uma beleza rara. Tão frágil que um vento poderia levá-la. — O sorriso desapareceu e ela colocou a mão em meu braço — azul-marinho; uma cor sóbria e apropriada. Minha querida, lamento o que aconteceu a seu marido. Deve ter sido um choque horrível!
Engoli em seco e olhei minha bolsa. Não ia agüentar se a Sra. Ward me pedisse uma descrição detalhada da tragédia e de minhas reações.
— Sim, sim. Foi — disse. — Quer que a leve até o terraço? Deve ter uma vista maravilhosa.
— Sim, por favor, querida. — Com um movimento rápido, ela virou a cadeira na direção desejada. — Posso manobrar esta coisa, sozinha. Mas sou preguiçosa, e gosto que alguém me empurre, de vez em quando.
A paisagem era realmente maravilhosa. O terreno descia suavemente até a água. Havia magnólias, pés de grapefruit e tangerinas projetando suas sombras sobre o gramado. Árvores altas se misturavam com mais baixas e protegiam a casa em três lados. Só o lado que dava para a baía não possuía árvores. Ali também estavam as flores amarelas forrando o chão e flutando na água. Flores exóticas exibiam suas cores.
Fiquei observando aquela beleza toda ao meu redor.
— Don Murray cuida muito bem deste lugar, não acha? — A Sra. Ward interrompeu minha contemplação. A voz dela era um pouco rouca e alta, achei que devia fumar demais. Aos oitenta anos? Senti que nada mais me surpreendia em Dolly Ward.
— É lindo — respondi. — Tem muita sorte em possuir tudo isso... — Apontei o cenário, e lembrei do Dr. Rogers ter feito aquele mesmo gesto quando falou do lugar. Aquilo ali era algo que não podia exprimir com palavras.
— Meu finado marido, o Sr. MacDonald Ward, construiu esta casa para mim logo depois da primeira Guerra Mundial, quando chegamos aqui, recém-casados. Encontramo-nos em Londres, sabe? Ele estava no Exército, e eu, no palco, fazendo teatro de variedades. — Sacudiu a cabeça. — Parece que foi ontem mas faz tanto tempo... mais de cinqüenta anos!
Imaginei o que teria sido Londres naquele tempo, e se ela estava triste por lembrar da cidade ou do marido. Talvez, ambos, assim como da perda da juventude, pensei.
O terraço ficava perto da casa. Era plano e com o chão formado por blocos de concreto. Havia ali uma mesa redonda, de madeira, pintada de branco, sombreada por um guarda-sol verde e branco. Várias cadeiras de armar, uma de cada cor, estavam agrupadas perto da casa. Coloquei a cadeira da Sra. Ward na sombra do guarda-sol. Fiquei pensando se o rosto corado dela se devia unicamente a maquilagem bem feita.
— Sente-se querida — ela disse, apontando uma das cadeiras. — A Sra. Murray logo estará aqui com o nosso chá. Don e Eva estão comigo há quase cinco anos. Eles têm seu próprio apartamento, mas fico pensando como me arranjaria sem eles. A enfermeira que tive antes era eficiente, mas ela se sentia muito solitária pois aqui é um lugar calmo demais para alguém jovem. Principalmente quando se tem de cuidar de uma inválida. Bem, ela se casou, e a enfermeira-chefe do hospital me recomendou você. — Olhou-me fixamente com aqueles olhos azuis incríveis. — Acha que vai gostar daqui?
— Tenho certeza absoluta — disse sem hesitar. — Precisava de uma mudança — continuei rapidamente. — Sei que é paciente do Dr. Rogers. Ele... quero dizer, penso que disseram a ele o meu nome. Quase dei uma trombada no carro dele quando estava descendo a montanha. Ele pareceu aborrecido ao saber meu nome, como se não soubesse que a sua enfermeira fosse a viúva de Garry Linnell.
Não pude disfarçar a amargura que todas aquelas lembranças me traziam: a publicidade, as expressões de falsa comiseração dos amigos de Garry. A triste verdade de meu casamento vergonhoso, tão curto, e que não havia passado de fingimento.
— A enfermeira-chefe deve ter mencionado o seu nome, Helen. — A Sra. Ward interrompeu meus pensamentos tristes. — Mas acho que disse apenas "enfermeira Linnell" e isso não significou nada para Liam Rogers. Foi só um nome. Mas "Sra. Garry Linnell" significa algo. Querida, não se importe com isso. O Dr. Rogers é um médico ótimo e um homem muito educado. Ele está em Golden Water apenas há poucos meses. Antes trabalhava sei lá onde, entre os nativos, estudando doenças tropicais. — Virou-se olhando para a casa. — Ah, lá está Eva com a bandeja. Espero que ela tenha feito alguns dos seus bolinhos deliciosos.
Sorri aliviada. Não precisava me preocupar. A Sra. Ward não ia fazer perguntas sobrea morte de meu marido e suas implicações. Sabia que ia gostar dela. Já estava adorando Golden Water.
Eva, a esposa de Murray, era uma mulher de cabelos curtos, grisalhos, e olhos castanhos brilhantes. Tinha um grande senso de humor e era muito inteligente. Era também uma cozinheira formidável.
Conhecia os gostos da Sra. Ward e lhe havia preparado bolinhos deliciosos. Ainda estavam quentes, com a manteiga derretendo. Achei que Dolly devia estar sendo superalimentada e, por isso, estava gorda demais. Não deveria fazer uma dieta? Precisava perguntar ao Dr. Rogers quando ele aparecesse no dia seguinte. Então, uma pergunta tilintou em minha mente: Por que o nome "Sra. Garry Linnell" significava algo para Liam Rogers, como a Sra. Ward havia dito? Claro que não era porque eu, como viúva de Garry, houvesse aparecido nos jornais! Não, devia ser outra coisa. Nos dias de hoje a notoriedade passageira é algo comum logo esquecida. Impaciente, afastei os pensamentos. Procurei tirar de minha lembrança aquele rosto bronzeado, com quentes olhos azuis.
Havíamos terminado o chá com bolinhos e estávamos conversando calmamente, quando algo nos interrompeu.
Um barco pequeno, a motor, todo pintado de vermelho, cruzou a água. O motor parou e o barco fez uma curva, espirrando gotas de água que vieram até o terraço. Vimos um jovem vestido com uma camiseta verde-claro e jeans. Ele atirou uma corda, prendendo o barco a uma árvore próxima e caminhou em nossa direção.
— É Michael! Estamos aqui, querido! — a Sra. Ward chamou-o desnecessariamente.
Ela acenou com o cigarro — sim, fumava demais — e seu rosto largo encheu-se de alegria. Claro que aquele jovem significava muito para minha paciente.
— Oi para todos! — ele disse, parando à nossa frente com as mãos nos quadris, sorrindo.
Era um homem alto e muito másculo. Algumas pétalas de flores amarelas tinham grudado em seu cabelo e nos ombros largos. Os Olhos dele se estreitaram por causa do sol. Piscou para mim, rapidamente.
— Olá, vovó, como está? Acho que fica mais jovem a cada dia que passa...
Dirigiu-se até a cadeira de rodas e curvou-se para beijar a testa da Sra. Ward. Vovó? Então era neto dela? Será que morava em Golden Water Bay?
— Não agüento você, querido. Fica por aí, beijando todo mundo — falou com voz rouca, imitando o sotaque inglês. Mas sorriu amorosa para o jovem.
— Não vai me apresentar? — ele perguntou, piscando para ela me apontando. Era muito brincalhão e se dava bem com a velha senhora. Ela parecia adorar cada minuto que ficava perto dele. E eu achava isso maravilhoso.
— Acho melhor voltar ao trabalho — Don murmurou, caminhando para o jardim.
— Eu também — a esposa dele disse, recolhendo as xícaras e o bule de chá. — Vou trazer alguns bolinhos quentes e mais um bule de chá fresco.
Suspeitei que os Murray não gostavam muito do recém-chegado. Fiquei imaginando... por quê?
— Helen, querida, este é o meu neto, Michael Ward — disse a Sra. Ward, apresentando. — Michael, esta é a minha nova enfermeira, recomendada especialmente pelo Hospital Greenpark. A enfermeira Linnell, que acabou de chegar.
— Entào é você quem vai cuidar de minha avó? — falou sorrindo e segurando minha mão. — Vai ter um trabalhão, acredite-me. — Inclinou a cabeça e disse numa voz profunda: — Ela é terrível, vai fazer você subir pelas paredes, gritando. Sabe que a última enfermeira foi para o hospício?
A Sra. Ward, que podia ouvir melhor do que Don imaginava, começou a rir.
— Comporte-se, Michael! Não ligue para ele. Helen, querida. Posso chamá-la de Helen, não é mesmo? Enfermeira Linnell parece tão formal...
— Claro que pode — eu disse imediatamente. Depois, virei-me para o neto: — Sr. Ward...
— Ah, vovó está se divertindo. Todos aqui me chamam de Michael, ou Mike. Nada desse tal de Sr. Ward... — A voz dele era brincalhona.
Sentou-se na cadeira de Don. Esticou as pernas longas e cruzou as mãos atrás do pescoço. Não demonstrou nenhuma reação depois das apresentações da Sra. Ward. Talvez tenha desconfiado de minha identidade. Depois pensei que tinha disfarçado rapidamente qualquer reação, ou que a avó o preveniu com antecedência. Os dois pareciam se dar muito bem. Ele a chamava "vovózinha". Ouem sabe, dito por outro homem, aquele diminutivo carinhoso parecesse superficial, mas por ele não. Era o seu jeito de mostrar a grande afeição que sentia por ela. O gelo que havia em meu coração começou a derreter um pouco. Aquelas pessoas ali eram amigas, se importavam umas com as outras, estavam a milhões de anos-luz dos superficiais amigos de Garry.
Eva Murray voltou com mais chá e bolinhos. Lembrei-me de que eu não era uma visita ali. Tinha coisas a fazer.
— Sra. Ward, desculpe-me, mas preciso guardar o meu carro. Talvez Don possa me ajudar com a bagagem...
— Já cuidamos de tudo — Eva interrompeu, com os olhos brilhando diante da minha surpresa. — Colocamos as coisas em seu quarto, e o carro na garagem. Você deixou a chave no contato — ela disse, balançando a cabeça de um modo reprovador.
— Ah, esqueci-me — disse, desanimada. — Don foi muito gentil... Hesitei, percebendo que a Sra. Ward gostaria de ficar sozinha com o neto.
Pode ir — disse a minha nova paciente. — Acho que está cansada e talvez queira tomar um banho. — Ela parecia ter percebido meus sentimentos. — Eva, por favor, mostre a Helen o quarto dela. Vou ficar aqui mais um pouco conversando com Michael. Quando quiser, venha para cá de novo, Helen. Lembre-se que não vai começar a trabalhar ainda hoje. Está pálida e precisa descansar.
Agradeci e segui Eva. Disse a mim mesma que a Sra. Ward estava me tratando como se eu fosse a paciente.
Os quartos da casa eram grandes e arejados, com o teto alto característico das casas antigas. Os móveis, de ótima qualidade e cores sóbrias. Nas paredes, quadros a óleo e paisagens em aquarelas. Só havia um retrato, sobre a lareira da sala de visitas. Reconheci Dolly Ward quando ainda era bem jovem.
A Sra. Murray viu meu olhar espantado.
— É a Sra. Ward — ela disse — no tempo em que se casou com MacDonald Ward. Ainda se chamava Dolly Pickles. Seu nome verdadeiro era Pickering, mas ela resolveu abreviá-lo. Dizem que, naquela época, ela era mesmo apimentada como picles. Mas muito bonita.
Olhei o retrato e procurei gravá-lo. Era Dolly, cheia de covinhas, sorrindo e piscando um olho. Os cabelos castanhos desciam em cachos sobre seus ombros nus e provocantes. Segurava uma sombrinha e parecia mesmo uma atriz do teatro da época eduardiana.
— Era linda. Tão feminina! — murmurei. — O marido, o Sr. MacDonald, era...
— Era bem mais velho que ela. Você deve conhecer um pouco da história da Nova Zelândia; ele foi um político que nunca conseguiu chegar a primeiro-ministro. Era muito rico e construiu esta casa especialmente para ela. O local era bem isolado há sessenta anos atrás. Chegava-se até aqui, geralmente, por mar. As estradas não passavam de atalhos poeirentos. — Eva sacudiu levemente a cabeça. — Pobre Sra. Ward. Não é de admirar que ela viva apenas de recordações. Deve ter tido uma vida muito interessante no teatro.
Segui a empregada, pensando naquela casa e na minha paciente. Podia-se perceber muito pouco da personalidade de Dolly na decoração da casa. Tudo ali era sóbrio demais, elegante, contrastando de modo muito forte com a exuberância daquela ex-cantora de cabares chamada Dolly Pickles. Percebi que ela também havia sido reprimida pelo marido, como eu por Garry. Golden Water não refletia Dolly, assim como não havia nada de mim naquele apartamento que durante tão pouco tempo dividi com meu marido.
A Sra. Murray me levou a um quarto ensolarado, de onde se via a baía. Era claro, moderno e possuía um banheiro conjugado. Olhei minhas malas arrumadinhas, encostadas à parede. De repente me senti cansada e um pouco deprimida. É só uma reação normal, disse a mim mesma. Afinal, depois de tudo que havia suportado nos últimos meses, a gentileza daquelas pessoas era muito tocante. Tirei o tailler azul-marinho e o pendureino imenso guarda-roupa. Tirei os sapatos e deitei, puxando o cobertor. Queria descansar só um pouquinho...
Acordei com a Sra. Murray sacudindo delicadamente o meu ombro. O sol havia desaparecido e o quarto estava ficando escuro.
— O jantar será servido em meia hora, enfermeira Linnell — a empregada avisou, sorrindo. — Pensei que seria bom acordá-la para ter tempo de tomar um banho. A Sra. Ward faz a refeição na sala de jantar, às sete e meia.
— Obrigada — respondi, levantando-me aborrecida por ter dormido tanto tempo. — Só queria descansar um pouquinho... E a Sra. Ward, ela...
Senti-me confusa. Nem sabia se havia negligenciado minhas obrigações. Meu trabalho era sempre cheio de emergências. Bem, se tivesse acontecido algo alguém me avisaria, pensei.
— Não se preocupe. A Sra. Ward está ótima. — A mulher acendeu o abajur. — Pode conversar com ela quando descer. Quer que eu feche as cortinas?
— Não, obrigada. Gosto de olhar a paisagem — disse, afastando o cobertor e saindo da cama.
Quando a empregada saiu, fui até a janela. O sol estava desaparecendo atrás das montanhas. O céu se apresentava cor de laranja, com nuvens que iam do azul mais claro até o mais escuro. A primeira estrela parecia um diamante solitário. Bandos de passarinhos esvoaçavam, procurando lugares escondidos para passar a noite. Meu sentimento de depressão havia sumido. Ia adorar Golden Water.
Tomei um banho rápido e coloquei minha túnica colorida. Escovei os cabelos, deixando-os soltos e desci para a sala de jantar. Queria parecer calma e eficiente. Tinha aprendido um pouco de psicologia e sabia que Dolly Ward estava precisando muito mais de companhia do que de uma enfermeira.
A sala de jantar, como o resto da casa, tinha um ar de dignidade mas era um pouco pesada na decoração. Fiquei satisfeita ao ver a mesa servida com jogos americanos e não com a toalha de brocados que, certamente, o Sr. MacDonald Ward teria preferido. No centro, uma travessa com flores. Aquilo era algo muito alegre, que não deve ter aparecido nos jantares vitorianos do dono da casa. Pobre Dolly! Provavelmente desejasse apenas uma xícara de chá com bolinhos, saboreada na mesa da cozinha.
A Sra. Ward ainda estava em sua cadeira de rodas. Alguém a empurrava em direção à mesa. Alguém que, à primeira vista, pensei ser Michael, o seu neto.
Quando entrei, ele se virou e me cumprimentou friamente.
— Boa noite. Sra. Linnell. — Seu tom de voz era tão frio quanto o olhar.
Era Liam Rogers.
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CAPITULO III
Aquela primeira refeição em Golden Waier se tornou incrível e inesperadamente alegre. No cumprimento do Dr. Rogers, senti sua desaprovação. Talvez não gostasse de mim. Não sabia. Bem, mas qualquer que fosse o motivo, não foi forte o suficiente para que ele deixasse de rir e se divertir com a Sra. Ward, lembrando os sucessos dela. Observando-a, notei sua imensa alegria de viver. Devia se sentir impossibilitada de aproveitar tudo que a vida ainda tinha a lhe oferecer, agora que se via confinada a uma cadeira de rodas. Tinha perdido quase completamente o uso das pernas, a enfermeira-chefe tinha me avisado. Não era propriamente uma paralisia, mas os músculos estavam esgotados. Sim, a pobre Dolly Ward amava a vida, adorava ter companhia, principalmente quando se tratava de um homem tão simpático como Liam Rogers.
Ele era mais simpático do que bonito. Do tipo que não consegue passar despercebido. Vestia-se de modo diferente de quando o encontrei de manhã. Estava com uma camisa branca e gravata vermelho-escura. A calça combinava com o tom cinza do paletó. Sua aparência agora mostrava que ele linha tomado alguns cuidados, e imaginei que estaria querendo agradar a velha senhora. Talvez, ele também estivesse usando seus conhecimentos de Psicologia.
Jantamos nós três. Os Murray faziam as refeições em seu próprio apartamento. A Sra. Murray tinha vestido e arrumado sua patroa. Dolly estava muito elegante. Muito mais que o Dr. Rogers e eu. Usava, um vestido de decote profundo, rosa-ciclámen, uma cor que combinava perfeitamente com seus cabelos prateados. A maquilagem também tinha sido muito bem aplicada. Achei os ombros dela muito bonitos para quem já passava dos oitenta anos. Não ostentava jóias, apenas o anel de opala com veios verdes e rosados. Dava a impressão de alguém alegre, uma personalidade viva. Olhei-a e desejei tê-la conhecido em sua juventude.
— Você está muito quieta, Helen — ela disse, sorrindo. — Conte-me algumas coisas engraçadas lá do hospital onde trabalhava. Esta noite, quero me divertir.
Parecia uma rainha e percebi que eu não estava participando da conversa do jantar.
— Desculpe — respondi. Ela não precisava saber que a presença de Liam Rogers me inibia. — Ainda estou um pouco cansada. Não olhei para o médico, mas percebi os olhos azuis sobre mim. — Bem, uma vez aconteceu um caso muito engraçado quando eu estava de plantão. — E descrevi um dos episódios cômicos do hospital, envolvendo um dos membros mais importantes da direção e uma enfermeira principiante. Quando terminei, a Sra. Ward gargalhava.
— Queria ter visto isso! Oh, querida, posso imaginar o que aconteceu. — Ela afastou as lágrimas de riso. — Lembro-me de algo que sucedeu no velho Coliseum. — E ela entrou em suas recordações, entremeando as palavras com vinho e um jantar muito bem preparado.
Depois fomos para a sala de estar. O Dr. Rogers empurrou a cadeira de rodas. Apesar de sentir ainda a forte tensão existente entre eu e ele, me diverti muito com os dois. A Sra. Ward detestava televisão quando tinha visitas.
— É um aparelho só para gente solitária — declarou, acendendo seu terceiro cigarro após o jantar. — Eu tenho muito para falar e ouvir. Vocês não concordam?
— É claro que nós concordamos — respondi.
Ouvimos discos e, entre uma música e outra, vi o Dr. Rogers olhando sua paciente, balançando a cabeça de modo reprovador quando ela acendeu mais um cigarro.
— Olhe, Dolly, acho que está fumando demais — ele disse, procurando suavizar o comentário com um sorriso. Haveria um ar brincalhão naqueles olhos azuis? — Tenho certeza que a enfermeira Linnell vai concordar comigo nesse ponto.
Será que ele achava que eu não concordaria em outros? Senti uma ligeira raiva. O que aquele homem sabia de mim, a não ser a história da morte do meu marido, publicada em todos os jornais? Nunca tinha aparecido nas colunas sociais que Garry apreciava tanto. E aquele médico nunca havia me encontrado antes daquela manhã. Não tinha nenhum direito de me julgar baseado em algo que eu não compreendia.
— Claro que concordo, Dr. Rogers — disse.
— Oh, pelo amor de Deus, vocês dois! — a Sra. Ward interrompeu irritada. — Que importância tem isso! Fumei durante a vida toda. E outra coisa... — ela fez uma pausa — por que tanta formalidade? Escutei "Dr. Rogers", "enfermeira Linnell" a noite inteira. Lembrem-se: vocês não estão de plantão no hospital!
— Madame, aceite minhas humildes desculpas — ele disse, inclinando-se com a mão no coração. — Como diz a música, "tremo de medo do seu olhar... "
— Treme como fumaça... isso sim! — O riso da Sra. Ward encheu a sala. Os olhos dela estavam brilhantes, mas reparando melhor, vi que parecia cansada. Dei uma olhada na direção do Dr. Rogers. Ele também havia observado. Sabia o que eu pensava.
— Está na hora de dormir, minha jovem — ele disse, inclinando-se na direção dela e batendo no relógio. — Tenho de trabalhar muito amanhã. Enfermeira... bem... Helen, talvez eu possa ajudá-la a colocar sua paciente na cama. — Falou isso e me olhou friamente.
— Claro. Também gosto de dormir cedo. — Por que aquele homem me intimidava? Devolvi seu olhar com outro igualmente frio. Era isso que queria, não era? Apesar de ser um estranho completo, eu preferia ter a amizade e cooperação dele, uma vez que íamos cuidar da mesma paciente. Sentia-me confusa, deprimida.
— Sim, está bem. Boa noite, querido — Dolly Ward estendeu a mão a ele, sorrindo cheia de afeição.
Percebi que ela ansiava por amor, como a maioria dosseres humanos. Será que eu era diferente? Bem, minha vida de enfermeira superocupada não deixava lugar para muitas preocupações. Achava a amizade de minhas colegas bastante satisfatória, apesar da minha infelicidade a nível pessoal. Tinha muitas atividades e amigas, mesmo sabendo que não serviam como substitutos para o amor.
O Dr. Rogers se despediu e dirigiu-se para o carro estacionado na entrada. A noite estava escura, sem luar, mas com milhões de estrelas. Dentro, a casa ficou vazia, silenciosa. Ouvi o ruído de pneus, o barulho do motor. Liam Rogers estava se afastando.
— Aqui é muito solitário, principalmente à noite, quando todos estão dormindo, menos eu. — A Sra. Ward se afundou na cadeira. De repente, parecia muito cansada.
— Deixe-me ajudá-la a ir para a cama — disse eu, inclinando-me em direção a ela. — Vou lhe trazer um copo de leite quente. Costuma tomar pílulas para dormir?
— Oh, sim — ela sacudiu os ombros —, há anos. Às vezes funcionam, às vezes, não. Engraçado, não acha? — Ela me olhou. — Você não gosta de Liam Rogers, não é? Por quê? Ele... bem... ele sofreu muito nestes últimos anos, por isso seja gentil com ele, Helen. No fundo é um bom garoto.
Garoto! Era um homem de mais de trinta anos. Talvez parecesse um garoto para ela. Segurei sua cadeira de rodas.
— Tenho certeza que sim, e também é um ótimo médico — respondi diplomaticamente. — Ele parece ter algum preconceito contra mim. Acho que isso vai passar logo — disse, desajeitada. — Agora, pode me ensinar o caminho? — Qual é o seu quarto?
Fiquei espantada com a diferença de decoração do quarto da minha paciente. Enquanto o resto da casa era mobiliado em estilo austero e discreto, o quarto dela mostrava toda sua personalidade esfuziante. Os lençóis eram roxos e uma infinidade de almofadas em tons violeta se espalhava pela cama.
As paredes eram cobertas por papel enfeitado com arabescos dourados e, acima da cabeceira da cama, havia o quadro de um pavão bordado em seda negra, com penas e olhos feitos com lantejoulas. Um tapete oriental multicolorido cobria o chão. Muitas Fotografias, a maior parte mostrando Dolly no teatro, espalhavam-se pela mesinha-de-cabeceira. Em uma moldura grande, de prata, o retrato de um homem. O marido, pensei, vendo o rosto solene, o farto bigode e o colarinho alto.
Coloquei logo minha paciente na cama. Ela estava vestida com uma camisola preta ultramoderna, cheia de rendas.
— Humm... Que pedaço de mau caminho! — brinquei, enquanto puxava as cobertas e ajeitava os travesseiros. — Acho que no fundo, você ainda é Dolly Pickles!
— Está certa, Helen querida — ela murmurou. — O Sr. Ward tentou, em vão, fazer de mim uma lady. Mas não conseguiu. Deu apenas uma lapidada. Nesses anos todos fingi ser a lady que ele imaginava, da mesma forma que representei garotas ricas nos velhos musicais de Londres. Mesmo depois de ele ter morrido continuei representando a lady, de tão acostumada que estava!
Senti que a confissão dela era patética. Percebi também que se referia ao marido como "Sr. Ward". Ela era como eu: uma pessoa deslocada do seu modesto estilo de vida por um homem com mania de grandeza. Tinha deixado seu próprio mundo e tentado se transformar naquilo que não era. Além do quarto, não havia nada mais na casa que refletisse Dolly Ward. Tudo pertencia a MacDonald Ward. Assim como o meu apartamento só refletia Garry Linnell, cujo corpo tinha se queimado junto com o de sua amante, no desastre.
— Vou buscar leite para você — disse. Minhas tristezas não podiam interferir no trabalho. — O que prefere: leite ou chocolate quente?
— Chocolate, por favor, com duas colheres de açúcar. — Recostou-se nas almofadas violetas e fechou os olhos. — Eva deixa tudo na mesa da cozinha. Minhas pílulas estão ali na gaveta — e apontou para a penteadeira.
Logo estava acomodada. Possuía uma campainha ao lado da cama, que podia tocar se precisasse de algo à noite. Meu quarto era ao lado do dela, a poucos passos de distância.
— Deixe o abajur de cabeceira aceso, Helen — ela disse com voz sonolenta. — Eu mesma desligarei quando tiver vontade. Boa noite, querida.
Fui para meu quarto, me despi e pendurei a túnica no guarda-roupa. Olhei o mar ao longe. Agora parecia uma massa escura a pouca distância do terraço. Então, vi um brilho cruzar a baía. As luzes de um carro, pensei, talvez o Dr. Rogers. Não, ele já estaria em casa há horas. Será que dava para ver sua casa dali? E Michael Ward onde moraria? Talvez não fosse por ali, nas redondezas. Provavelmente tinha um bangalô de verão para descansar nas férias. Que será que ele fazia? Lembrei dos jeans informais, da camiseta de jérsei e do barco luxuoso. Lembrei também da impressão que tivera quando Eva e Don Murray se retiraram logo após a chegada de Michael, como se não desejassem encontrá-lo. O que teriam contra o neto da patroa? Ou será que eu estava apenas imaginando coisas?
Desliguei o abajur e entrei debaixo dos cobertores. Amanhã, disse a mim mesma, teria de encontrar novamente o Dr. Rogers. Desta vez seria por motivos profissionais. O pensamento me perturbou um pouco, mas logo adormeci.
Acordei na manhã seguinte com pássaros cantando no céu azul translúcido. Alguém batia à minha porta. Era a empregada com uma gostosa xícara de chá. Era seis e meia, a hora em que lhe pedira para me chamar.
Tomei um banho e coloquei meu uniforme de enfermeira. Sentia-me alegre e com muita fome. Não tinha apetite desde a morte de Garry. Se continuasse assim, disse a mim mesma, no espelho, logo perderia aquele rosto magro e talvez ficasse até um pouco corada.
A Sra. Murray logo me avisou que a Sra. Ward não gostava de ser perturbada antes das oito horas. Meu café estava servido na sala de jantar.
Saboreei o suco de grapefruit, um ovo cozido, torradas e café. Depois fui para o terraço. Naquela hora do dia ele ficava na sombra. Caminhei pela calçada que rodeava a casa, observando o sol. As ondas do mar faziam um barulho longínquo e ali nenhum som de tráfego perturbava a paz da natureza.
— Ah, bom dia, enfermeira Linnell. Já saiu da cama, hein? — Era Don Murray, sorrindo. Trazia uma caixa de sementes e vi seu olhar satisfeito para o sol.
— Bom dia, Don — respondi. — Está uma manhã realmente magnífica. Nunca imaginei que tanta beleza existisse! Parece o paraíso...
— Sim. Acho que este lugar pode ser chamado assim.
Olhou o mar e as montanhas distantes. O sorriso desapareceu dos seus lábios, como se tivesse sido perturbado por algum pensamento desagradável. Então me olhou diretamente.
— Mas, em todo paraíso há sempre uma serpente — disse de repente. Parecia estar me avisando. — Bem, acho melhor ir trabalhar — murmurou, e saiu carregando as sementes.
Uma serpente? Será que estava se referindo a Michael Ward? Ou seria a outra pessoa? Impaciente, procurei esquecer. A vida havia me ensinado que nada é perfeito. Agora tinha meu trabalho. Olhei o relógio. Faltavam poucos minutos para as oito horas.
Encontrei a Sra. Ward sentada na cama, tomando o café da manhã. Ela parecia descansada e bem disposta. Mas agora o sol entrava pela janela e refletia cruelmente aqueles lençóis roxos e o pavão na parede. Mostrava também todas as rugas e olheiras de um rosto que um dia havia sido lindo. Apenas os cabelos crespos prateados se beneficiavam com a luminosidade do sol.
Ela me recebeu alegremente, acenando com o garfo.
— Bom dia, Helen querida. Venha conversar comigo. Acho que não se importa de ver um leão se alimentando. — Deu uma risada rouca. Olhei e percebi surpresa que ela ainda tinha seus próprios dentes, apesar de ligeiramente escurecidos por causa dos cigarros.
— Já está toda preparada, hein? — ela disse olhando o meu uniforme. — Precisa mesmo trabalhar vestida assim?
— Penso que o Dr. Rogers espera isso de mim — disse, depois de cumprimentá-la. — Acha que o uniforme me faz parecer muito hospitalar? Ele é bem prático, muito mais do que jeans ou um vestido. Estes bolsos fundos, por exemplo, servem para muitas coisas. — Enfiei as mãosnos bolsos, esperando que a Sra. Ward não fizesse mais objeções quanto ao uniforme. Sentia-me mais segura com ele. Segura e anônima. Capaz de lidar com o Dr. Rogers, qualquer que fosse a disposição dele.
— Acho que está certa, querida — ela disse dando de ombros. — É que você fica tão... impessoal... acho que é esta a palavra certa. Na noite passada estava encantadora com aquela túnica em tons de azul e verde. — Fez um gesto em direção a uma cadeira branca com almofadas de cetim lilás. — Puxe uma cadeira, querida. Não precisa ficar de pé, vai se sentir cansada. Dormiu bem?
Conversamos durante alguns minutos, enquanto a Sra. Ward acabava com um prato de bacon e ovos, batatas fritas, torradas com geléia e uma enorme xícara de café. Fiquei surpresa com aquela refeição logo pela manhã.
— Toma sempre um café da manhã tão completo? — Não pude evitar a pergunta. — O Dr. Rogers não lhe sugeriu nenhuma dieta? Não faz exercícios e está muito acima do peso ideal. Isso é mau para você!
A velha senhora empurrou a bandeja com um ar petulante.
— Claro, ele já cansou de sugerir — disse, limpando os lábios com um guardanapo de linho. — Mas... é como os cigarros. Não me incomodo nem um pouco. Gosto de comida. Por que iria passar fome? Não tenho muitos anos pela frente e por isso quero aproveitar o mais que posso.
— Não precisa passar fome — respondi. Já estava treinada para manter a paciência e enfrentar aquela atitude tão comum. — É só comer os alimentos apropriados. E não essas coisas fritas, gordurosas, estas batatas.
Ela tampou os ouvidos com as mãos, sacudindo a cabeça violentamente. Vi que estava aborrecendo a Sra. Ward, e decidi não falar mais nada. Talvez uma palavra em particular com o médico...
— Desculpe-me — tentei dizer. Onde estava a minha Psicologia? — Não tinha nenhum direito de lhe falar sobre isso. Bem...costuma tomar algum remédio pela manhã? — perguntei, procurando distraí-la.
Consegui. Ela tirou as mãos dos ouvidos e se recostou nas almofadas.
— Querida, tomo tantas pílulas que se alguém me sacudir faço barulho como um vidro de remédio! — ela disse alegremente e com um sotaque especial, piscando os olhos. Depois voltou à sua voz normal. — Vai encontrar os comprimidos na gavetinha. São para a pressão sangüínea.
Peguei o remédio, um copo d'água e levei até a cama. Enquanto ela tomava a pílula, observei-a com cuidado. Agora não usava maquilagem e mesmo assim seu rosto estava bem corado. Naquela idade tinha um bom aspecto mas precisava tomar precauções. E se tivesse uma hemorragia cerebral? Excitação em demasia podia causar esse tipo de problema. Eu precisava de detalhes sobre sua saúde geral. Apesar de teimosa e de não aceitar meus conselhos sobre alimentação e cigarros, ela era minha paciente. Gostava dela, como pessoa, e queria fazer meu trabalho do melhor modo possível.
— Não precisa ficar aí sentada nesta cadeira, boba! Você fica parecendo uma peça da decoração... Sente-se aqui na cama — bateu na almofada de cetim lilás. — Helen, me arrume logo, antes que Liam chegue. Seu trabalho tem uma rotina própria, é claro. A última enfermeira me dava um banho de esponja depois do café da manhã. Então...
— Desculpe-me, Sra. Ward, mas no seu banheiro há um chuveiro? — perguntei gentilmente.
— Oh, sim. A casa é velha, mas temos tudo de mais moderno. Vá lá dar uma olhada você mesma. Tudo que quiser, é só pedir.
— Bem, banho de esponja só é necessário no hospital — eu disse. — E só se o paciente estiver totalmente incapacitado. Não é o seu caso. Pode tomar um banho de chuveiro sentada em uma banqueta. É mais agradável e menos confuso do que o banho de esponja. A outra enfermeira nunca tentou?
— Não — ela sacudiu a cabeça —, mas eu gostaria. Puxa, que delícia entrar debaixo de um chuveiro de verdade! Helen, você é realmente maravilhosa! Vamos tentar depois que eu fumar este cigarro. — Ela parecia animada como uma criança e, mais uma vez, senti admiração por seu espírito juvenil.
A manhã passou rapidamente. Ela tomou o banho, vestiu-se e voltou para a cadeira de rodas. Depois insistiu para ir até o terraço. O sol brilhava no céu, os pássaros cantavam e as águas da baía pareciam imóveis, com uma tonalidade belíssima.
— Que dia lindo! Que bom estar viva! — A Sra. Ward observava o cenário do seu lugar favorito. Don havia aberto o guarda-sol. No verão ela preferia a sombra das árvores, mas agora era primavera, e o calor ainda não parecia tão forte.
— Sim, está um dia muito bonito. — O horror e a angústia que me perseguiam desde o desastre do avião, desapareceram. Sim, o gelo de meu coração ia se derretendo aos poucos... Talvez, depois de algum tempo, eu até me sentisse feliz novamente.
— Sente-se Helen, querida. — A velha senhora era gentil comigo. — Até agora só ouviu minhas recordações. Que tal me contar algo sobre si? Sou velha o suficiente para ser sua avó e acho que já vi muitas coisas na vida. Pegue uma cadeira e sente perto de mim. Vamos fofocar um pouco antes que Eva nos traga o chá. 
Ficamos conversando durante muito tempo. Contei a minha infância na fazenda, a decisão de me tornar enfermeira, o treinamento no hospital e vários incidentes engraçados. Toquei levemente no assunto do meu casamento e seu final terrível.
— Garry e eu ficamos casados menos de um ano — disse para ela, incapaz de esconder a dor e o choque que ainda sentia. — Sabe o que aconteceu, não? Saiu em todos os jornais, no rádio, na televisão. Foi algo... que... bem, não consigo falar sobre isso ainda. Tudo parece muito recente. Foi uma das razões para eu aceitar este emprego. Para me afastar do passado, recuperar o equilíbrio emocional, analisar e escolher qual o melhor caminho para o futuro.
A Sra. Ward inclinou-se e colocou a mão no meu braço. Fiquei surpresa ao ver os lábios dela tremerem.
— Pobrezinha. Passou por uma experiência terrível, Helen querida. Converse sobre o assunto quando sentir vontade. Mas lembre-se que quero ser sua amiga. Se houver um modo de ajudá-la...
— Obrigada, Sra. Ward. É tão gentil... — Para meu espanto, senti que as lágrimas jorravam, escorrendo por minhas faces. Isso não iria prejudicar minha imagem de enfermeira eficiente? Afinal, eu não tinha o direito de aborrecer minha paciente daquele jeito. Controlei as emoções, enxuguei o rosto e procurei sorrir. Graças a Deus o Dr. Rogers não me viu daquele jeito, agindo de uma forma tão imprópria à minha profissão.
Felizmente, naquele momento a Sra. Murray chegou com as xícaras de chá. Don a acompanhava. Os dois pareciam se dar muito bem. Eva havia feito bolinhos quentes, servidos com manteiga e geléia de morango feita em casa. Tentei ignorar o modo como a Sra. Ward devorava os alimentos. Tudo estava delicioso demais. Será que ela tinha o vício de comer, assim como o de fumar? As mulheres tendem a ficar viciadas em comida quando falta algo em suas vidas. Umas se tornam viciadas em trabalho, lavando e escovando a casa. Sorri para mim mesma, percebendo que eu era daquele tipo. Mergulhei no trabalho do hospital quando Garry ainda estava vivo. Devia admitir que me faltavam muitas coisas na nossa vida em comum.
A empregada tirou a mesa, voltando à cozinha, e Don foi para o jardim. A Sra. Ward começou a falar do neto.
— Foi ótimo ver Michael, ontem — ela disse, acendendo um cigarro. — Ele sempre pára aqui ou me telefona quando está em casa. Mora do outro lado da baía... — Ela fez um gesto em direção às montanhas.
— Quer dizer que ele mora lá — perguntei, surpresa —, e não em Golden Water Bay? O que faz lá?
— Tem uma fazenda. — Ela riu sacudindo os ombros. — Era um lugar arruinado que comprou a preço baixo, há poucos anos. Aliás, eu comprei para ele. Agora tem carneiros, gado, e o lugar fica na montanha, praticamente. Acho que por isso ele está sempre com dívidas. Mas, nos últimos anos, tem progredido bastante com o rebanho. Entre aquelas montanhas há vales férteis. Ele plantou muito milho e a colheita foi bem lucrativa.
— Ele não parece um fazendeiro — respondi. — A não ser pelo tombronzeado da pele. É seu único neto ou tem outros?
Ela tragou profundamente o cigarro, depois jogou a cabeça para trás e soltou a fumaça.
— Só tive um filho. Ele morreu há alguns anos e deixou três crianças: duas meninas e um menino. A mãe tornou a casar e vive nos Estados Unidos. As garotas já casaram e vivem no exterior. Michael foi o único a permanecer na Nova Zelândia. — Ficou em silêncio por alguns momentos. — Ele é o meu único herdeiro. Vai ficar com Golden Water quando eu morrer. — Ela terminou se encostando nas almofadas.
Então era aquilo, pensei. Os Murray deviam saber que Michael ia herdar Golden Water. Será que tinham medo de perder o emprego e o apartamento confortável? Não. Parecia mesquinho demais para um casal tão agradável. Além disso, a Sra. Ward deve tê-los mencionado também, no testamento. Devia ser algo mais...
— Disse que ele vem vê-la sempre que está em casa? Quer dizer que ele viaja muito? — perguntei.
— Sim. — Ela balançou a cabeça. — Ele tem um cavalo de corrida chamado Dolly Pickles. Você acredita? Corre em hipódromos do país inteiro e algumas vezes até no exterior. A fazenda é administrada por um homem... Alex Harper... acho que é este o seu nome. Nunca o encontrei, mas penso que conhece bem o seu trabalho. — Ela franziu as sobrancelhas. — Na verdade, fiquei surpresa em ver Michael voltar para casa nesta época. Logo haverá uma corrida importante e acho que ele está muito preocupado. Seu coração não está na fazenda. Uma pena. — Ela permaneceu em silêncio, mergulhada nos próprios pensamentos.
Almoçamos no terraço, à sombra do guarda-sol. A Sra. Murray arrumou a mesa com um jogo americano muito bonito. Depois, trouxe um carrinho com chá gelado e peixe.
Servi o chá. Como sempre, minha paciente comeu demais. Surpresa, senti que saboreava aquela refeição como não fazia há muito tempo.
Quando terminei, me ofereci para empurrar o carrinho até a cozinha. A velha senhora fez que sim. Estava sonolenta pelo excesso de alimento e pelo calor do sol.
Fiquei na casa, ajudando Eva a lavar louça, enquanto a Sra. Ward fazia a sesta. Depois fui dar um passeio na avenida arborizada que tinha percorrido de carro, no dia anterior. Como era gostoso caminhar até a areia da praia, ouvir o barulho suave das ondas e respirar aquele ar não-poluído...
A paz da paisagem me contagiou. A enfermeira-chefe tinha adivinhado que eu precisava exatamente daquilo. Uma mudança de cenário e um trabalho suave; beleza e tranqüilidade. Tudo estava ali, em Golden Water.
Caminhei pela areia e logo cheguei perto da água. Imaginei se ali seria um bom local para nadar. Michael saberia, pensei, olhando as montanhas onde ficava sua fazenda. Será que seria casado? Não parecia. Nem ele nem a avó tinham mencionado uma esposa. "Está sempre com dívidas", dissera a Sra. Ward. Havia comprado para ele a fazenda, dado de presente. Será que seria este o motivo dos Murray não o apreciarem? Talvez o vissem como um aproveitador, esperando para abocanhar tudo quando a avó morresse. Bem, eu não achava que ele fosse assim. Pelo menos ele não se afastara da avó e lhe fazia carinhos, chamando de "vovózinha", fazendo-a rir. Talvez fosse um pouco irresponsável, mas aparentemente estava tendo sucesso em sua plantação de milho. Era um homem bonito. Muito mais bonito do que o Dr. Liam Rogers.
Pensando nisso, dei uma olhada no relógio. Precisava voltar. Não podia estar ausente quando o médico aparecesse, principalmente no meu primeiro dia de trabalho.
Corri pela avenida e ouvi um carro se aproximando da casa. Nossa! Seria ele?
Seu carro estava parado em frente a porta principal. Era o Daimler, o carro de luxo. Fiquei surpresa, pois ele havia dito que geralmente usava um Ford velho para visitar os pacientes. Apressei o passo.
O Dr. Rogers estava conversando com a Sra. Ward. Mas não tinha vindo sozinho. Ao lado dele, uma mulher bem vestida, que reconheci imediatamente, ria animada.
Ambos me olharam.
— Boa tarde, Dr. Rogers. — cumprimentei, depois me virei para a mulher. — Boa tarde, Dra. Frederick. Como tem passado? Que surpresa encontrá-la aqui...
Ela me olhou friamente, inclinando a cabeça de lado como se procurasse lembrar de onde me conhecia.
— Ah, é a enfermeira Linnell, não? — disse finalmente. — Claro, do Hospital Greenpark. É difícil lembrar de toda a equipe. — Pelo jeito dela falar, parecia estar se referindo a uma ajudante de cozinha.
Mas eu conheci a Dra. Frederick, e sabia que ela lembrava bem de mim. Pertencia ao grupo de amigos sofisticados de Garry e eu suspeitava que fosse uma das suas muitas conquistas.
Virei para olhar Liam Rogers. Ele me observava com o rosto duro e frio.
A paz recém-encontrada desapareceu. Como Don Murray havia dito. todo paraíso tem sua serpente. O nome daquela era Paula Frederick.
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CAPÍTULO IV
Não consegui conversar a sós com o Dr. Rogers naquele dia. Paula Frederick ficou sempre por perto, mesmo enquanto falava com a Sra. Ward. O próprio Dr. Rogers estava muito ocupado examinando sua paciente, discutindo o tratamento com frases curtas e impessoais. Senti-me frustrada e apenas balançava a cabeça, dizendo “sim doutor" a tudo o que ele falava.
Fiquei aliviada quando os dois se despediram da Sra. Ward e foram para o carro. Vi quando iam pela avenida. A cabeça loura da Dra. Frederick contrastando com o rosto bronzeado de Liam Rogers.
A Sra. Ward me olhou curiosa, quando ficamos sozinhas.
— Nâo gosta muito dela, não é, Helen? — Ela pegou um cigarro e o acendeu. — Não consegui fumar nenhum, com três pares de olhos me condenando. A Dra. Frederick é um pouco... petulante, não acha?
— Minhas emoções transpareceram tanto? — perguntei sorrindo, aborrecida. — Na verdade eu já a conhecia, tanto no hospital, como na vida particular. Era uma das... amigas do meu marido. Sempre encontrávamos com ela em coquetéis. Até mesmo nos oferecidos por Garry.
Não pude disfarçar o tom de amargura na voz. Nos últimos tempos ele nem se importava em me consultar sobre os convidados. Algumas vezes eu chegava em casa pronta para descansar, depois de um dia de trabalho intenso, e encontrava o apartamento cheio de convidados. Alguns eram completos estranhos para mim. Sempre houve uma seqüência de lindas mulheres entrando e saindo das nossas vidas.
— Helen, querida, é uma pena que essa mulher esteja em Golden Water. Ela me disse que veio passar férias. — A velha senhora me olhava cheia de gentileza. — Não deixe que ela perturbe você, querida. O passado é o passado. Que fique adormecido!
— Sim, naturalmente. — Procurei afastar minhas lembranças. — Bem, não consigo imaginar a Dra. Frederick passando as férias inteiras nesta praia sossegada. Ela gosta muito de movimento, luzes. Na verdade, estou surpresa dessa mulher ter escolhido este lugar.
— A resposta, querida — a Sra. Ward falou —, é uma só: Liam Rogers.
— O Dr. Rogers! Quer dizer...
— Oh, não sei se estão namorando. Mas, o Dr. Rogers se distinguiu nos últimos tempos com suas pesquisas no Paquistão e América do Sul. Ele foi muito procurado por jornalistas quando voltou à Nova Zelândia. Deve tê-lo visto na televisão e nos jornais.
Sacudi a cabeça, sentindo vergonha da minha pouca informação sobre as pessoas importantes no meu campo de trabalho. Mas estivera trabalhando tanto ultimamente. Depois do desastre de Garry, não conseguia nem olhar as notícias na televisão ou ler os jornais. Tinha medo de saber mais sobre o meu marido e sua vida particular.
— Certo... — disse vagarosamente. De repente lembrei de um comentário que ela havia feito sobre o médico. — Sra. Ward, o que a senhora estava querendo dizer quando falou que "enfermeira Linnell" significava pouco para o Dr. Rogers, mas "Sra. Garry Linnell" significava algo?
Ela olhou para longe, depois observou a fumaça do cigarro.
— Penso que cedo ou tarde vai acabar ouvindo esta história. Talvez seja melhor que lhe conte, em vez de outra pessoa — ela disse finalmente. Depois fixou os olhos em mim. — Há dois anos Liam Rogers estavanoivo. Uma garota adorável, pelo que me contaram. Mas ela se encantou por outro homem. Ele conseguiu que ela abandonasse Liam. Muito magoado, Liam arranjou um emprego em algum lugar remoto da floresta. Claro que não fez mal algum à sua carreira... veja-o agora.
— Mas se é tão importante assim — perguntei com a garganta seca —, por que ele está enterrado aqui, neste lugar desconhecido?
— Aconteceu com ele o mesmo que com você, Helen querida — ela disse, estendendo as mãos e falando baixinho. — Ele foi usado, física e emocionalmente. Odiava a publicidade sobre o que tinha realizado naqueles recantos remotos do mundo. Queria fugir de tudo. Por isso está aqui, em Golden Water. Ele foi estagiário do Hospital Greenpark, e lá encontrou a Dra. Frederick. Claro que foi há muito tempo.
Eu havia encontrado a Dra. Frederick muitas vezes no hospital. Ela não perdia tempo com enfermeiras. Era uma daquelas criaturas snob que, no hospital, conhecia seu próprio lugar na hierarquia e fazia questão de lembrá-lo a todas as pessoas. Era uma médica brilhante, mas detestada pela maioria das enfermeiras.
Bem, tinha uma pergunta a fazer e não ia agüentar mais. Entretanto, quase já sabia a resposta.
— Quem foi o homem... responsável pelo rompimento do noivado do Dr. Rogers?
A Sra. Ward me olhou triste, balançando a cabeça.
— Sim, foi ele, querida. E Liam Rogers nunca o perdoou. A garota terminou com a própria vida quando ele a abandonou por outra mulher. Uma história sórdida, mas muito comum. — Ela fez uma pausa, insegura sobre as palavras que diria em seguida. — Helen, querida, desculpe-me por estar lhe dizendo tudo isso. Você é uma moça muito bonita e não consigo entender como casou com aquele homem.
Minhas pernas, de repente, ficaram trêmulas. Sentei numa cadeira, fiquei imóvel durante um longo tempo, olhando o mar brilhante.
— Não consigo entender por que ele casou comigo — consegui dizer finalmente. — Nós pertencíamos a mundos diferentes. No tipo de sociedade permissiva dele, uma garota virtuosa e antiquada se transforma logo em piada. Mas ele sempre teve tudo que quis, mesmo que para isso precisasse casar. Na verdade, mesmo o casamento não mudou muito as coisas, pois Garry continuou com a sua vida anterior. Agora sei de tudo, mas levei muito tempo até encarar a realidade. — Fiz um gesto leve. — Bem, isso pertence ao passado. Garry está morto. Uma parte da minha vida acabou. — Fiquei em silêncio alguns momentos e depois um pensamento me ocorreu: — Não entendo por que o Dr. Rogers está atirando todo seu ressentimento e amargura sobre mim. O que o meu marido fez, antes de me conhecer, não é responsabilidade minha.
— É verdade, querida — a velha senhora confirmou. — Mas a natureza humana é estranha. Acho que ele a classificou automáticamente como uma pessoa da alta sociedade. Sofisticada. Você foi esposa do homem que criou tantos problemas e tragédias na vida dos outros, portanto, deve ser como ele. Farinha do mesmo saco, você sabe...
— Ele não tem nenhum direito de me condenar sem me conhecer — desabafei, furiosa. — E a Dra. Frederick? — Ela pertence à alta sociedade.
— Não posso responder por isso — disse a Sra. Ward, balançando a cabeça. — Talvez por ser médica também, ele a situe acima de qualquer critica. Bem, ela é uma mulher muito simpática e encantadora... quando quer.
De repente, senti-me cansada do assunto.
— Vamos falar de outras coisas. Ouvi o Dr. Rogers falar sobre seus comprimidos. Qual deles acha mais fácil de tomar? — perguntei, sabendo da dificuldade dela em engolir as pílulas.
Conversamos alegremente até Eva trazer o chá da tarde. Depois sugeri ler em voz alta ou levá-la pelo jardim para que visse as últimas criações de Don.
— Ótimo. Quero as duas coisas — cia concordou alegremente. — Mas, primeiro, o jardim.
Comecei a empurrar a cadeira pelo terraço, quando ouvi o barulho do barco.
— Michael! — Dolly Ward exclamou. Ela parecia estar no paraiso. — Não esperava vê-lo tão cedo. Ele está sempre tão ocupado quando fica na fazenda!
O motor foi desligado. Aquele barco devia ter custado uma fortuna. Teria sido também um presente da avó? Seria este o motivo de desaprovação de Don e Eva Murray?
— Vovózinha, como está? Parece ótima. — Michael veio se aproximando do terraço. Usava a mesma roupa do dia anterior, e mais uma vez fiquei fazendo comparações entre ele e Liam Rogers. Ele se curvou e beijou a avó. Depois endireitou-se e me deu um olhar de admiração.
— Olá, Helen. Parece tão eficiente. E muito bonita, também. A paciente tem se comportado bem? Se não, pode me contar tudo que eu dou um jeito. — Ele olhou sorrindo para a avó.
Ela parecia deliciada. Começou a falar com ele numa gíria irlandesa. Depois voltou à conversa normal.
— Estamos terminando o chá da tarde. Se quiser, é só pedir à Eva, Ela está na cozinha.
— Vou até lá — ofereci-me. Assim os dois podiam conversar a sós um pouquinho.
— Não precisa. Obrigado, Helen — Michael disse maneando a cabeça. — Não gosto muito de chá. Vou só conversar com as minhas duas mulheres favoritas.
Ele parecia alegre e informal comparado com a frieza e indiferença do Dr. Rogers.
— Como vão as coisas na fazenda? — a Sra. Ward perguntou. Ela estava descansada e feliz. — Já está colhendo a nova safra de milho? O ano passado você lucrou mais com ela do que com todo o rebanho.
— Vai tudo bem — ele disse, se esticando na cadeira. — Harper é muito eficiente. Pelo jeito, acho que vou ter ainda mais lucros este ano. Entretanto, penso que a agricultura não é bem o meu sonho — terminou dando uma olhada rápida para a avó.
— Milho? — eu devia parecer uma ignorante. Mas há muito tempo tinha perdido contato com a vida do campo.
— Tenho certeza que Helen adoraria ver a sua plantação e o rebanho — a Sra. Ward falou de repente. — É também uma boa desculpa para um passeio naquele seu barco barulhento, e isso vai fazer muito bem a ela.
— Claro! — Michael falou, entusiasmado. — Vovózinha, você é grande! Acho que Helen tem uma folga de vez em quando, não?
— Bem, se Helen quiser se arriscar naquele barco com você... quer, Helen? — perguntou. — Amanhã é quinta-feira, dia em que a Sra. Cook vem ajudar na limpeza. Ela é uma viúva que mora na baía e trabalha para várias pessoas. Eva terá mais tempo para cuidar de mim. O que acha, Michael?
— Por mim, está ótimo. E você, Helen?
— Bem, já que vocês dois estão de acordo — eu irei —, acho que vou adorar.
Tudo ficou combinado.
Michael apareceu no dia seguinte às dez horas. Veio de barco, o Pakaurua, com motor de popa. O nome era de um peixe mortal que, geralmente, se esconde debaixo das areias, no fundo do mar. Por que não o batizou de Stingray, Kawau ou Whaketere? Nomes mais prosaicos e menos mórbidos? Pensei em sugerir uma mudança de nome, futuramente.
Levamos todo o material para preparar um churrasco na praia. Deixamos de lado os vulgares sanduíches e carnes cozidas. Levamos algumas lingüiças, ovos, batatas, panelas e pratos. E café, numa grande garrafa térmica.
A Sra. Ward acenou com uma écharpe, do terraço, enquanto ele dava a partida no Pakaurua. Senti o vento em meus cabelos soltos. Estava usando jeans e camiseta e nunca me sentira tão bem nos últimos meses. Esqueci minha mágoa e a sensação de vazio. Era apenas uma mulher jovem se divertindo.
Voamos por cima da água, em direção às montanhas. Então pude ver Colden Water Bay de um ângulo diferente. Havia poucas casas ao longo da praia e as árvores de flores amarelas se espalhavam por todos os lados. Lembrei-me do encontro com o Dr. Rogers. Até que eu revelasse minha identidade, ele tinha se mostrado simpático. Só por que era a viúva de Garry Linnell, o homem que arruinara sua vida amorosa, ele passou a sentir raiva de mim, a descarregar o ódio que sentia do meu marido.
Afastei esse pensamento. Olhei o homem no barco. Uma figura bonita com os olhos fixos na praia que se aproximava. Michael Ward era mais o meu tipo, decidi. Um homem de ação, informal, devotado à avó, um companheiro alegre.

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