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57 UNIDADE 2 PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • conceituar a construção do pensamento antropológico; • compreender os movimentos históricos na antropologia; • conhecer os novos questionamentos da antropologia. Esta unidade está organizada em três tópicos. Neles você encontrará dicas, textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior compreensão dos temas a serem abordados. TÓPICO 1 – A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO TÓPICO 2 – PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA TÓPICO 3 – INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA 58 59 TÓPICO 1 A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico! Toda disciplina se embasa em estudos clássicos para se constituir como ciência, por isso temos de conhecer os nossos clássicos a fim de não inventarmos a roda novamente. Ou seja, é a partir deles que os estudos sobre o homem na sociedade vão partir. Conhecer a história desses autores, seus ensinamentos e seus dilemas antropológicos nos faz repensar a nossa própria prática no âmbito desta disciplina. Então vamos lá? 2 EVOLUCIONISMO SOCIAL E MATERIALISMO CULTURAL FIGURA 10 - CAMINHO LINEAR DA HISTÓRIA DO HOMEM FONTE: Disponível em: <http://brasilescola.uol.com.br/filosofia/evolucionismo -cultural-segundo-lewis-morgan.htm>. Acesso em: 20 maio 2016. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 60 Caro acadêmico! Toda disciplina se embasa em estudos clássicos para se constituir como ciência, por isso temos de conhecer os nossos clássicos a fim de não inventarmos a roda novamente. Ou seja, é a partir deles que os estudos sobre o homem na sociedade vão partir. Conhecer a história desses autores, seus ensinamentos e seus dilemas antropológicos nos faz repensar a nossa própria prática no âmbito desta disciplina. Em 1830 tem-se o embrião de uma Antropologia Evolucionista, na Inglaterra, apoiada na Teoria da Evolução, que defende a questão da mutabilidade das espécies, de modo que cada mutação ocorrida no homem passa por uma seleção. Por outro lado, tem-se os argumentos dos enciclopedistas da Idade Média, que acreditavam num mundo ordenado a partir de uma “Grande cadeia do ser”, e assim sendo, numa estabilidade da espécie. Entretanto, quem mais influenciou os “primeiros antropólogos” foi o filósofo inglês Herbert Spencer, com suas ideias de escala evolutiva ascendente baseada na noção de “estágios”. Esse Evolucionismo Unilinear se apoiou na ideia de que há uma linha dominante no sistema evolutivo, em que todas as sociedades passam pelos mesmos estágios, o que permitiria à Antropologia, como ciência, relacionar passado e presente. Durante esta época acontecia a expansão colonial e o comércio exterior que instigavam a busca por um conhecimento global, mas também se estruturava uma crítica forte da sociologia britânica, representada por ativistas, em relação ao tráfico de escravos e a legalidade da instituição da escravidão nas colônias britânicas. Ou seja, buscamos mais conhecimento, mas agimos de formas ainda grotescas e impondo nossa força. 2.1 MORGAN E A SOCIEDADE ANTIGA Também inspirado por essa linha de pensamento unilinear, o norte- americano Lewis Henry Morgan (1818-1881) trabalhou muito tempo observando os iroqueses e outros povos americanos. Através desse contato e com a ajuda de um intérprete, ele percebeu que o sistema de parentesco dos iroqueses era similar a outras tribos da América e até mesmo de outras tribos no mundo. Para reforçar sua pesquisa, enviou questionários para missões religiosas, agências governamentais e instituições científicas nos Estados Unidos que trabalhavam com povos nativos e fez viagens curtas a reservas indígenas. Com esse material ele desenvolveu um modelo comparativo para a compreensão do sistema de parentesco em todo o mundo, concluindo que a história da raça humana é somente uma, e cada povo passa por estágios, de acordo com a ordem proposta: selvageria, barbárie e civilização. Para ele, todos nasciam com iguais capacidades, mas desenvolvê-las seria outra questão. Aqueles privilegiadamente nascidos estariam “separados” socialmente dos desprovidos. Porém, haveria uma uniformidade das operações da mente humana, em que através de invenções e descobertas a inteligência se TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO 61 desenvolvia. Para se reconhecer o estágio em que está a tribo, poder-se-ia registrar e classificar suas instituições, sendo estas entendidas como germes primários do pensamento capazes de desenvolver a sua logicidade. Inicia-se de um estoque original comum até o desenvolvimento dessa inteligência que alcançaria a civilização, ponto onde os povos teriam mais experiências e maior poder mental e moral. Partindo dessa investigação das formas de governo, do sistema de parentesco e questão da propriedade, Morgan estabelece a sistematização de evidências do progresso humano. 2.2 TYLOR E A CIÊNCIA DA CULTURA Edward Burnett Tylor (1832-1917) nasceu na Inglaterra e, trabalhando nos negócios de fundição de bronze da família, teve a oportunidade de conhecer o México e acessar as ruínas astecas arqueológicas. Sua metodologia dedutiva – que parte da conclusão geral para uma premissa particular – era comparar povos iguais a fim de identificar as variações da forma cultural entre eles, classificando em graus de estágios. Dentro da discussão antropológica, ele se concentrava na ideia do progresso da humanidade através da análise de traços culturais úteis e persistentes no hábito humano, o que reforçou a ideia de evolução dos grupos também a partir da noção de "sobrevivências". Os relatos de fenômenos da cultura similares serviam de evidências dessa progressão na busca de sistematizações gerais da civilização. Por isso, raças menos desenvolvidas poderiam fornecer evidências da cultura pré- histórica de povos primitivos com o objetivo de classificá-los nos mesmos estágios evolutivos da cultura. Há uma premissa de unidade psíquica humana, uma vez que, ao tê-la como objeto de estudo, Tylor percebe a capacidade de raciocínio de seus informantes, ainda que seja numa linha progressiva. Através de tabelas comparativas, o autor evidenciou leis gerais que explicariam as associações humanas ou conexões históricas particulares, e esse modo de análise influenciou outros antropólogos culturais. Assim sendo, seu principal interesse de pesquisa foi sobre a origem humana e, na sequência, sobre evolução de crenças na religião, sendo esta última, produto de esforço das pessoas para explicar o mundo. NOTA Os iroquereses pertencem a uma das cinco diferentes nações que vivem em torno da região dos Grandes Lagos na América do Norte, envolvendo Canadá e Estados Unidos. E suas terras já foram alvo de disputas comerciais no século XVI, sendo que Morgan os defendeu através de uma petição. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 62 Ele é conhecido como o Pai da Antropologia Cultural, uma vez que tentou definir o que é cultura através de um conceito científico. Para Tylor, cultura ou civilização é todo aquele complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral lei, costume e outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem em condição de membro da sociedade. Entretanto, essa conceituação que trata a humanidade como homogênea pode ser limitada para compreender a diversidade social ou cultural, ao mesmo tempo em que deixa de lado a especificidade da história de vida desses povos e o contexto da sua localização geográfica. 2.3 FRAZER E A ANTROPOLOGIA SOCIAL James George Frazer (1854-1941) nasceu naEscócia e teve sua formação acadêmica através da leitura dos clássicos na Inglaterra, através da qual produziu a obra "O ramo de ouro". O objetivo é descobrir leis gerais que possam presumir como os fatos particulares se conformam. Sem ter realizado pesquisa de campo, valeu-se do método comparativo através do raciocínio indutivo – que é a premissa particular para a conclusão geral –, em que propõe comparar raças de homens, afinidades e entender a evolução do pensamento e das instituições humanas. Segundo ele, se a natureza for realmente uniforme, é de esperar que se regule no futuro, e caberia à antropologia descobrir essas leis gerais que regem a história humana desde o passado. Frazer foi convidado para ser professor de Antropologia Social na Universidade de Liverpool, na Inglaterra. Ali, ele seguiu duas vertentes de estudos: o estudo da selvageria e do folclore. No primeiro, verificou crenças e costumes dos selvagens. No segundo, as relíquias (fósseis) ainda existentes dessas crenças e costumes, que estavam presentes na noção de “sobrevivências” (desde as ideias e práticas mais primitivas que ascenderam a planos mais elevados). Mas Frazer pede a atenção de que os selvagens de hoje são primitivos apenas no sentido relativo, uma vez que serão comparados conosco e não com o homem primitivo (aquele idealizado na origem da sociedade), por isso não são primitivos no sentido absoluto. Ele reforça que sobre a condição do homem primitivo nada sabemos. Entretanto, para ele, haveria similaridade do funcionamento da mente humana de todas as raças de homens, em que as diferenças seriam mais qualitativas do que quantitativas, visto que todos teriam igual capacidade mental e moral. Ainda assim, julgava de modo prepotente que os pensadores disseminariam as melhores ideias na sociedade, estando ele entre esses. TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO 63 Esses trabalhos do final do século XIX e início do século XX na Antropologia Britânica são baseados fortemente em recursos patrocinados, ou seja, empresas e Estado tinham interesse em descobrir sobre a vida dos povos que habitavam outras terras e levar a "civilização" até eles. Assim, o que era produzido sobre esses povos através das escritas de viajantes e de descobridores se tornou de grande importância para os pesquisadores da época, sendo que a observação direta no campo estaria mais em segundo plano, conforme definiam os estudiosos dos clássicos e da história. Debruçados sobre esses dados, as principais investigações dos “primeiros antropólogos” se concentraram na questão da origem e desenvolvimento gradual da história humana, visto que tendo ou não material documental, havia um esforço na reconstrução – a partir de pistas sobre evidências – do progresso da sociedade humana. Ainda que esses pesquisadores fossem reconhecidos como “antropólogos de gabinete”, pois ficavam mais em seus escritórios do que entre os nativos, é preciso destacar que Morgan realizou pesquisa de campo e que as definições conceituais na investigação do estudo da sociedade foram de grande importância para a pesquisa antropológica. Essas estratégias de pesquisa através da possibilidade de documentar a diversidade de costumes e instituições permitiram a reflexão sobre novas metodologias para a disciplina. Aqui, destaca-se o método comparativo, que será escrutinado e questionado nas abordagens antropológicas subsequentes. Também se elucidam as contribuições de Morgan, Frazer e Tylor no estudo das terminologias descritivas, que se esforçam para compreender a diversidade de expressões culturais, como: o animismo, a matrilinearidade, a exogamia, o tabu etc. NOTA A obra "O ramo de ouro" (1890), de Frazer, afirmava que a magia nas sociedades primitivas poderia, então, ser pensada como ciência aplicada ou tecnológica nas sociedades contemporâneas, considerando uma linha contínua e de caráter progressista em que a magia está numa ponta e a ciência na outra. Cabe lembrar que essa obra não está pautada num trabalho de campo propriamente dito, mas numa compilação de mitos, lendas, relatos de magia e religião dispostos em acervo documental. Caso queiram acessar a obra digitalizada numa versão ilustrada, o link é <http://www.classicos12011.files.wordpress.com/2011/03/45354652-o- ramo-de-ouro-sir-james-george-frazer-ilustrado.pdf>. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 64 2.4 PARTICULARISMO HISTÓRICO E CULTURAL FIGURA 11 - FRANZ BOAS POSANDO PARA ESCULTOR DO MUSEU FONTE: Disponível em: <h http://photo-performanceblog.blogspot.com.br/2009/03/ anthropologist-franz-boas-posing-for.html>. Acesso em: 31 maio 2016. Franz Boas nasceu em Minden, em Vestfália (Alemanha), no ano de 1858, numa família de comerciantes judeus assimilados à cultura alemã. Cursou Física e Geografia em universidade alemã, e logo em seguida mudou-se para Berlim, mantendo relações próximas com Adolf Bastian (1826-1905), diretor do Museum für Völkerkunde (Museu do Folclore). Na sequência, foi estudar Antropologia com o médico anatomista Rudolf Virchow (1821-1902). Ainda que influenciado pelo estudo das Ciências Naturais, Boas ia se questionando sobre a objetividade da ciência nos estudos dos fenômenos humanos, e encontrando seus limites. Ele foi testando seus pressupostos e considerou a questão de maneira mais complexa, sujeitando as explicações das causas dos fenômenos também aos fatores psicológicos elucidados pela história. Em 1883, Boas planejou uma expedição à Ilha de Baffin, no Canadá, para estudar os esquimós – os Inuit –, e foi custeado por um dono de jornal em troca de artigos sobre a experiência. Esse foi o seu primeiro trabalho de campo entre TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO 65 os “nativos”, contudo manteve-se muito mais como observador do que como pesquisador participante. Três anos depois, Boas viajou para os Estados Unidos e aproveitou para fazer uma expedição de perspectiva etnográfica ao Noroeste do Pacífico, entre os índios Kwakiutl, com o objetivo de estudar línguas, crenças, mitos nativos e conseguir objetos para coleções museológicas. Um intermediário em campo – George Hunt – com pai inglês e mãe indígena é que mediava o contato de Boas com os nativos. Em 1896 ele trabalhou na curadoria das coleções etnográficas do American Museum of Natury History, em Nova York, o que lhe permitiu produzir artigos a fim de expor suas críticas à etnologia cultural na maneira de organização dos significados de conjuntos culturais. Para Boas (2004), em primeiro lugar não havia apenas UMA cultura humana, em evolução linear como propunham os evolucionistas, e sim “culturas”, no plural. E estas culturas em nada teriam de comportamento animal, como estabeleciam as ciências naturais. Em segundo lugar, a classificação unilinear preconcebida era criticada por ser entendida como arbitrária, em que remete apenas ao ponto de vista do observador e não está remetida a uma forma derivada do próprio fenômeno. Dessa maneira, Boas chama (2004) a atenção para o esforço do relativismo cultural que não pode ser esquecido pelo antropólogo, uma vez que este deve também relativizar suas noções para identificar os fenômenos culturais dos povos. Em terceiro lugar, os efeitos diferentes dos produtos culturais não teriam necessariamente causas diferentes, ou seja, há uma reivindicação boasiana do viés pluricausal, que enfatiza condicionantes ao invés de determinantes. Desse modo, estariam em jogo as condições ambientais, condições psicológicas e conexões históricas do desenvolvimento da cultura, e não uma determinação social sobre a espécie humana que coloca uns mais avançados que outros. Dessa maneira, é relevante destacar que Boas critica veementemente o método de comparação dedutivo dos evolucionistas, mas não a Teoria da evoluçãoNOTA No final do século XIX, os Inuit diminuíram sua população por causa da alteração da dieta e das doenças europeias, em consequência do contato constante com os europeus. Houve um declínio da caça de baleias e aumento da caça de raposas objetivando o comércio com os fabricantes europeus. Já no século XX, os Inuit se tornaram mais sedentários, dispersando-se entre outros povos “modernos”. Uma das comunidades mais conhecidas das Ilhas Baffin é Cape Dorset, que é reconhecida em todo o mundo pelas esculturas em pedra- sabão, gravuras e desenhos de seus artistas Inuit. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 66 de Herbert Spencer, e consequentemente vai defender o método da indução empírica no estudo dos fenômenos humanos. Em uma primeira fase, ele se dedicou a uma abordagem histórica, em relação à distribuição geográfica dos elementos da cultura. Portanto, o pesquisador deveria investigar os processos pelos quais os estágios culturais se desenvolveram, partindo da ideia de que os fenômenos poderiam se desenvolver a partir de fontes diversas, e se houvesse a possibilidade de comparabilidade do material através de evidências, aí então seria plausível generalizar enquanto lei que rege o fenômeno. Assim, a semelhança e classificação do resultado do que é culturalmente concebido não são para ele um ponto de partida, um fato dado, mas uma meta a ser explorada arduamente. Para Boas, se deveria relacionar o elemento à sua totalidade, ou seja, o objeto comporia seu “meio ambiente” tomado como produto da história de um povo, de modo a compor várias relações com outras produções da tribo. Na segunda fase, Boas se interessou pelo modo como o “gênio de um povo” integrava os elementos da acumulação quase acidental de processos históricos que se reuniam numa cultura particular. Esses grupos tomavam emprestados elementos culturais e os adaptavam sobre elementos dominantes da cultura, o que criaria a cultura com essa adição acidental de diversos elementos individuais e dava ensejo, então, a uma totalidade espiritual integrada. Para ele, haveria dinâmicas dos processos culturais em que novos elementos eram incorporados a um padrão tradicional. Sendo assim, existiriam níveis de integração dos elementos em conjuntos culturais, de modo a se referenciar por um padrão tradicional que é expresso em categoriais definidas e universais. Aqui, há uma preocupação de integração do autor entre os elementos em conjuntos concebidos como uma integração psicológica, fundada em ideias das relações dos elementos baseadas em categorias internalizadas inconscientemente e na integração histórica, de acidentes no contato entre culturas sujeitas a mudanças. Na Antropologia, Boas se destacou por dar importância ao trabalho de campo e ao esforço de compreensão da linguagem de outros povos, trazendo um rigor metodológico (influência do romantismo alemão) e profissionalizando esta disciplina nos EUA. Ele desenvolveu uma perspectiva antiteórica, em que não reforçou a ideia da humanidade, sendo esta somente alcançada através de uma comparação metódica dos processos históricos dos diferentes povos. Na refutação do determinismo racial, o autor destacou a sua luta pela igualdade racial e apresentou que as culturas sofrem influência da tradição dos povos. Ele procurou entender os traços culturais não só como derivados de uma causalidade, mas como processos históricos únicos (baseados numa ideia de difusão e modificação), em que a explicação não está baseada necessariamente na unidade psíquica humana. Dessa maneira, Franz Boas vai criticando as bases do evolucionismo, e constituindo uma nova forma de pensar, baseada num particularismo histórico, de perspectiva culturalista, dando ensejo para outros paradigmas na disciplina de Antropologia. TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO 67 2.5 MÉTODO ETNOGRÁFICO E A ESCRITA FIGURA 12 - MALINOWSKI ENTRE OS NATIVOS FONTE: Disponível em: <http://antropologiaestudos.blogspot.com.br/ 2012_05_01_archive.html>. Acessado em: 31 maio 2016. DICAS Vale a pena a leitura do livro Antropologia Cultural, de Franz Boas, organizado por Celso de Castro, para aprofundar o conhecimento da discussão do autor. Ali, artigos do antropólogo foram traduzidos e podem ser apreciados para se apreender as contribuições dele no âmbito da disciplina estudada. FONTE: Disponível em: <https://umapiruetaduaspiruetas.files. wordpress.com/2010/05/franz-boas-antropologia-cultural. pdf>. Acesso em: 16 jul. 2016. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 68 Bronislaw Kaspar Malinowski nasceu em Cracóvia, na Polônia, em 1884. Cursou matemática, física e filosofia na Jagiellonian University, na Polônia. Já na Alemanha, ele começou a se interessar por estudos da psicologia experimental e da economia. Seu posicionamento abandonava as inquietações baseadas na busca de uma origem humana e nas explicações históricas que tanto preocupavam a tradição de antropologia britânica tayloriana. Esse esgotamento do evolucionismo seria substituído por uma nova exigência na análise de dados etnográficos através da imersão nos detalhes de como a ação dos nativos se desenrolava na contemporaneidade. Assim, era necessário que o antropólogo buscasse o entendimento e a explicação de dentro do próprio objeto de estudo. Essa atitude foi uma ruptura definitiva com os fundamentos tradicionais acadêmicos da disciplina, visto que Malinowski adotou uma orientação sincrônica – ao invés da perspectiva diacrônica (evolução no tempo) antes instalada – e a perspectiva da sociologia funcionalista. Considerado o pai da antropologia britânica, Malinowski desenvolveu uma análise por meio do funcionalismo que afirmava: todas as partes de uma cultura local desempenham um papel de funcionamento com todas as outras partes, e cada cultura local constituía um mecanismo integrado e complexo, tendo o “homem” como um organismo adaptado ao seu ambiente físico e coletivo. Logo, o pesquisador teria que fazer um trabalho de campo intensivo para apreender todos os detalhes culturais através dos registros nos diários de campo. No início, esses pareceriam arbitrários e sem sentido – tanto nas práticas da população local como o modo das pessoas sobreviverem no ambiente local –, mas com a acumulação de dados etnográficos – devido ao tempo que o pesquisador permanece ali –, alguns núcleos de sentido viriam à tona, e o antropólogo se tornaria mediador do significado da sociedade do outro. Malinowski foi autorizado a realizar o trabalho de campo em áreas da Nova Guiné, administrada pela Austrália, mesmo durante a Primeira Guerra Mundial. Entre setembro de 1914 e outubro de 1918, ele passou cerca de 30 meses, em três viagens separadas da Austrália, concentrando-se nas Ilhas Trobriand e realizando NOTA Aqui, há grande influência dos escritos do sociólogo Émile Durkheim (1858-1917) para a Année Sociologique como fonte de ideias ao estrutural-funcionalismo, e mais especificamente do funcionalismo, na questão dos rituais. Junto com Marcel Mauss (1872- 1950), seu sobrinho, eles suscitaram ideias sobre a continuidade do pensamento primitivo e científico a partir de uma abordagem sobre as classificações da mente humana, em que o segundo reflete os elementos estudados pelo primeiro. Ou seja, a ideia de reconhecimento explícito da unidade psíquica da humanidade. TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO 69 seu trabalho na Nova Guiné. Em 1922, Malinowski publicou os “Argonautas do Pacífico Ocidental” e ali ele descreve sobre o método, o assunto e escopo, e a geografia das ilhas Trobriand e sua chegada às ilhas. Sua pesquisa trata das regras de troca no kula, a construção das canoas, magia e cerimônia. Assim, Malinowski (1975) se opôs veementemente ao evolucionismodos “antropólogos de gabinete” e criou uma tradição de trabalho de campo com base no uso da língua nativa através da “observação participante”, esta seria imparcial e objetiva. Para ele, era necessária a documentação estatística por evidência para a construção de quadros sinópticos feitos a partir de um levantamento exaustivo de exemplos detalhados, a fim de considerar os imponderáveis da vida social – captando a subjetividade – que dão carne e sangue à vida real nativa, preenchendo o esqueleto das construções abstratas. Mas ainda que a subjetividade do pesquisador interfira, deveríamos deixar os fatos falarem por si mesmos, conforme destaca o autor. Seu método incentiva passagens do trabalho de campo com contato próximo com informantes durante um longo período de tempo. Resumindo seus ensinamentos, temos que: a) organização da tribo e anatomia da sua cultura através do método de documentação concreta e estatística; b) fatos imponderáveis da vida social, bem como os tipos de comportamento através da metodologia da observação participante e do diário de campo; e c) corpus inscriptionum a partir de coleções de asserções como documento da mentalidade nativa. Essas são questões objetivas: apreender o ponto de vista do nativo, seu relacionamento com a vida, sua visão de mundo. Para haver uma base de cientificidade na pesquisa, Malinowski se preocupava com o “recurso da sinceridade metodológica”, em que o pesquisador deveria saber a diferença dos dados referentes da observação direta e interpretações nativas e dos dados que são inferências do pesquisador a partir do seu ponto de vista. Assim, a importância da etnografia incentivava a tolerância aos costumes estrangeiros e levava ao esclarecimento dos leitores sobre os propósitos de costumes diferentes dos seus próprios. NOTA O kula é uma instituição enorme e complexa de troca intertribal de presentes/ objetos que obedecem a leis específicas quanto ao sentido geográfico de suas transações. Nesse sentido, os artigos trocados não têm apenas uma utilidade prática (Malinowski critica a interpretação vigente na época sobre economia primitiva), mas trocam objetos que serão usados em danças cerimoniais e reuniões importantes. Entre as comunidades do kula há um aspecto moral colocado, em que a equivalência da troca de objetos não pode ser questionada por quem recebe, e sim por quem dá. Para eles, a generosidade é sinal de riqueza, e não a acumulação de riquezas, como as joias da rainha da Inglaterra. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 70 Em 1937, Malinowski partiu de Londres para os Estados Unidos para um ano intenso na Universidade de Yale, em 1938. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, ele estava nos Estados Unidos. Preferiu ficar lá, mas morreu em 1942, pouco depois de aceitar um cargo permanente na Yale. 2.6 FUNÇÃO, ESTRUTURA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL FIGURA 13 - O PERFIL DE RADCLIFFE-BROWN FONTE: Disponível em: <https://pensandoaantropologia.wordpress.com/ sobre-os-autores/radcliffe-brown/>. Acesso em: 31 maio 2016. DICAS Indicamos a leitura do livro "Um diário no sentido estrito do termo", de Bronislaw Malinowski, que apresenta as reflexões diárias de seu trabalho etnográfico na Nova Guiné, publicado pela primeira vez em 1967. Essa publicação ocorreu por decisão da esposa, Valetta Malinowska, após a morte do autor, e causou furor entre os estudiosos das ciências sociais, porque ali apareciam suas impressões estereotipadas sobre os nativos. FONTE: Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/1365>. Acesso em: 31 mai. 2016. TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO 71 Alfred Reginald Radcliffe-Brown nasceu em Birmingham, na Inglaterra, no dia 17 de janeiro de 1881. Em 1901 ele entrou para a Universidade de Cambridge com o objetivo de estudar filosofia, psicologia, economia e as ciências naturais. Logo depois de concluir o bacharelado, em 1904, ele se inscreveu na Pós-graduação do Departamento de Antropologia, ainda na mesma universidade. E ali, em 1906, Radcliffe-Brown participou da expedição nas Ilhas Andam, no Estreito de Torres, e então seus estudos se consolidaram na Antropologia Britânica. Baseado numa abordagem “estrutural-funcionalista”, ele se preocupava mais com o lugar dos indivíduos na ordem social e com a construção dessa ordem social do que com a ação individual. Seus estudos foram diretamente influenciados pelas ideias dos precursores evolucionistas e pela analogia entre a vida orgânica e vida social, fazendo com que aderisse a uma espécie de “sociologia comparada”. Por um lado, Radcliffe-Brown elogia seus antecessores no que se refere aos objetivos comparativos, mas rejeita seus métodos conjecturais; por outro, ele rejeita os objetivos relativistas de seus contemporâneos americanos, mas não discorda dos métodos de observação e descrição empregados. O que Radcliffe-Brown propõe como método nas ciências sociais se alinha na perspectiva comparativa – permeada pelo indutivismo –, visto que para ele a antropologia deveria descobrir as “leis naturais da sociedade”, entretanto, ele mesmo não foi muito longe com isso. Para esse antropólogo britânico não interessavam somente explicações históricas e as origens dos sistemas ou instituições, como se preocupavam os evolucionistas, e sim os fatos presentes dos povos, de modo a estudá-los enquanto partes interagindo como uma unidade composta da vida. Caberia então aos pesquisadores a observação dos atos de comportamento desses indivíduos, seus atos de linguagem e os produtos materiais de ações passadas, seguidas de comparações e classificações dos fenômenos, numa perspectiva de que a Antropologia Social trata dos estudos da sociedade humana – tendo como objeto o processo da vida social. O que difere da proposição de Boas dos EUA sobre a observação da “cultura” dos povos ou mesmo de que elabora uma teoria científica da cultura, esses focos de investigação são considerados por Radcliffe-Brown abstratos para definir a realidade concreta. Ele prefere a perspectiva dos fenômenos sociais – que pretende o estudo da sociedade humana – e se preocupa com as formas de associação entre os indivíduos para apreender essa rede de relações existentes que denotam características gerais das estruturas sociais, sendo esse estudo fundamental para seu trabalho ter status científico. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 72 O seu método antropológico se assemelha aos métodos usados nas Ciências Físicas ou Biológicas, entretanto, Radcliffe-Brown destaca dois pontos em que o estudo da vida social não pode ser comparado ao estudo da vida orgânica: quando se pretende estudar a estrutura social independente do seu funcionamento e quando se entende que sociedade muda seu tipo de estrutura ao longo dos anos, diferente do animal, que não modifica sua estrutura ao longo da vida. Entre 1906 e 1908, Radciffe-Brown realizou trabalho de campo nas Ilhas Andaman, na Índia, imaginando que essa sociedade representasse o nível mais primitivo da vida humana por causa da baixa estatura dos pigmeus. Apesar dos esforços, ele nunca desenvolveu com facilidade a língua andamanesa, e a maioria dos dados foi coletada por meio de um intérprete de língua hindi. Ali, o antropólogo explicou os rituais em termos de suas funções sociais. Entre 1910 e 1912, ele realizou trabalho de campo entre os aborígines na Austrália Ocidental, com o objetivo de analisar, a partir da perspectiva estrutural- funcionalista, o parentesco, o mito, o totemismo, no contexto de organização social. E depois, como professor de Antropologia, pôde viajar ao redor do mundo pela Inglaterra, África do Sul, China, Brasil e Egito. Desse modo, Radcliffe-Brown compilou fatos do presente entre os povos estudadosa fim de conectá-los através do estudo da sociedade como unidade composta de vida, de modo a comparar a estrutura social de uma sociedade com outra, e chegar a uma forma estrutural da sociedade. Assim, ele considerou a perspectiva da função como hipótese de trabalho, ou seja, ele partiu de um esquema articulado a partir da função relacionada ao processo e a estrutura para interpretar os sistemas sociais humanos. Este direcionamento da investigação não se propõe a uma afirmação dogmática de que tudo TEM uma função, mas que pode ter uma função, sendo que um mesmo costume social, em sociedades distintas, pode ter funções diferenciadas. Radcliffe-Brown entende que a antropologia social deve abranger a totalidade da vida social de um povo, considerando relações diversas que levam ao estudo do indivíduo e da sua adaptação à vida social. Para ele, a perspectiva histórica pode ser complementar à hipótese funcional, uma vez que os acidentes históricos também conduzem ao processo da vida social. Entretanto, ele vê com maus olhos a ideia da difusão dos traços culturais, como se a cultura fosse um NOTA Segundo Radcliffe-Brown (1973), a estrutura social pode ser apreendida através das observações reais para que, na sequência, o antropólogo possa formular generalizações da forma estrutural, ou seja, produzir suas inferências sobre a sociedade. TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO 73 acumulado de relações acidentais entre os povos e não houvesse uma unidade funcional dos sistemas sociais. Assim, somente a observação direta dos povos apresenta uma rede complexa de relações sociais, o que faz com que o autor vincule essas ideias da hipótese funcional à noção de estrutura social, questão que vamos analisar no momento. Numa aproximação com os precursores evolucionistas, Radcliffe-Brown também objetiva a descoberta das características gerais das estruturas sociais, mas aqui as unidades componentes são os seres humanos, que têm uma dada posição social nesta estrutura. Trata-se de apreender certa constância da estrutura social que permite entender sua continuidade através do tempo. As críticas mais ferrenhas em relação ao trabalho de Radcliffe-Brown se referem às ideias do todo conexo proposto pelo funcionalismo, de que a vida social se organiza numa coerência funcional entre diversos elementos, de modo a manter sua estrutura social em equilíbrio, numa continuidade que reitera. Nesse sentido, Radcliffe Brown pensava que podia haver mudanças na forma estrutural, mas havia certa permanência da estrutura, o que vai chocar com perspectivas mais recentes, que querem justamente trabalhar com a ideia do conflito na sociedade, e na perspectiva de Radcliffe-Brown esse conflito estaria colocado de maneira funcional na estrutura social. Esse autor se dedica aos estudos das abordagens clássicas, como a terminologia do totemismo e a questão do parentesco, com o objetivo de entender teoricamente a sua função relacionada ao todo da sociedade. Essa relação fica explícita nos costumes ritualísticos e cerimoniais, que mantêm esses valores nas sociedades primitivas. Dessa maneira, ele conclui que a função do casamento seria fixar a posição social dos filhos do matrimônio, e assim se adota um padrão de comportamento com seus parentes. DICAS Indicamos a leitura do livro "Estrutura e Função na Sociedade Primitiva", de Radcliffe-Brown, que apresenta ensaios reunidos de diferentes épocas escritos pelo autor e que dão a dimensão do seu argumento teórico a partir das sociedades primitivas. Disponível em: <http://docslide.com.br/documents/estrutura-e- funcao-na-sociedade-primitiva-radcliffe-brownpdf-55ef44e6c8876. html>. Acessado em: 16 jul. 2016. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 74 LEITURA COMPLEMENTAR Por que ler os clássicos Ítalo Calvino Comecemos com algumas propostas de definição. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou relendo..." e nunca "Estou lendo...". Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram "grandes leitores"; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro. O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso. Para tranquilizá-los, bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras "de formação" de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu. Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídides levante a mão. E de Saint-Simon? E do cardeal de Retz? E também os grandes ciclos romanescos do Oitocentos são mais citados do que lidos. Na França, se começa a ler Balzac na escola, e pelo número de edições em circulação, se diria que continuam a lê-lo mesmo depois. Mas na Itália, se fosse feita uma pesquisa, temo que Balzac apareceria nos últimos lugares. Os apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de pessoas que, quando se encontram, logo começam a falar de episódios e personagens como se fossem de amigos comuns. Faz alguns anos, Michel Butor, lecionando nos Estados Unidos, cansado de ouvir perguntas sobre Emile Zola, que jamais lera, decidiu ler todo o ciclo dos Rougon-Macquart. Descobriu que era totalmente diverso do que pensava: uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogônica, que descreveu num belíssimo ensaio. Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da juventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais. Podemos tentar então esta outra fórmula de definição: — Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá- los. De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO 75 comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente. A definição que dela podemos dar então será: — Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós, com certeza, mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo. Portanto, usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita importância. De fato, poderíamos dizer: — Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. — Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. A definição 4 pode ser considerada corolário desta: — Um clássico éum livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa, como: — Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou, mais simplesmente, na linguagem ou nos costumes). Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se leio a Odisseia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, que costumamos ouvir a cada 15 minutos, aplicado dentro e fora de contexto. Se leio Pais e filhos, de Turgueniev, ou Os possuídos, de Dostoievski, não posso deixar de pensar em como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias. A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando a mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 76 difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico e a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele. Podemos concluir que: — Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe. O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos em saber), mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo: — Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos. Naturalmente, isso ocorre quando um clássico "funciona" como tal, isto é, estabelece uma relação pessoal com quem o lê. Se a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por dever ou por respeito, mas só por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos, dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os "seus" clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola. É só nas leituras desinteressadas que pode acontecer deparar-se com aquele que se torna o "seu" livro. Conheço um excelente historiador da arte, homem de inúmeras leituras e que, dentre todos os livros, concentrou sua preferência mais profunda no Documentos de Pickwick, e a propósito de tudo cita passagens provocantes do livro de Dickens e associa cada fato da vida com episódios pickwickianos. Pouco a pouco, ele próprio, o universo e a verdadeira filosofia tomaram a forma do Documento de Pickwick, numa identificação absoluta. Por esta via, chegamos a uma ideia de clássico muito elevada e exigente: — Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs. Com esta definição nos aproximamos da ideia de livro total, como sonhava Mallarmé. Mas um clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de oposição, de antítese. Tudo aquilo que Jean-Jacques Rousseau pensa e faz me agrada, mas tudo me inspira um irresistível desejo de contradizê-lo, de criticá-lo, de brigar com ele. Aí pesa a sua antipatia particular num plano temperamental, mas por isso seria melhor que o deixasse de lado; contudo não posso deixar de incluí-lo entre os meus autores. Direi, portanto: TÓPICO 1 | A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO 77 — O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele. Creio não ter necessidade de justificar-me se uso o termo clássico sem fazer distinções de antiguidade, de estilo, de autoridade. (Para a história de todas essas acepções do termo, consulte-se o exaustivo verbete "Clássico", de Franco Fortini, na Enciclopédia Einaudi, vol. III). Aquilo que distingue o clássico no discurso que estou fazendo talvez seja só um efeito de ressonância que vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna, mas já com um lugar próprio numa continuidade cultural. Poderíamos dizer: — Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia. A esta altura, não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas as outras leituras que não sejam clássicas. Problema que se articula com perguntas como: "Por que ler os clássicos em vez de concentrar-nos em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?" e "Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade?" É claro que se pode formular a hipótese de uma pessoa feliz que dedique o "tempo-leitura" de seus dias exclusivamente a ler Lucrécio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe, o Discours de la méthode, Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust e Valéry, com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas. Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis. Essa pessoa bem-aventurada, para manter sua dieta sem nenhuma contaminação, deveria abster-se de ler os jornais, não se deixar tentar nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológica. Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser justo e profícuo. O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir "de onde" eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal. Assim, o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterná-la com a leitura de atualidades, numa sábia dosagem. E isso não presume necessariamente uma equilibrada calma interior: pode ser também o fruto de um nervosismo impaciente, de uma insatisfação trepidante. Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa. Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos como um reboar distante, fora do espaço invadido pelas atualidades, como pela televisão a todo volume. Acrescentemos então: — É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 78 — É clássico aquilo que persiste como rumor mesmoonde predomina a atualidade mais incompatível. Resta o fato de que ler os clássicos parece estar em contradição com nosso ritmo de vida, que não conhece os tempos longos, o respiro do otium humanista; e também em contradição com o ecletismo da nossa cultura, que jamais saberia redigir um catálogo do classicismo que nos interessa. Eram as condições que se realizavam plenamente para Leopardi, dada a sua vida no solar paterno, o culto da antiguidade grega e latina e a formidável biblioteca doada pelo pai Monaldo, incluindo a literatura italiana completa, mais a francesa, com exclusão dos romances e em geral das novidades editoriais, relegadas no máximo a um papel secundário, para conforto da irmã ("o teu Stendhal", escrevia a Paolina). Mesmo suas enormes curiosidades científicas e históricas, Giacomo as satisfazia com textos que não eram nunca demasiado up-to-date: os costumes dos pássaros de Buffon, as múmias de Federico Ruysch em Fontenelle, a viagem de Colombo em Robertson. Hoje, uma educação clássica como a do jovem Leopardi é impensável, e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu. Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplicaram, proliferando em todas as literaturas e culturas modernas. Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos; e diria que ela deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós, e outra de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar. Separando uma seção a ser preenchida pelas surpresas, as descobertas ocasionais. Verifico que Leopardi é o único nome da literatura italiana que citei. Efeito da explosão da biblioteca. Agora deveria reescrever todo o artigo, deixando bem claro que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos, e por isso os italianos são indispensáveis, justamente para serem confrontados com os estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem confrontados com os italianos. Depois deveria reescrevê-lo ainda uma vez para que não se pense que os clássicos devem ser lidos porque "servem" para qualquer coisa. A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos. E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido na Itália): "Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. "Para que lhe servirá?", perguntaram- lhe. "Para aprender esta ária antes de morrer". FONTE: Adaptado. CALVINO, Itálo. Por que ler os clássicos. Companhia das Letras, 1993. Disponível em: <http://www.alfredo-braga.pro.br/discussoes/classicos.html>. Acesso em: 3 jun. 2016. 79 RESUMO DO TÓPICO 1 Nesse tópico você viu que: • Para se constituir como ciência, a Antropologia se baseou nas teorias das Ciências Naturais. • A busca por leis gerais da sociedade foi uma preocupação inicial da Antropologia. • A teoria evolucionista influenciou uma visão linear das sociedades, da primitiva à civilização. • A definição do conceito de cultura foi se complexificando ao longo do tempo. • Cada vez mais os antropólogos saíram dos escritórios e foram a campo, fazer etnografia. 80 AUTOATIVIDADE 1 A emergência da Antropologia como ciência foi processual e definida de acordo com a circunscrição de seu objeto de estudo, sua metodologia e os conceitos-chave. Nesse sentido, inicialmente baseada na produção científica das Ciências Naturais, a Antropologia se aproximou dessas disciplinas para aos poucos se diferenciar, criando suas próprias teorias e metodologias. Logo, disserte sobre as teorias que influenciaram a Antropologia e como se deu o diálogo entre essas disciplinas. 2 Cada vez mais a ideia de realizar o trabalho de campo entre os nativos é reificada na Antropologia. Bronislaw Malinowski foi o pioneiro nessa metodologia de forma mais metódica, passando temporadas entre eles e vivenciando o cotidiano junto aos nativos. A partir de seus estudos, comente sobre o aporte metodológico da Antropologia e o que permite essa metodologia em relação a outras ciências. 3 Visite um local diferente do seu cotidiano. Pode ser uma igreja, um mercado, um parque, um serviço de saúde. Passe ali um turno observando tudo o que acontece, podendo interagir com o ambiente e as pessoas. Depois, em casa, produza um diário de campo sobre essa experiência, detalhando os seus estranhamentos e percepções das situações vistas, fazendo comentários e trazendo as descrições do que viu, ouviu e sentiu em campo. Essa atividade fará com que você vivencie por um momento a experiência do trabalho de campo, de modo a se aproximar das metodologias utilizadas pelos antropólogos. 81 TÓPICO 2 PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Depois de conhecer o panorama geral da emergência da Antropologia como ciência, vamos nos aprofundar em cada escola que se apropriou dessa disciplina a fim de avançar em relação às suas teorias e suas metodologias. Essa divisão geográfica e temporal permitirá que se dê conta das especificidades de estudos antropológicos, e se conheça a possibilidade de reflexão a partir dessa matéria. Vamos lá então, acadêmico? 2 A ESCOLA FRANCESA Baseado na herança da tradição intelectualista franco-germânica, Émile Durkheim (1858-1917) propôs a criação de uma nova matéria, de caráter científico, intitulada sociologia. Ou seja, o estudo da sociedade a partir do que é o próprio ser humano e suas relações sociais. Esta disciplina também formulava as bases para a antropologia, especificando o estudo do homem, na Escola Francesa. De forma rigorosa, o sociólogo define métodos e aplicações da nova ciência com o objetivo de colocá-la no mesmo patamar de outras áreas do conhecimento, e a antropologia aprofunda esses princípios de acordo com sua especificidade, numa perspectiva mais microssocial. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 82 2.1 REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E FORMAS PRIMITIVAS DE CLASSIFICAÇÃO FIGURA 14 - RITUAIS PRIMITIVOS FONTE: Disponível em: <http://nepo.com.br/2014/11/25/religiosidade-primitiva -e-o-pensamento-fundamentalista/>. Acesso em: 6 jun. 2016. Émile Durkheim é considerado fundador da Antropologia Francesa e da Sociologia Moderna, tendo sido influenciado pelas ideias de Auguste Comte e Herbert Spencer. O último já foi apresentado, mas Auguste Comte não. Este foi um filósofo e matemático francês, nascido em 1798. Suas ideias, de cunho positivista, reforçavam a teoria do darwinismo social, em que seriam naturais a evolução e o avanço da sociedade de um estágio inferior para outro superior, garantindo a vida dos grupos de indivíduos mais evoluídos. Essa visão influenciou os estudos dos fenômenos sociais. Durkheim fez uso dessas ideias e tentou resolver a questão da categoria do entendimento humano através da perspectiva do sujeito, e então elaborou os limites entre a filosofia e a sociologia/antropologia. Ele ressaltou que essas categorias não são inatas, mas construídas socialmente, visto que se concebe as categorias de entendimento como “representações coletivas” apreendidas na socialização dos sujeitos. Este sujeito durkheimiano é coerente, homogêneo e conhece objetivamente os fenômenos sociais em suas formas universais e imutáveis a partir dessas categorias de entendimento socializantes; assim, Durkheim espera resolver alguns problemas antigos da filosofia e fundar a nova disciplina. Para ele, as “representações coletivas”, de caráter autônomo e vinculadas ao inconsciente do indivíduo que as possui, são configurações específicas estabelecidas a partir das mesmas categorias para todos, em que o homem – como TÓPICO 2| PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA 83 ser social – pensa sua experiência através de conceitos. Por conseguinte, sendo possível o estudo dessas representações, a ciência sociológica pretende acessá- las através de fenômenos por meio dos quais o grupo representa as suas práticas sociais no mundo, como, por exemplo, os ritos e os símbolos. A fim de alcançar o conhecimento das outras sociedades, o autor se vale do método comparativo cartesiano para a análise das diferentes “representações coletivas” existentes, e assim, diferencia esta disciplina da Psicologia que, para Durkheim, tinha como objeto de estudo as “representações individuais”. Portanto, o objeto de estudo da sociologia durkheimiana passa a ser os “fatos sociais” – que, em conjunto, são entendidos como um sistema permeado por “representações coletivas” –, caracterizados como coercitivos, exteriores aos indivíduos e gerais, sendo eles tratados como ‘coisas’. Nesta perspectiva, a dimensão histórica perde lugar para a abstração do tempo, de forma tal que a sociedade apresenta seu modelo de apreensão do mundo a partir do consciente coletivo (normas e valores). Para Durkheim, a manutenção da ordem social é referenciada pelo sentimento de solidariedade entre os indivíduos, sendo esta sociedade não resumida ao agrupamento das partes, mas há nela algo que seria “transcendente” e constrangeria coletivamente suas maneiras de pensar e as relações sociais. Essa certa consciência social poderia ser mantida nos ritos – como agenciando “representações coletivas” –, que seriam atualizados e reafirmados na sociedade em questão ao mesmo tempo em que a ação social realizada perpassaria o indivíduo e reforçaria o “todo”. Assim, a eficácia do rito mantém (cria e recria) a materialidade da sociedade por meio da conexão do indivíduo ao seu coletivo por esse “fato social” que é exterior aos sujeitos; logo, conhecer os símbolos dessas representações torna possível mensurá-los, e assim, formular hipóteses e explicações sociais. Marcel Mauss (1872-1950) é seguidor das ideias de Durkheim, aprofunda sua reflexão teórica no sentido de tentar trazer, através do método comparativo, semelhanças estruturais entre as práticas presentes na sociedade contemporânea e todas as sociedades existentes na história. A partir do conceito de “fato social total”, este autor deseja estudar as práticas disponíveis na sociedade que remetam à sua totalidade, de modo que tudo o que acontece nesta sociedade é válido para formular sua compreensão. DICAS Para compreender o que é Sociologia, temos de diferenciá-la da Filosofia e também da Psicologia, por isso se recomenda o estudo dessas diferenciações. Um dos links possíveis para esse estudo é <http://www.cafecomsociologia.com/2013/01/o-que-e-sociologia.html>. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 84 Marcel Mauss nasceu em Epinal, na França. Ele era sobrinho de Émile Durkheim e participou das principais discussões sociológicas da época. Mauss teve um papel importante como fundador do jornal L’Humanité, foi militante do Partido Socialista e foi bastante ativo durante os debates mais radicais. Ele estudou história, dedicou-se à sociologia das religiões e posteriormente a linguística através do estudo do sânscrito. Em 1898 ele assumiu a cadeira de Religiões Indianas na seção dos estudos religiosos da Ecole Pratique des Hautes Etudes e em 1902 foi nomeado diretor de estudos das religiões primitivas dessa mesma instituição. Para Mauss, os fatos estão carregados de significações simbólicas – conforme expõe Durkheim (1989) ao se remeter às obrigações sociais –, no entanto podem compor novas configurações a partir de invariantes de um modelo inacabado, no qual o social só emerge como sistema integrado quando está atrelado à experiência individual. Mais preocupado com o todo do que com as partes, Mauss estuda as trocas sociais enquanto “fatos sociais totais”, como perpassadas por uma série de atividades heterogêneas e institucionalizadas, realizando, assim, um estudo da sociedade enquanto sistemas morais em que há uma flexibilização possível. A partir da teoria dos ritos como estruturantes da vida social de Durkheim, Mauss (1974) propõe a Teoria Geral da Magia, na qual os ritos seriam como “ritos mágicos” – diferente dos ritos religiosos, dispostos num culto organizado –, com ações definidoras de outros elementos dessa magia, de modo que o pensamento mágico agiria como “representação coletiva” apropriado individualmente pela tradição, e, assim, seria reforçado pelo social. Na compilação de “Ensaio sobre a dádiva” (1924), Mauss estuda a reciprocidade entre os homens como atributo humano a fim de conceber as relações sociais pautadas nas trocas. A partir do potlach – forma de troca ‘mais evoluída’ –, entende que a dádiva está relacionada ao “sistema de prestações totais”, sendo elas desinteressadas e obrigatórias, com a consequência de que havendo uma instabilidade hierárquica entre diferentes chefes tribais, essa prática de dons e contradons estimula tanto a manutenção (ou não) dos laços sociais, como o fato de que a aceitação de um compromisso dignifica e prestigia aquele que expõe suas riquezas. TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA 85 FIGURA 15 - FESTAS RITUAIS E TROCAS SOCIAIS BASEADAS NO POTLACH FONTE: Disponível em: <http://www.donsmaps.com/ potlatch.html>. Acesso em: 6 jun. 2016. Por conseguinte, Mauss (1974) propaga três obrigações totais desse sistema de prestação: (1) obrigação de dar, em que se deve oferecer a outros clãs coisas para mostrar que se é favorecido pelos espíritos e por riquezas, e então coloca o donatário em relação de dívida estabelecendo um vínculo jurídico; (2) obrigação de receber, em que se deve aceitar o compromisso, e não agir dessa maneira seria recusar a aliança e a comunhão; e (3) a obrigação de retribuir, de dar de volta o "hau" da coisa dada, de maneira a colocar-se em constante troca com quem deu algo. Para Mauss (1974), há na “coisa dada” uma virtude produtora que explicita a personalidade do clã daquele que deu a “coisa”, forçando as dádivas a circularem entre as sociedades. Entretanto, o autor chega a esta explicação a partir da conclusão nativa sobre o “hau”, de que um indivíduo dá o objeto a outrem, sendo esse transferido para uma terceira pessoa, o último deve devolver este “espírito da coisa dada” através de algo de maior valor simbólico, até que se chegue ao primeiro doador, estabelecendo entre eles um “vínculo das almas” numa constante troca, que fundaria a reciprocidade. Enquanto Mauss pensava que a observação empírica do fato social seria suficiente para apreender a realidade em sua totalidade, Levi-Strauss (1974) entendia o observador como sendo da mesma natureza do seu objeto, logo, deveria considerar-se parte da observação – não haveria dicotomia rígida entre o sujeito e o fato social –, e que a vivência do fato como indígena lhe daria a consciência da diferença entre a sua teoria e a teoria indígena, o que não foi feito pelo autor do “Ensaio sobre a dádiva”. Consequentemente, para Levi-Strauss (1974), Mauss só replicaria o que diz o nativo, e destacaria a lógica ordenadora da dádiva conforme buscava, porém não construiria uma interpretação antropológica do pensamento humano. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 86 2.2 PENSAMENTO SELVAGEM E ESTRUTURALISMO FIGURA 16 - O PERFIL DE LÉVI-STRAUSS APÓS ENTREVISTA FONTE: Disponível em: <http://www.substantivoplural.com.br/ a-logica-do-sensivel/>. Acesso em: 6 jun. 2016. DICAS Para conhecer mais sobre o trabalho de Marcel Mauss, é possível ver o documentário "Marcel Mauss segundo suas alunas", produzido pelo NAVI/UFSC, que está disponibilizado na internet em partes. O link é <https://www.youtube.com/watch?v=4_bsGMv1Ns8>. TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA 87 Claude Lévi-Strauss (1908-2009) nasceu em Bruxelas e estudou filosofia. Passou um período de ensino na França e em 1935 veio para o Brasil, sendo nomeado como professor na Universidade de São Paulo. Aqui ele realizou diversas expedições nos territórios indígenas. Em 1940 voltou para a França, mas por causa da II Guerra Mundial foi para Nova York e assumiu uma cátedra na School of Higher Studies. Somente em 1948 conseguiu voltar para a França, onde defendeu sua tese “Les structures élémentaires de la parenté” e “La vie familiale et sociale des Indiens Nambikwara”. Em 1950, Lévi- Strauss sucedeu Maurice Leenhardt (1878-1954) na Ecole Pratique des Hautes Etudes e em 1958 foi eleito para o Collège de France, ficando ali até 1983, até se aposentar. Lévi-Strauss aprofundou os estudos na Escola Francesa e tornou-se o fundador da Antropologia Estrutural. De maneira tal que se passa a realizar uma análise das estruturas da mente humana, e não das representações sociais (como propagava Durkheim) ou das relações sociais (como desejava Mauss). Tendo o pensamento humano como objeto antropológico, Lévi-Strauss foi fundador da Antropologia Estrutural na França. Nesse sentido, Lévi-Strauss afastou-se do estudo dos fenômenos conscientes para acessar estruturas do inconsciente, com a consequência de que a palavra (ou um átomo básico social, no caso do estudo do parentesco) não mais seria tratada como unidade independente, mas sim, em termos de suas relações entre si por meio de operadores binários refletindo as leis do inconsciente. Essa afirmação de Lévi-Strauss daria ensejo para o estabelecimento de leis gerais do pensamento humano – tanto para os ditos “selvagens” como para as sociedades “modernas” –retomando a discussão do clássico, que já vimos anteriormente. Para ele, a estrutura social é composta por modelos de pensamento que permitem fazer classificações sociais, como nos sistemas totêmicos, em que os símbolos relacionados a animais e plantas são referenciados à ação social, de maneira que esses signos são inconscientemente apreendidos e, apesar de permitir transformações, e inovações para se complexificar, são limitados por suas combinações nas estruturas. Em outras palavras, para Lévi-Strauss, como se trata de um pensamento baseado numa lógica racional, as relações entre símbolos inconscientemente apreendidos são complexas, porque são recombinadas de diferentes maneiras. No entanto, mesmo assim esse autor apresenta essa estrutura de certa forma como sendo estática, em que ela só se renova em suas relações e não em seus conteúdos. Este antropólogo apresenta uma estrutura rígida e imutável, em que apenas no plano lógico é que surgem combinações entre simbolismos para articular a ação social. Lévi-Strauss se interessa pela análise do funcionamento do intelecto, no qual o modelo agenciado informa sobre fenômenos socioculturais e os mecanismos da mente. Diferente de Mauss, Lévi-Strauss considera as relações sociais como matéria-prima para a formulação dos modelos referidos da estrutura social, consequentemente os símbolos e signos são os meios para a comunicação entre os indivíduos. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 88 Segundo Lévi-Strauss (1975), o inconsciente é vazio de imagens, porém, através da sua estrutura, a função simbólica é de impor leis estruturais por meio da atividade inconsciente do espírito, impondo formas a um conteúdo. Por conseguinte, para este autor teríamos o produto social como sistema simbólico, e o antropólogo deveria se esforçar em dar uma explicação nativa baseada em uma explicação antropológica. Por isso, como afirma Lévi-Strauss (1975) na pergunta dessa questão – e explicitamos neste ensaio –, a Escola Francesa passa da análise do conjunto de “representações sociais” permeadas por ritos e símbolos, exterior ao indivíduo, que Durkheim espera agrupar fazendo uma sociologia do simbólico, para uma compreensão maussiana em que as relações sociais enquanto simbólicas agiriam, dessa maneira, no laço social entre os sujeitos. Entretanto, Lévi-Strauss se apropria dessas questões para ir além e procurar a origem desse simbólico “dentro” do indivíduo, uma vez que os símbolos são formas agenciadas nas estruturas do inconsciente do pensamento humano, configurando assim um “novo” objeto para o estudo antropológico. Afastou-se do estudo dos fenômenos conscientes para acessar estruturas do inconsciente, de modo que a palavra (ou um átomo básico social, no caso do estudo do parentesco) não mais seria tratada como unidade independente, mas em termos de suas relações entre si. Essa afirmativa de Lévi-Strauss daria ensejo para o estabelecimento de leis gerais do pensamento humano – tanto para os ditos “selvagens” como para as sociedades “modernas”. A partir da escrita do prefácio do “Ensaio sobre a dádiva” (publicada pela primeira vez em 1950), de Marcel Mauss, Lévi-Strauss aprofundou sua proposta do estudo das estruturas da mente DICAS Indicamos o documentário "Claude Lévi-Strauss: Saudade do Brasil", produzido em 2005 pela TV Senado, que reconstitui a experiência do antropólogo no país e problematiza suas questões teóricas. Está disponível em: <https://youtu.be/i32Mf_eeYJg>. TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA 89 humana e se posicionou criticamente sobre a questão da dádiva teorizada pelo autor do livro. Segundo Lévi-Strauss (1974), a solidariedade em Mauss articula relações reais e práticas entre a psicologia e a sociologia, de modo que se parte da ideia da psiquê para analisar a sociedade. O conceito de “fato social total” de Mauss traria, então, a ideia de que o social só emerge como sistema integrado quando está atrelado à experiência individual. Assim, Lévi-Strauss se apropria dessa ideia de complementariedade entre o psíquico e o social para interpretá-la como relação dinâmica, em que tanto um como o outro compõe os significados que permeiam os simbolismos da vida social, de modo que só se pode apreendê-lo a partir da síntese entre as duas dimensões, sem subordiná-las. Baseada nessa análise, a observação empírica do fato social total não seria suficiente para apreender a realidade em sua totalidade, como pensava Mauss, o que faz Lévi-Strauss chamar a atenção de que o observador é da mesma natureza que seu objeto, e essa questão deveria ser considerada como parte da observação. Assim, não haveria uma dicotomia rígida entre o sujeito e o fato social, e o etnógrafo deveria se esforçar para viver o fato como indígena, mas tendo noção da dimensão entre a sua teoria e a teoria indígena. Da mesma forma, o pesquisador não poderia deixar que a sua apreensão subjetiva se sobrepusesse – de maneira totalizante – sobre a teoria indígena. Na busca obstinada de Marcel Mauss pela lógica ordenadora da dádiva, as atividades sociais de trocas são observadas, mas Levi-Strauss entende que o antropólogo só apreende as três obrigações relacionadas à troca e não aprofunda essa questão como forma do pensamento humano. Dessa forma, Mauss é criticado por Levi-Strauss por deixar-se mistificar pela teoria “indígena” ao entender que a restituição de um objeto dado carregaria algo como um “espírito da coisa”. Assim, Mauss não entra no mecanismo de funcionamento das trocas sociais entre os grupos estudados, o que Levi-Strauss vai tentar explicar pela via da capacidade de simbolizar, até chegar nas estruturas inconscientes do espírito. Este antropólogo está mais preocupado com a estrutura dessa teoria da dádiva, que revelaria a virtude da troca, não só enquanto ato de troca, mas como concepção. Para ele, o “hau” não seria o último motivo da troca, como expõe Mauss, de modo que ela não é real, é da ordem do pensamento. Assim, Levi-Straussentende que a teoria indígena está numa relação mais direta com a realidade indígena do que com uma teoria proposta e elucidada de Mauss. Resumindo o que esclarece Levi-Strauss (LEVI-STRAUSS, 1974, p. 32): A troca não é um edifício complexo, construído a partir de obrigações de dar, receber e retribuir, com auxílio de um cimento afetivo e místico. É uma síntese imediatamente dada ao e pelo pensamento simbólico, que na troca como toda outra forma de comunicação, supera a contradição que lhe é inerente de perceber as coisas como elementos de diálogo, simultaneamente sob a relação de si e do outro e destinadas por natureza a passar de um para o outro. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 90 Assim, para este autor teríamos o produto social como sistema simbólico, e o antropólogo deveria se esforçar para dar uma explicação nativa baseada numa explicação antropológica. Esse raciocínio contribui com os estudos antropológicos posteriores. 3 A ESCOLA AMERICANA Outra vertente emerge nos anos de 1920, baseada numa relação entre “cultura e personalidade”. Essa perspectiva centrou-se na personalidade dos membros de cada sociedade, os considerando como produto de sua cultura. Tinha duas etapas claras: a primeira, influenciada pela psicologia, considerando o indivíduo como principal objeto de pesquisa; e a segunda, mais voltada para as noções de “personalidade básica” e de caráter nacional. As principais expoentes destacadas dessa escola são Ruth Benedict e Margaret Mead. O contexto é pós 1ª Guerra Mundial e início da 2ª Guerra Mundial, no qual se deseja compreender as lógicas de outras sociedades objetivando uma ação militar mais harmoniosa. DICAS Levi-Strauss ainda discutiu sobre outras questões, do âmbito mais geral em Antropologia, que podem ser acessadas on-line numa compilação de textos didáticos e objetivos. O livro se chama "Raça e Cultura", de 1952, com traduções em português e separado por temáticas relevantes, no link: <http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/965742/mod_resource/ content/1/Ra%C3%A7a-e-Hist%C3%B3ria-L%C3%A9vi-Strauss.pdf>. TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA 91 3.1 CULTURA, PERSONALIDADE E GÊNERO FIGURA 17 - RUTH BENEDICT FONTE: Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Cultural _anthropology>. Acesso em: 11 jul. 2016. Ruth Fulton Benedict (1887-1948) nasceu em Nova York, nos EUA. Em 1919 iniciou seus estudos de Antropologia na New School for Social Research, e no ano de 1922 matriculou-se na Columbia University e trabalhou como assistente de Franz Boas no Barnard College. Ali se inspirou para a realização da primeira experiência de campo entre os Serranos no sul da Califórnia, e desenvolveu uma pesquisa comparativa entre os índios americanos, resultando em material para sua defesa de doutoramento em 1923. A partir destas pesquisas, Benedict concebeu a Teoria da Configuração Cultural, segundo a qual cada grupo selecionaria um arsenal de recursos humanos dentre possibilidades diversas, estabelecendo assim suas próprias feições culturais. Essa perspectiva converge à ideia de que um todo cultural (ou linguístico) determinaria a natureza das partes e suas relações. As ideias de Benedict serão melhor desenvolvidas na obra “Padrões de Cultura”, de 1934, já que nessa obra argumenta a possibilidade de compreensão do processo de transformação e de diferenciação das culturas, junto a cada tradição, modelando a conduta humana dos membros em questão. Para compreender os padrões culturais dominantes, a autora estuda as diferentes formas de expressão culturais e variedades de costumes nas vidas dos indivíduos. UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 92 O método utilizado é o fato de que cada membro tem sua “história de vida” como prova concreta da acomodação aos padrões tradicionalmente transmitidos pela cultura que vive. Desse modo, a antropóloga reforça sua defesa de que a cultura não seria transmitida biologicamente e se contrapõe ao método evolucionista, que pretende agrupar fragmentos culturais de épocas e locais distintos para estabelecer a historicidade da conduta humana, como também já criticava Boas. Para Benedict, a cultura está referida em um modelo mais ou menos consistente de pensamento e ação, em que não se tem só a soma de feições particulares, mas cada cultura teria um arranjo único e uma única inter-relação entre as partes, resultando assim numa “nova entidade”. Desse modo, como Boas compreende a “configuração” (ou modelo cultural) como espírito de cada cultura, Benedict pretende estudar as partes, não só enquanto partes, mas considerando o “conjunto cultural”. Sua crítica é para com os trabalhos antropológicos que preferem destacar a análise de feições culturais ao invés do estudo da cultura como um todo articulado, na qual se possibilitaria contextualizar suas diferentes formas de combinações. Para tanto, a antropóloga entende que se deve estudar as sociedades primitivas, e não as sociedades contemporâneas. Como um “laboratório” de análise da diversidade de instituições humanas, as culturas primitivas teriam um relativo isolamento regional e vários séculos para elaborar temas culturais apropriados. Elas não seriam consideradas inferiores, entretanto teriam menos conexões históricas e poderiam ser estudadas enquanto totalidades. Assim prontas, seriam fontes vivas de informações sobre as variações de ajustamentos humanos, permitindo a compreensão dos processos culturais. Nesse sentido, a tradição cultural das sociedades primitivas é percebida por Benedict como simples, contrapondo-se à nossa complexa civilização, sendo possível apreender a conduta humana e a moral dos membros ajustadas num padrão bem definido como numa cultura homogênea. A autora deixa claro que não pretende fazer a reconstituição da origem humana, nem estabelecer uma generalização através de uma lei social geral. Seu objetivo é estudar a distribuição de feições universais da sociedade humana encontrada em diferentes combinações e associações, por meio do conhecimento da “infância” da humanidade. Para tanto, a metodologia empregada é o registro das formas e condições variantes, como fez em “Padrões de Cultura”, ao comparar os Zuni do Novo México, os Kwakiutl da ilha de Vancouver e os Dobuanos da Melanésia, exercitando certo relativismo cultural ao destacar que o que é entendido de uma forma numa cultura é entendido de diferente maneira em outra. Durante a 2ª Guerra Mundial, Benedict trabalhou para o Army Information Bureau, no War Department, onde apoiou a entrada dos EUA na guerra contra o racismo do totalitarismo alemão e desenvolveu uma monografia sobre o Japão, a TÓPICO 2 | PERSPECTIVAS CLÁSSICAS DA TEORIA ANTROPOLÓGICA 93 fim de que se pudesse compreender os contextos de mudanças sociais e determinar se o imperador deveria ficar ou sair do país. Ela não era muito dedicada ao trabalho de campo, e em seu livro “O crisântemo e a espada” (1946) defendeu a possibilidade de estudar os japoneses sem ter ido ao Japão, valorizando a pesquisa de “cultura à distância”, de forma que considera o contato com adultos – que desenvolveram sua personalidade em tal cultura – uma fonte fidedigna sobre a cultura, mesmo o indivíduo estando em outro local. Desde 1923, Benedict assumiu a cadeira de Antropologia na Columbia University, onde orientou diversos trabalhos sobre Apaches do Sudoeste (1930), Blackfoot das Planícies do Norte (1938) e pesquisas comparativas entre até mesmo culturas contemporâneas. Em 1948, então presidente da Associação Americana de Antropologia, Benedict morre. FIGURA 18 - MARGARET MEAD ENTRE NATIVOS FONTE: Disponível em: <https://www.letemps.ch/culture/2016/02/26/margaret- mead-anthropologue-scandale>. Acesso em: 6 jun. 2016. Margaret
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