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Elizabeth Webster O VOO DOS CISNES

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http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
Elizabeth Webster
O voo dos cisnes
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Composição: Selecções do Reader's Digest - Lisboa 
Impressão: Maury Imprimeur, SA - Mallesherbes, França 
Encadernação e acabamento: Reliures Brun - Mallesherbes, França 
1.' edição: Junho de 1993
 ISBN: 972-609-076 - 8
Printed in France
�
“Voa.. voa... voa... 
Livre... livre... livre...”
�
Para Laurie Collins, a batida das asas do cisne falava de uma mensagem irresistível fugir de um marido que a espancava.
Fugir para salvar os filhos. Fugir e ser livre para sempre.
Mas, após a fuga, iam surgir novas necessidades. Porque a liberdade não é apenas partir. É saber aonde se quer chegar...
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Parte I
O Esconderijo
O som sussurrante vinha do céu, forte, doce e estranho. Laurie olhou . para cima, abraçando-se a si própria para parar de tremer... A dor, o choque e o medo não desapareceram, e as nódoas negras no corpo e no rosto marcado não deixaram de lhe doer. Mas o sussurrar longínquo e rítmico, como música ao longe, aproximava-se e por algum motivo parecia trazer consigo uma espécie de paz... ou talvez de segurança... Lá longe, dizia, alto no céu, havia um mundo de ar azul e de sol, um mundo de espaços limpos e abertos e sem pressões, para além do subir e baixar do vento... Sem medos nem dúvidas, sequer, da nossa própria força e resistência. Um mundo de liberdade.
Laurie levantou a cabeça para ver mais longe, por sobre as árvores enfarruscadas de fuligem do pequeno quintal, e ali - num voo majestoso e firme - vinham três cisnes brancos com os pescoços esticados numa linha perfeita, apontando para o poente brilhante, e o seu bater de asas era lento, forte e cheio de música.
“Livre... livre... livre...”, cantavam as asas pulsantes. “Fugir... fugir... fugir...”, soavam ao passar no alto, douradas pelo sol. Observou-as até as perder de vista, com a garganta a doer de lágrimas contidas.
“Sim”, pensou de pé ali, tremendo, no quintal miserável. “Fugir, fugir, fugir! Para vocês é fácil, com todo o céu vasto e livre para voar.” - Mãe? - chamou a voz de Jason da porta da cozinha. - Mãe? Fiz um pouco de chá.
Ela teve um suspiro profundo e entrecortado e levantou os olhos mais uma vez para o pálido céu de Londres. Longe e ainda doce, parecia-lhe, conseguia ouvir um leve sussurro de asas no vento.
- Lá vou - respondeu, e voltou a entrar na cozinha desarrumada. “Francamente”, pensou, empurrando o cabelo para trás para afastá-lo da testa ferida, enquanto limpava os pratos do almoço, “não devia deixar as coisas chegarem a este ponto. Mas estou tão cansada. E tão confusa. E quanto mais ele grita e me espanca, mais baralhada fico.”
- Vá lá, mãe... - Os braços de Jason abraçavam-na, conduzindo-a para a cadeira. A voz meiga e jovem procurava consolá-la. Pôs-lhe a chávena de chá à frente e tentou desajeitadamente arranjar-lhe o cabelo. - Quer que vá buscar uma esponja para pôr no olho?
Ela abanou a cabeça. 
- Está tudo bem.
Mas não estava nada bem. De modo nenhum. Sobretudo a voz prática do seu filho a falar com uma aceitação descontraída, nascida de muitas ocasiões idênticas... “Quer que vá buscar uma esponja para pôr no olho? Quer que varra os pratos partidos? Quer que telefone ao médico?” O rosto infantil e preocupado do miúdo estava pálido com o esforço de tentar dar algum apoio e conforto. Os olhos cinzentos estavam ansiosos e demasiado abertos na face macilenta. Ela pôs-lhe um braço em volta dos ombros e apertou-o com força.
- Não te preocupes, Jay. Estou bem. Onde está a Midge?
Ele mirou-a de forma estranha e séria, maduro e atento, muito para além dos seus oito anos.
- Fugiu para o armário das vassouras e adormeceu. Por isso deixei-a lá, onde estava a salvo. - Baixou os olhos para a sua própria chávena de chá, mexendo com fúria. Depois, ergueu de novo os olhos e acrescentou:- Ela está bem. Fui ver. Continua a dormir.
Laurie suspirou. Uma súbita onda negra de desalento invadiu-a, esgotando-lhe a energia e a vontade. De que é que servia preocupar-se? Estava presa ali naquela casa pequena e esquálida com um homem violento que não fazia mais nada senão gritar e a erguer o punho contra o mundo injusto - que não encontrava o trabalho a que estava habituado, não suportava o facto de que era um falhado indesejável e gastava o tempo e o dinheiro a embebedar-se até à inconsciência. Um homem que descarregava a sua fúria e frustração na esposa esgotada, enquanto a filhinha se arrastava para um armário e chorava até adormecer e o irmão assistia e tentava confortar a assustada mãe.
Era demais. Era tudo demais, e ela não sabia o que fazer nem aonde as coisas iriam parar. Enquanto lá fora, no ar azul e vasto, aquelas asas brancas e puras pulsavam... pulsavam... Lá fora havia todo um mundo de árvores, relva e céu.
- Jay - disse de repente -, pega no teu casaco. Eu acordo a Midge. Levantou-se depressa, antes de mudar de ideias, e abriu a porta do armário das vassouras. A criança estava deitada, enrolada num cobertor velho. O cabelo, louro cor de mel como o da mãe, espalhava-se à volta da sua cabeça em madeixas macias e emaranhadas. Uma das mãos apertava a juba de lã do seu boneco preferido, um velho leão amarelo cujo pêlo de veludo estava gasto e fino.
“Como eu”, pensou Laurie, com uma centelha desesperada de humor. “Estou fina de gasta. Na verdade, quase desfeita... Desfeita.” Aconchegou Midge nos braços, procurou o casaco dela e enfiou-lhe os braços sonolentos e passivos nas mangas. Depois, pegou no seu próprio casaco e na carteira e seguiu Jason para a entrada estreita.
- Aonde vamos? - perguntou ele, seguindo pelo corredor pequeno e escuro.
- Não sei... Ao parque... apanhar ar fresco.
Mas, ao chegarem à porta de entrada, alguém lhes barrava o caminho.
- Onde raio pensas tu que vais? - disparou Jeff.
O coração de Laurie contraiu-se. Viu logo que ele estivera a beber ainda mais desde a hora do almoço. Estava bêbado e a fervilhar de fúria contra o mundo negligente e desinteressado em geral e contra a jovem esposa em particular.
- Ia... levá-los a passear.
- Ai ias, não ias? Pois podes voltar a entrar. - A mão disparou e fé-Ia rodopiar, atirando-a para trás, para a porta da cozinha. - Sabes que horas são? Ou estás demasiado passada para reparar? - A voz estava cheia de sarcasmo. Parecia chocalhar-lhe na cabeça como uma dor física. - Se calhar, é pedir muito ter comida pronta quando chego a casa. - Mas chegaste cedo...
- Cedo? Então, eu estive lá em baixo no Centro de Emprego a passar a pente fino os anúncios todo o dia!
Ela fitou-o. Era óbvio onde ele passara a maior parte do dia. Mas não valia a pena retorquir. Já fora violento que chegasse de manhã. Laurie estremeceu.
- Não te ponhas com esse ar de mártir, sua manhosa - gritou ele de repente, furioso. Até o silêncio dela era uma reprovação. - Volta ali para dentro e cozinha alguma coisa, senão... - A mão elevou-se.
Ela recuou, sentindo os membros macios e sonolentos de Midge ficarem rígidos nos seus braços. A mão infantil e tensa de Jason esgueirou-se para dentro da dela. Olhou para baixo e viu o aviso nos olhos do filho.
“Agora, não”, pareciam dizer. “Agora, não. Não o deixe começar outra discussão agora.”
Derrotada, voltou-se, entrou de novo na cozinha e, distraidamente, começou a preparar qualquer coisa.
Mas a ira de Jeff ainda não se tinha esgotado. Quando Laurie pôs um prato de comida à sua frente, ele mirou-o com nojo.
- O que é isto?
- Estufado de feijão e lentilhas. Ele picou-o com o garfo.
- Onde está a carne?
- Não posso comprar carne todos os dias. O dinheiro não chega. Jeff bateu com uma mão na mesa de tal maneira que toda a loiça saltou. E os miúdos também, que estavam a tentar não ser vistos, a brincarem no chão.
- Dou-te mais que o suficiente. Tu é que és uma dona de casa miserável.
- Se não gastasses tanto no bar - replicou ela de súbito, corajosa e tão zangada como eleestava -, podias comer carne todos os dias. Jeff pegou no prato de estufado e atirou-lho. A mistura quente e peganhenta atingiu a parede e ricocheteou para a cara dela, escaldando-a. O prato estilhaçou-se, e um bocado de loiça partida em bico voou e cortou-lhe a face. O sangue e o molho misturaram-se, pingando cara abaixo. Jeff levantou-se e dirigiu-se a ela, cada vez mais furioso.
- Bebo - atirou - para esquecer que estou casado com uma ranhosa ordinária como tu. -, Deu-lhe uma bofetada que a atirou contra o lava-loiça, magoando-lhe as costas contra o bordo aguçado. - Olha para ti! Seu monte de lixo sangrento. Lava essa imundície da cara.
Sem ver, ela virou-se para apanhar um pano húmido no lava-loiça. Ele bateu-lhe outra vez. A sua cabeça bateu na parede com força e por momentos ela ficou cega. Um zumbido alto e estranho começou a soar-lhe nos ouvidos, quase como o voo dos cisnes.
- E bebo - gritou ele, debruçando-se sobre ela com ênfase aterrorizadora - porque não consigo arranjar um emprego e ninguém quer saber peva do que me acontece. Sabes o que me ofereceram hoje? Ir alcatroar estradas, a mim que sou um vendedor!
Laurie segurava o pano húmido contra o rosto, fitando-o com os olhos arregalados. As asas ainda adejavam na sua cabeça, tentando libertar-se. Tudo estava desfocado. A cara distorcida de Jeff parecia subir e ficar estreita num momento para depois encolher e esticar-se para os lados como um balão monstruoso. Era uma sensação esquisita e aterrorizava-a.
- Um vendedor! - berrou ele, e começou a abaná-la selvaticamente. - Arrastado para isto... - Abarcou com um braço a cozinha em desordem e as crianças assustadas no chão e depois rodou-o com violência contra o rosto dela. - Como é que posso trazer a casa um possível cliente para ver isto? Quanto mais um eventual patrão!
Estava a ficar entaramelado, e ela teve um desejo louco de rir. Desde quando tivera ele possíveis clientes? Ou patrões?
Jeff deve ter vislumbrado o riso no rosto dela, porque bateu-lhe de novo ainda com mais força, atirando-lhe a cabeça contra a parede novamente e magoando-lhe as costas ainda mais contra o bordo do lava-loiça. Laurie sabia vagamente que tinha de fazer um esforço para chamá-lo à razão. Pelo menos pelas crianças, tinha de tentar parar aquilo de qualquer forma.
- Jeff - começou ela -, por favor. Eu sei que é frustrante... 
- Frustrante! - berrou ele. - Bem podes dizê-lo. Contigo e com as crianças penduradas ao meu pescoço como um fardo!
Ela baixou os olhos para a pequena Midge, agachada no chão. A suave e meiga Midgezinha com os seus grandes olhos cinzentos. Um fardo?
- Então, porque não te vais embora? - Ouviu-se a si própria dizer com um tom de coragem falsa na voz desesperada.
- Ir embora? - Soou como se ele não tivesse compreendido bem. Depois, pareceu entender e desatou a rir. Era um som feio e fez arrepiar os cabelos da nuca de Laurie. - Podia fazê-lo - ripostou, ainda a rir. - Tu até gostavas, não era?
E então, como ela mais uma vez não respondesse, ele bateu-lhe de novo.
Ela percebeu nessa altura, num repente curioso e cristalino de compreensão, que ele nunca a deixaria. Gostava de ter alguém em quem bater e uma razão para a sua fúria e rancores. Ela e as crianças eram a sua desculpa para os seus próprios fracassos e imperfeições. Não precisava de se culpar a si próprio. Só tinha de puni-los a eles.
A eles? Laurie compreendeu que os filhos estavam em perigo. No momento em que vislumbrava esta realidade, Jeff deu um passo atrás, hesitante, e tropeçou no leão amarelo que Midge tinha deixado no chão, no meio do terror, ao gatinhar para debaixo da mesa. Agora, ele avançava para a criança com um punho levantado e um olhar vidrado de fúria.
- Seu pirralho maldito!
- Não! - exclamou Laurie, e pôs-se rapidamente em frente da mesa. - Não, Jeff. A Midge não.
Ele nunca tinha batido nos miúdos. Até agora. Tinha sempre sido Laurie que queria magoar, Laurie que queria humilhar e derrotar. Mas agora o olhar no seu rosto ultrapassara o grau de sanidade. Ela teve medo. Curvou-se e deitou os braços à criança.
- Jay - chamou bruscamente -, anda. Vou meter-vos aos dois na cama.
- Não vais nada - gritou Jeff. - Deixa-os aí.
- Não - retorquiu Laurie, e recuou com rapidez, mantendo Jason atrás de si.
Jeff virou a mesa de pernas para o ar -e veio atrás dela. Mas uma das pernas da mesa revirada atingiu-o quando ele cambaleou para a frente, ébrio, e fê-lo estatelar-se numa chuva de vidros e insultos.
As asas soavam muito forte na cabeça de Laurie.
Fugir... fugir... fugir!, diziam, e o som do seu voo seguro e rápido era mais alto do que a voz de Jeff.
De alguma forma, sem saber bem como, Laurie encontrou-se na rua com Midge nos braços e Jason ao lado, e a correr... a fugir no crepúsculo azul da noite de Setembro, deixando muito' longe a figura minúscula de Jeff aos gritos e a casa sufocante e acanhada. E com ela, enquanto corria, as asas continuavam a pulsar.
Quando a pontada se tornou demasiado forte, ela parou para recuperar fôlego. Estavam numa zona de Londres que não conhecia, mas as ruas eram bem iluminadas e havia um quiosque de café aberto na esquina. Olhou para baixo, para os miúdos, com os rostos voltados para ela numa pergunta muda, indagando. E agora? Agarrou com força a alça da carteira. Tinha algum dinheiro que guardara para o dia seguinte... O dia seguinte? Não conseguia pensar até tão longe. Nesse momento, precisavam de uma bebida quente e algo para comer.
Aproximou-se do quiosque com cuidado. Não sabia que aspecto apresentava, claro, com o rosto marcado e o corte por baixo do olho ainda a deixar escorrer um fiozinho de sangue, o cabelo solto em longas madeixas desgrenhadas e os olhos arregalados, em choque.
O dono do estabelecimento deu-lhe uma olhadela e serviu uma caneca de chá quente.
- O que é que os miúdos vão tomar? - perguntou.
- Chá - respondeu Jason prontamente. - Se faz favor. - E a pequenina? Leite quente? Para a aquecer um pouco? Laurie acenou que sim com a cabeça.
- Deixe ver - disse o homem com compreensão. - Sente-a aqui em cima. Descanse um pouco os braços, menina. - Sentou Midge no balcão, que ficou com as pernitas de quatro anos de idade penduradas, e o rosto ao mesmo nível do da mãe. Ela levantou uma mãozinha e fez uma festa na face ferida de Laurie.
- Coitadinha da mãe - lamuriou. - Tão tristinha.
Laurie engoliu à pressa um gole de chá quente. A ternura inesperada de Midge quase fora a última gota.
- Podia arranjar-lhes um cachorro quente?- pediu, tentando sorrir para o rosto enrugado à sua frente.
- Com certeza. - O homem meteu duas salsichas quentes entre duas fatias de pão com umas colheres de cebola. - Molho?
- Sim, se faz favor - respondeu Jason, acenando a cabeça. - Molho! - concordou Midge, sorrindo como um anjo.
- E a senhora? - Os olhos castanhos atentos vigiavam-na sem surpresa, mas não sem compreensão.
- Não, obrigada. Não tenho fome.
- Teve uma noite má? - indagou com delicadeza.
- Acho que sim... - Aquecia as mãos na caneca, mas não conseguia parar de tremer.
Ele pareceu abarcar toda a situação, com a cabeça inclinada. - Vai para casa? - inquiriu.
- Não - ripostou ela, e estremeceu de novo. - Nunca mais.
O homem fez que sim com a cabeça para si próprio, como quem compreende demasiado bem o problema. O seu rosto enrugado, meio velho, meio novo, tinha um ar abatido de compaixão. Já tinha visto tudo aquilo anteriormente. Mas antes que lhe pudesse dizer mais qualquer coisa, ela desfaleceu à sua frente.
Acordou num quarto desconhecido numa casa cheia de sons desconhecidos. Estava deitada numa cama de campanha coberta com uma manta cinzenta da tropa. Havia outra cama no quarto e dois beliches. Mas não havia sinais dos filhos. Começou a levantar-se em pânico, mas o movimento súbito causou-lhe uma dor violenta e penetrante na cabeça, e ela voltou a recostar-se com as mãos na cabeça, que latejava.
- Está tudo bem - afirmou uma voz perto. - Tenhacalma. - Os meus filhos...
- Estão bem. A Penny está a tomar conta deles.
Laurie abriu os olhos. A dor abrandara um pouco. Deu consigo a olhar para o rosto de uma mulher rija e seca, com cabelo cinzento curto, uma boca recta e determinada e olhos de um estranho tom dourado que pareciam emanar calor e segurança.
Onde... Que sítio é este?
- É a Casa Hyde, um refúgio para mulheres. - Um... um refúgio?
- Exactamente. - Um ligeiro sorriso perpassou pela boca firme. - Chamam-lhe O Esconderijo. E eu sou a fundadora, Jane Everett.
- Como é que eu... Como é que viemos cá parar?
- O Joe trouxe-vos. O dono do quiosque. Ele traz muitas vezes pessoas para cá. Já viu muita coisa assim, o nosso Joe. E é um homem bom. Laurie suspirou.
- Sim... Lembro-me. Foi muito bondoso.
Jane Everett acenou que sim com a cabeça. A seguir, sentou-se aos pés da cama de Laurie e afirmou com suavidade:
- O seu sensato rapaz, Jason, disse-me o seu nome e o da Midge, mas há uma ou duas coisas que quero saber. Acha que aguenta umas perguntas?
- Sim. Mas não sei as respostas... Jane voltou a sorrir.
- Pois, não creio que as saiba neste momento. Mas, ouça, eu quero que vá para o hospital e que essa cabeça ferida seja vista, e eles vão fazer-lhe perguntas.
- Não preciso...
- Precisa, sim, senhora. - Jane calou-se por momentos e depois prosseguiu: - E se, como desconfio, não tem intenções de voltar para mais espancamentos, pode precisar das provas dos seus ferimentos por parte do hospital. Compreende?
Laurie mirou-a. Num repente, todo o assustador processo judicial... e as consequências das acções de Jeff e as da sua fuga... se apresentaram aos seus olhos como uma estrada de pesadelo.
- Ou quer voltar? - indagou Jane, ainda a falar com suavidade. - Não - respondeu Laurie. - Não, não posso voltar. - Olhou com ansiedade para o rosto da outra mulher, como a tentar justificar a sua decisão. - São as crianças, percebe? - explicou ela com a voz a tremer. - Já não estão seguras. Não estão... seguras... - Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.
Jane Everett rodeou-lhe os ombros com um braço.
- Não se preocupe agora. Estão perfeitamente seguras aqui. Vou mandá-las com a Penny e pode ver com os seus próprios olhos.
Laurie fez que sim com a cabeça, esquecendo-se da dor, e depois deu um ligeiro grito.
- Desculpe - murmurou desamparadamente. - Desculpe estar a dar tanto incómodo. - Mas não conseguia fazer parar as lágrimas. Nessa altura, Jason entrou, equilibrando uma bandeja com pão com doce e uma chávena de chá, e Midge trazia uma sardinheira vermelho-vivo. Com eles estava uma alegre rapariga ruiva, grávida e sem aliança. - Eu sou a Penny - apresentou-se e sorriu. - Vou partilhar este quarto consigo e com os miúdos. Eles dão-se bem comigo, por isso pode deixá-los enquanto vai ao hospital para ser vista. - Piscou um olho azul a Jason. - Ele e eu somos bons amigos, sabe? Nós tomamos conta da Midge, não tomamos, Jay?
Laurie tentava comer pão com doce e parar de chorar ao mesmo tempo. Jason abraçou-a.
- Não chore, mãe. Está tudo bem. Nós gostamos disto aqui.
O quarto rodava em frente dos seus olhos e ela deitou-se, exausta. Penny deitou-lhe uma olhadela e fez sinal em silêncio a Jason. Depois, pegou em Midge ao colo e saiu do quarto.
O pessoal hospitalar era activo, eficiente e inesperadamente bondoso. Jane apresentou uma explicação breve da situação e anunciou que voltaria para saber os resultados dos exames. Pôs então em movimento os processos dos serviços sociais que iam ajudar Laurie e os filhos a sobreviver.
Laurie foi levada para as radiografias. Quando a despiram, até ela se espantou um pouco com a quantidade das contusões. Parecia ter nódoas negras por todo o lado; as costelas ardiam-lhe como brasas quando inspirava; e a coluna, no sítio em que Jeff a atirara contra o bordo do lava-loiça, provocava-lhe agora uma dor profunda e paralisante.
Deram-lhe uns pontos no corte da face e radiografaram-lhe a cabeça, as costelas e a coluna. Depois, deitaram-na numa enfermaria. Tremia imenso nessa altura, morta de frio, mas empilharam-lhe cobertores em cima e trouxeram-lhe uma botija de água quente. A enfermeira de serviço debruçou-se sobre ela, sorrindo, e disse:
- Não se preocupe. É só do estado de choque. Apareceu um médico novo e sentou-se ao lado dela. - Sou o Dr. Lang - informou. - Como se sente agora?
- Bem. Só tenho fr-frio... - Inspirou entrecortadamente. A cabeça ainda estava estranha. As asas continuavam a rodopiar lá dentro, a tentar sair. Tornava-se difícil concentrar-se.
- Queremos que fique cá esta noite. - Mas não posso. Os meus filhos...
- Pode, sim, senhora. Os seus filhos estão muito bem entregues. - Sorriu para ela confiantemente e pousou-lhe uma mão no punho, tomando-lhe o pulso com dedos competentes e frescos. - Garanto-lhe que não vamos retê-la por mais tempo do que o necessário. Temos poucas camas.
Ela tentou retribuir o sorriso. - Quais são os estragos?
- Tem uma ligeira concussão e uma possível fractura em cabelo. Também tem três costelas partidas e uma equimose grave na coluna que lhe vai doer muito durante algum tempo. - Deu-lhe uma palmadinha alegre no braço e levantou-se. - Parece mau, mas, na verdade, são tudo coisas que só requerem descanso. Teve sorte.
- Sim - murmurou ela. - Muita sorte...
Nessa altura, um funcionário dos serviços de registo entrou no quarto e perguntou:
- Podemos fazer-lhe a ficha agora? Não devíamos chamar o marido?
- Não! - exclamou Laurie. - Não! Não podem!
- Deixem os formulários por agora - declarou o Dr. Lang com firmeza.
Laurie tentou sair da cama.
- Não posso ficar aqui! Deixem-me ir embora!
O médico agarrou no pulso de Laurie com uma das mãos e garantiu: - Não vem cá ninguém. Não vou permiti-lo. Vamos dar-lhe qualquer coisa para dormir. Esqueça tudo. Está absolutamente segura.
De algum modo, a voz calma e a pressão segura dos seus dedos longos e frescos atingiram-na. Ela descontraiu-se e encostou-se para trás na cama, exausta. Por fim, adormeceu.
De manhã, deixaram-na tomar banho, mas nem o toque agradável da água quente no corpo macerado conseguia apagar a sensação das mãos duras de Jeff, as pancadas intermináveis e castigadoras dos seus punhos e a voz zangada - que parecia não se calar - a gritar-lhe dentro da cabeça dorida. E aquelas asas ainda lá estavam.
Quando voltou à enfermaria em cima das pernas vacilantes, com uma bata do hospital, Penny estava lá com uma mão-cheia de roupa limpa. Sorriu.
- Vim buscá-la para a levar para casa - anunciou.
“Para casa?”, pensou Laurie. “Qual casa?” Em voz alta, perguntou rapidamente:
- As crianças? Estão bem?
- Claro que estão. Sãs que nem peros. Já vai vê-las.
Nesse momento, chegou o Dr. Lang. Verificou-lhe os olhos, estudou a ficha e mais uma vez tomou-lhe o pulso com a mão fresca e firme.
- Vai aguentar-se - declarou, sorrindo. - Mas quero que tenha cuidado durante pelo menos uma semana. Se as dores de cabeça piorarem ou começar a ter visão dupla, volte cá imediatamente.
Laurie mirou-o, sentindo-se desorientada, mas não disse nada.
- Jane Everett tratou das coisas para que ficasse com as crianças na Casa Hyde durante quinze dias - explicou ele ao ver a dúvida e confusão nos olhos dela. - Depois disso, logo vemos...
- Ela disse pelo menos quinze dias - interrompeu Penny. - E eu posso tomar conta dos miúdos. Vai poder fazer exactamente o que o doutor mandou.
Laurie tapou a cara com as mãos e afirmou numa voz sufocada:
- Só queria... que não fossem todos tão horrivelmente simpáticos. O Dr. Lang riu-se.
- Creio bem que vai habituar-se a isso. Embora possa aperceber-me de que não tem tido muito contacto com a simpatia nos últimos tempos. “Nos últimos tempos?”, pensou Laurie com tristeza. Há quanto tempo Jeff não demonstrava qualquer simpatia? Há quanto tempo ela tinha medo de cada vez que Jeff entrava em casa?
Não tinha sido sempre assim. Lembrava-se ainda de um tempo longínquoem que Jeff tinha sido atencioso e amável, até ternurento. E lhes trazia pequenos presentes para casa, e os seus olhos eram suaves e não acusadores. Nervosamente, fez a pergunta vital:
- O que é que... Sabe se notificaram alguém? O médico sorriu.
- Dei instruções ao serviço de registo para notificarem o seu marido, mas a carta só vai ser enviada hoje. - Uma ligeira piscadela pareceu perpassar pelos olhos dele por um instante.
- Ah! - Laurie retribuiu-lhe o sorriso com uma breve onda de esplendor. - Ah... obrigada.
Jeff estava confuso. Quando Laurie fugira de casa a correr, ele supusera que voltaria em breve, contrita, como de costume. Mas não voltara. Inspeccionou os destroços da cozinha e o guisado de lentilhas espalhado pela parede. Tinha sido de facto ele que fizera aquilo? O que o enfurecera assim tanto? Não conseguia lembrar-se, mas a ideia daquela cena assustava-o. Caiu na cama numa nuvem de álcool e autocomiseração e sonhou que se encontrava num carrocel, a rodar cada vez mais depressa, de tal maneira que ficava cada vez mais tonto com cada volta. E Laurie e as crianças estavam de pé, de mãos dadas, ao lado, a observarem, muito sérias, enquanto ele continuava a rodopiar e não conseguia sair...
Acordou a sentir-se enjoado e estranhamente assustado com qualquer coisa. Não havia ninguém em casa, e o silêncio e o vazio pareciam troçar dele. Precisava de uma bebida. O dia passou num nevoeiro de bares e uma sensação de perda que ele não entendia bem. Quando regressou a casa, ainda não estava lá ninguém. Começou a interrogar-se se poderia ter acontecido alguma coisa a Laurie.
“Não”, pensou ele. “Ela está só a vingar-se. Se calhar, dormiu em casa de um dos vizinhos.” Enfurecido, deu um pontapé na mesa tombada da cozinha. “É melhor limpar esta porcaria”, continuou a pensar. Mas deixou tudo como estava.
De manhã, encontrou a carta do hospital, um.formulário impresso com os espaços preenchidos com: “Mrs. Laura Collins, casada com Jeffrey Collins, Wetherby Terrace, 14, deu entrada, sofrendo de costelas partidas, fractura do crânio, concussão, grave equimose na coluna e contusões múltiplas.” Nem uma palavra sobre quanto tempo lá ia ficar nem como adquirira os ferimentos. O estômago contraiu-se-lhe de medo.
O que lhes teria ela dito? Todos aqueles ferimentos não podiam ter sido provocados por ele. É verdade que tinham discutido duas vezes num dia, mas não, ela tinha com certeza sido atropelada por um carro ou assaltada ou qualquer outra coisa.
Era melhor ir ver como ela estava. Mas, e se o acusassem? Era melhor esperar que entrassem em contacto com ele. Ou a mandassem para casa. Afinal, não diziam que corria perigo. Entretanto, precisava de uma bebida. Um choque e tanto, notícias daquelas.
Mas, após uma manhã no bar, sentiu-se com mais coragem. Começou a pensar: e se não a fosse ver? Não iam pensar que não se importava com ela? Não ia parecer que ele lhe tinha mesmo dado uma sova? Talvez fosse melhor ir e fazer um ar preocupado. Fazer um ar? Bom, ele estava mesmo preocupado.
Pensou vagamente no que teria acontecido às crianças. Não podia tê-las com ela, pois não? Alguém devia estar a tomar conta delas. Bom, que lhes fizesse bom proveito! Talvez ficassem com elas um dia ou dois e lhe dessem um momento de descanso. Ia fazer-lhe muito bem.
Ocorreu-lhe que, se ia trazer Laurie para casa, como um bom marido, era melhor primeiro dar uma arrumadela a tudo. Para o caso de alguém querer vir verificar pessoalmente. Arranjar-se um bocado também. Emborcou mais um gole e comprou uma garrafa para levar para casa. As coisas podiam tornar-se feias no hospital.
De regresso a casa, varreu os vidros partidos e as loiças e lavou todos os pratos no lava-loiça. A seguir, limpou o guisado da parede. Ficou um pouco abalado por lá encontrar sangue também. Por essa altura, a sua coragem estava a evaporar-se de novo, por isso parou para beber uma boa dose de whisky. Não gostava de hospitais nem nas melhores alturas, e aquela visita podia ser traiçoeira.
- Venho ver a minha mulher, Mrs. Laura Collins - anunciou Jeff.
A recepcionista respondeu, sem sequer levantar os olhos:
- Segundo andar. Enfermaria dez. Apanhe o elevador ao fundo do corredor.
Jeff apanhou o elevador. Sub-repticiamente, tomou mais um trago da garrafa de whisky escondida no bolso. À entrada da enfermaria 10, cruzou-se com uma enfermeira.
- A minha mulher, Laura Collins	Pôs o seu ar mais simpático. - É esta a enfermaria dez?
A enfermeira mirou-o.
- Mrs. Collins? - Fez uma pausa. - Espere um momento - acrescentou com rispidez. - Vou saber.
Por fim, a enfermeira voltou e convidou com delicadeza:
- Não se importa de esperar aqui, Mr. Collins? O Dr. Lang já desce para falar consigo. - Conduziu-o por uma porta para dentro de uma pequena sala de espera. - O doutor não se demora.
Derrotado, Jeff sentou-se numa cadeira ao lado de outro homem que também estava à espera. Em breve, o outro homem foi levado. Só deu tempo para Jeff dar mais outra golada rápida antes de o rosto sério do jovem médico aparecer no umbral.
- Mr. Collins? - Sim, sou eu. A resposta do médico foi seca e sem meios-termos.
- Receio que tenha chegado tarde demais. - Depois, pareceu parar deliberadamente, observando o terror súbito nos olhos de Jeff.
- O quê?
- Demos-lhe alta ontem.
Jeff ficou furioso de repente. Assustá-lo daquela maneira. Tinha pensado por momentos que... e, afinal, ela não estava mal!
- Deram-lhe alta? Para onde? O Dr. Lang encolheu os ombros. - Não faço a mínima ideia.
- Mas... Onde é que ela está? Não deixou um endereço?
- Só o seu endereço, Mr. Collins, e esse com muita relutância. - O quê? Ela... Ela disse alguma coisa?
- Acerca de quê? Acerca de como adquiriu os ferimentos, talvez? Jeff sentiu outra onda de medo.
- Bem, e disse? - A voz saiu-lhe demasiado alta, demasiado truculenta.
- Ela não contou muita coisa. Tinha uma concussão e estava em estado de choque.
- Deve ter caído - tartamudeou Jeff. - Atropelada por um carro ou coisa assim. Não perguntou por mim?
- Perguntar por si? - O médico parecia frio e desdenhoso. - Não, não perguntou. Na realidade, a única vez que se mencionou o seu nome ela ficou tão assustada que tentou sair logo nessa altura do hospital.
Houve um silêncio enquanto Jeff digeria aquilo. Por fim, o medo e a fúria apoderaram-se dele.
- É ridículo! - rugiu. - O senhor recusar-se a dizer-me onde ela está! A fazer essas acusações todas.
- Ninguém fez acusações nenhumas, Mr. Collins.
- Exijo saber onde ela está. E os meus filhos? Ela não tem o direito de desaparecer sem deixar uma morada. E o senhor não tem o direito de a deixar... - Avançou para o Dr. Lang, apontando um dedo acusador. - O senhor sabe de certeza. Não saio daqui sem mo dizer.
O jovem médico limitou-se a fitá-lo, com as mãos nos bolsos da bata branca.
- Lamento, mas não posso ajudá-lo.
Jeff atirou-se a ele às cegas, mas uma mão forte e rápida forçou-lhe o braço para baixo.
- Aconselho-o a não ser violento, Mr. Collins - afirmou o Dr. Lang em tom agradável. - Acho que já tivemos violência suficiente. Jeff tentou novamente bater-lhe. Mas desta vez uma enfermeira entrou seguida de dois porteiros corpulentos, que agarraram cada um num braço de Jeff.
- Se fosse a si, eu ia-me embora sossegado - aconselhou o médico com suavidade. - Ou quer que chame a Polícia?
Jeff ficou atemorizado. Lembrou-se do papel com a lista de ferimentos. Mas a pressão forte dos porteiros enfurecia-o. Sacudiu-os, dizendo entredentes:
- Larguem-me. Já lhes disse: não saio daqui enquanto não souber onde ela está.
Os dois porteiros agarraram-no outra vez e seguiu-se uma luta. A enfermeira foi chamar a Polícia. Quando lá chegaram, Jeff estava fora de si de frustração e medo. Tentou bater nos porteiros, no Dr. Lang e num dos polícias.
- Deixem-me - gritava. - Quero a minha mulher. Quero saber onde está. Como é que se atrevem a esconder-ma!
Levaram-no, ainda a debater-se e a gritar.- Bem - disse o Dr. Lang à enfermeira sombriamente -, não há grandes dúvidas de onde aqueles ferimentos surgiram.
Numa cela nua, quando a fúria ébria se desvaneceu, Jeff sentou-se e chorou. Queria ir para casa. Queria a mulher. Até queria os filhos. Estava aterrorizado com o que acontecera a Laurie e a si próprio. Não compreendia como é que a vida tinha seguido de repente um caminho tão horrivelmente errado.
- Ande lá - mandou o agente de serviço, puxando-o para o pôr de pé. - Não é preciso chorar. Pode ir para casa depois de prestar declarações. O sargento está à espera.
Quando a provação terminou, tendo ele sido acusado de agressão a um agente e de comportamento desordeiro e ébrio, o sargento declarou: - Julgamento na segunda-feira. Apresente-se a horas. É melhor manter-se sóbrio até lá e não se meter em sarilhos.
- Ai, sem dúvida - garantiu Jeff piamente. - Sem dúvida.
Quando Laurie acordou no refúgio, na manhã seguinte a ter saído do hospital, o pequeno quarto encontrava-se vazio. Ela levantou-se e deu com os miúdos a brincarem no quintal. Correram para ela, que os abraçou e depois deixou voltar para a brincadeira. Decidida a tornar-se útil, foi para dentro um pouco zonza e encontrou Jane Everett com um pincel e uma lata de tinta azul a preparar-se para pintar uma porta.
- Não posso fazer isso? - perguntou Laurie. Jane observou-lhe o rosto ensombrado.
- Hoje não - respondeu, sorrindo. - Talvez amanhã. Estamos a tentar alegrar um pouco as instalações.
- Tenho de fazer alguma coisa - disse Laurie com a voz embargada.
Jane pousou o pincel e levou Laurie para a cozinha.
- Sei que é maçador - continuou, sorrindo -, mas pode ajudar a arranjar os legumes. Para já, não me parece que deva deitar a mão a nada muito cansativo, sobretudo com três costelas partidas.
Era verdade que as costelas lhe doíam bastante quando se mexia mais bruscamente.
- Está bem - concordou, retribuindo o sorriso a Jane.
Parecia uma criança pequena sem saber se era bem-vinda, e Jane sentiu-se compelida a indagar:
- Laurie, que idade tem? - Vinte e sete.
- E o Jason tem...
- Oito. Deixei a minha família em Sunderland e casei com o Jeff aos dezoito anos. A minha mãe era contra, mas ele convenceu-me a fugir com ele. Não estava grávida... só mais tarde. - Laurie fechou os olhos e estremeceu. Como descrever quanto Jeff tinha mudado, do homem afectuoso, alegre e risonho que fora? Como ela própria mudara da jovenzinha que ficara tão ofuscada com o encanto dele. - Mas quando o bebé nasceu, ele não gostava de ficar em casa à noite. Estava habituado a divertir-se. Depois, perdeu o emprego. Não conseguia arranjar outro. Convenceu-se de que, se não fosse por minha causa e por causa das crianças, podia ter partido para algum lado. Ser vivaço, solteiro e sem prisões... e desejado. Por isso - Laurie olhou para Jane dolorosamente -, começou a beber um bocadinho mais.
- O que é que por fim a despertou? - perguntou Jane.
- Ele ia bater na Midge - explicou Laurie. - Mas foram os cisnes, na verdade...
- Os cisnes?
- Sim. A voarem muito alto... mesmo por cima da nossa casa. Tudo se tornou claro para mim. Algures por aí fora há um mundo. Tinha-me esquecido de como era belo, mas não posso continuar a ignorá-lo nem deixar os meus filhos crescerem sem o conhecer. Tenho de sair e encontrá-lo.
- Sim - concordou Jane. - Sim. É claro que tem.
Ao fim dessa tarde, falaram do hospital para Jane com a notícia da prisão de Jeff. Ela ligou para a Polícia e sugeriu que lessem o relatório do médico. Parecia-lhe que havia provas suficientes para conseguir uma acusação de agressão física grave - e conseguir uma sentença proibindo o marido de molestar mais a mulher. Qual era a opinião deles?
Veio uma mulher-polícia jovem ao refúgio para se informar sobre a questão. Verificou que Laurie não estava ainda refeita do recente espancamento.
- Alguma vez recorreu à Polícia?
- Sim - suspirou Laurie. - Duas vezes. Uma vez, fiquei assustada e fechei-o lá fora e ele deitou a porta abaixo. Entrei em pânico e levei as crianças para a esquadra. Deram-me uma chávena de chá e mandaram-me para casa.
- E da segunda vez?
- Atirou-me pela janela para o quintal. Fui à Polícia e pedi-lhes para falarem com ele. Veio um agente comigo, mas nessa altura já Jeff se tinha acalmado. Foi muito sensato. Disse que tinha sido um acidente e que eu era nova, assustava-me com facilidade e era exagerada. Ele é capaz de ser muito persuasivo e encantador quando quer. O polícia acreditou nele.
- Sim - murmurou a mulher-polícia. - Compreendo.
Depois, foi-se embora e Laurie começou a tremer. Um suor frio apareceu-lhe na fronte. As asas, que tinham estado sossegadas a maior parte do dia, de súbito iniciaram uma batida urgente na sua cabeça. Pareciam revoltear e crescer até as suas poderosas penas encherem o ar e taparem a luz. Perante a sua potente investida, Laurie caiu sem um ai.
Foi Penny quem a levantou e a pôs na cama, lhe trouxe uma botija de água quente e uma chávena de chá. Penny quem se debruçou na cama e lhe disse com um alegre sentido prático:
- Não devia deixar que a perturbassem. Eu não deixo. Que se danem todos, digo eu.
Laurie tentou rir-se.
- És um conforto, Penny. - Olhou para o rosto simpático e bonacheirão da miúda à sua frente e perguntou de repente: - O que é que estás a fazer aqui? És demasiado nova para estares aqui connosco, mulheres gastas e cansadas.
Penny abanou o pé para a frente e para trás e baixou os olhos.
- Depende do que quer dizer com demasiado nova - retorquiu. Laurie ficou horrorizada.
- Tu? Espancada?
- Moída de pancada - assentiu ela. - Sim. Mas eu não era propriamente esposa.
Laurie estava baralhada. - O quê, então?
- Filha - ripostou ela com verdadeiro azedume na voz. - Queres dizer que o teu pai te batia?
- Ah, não. Bem, não exactamente... - Fixou os olhos em Laurie quase com pena. - Não percebe mesmo nada, pois não?
- Não - concordou Laurie com um meio-sorriso. - Nada de nada. - Bom, eu conto-lhe. - O tom- vigoroso e irreverente tinha voltado à sua voz. - O meu pai era um bocadinho excitado, percebe? Gostava de rapariguinhas, por isso... - Baixou os olhos para a sua própria barriga volumosa.
- Oh, meu Deus - exclamou Laurie. - Mas... Que idade tinhas? - Cerca de oito anos quando começou. Não podia dizer à minha mãe... nem a quem quer que fosse, na verdade. Ele ameaçava bater-me se o fizesse. Ele disse que, de qualquer modo, negaria e ninguém ia acreditar em mim. Iam pensar que eu não passava de uma perversa. - Um sorrisinho triste arrepanhou-lhe os cantos da boca. - E no fim foi mesmo isso que pensaram, incluindo a minha mãe.
- O quê? Quando tu... Quando ele te engravidou?
- A minha mãe não queria acreditar em mim. Gostava da vida que tinha. E deu-me a maior das sovas que já apanhei por ser mentirosa e conflituosa e ter uma mente doentia, como ela disse. Depois, pôs-me na rua.
- Mas, Penny. O que é que tu fizeste? Penny deu um suspiro.
- O Joe encontrou-me na rua como a encontrou a si. E depois a Jane assumiu o comando. - Sorriu a Laurie, com a velha e animada alegria a vir ao de cima. - Graças a Deus, existe a Jane, não é?
- Sim, mas, Penny, quantos anos tens agora? O que é que vais fazer?
- Tenho quase dezasseis. E hei-de conseguir! A Jane diz que posso ficar cá como ajudante. - Olhou à volta e pela janela, para o jardim mal-arranjado, e acrescentou, meio para si própria: - Mas não tenho a certeza de querer educar o meu filho aqui. Pelo menos para sempre.
- Não gostas disto?
- É bom. - Penny abanava o pé de novo e franzia o sobrolho. - É seguro. Ninguém se mete connosco e temos que chegue para comer. Não estou a dizer que não estou agradecida. - Levantou os olhos para Laurie outra vez, sorrindo um pouco. - Mas... Ah, não sei, acho que um bebé precisa de um sítio mais assente.
Laurie suspirou, pensando em Jay e Midge.
No dia seguinte, Laurie sentia-se mais perturbada que nunca. Encontravam-se no escritóriode Jane e o ambiente estava carregado de silêncios significativos. Havia uma assistente social, Lois Brown, que era simpática, mas insistente. E havia uma advogada de ar calmo chamada Madeleine Williamson, que parecia ser amiga de Jane. E havia Jane, atenta e neutra. Queriam falar com os miúdos a sós.
- Se não tem objecções	estava Lois Brown a dizer educadamente.
Mas Laurie, francamente, tinha.
- Não são um pouco novinhos para interrogatórios? - indagou ela. - Sabe - explicou Jane pacientemente -, a Madeleine está habituada a lidar com estas situações. Ajuda muitas mulheres. E se e para ajudá-la com o processo judicial e mais tarde com um divórcio, vão surgir questões sobre quem fica com as crianças, etc. Ela precisa de saber o que sentem as crianças sobre isso e se é seguro deixar o seu marido aproximar-se delas. E Lois também.
- Podia ajudar-nos - confirmou Lois - a ter uma imagem completa.
“Uma imagem completa”, pensou Laurie, desesperada. “Como é que podem alguma vez saber?” Mas em voz alta pediu:
- Desde que não os perturbem nem assustem. Disso já tiveram que chegasse.
Olhou, impotente, para Jane, que garantiu:
- Temos todas muita experiência, Laurie. Nunca intimidaríamos uma criança. Na verdade, é mesmo essa a ideia do Esconderijo... Nenhuma intimidação de qualquer espécie.
Laurie fez um sorriso pálido e afastou o cabelo dos olhos.
- Desculpem. Sei que estou ansiosa. Mas, sabem...
- Nós sabemos muito bem, Laurie, acredite em mim - interrompeu Jane. - Pode confiar em nós.
Mas Laurie não conseguia confiar em ninguém. Ainda não. Naquele momento, Penny entrou com as crianças. Midge correu logo para Laurie e subiu-lhe para o colo. Mas Jason ficou de pé, quieto, a olhar da mãe para as outras mulheres num silêncio interrogativo.
- Jay... - Laurie puxou-o para si. - A Jane e as amigas dela querem só falar contigo um bocadinho. Podes contar-lhes o que querem saber. Basta dizeres a verdade, está bem?
- Está bem - concordou Jason. - Se a mãe quiser... Jane levantou-se decididamente.
- Então, a Laurie e eu vamos fazer um chá para toda a gente - anunciou ela. - Midge, ficas aqui com o Jason, está bem?
Mas Midge fez uma cena. Agarrou-se a Laurie, com os braços apertados à volta do pescoço dela, e chorou.
- Não faz mal - interveio Lois Brown rapidamente. - Falamos só com o Jason. - Dirigiu a Laurie um sorriso tranquilizador.
- De qualquer forma - notou Madeleine Williamson numa voz calma e clara-, acho que a Midge já nos disse o que queríamos saber. Após uma breve olhadela em redor, Penny levou Laurie e Midge para a cozinha. Portanto, agora era a vez de Jason enfrentar os problemas.
- Para já - começou Lois com suavidade -, queres voltar para casa?
- Não! - atirou Jason. E a seguir, com toda a franqueza: - Se ele lá estiver, não.
- Gostas de cá estar? - A voz de Lois ainda soava casual.
- Mais ou menos. - Jason olhava para ela quase com desprezo. Fazia perguntas tão óbvias. - Estamos protegidos - explicou ele.
- Protegidos de quê, Jason? - indagou Lois ainda com maior suavidade.
- Da maldade - retorquiu ele. E depois, vendo que esperavam que ele continuasse, trocou-lhes por miúdos. - Do meu pai.
- Ele batia na tua mãe muitas vezes, Jason? - Sim. Todo o tempo.
- E batia em ti ou na Midge?
O rosto dele pareceu fechar-se como uma flor à noite. Não respondeu.
- Batia, Jason? - insistiu a assistente social.
- Sim - confessou ele. - Às vezes. Quando a mãe não estava. - Na Midge também?
Uma espécie de escuridão pareceu encher-lhe então os olhos.
- Só quando ela chorava. Eu tentava impedi-lo... - Olhou para ela desamparadamente. - Mas ele era forte demais. - As mulheres ficaram em silêncio, perturbadas pela voz magoada e cheia de auto-reprovação. - Eu bem lhe dizia para ela não chorar - continuou com uma franqueza dolorosa. - E ela conseguia a maior parte das vezes.
Lois Brown retomou num tom falsamente casual: - Suponho... que a tua mãe nunca vos batia?
Então, ele irritou-se de súbito. Os seus olhos pareciam reluzir de incredulidade.	-
- A minha mãe? Ela é incapaz de magoar alguém! - Nem mesmo o teu pai?
- Não - respondeu ele com decisão. - Ela costumava dizer que não devíamos odiá-lo. - O seu rosto ficou triste de repente. - Mas eu odeio-o mesmo. Odeio-o por bater na minha mãe e na Midge.
Ficou ali, tenso e na defensiva, a desafiá-las a ambas. Mas antes que pudessem fazer mais perguntas, Laurie voltou a entrar na sala, com Midge a correr atrás dela. Dirigiu-se rapidamente até Jason e voltou-se para as inquisidoras:
- Já chega - declarou. - Não vêem que ele já sofreu demais? E Penny, atrás dela, acrescentou alegremente:
- Olha, Jason, trouxemos-te uma chávena de chá e uma bolacha de chocolate.
Jason não disse mais nada. Mas encostou-se ao braço da mãe.
Toda a gente se descontraiu então, e Madeleine Williamson disse a Laurie:
- Ele é um rapazinho muito corajoso. Deve ter orgulho nele.
- E tenho - concordou Laurie. A seguir, de certa forma hesitante, perguntou: - Conseguiram... Descobriram o que queriam saber?
- Ah, sim. - A advogada acenou com a cabeça. - Vou representá-la no tribunal na segunda-feira e, se quiser, depois também.
A vida continuava a ser cruel para Jeff. Voltou, depois de sair da esquadra, para uma casa fria e desarrumada, para um vazio cheio de ecos. Estava furioso com o hospital e com a Polícia, zangado consigo próprio e ainda mais danado com Laurie, que causara toda aquela confusão por ter fugido. Deu uns pontapés de frustração à toa.
No dia seguinte, apareceu uma pessoa à porta que lhe entregou uma intimação judicial. Havia outra acusação contra ele. Estava abismado. Laurie fizera tudo isto? Aquela ratazana miserável? Devia ter encontrado algures um advogado intrometido. Era melhor ele procurar um também.
Mais tarde, no bar, alguém lhe recomendou um tipo que não era muito careiro. Não ocorreu a Jeff que também não devia ser muito bom. Em vez disso, emborcou uns copos para ganhar coragem e foi logo contratá-lo.
A seguir, sentiu-se melhor. Agora, iam tratar-lhe das coisas. Provavelmente, safar-se-ia com uma reprimenda, disse o advogado.
Voltou ao bar e encostou-se ao balcão para falar com Brenda, a empregada. Era grande e roliça e normalmente alegre, mas também forte que nem um cavalo. Toda a gente gostava dela.
- Bebe um à minha conta- convidou Jeff, acenando com uma nota numa mão ousada.
- Porto e limão, obrigada - replicou Brenda. - E tu? - Whisky - pediu ele. - Estou a afogar as mágoas. - Ai sim? Porquê?
- Estou muito só - suspirou como um menino perdido. -A minha mulher foi-se embora.
- Lamento.
Jeff mirou Brenda apreciativamente. Não era nada feia, na verdade. Boa pele e um sorriso bonito quando queria. E ele gostava bastante delas roliças, sobretudo depois daquela escanzelada da Laurie.
- O que é que fazes quando saíres do trabalho? - indagou, depois de um gole para dar coragem.
- Nada que te interesse - replicou Brenda.
- Tens a certeza? - perguntou Jeff, transmitindo todo o encanto de que era capaz.
- Bem - Brenda mirou-o -, veremos...
Quando o caso foi a tribunal, Jeff estava a sentir-se melhor. Brenda não queria ir lá a casa. Não queria envolver-se em nenhum sarilho. Mas tinha-o deixado subir ao apartamento dela, por cima do merceeiro. Não passou pela cabeça de Jeff descarregar as suas frustrações nela como fazia com Laurie. Ela era dura. Não suave e frágil e mesmo a pedir que lhe chegassem. Não, esta era capaz de lhe dar uma sova a ele, se quisesse. Entretanto, fazia-o sentir-se o maior e devolveu-lhe a arrogância no andar.
Mesmo assim, precisou de uma ajudinha antes de entrar no tribunal. Quando se encontrou com o advogado, estava confiante e agressivo por fora e muito assustado por dentro. As coisas pareceram acontecer num nevoeiro. Não compreendeu o que estava a passar-se. Respondeu às perguntas deles com ar carrancudo, com repentes de rebeldia, e depois tentava forçar-se a ser calmo e encantador.- Queria só ver a minha mulher - pediu com ar razoável.
- Quando foi a sua brutalidade que a pôs no hospital? Era a advogada de Laurie. Era esperta.
- Um erro... - resmungou ele. - Perdi a cabeça. Lamento...
- Quando isto já durava há anos? Tenho uma declaração em como a sua mulher já tinha pedido a protecção da Polícia pelo menos por duas vezes anteriormente.
Falou-se mais um bocado, mas o magistrado parecia não estar disposto a prolongar as coisas.
- Três meses pela primeira acusação - disse com voz áspera - e mais um mês pela segunda. E vai ser obrigado a ter uma conduta irrepreensível e não se aproximar, molestar ou perseguir a sua mulher, seja de que maneira for, durante um ano.
Madeleine Williamson pensou para si própria com amargura: “Sim. Três meses por ter tentado agredir um agente da autoridade e um mês por quase matar a mulher. É assim a vida. Mas pelo menos vai estar fora da circulação enquanto aquela coitada recupera.”
Jeff não podia acreditar. Cadeia? Ele? O que é que tinha feito para merecer isso? Um homem tinha o direito de fazer o que quisesse à sua mulher dentro da sua própria casa. Não tinha? Não era justo.
De súbito, levantou-se e gritou tudo isto a plenos pulmões. Mas não serviu de nada. Empurraram-no para fora da sala, ainda a gritar e a tentar explicar-se. Foi para a cadeia. E tudo por culpa de Laurie.
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Parte II
Levantando voo
Laurie estava no Esconderijo havia mais de uma semana, ainda exausta e confusa, quando recebeu uma visita. Um vulto quadrado e moreno entrou no quarto atrás de Penny, e, ao avançar, Laurie reconheceu-o num repente súbito de memória.
- Sou eu, o Joe - disse ele. - Então, como vai isso? - Melhor. - Laurie sorriu. - Muito melhor, obrigada.
- Estávamos cá a pensar, a Penny e eu, se gostaria de ir dar um passeio pelo campo. Quer dizer, você e os miúdos. - Mirava-a com olhos castanhos brilhantes e atentos. - Pensei que talvez, aqui fechada, lhe soubesse bem uma mudança. Tenho de ir buscar hortaliças, percebe?
- Pensei que tinha um quiosque nocturno de cafés.
- Tenho - concordou Joe. - Hortaliças de manhã, café à noite. - Foi você quem me trouxe para o refúgio da Jane.
- Fui. - Sorria com conhecimento e simpatia.
- Bem, obrigada - atirou Laurie. - Provavelmente, salvou-me a vida, e a das crianças também.
- Esqueça isso, menina. Bem, e quanto ao campo?
- Ah, Joe! É uma óptima ideia. - Ela resplandecia. - Campo a sério?
- Campo a sério. - Sorriu. - Prados verdes e tudo.
- Vá lá - pressionou Penny. - Não desperdice tempo. Vou buscar os miúdos. - Voltou-se para Joe. - Faço umas sanduíches?
- Não - replicou ele. - Hamburgers e batatas fritas por minha conta. Vamos fazer um dia de festa.
Riram-se todos. Parecia um piquenique da escola.
A velha carrinha verde de Joe matraqueou pelo meio dos campos verdes da rica província de Kent até chegar a um caminho comprido e arenoso com uma casa de quinta ao fundo. De um lado do caminho, havia campos planos de grelos e couves, cenouras e cebolas e filas de morangos serôdios, com os apanhadores ainda a deslocarem-se por entre eles. Do outro lado, havia pomares verdes alinhados, com as suas macieiras carregadas de fruta rosada, e para lá dos pomares havia altas alas de lúpulo a crescer em latadas, como sólidas paredes cobertas de folhas. Grupos de pessoas aglomeravam-se à volta de sacas de serapilheira, apanhando o lúpulo verde e vistoso.
Quando Joe conduziu a carrinha para dentro do pátio, Laurie e os outros viram um celeiro de aspecto estranho, com um belo telhado circular de antigas telhas avermelhadas, encimado por um alto cata-vento. - O que é aquilo? - indagou Jason, apontando para ele.
- A casa do forno onde secam o lúpulo. - Joe apontou o polegar para um tractor que se movia entre altas paredes de hastes de lúpulo em cascata. - Estão a apanhá-lo agora, vês? Toca a sair!
Enquanto Joe foi carregar a carrinha com produtos, Penny e as crianças correram alegremente por uma das longas alamedas verdes de lúpulo. Laurie seguiu-os mais devagar. Ainda lhe doía andar depressa, e as costelas doridas dificultavam-lhe a respiração, mas era maravilhoso estar ao ar livre, com aqueles vastos céus límpidos e navios de nuvens brilhantes navegando por cima de si. O cheiro estranho e pungente do lúpulo misturava-se com o cheiro mais doce das maçãs dos pomares. Sentia a cabeça mais desanuviada do que há muitos dias. As asas pareciam não bater de todo lá dentro. Na realidade, tinha uma estranha sensação de liberdade.
Uma das apanhadoras, uma mulher grande, levantou os olhos para Laurie e sorriu. Trazia um avental de serapilheira amarrado à volta da saia de algodão, e as grandes mãos estavam manchadas do verde e dou rado do lúpulo, que ela deitava para dentro do saco. A família trabalhava à volta dela em equipa.
- Vem juntar-se a nós? - perguntou a mulher.
Laurie hesitou, observando quão habilidosamente os dedos dela tiravam o lúpulo da haste e o separavam das folhas.
- Costumava haver mais gente - continuou a mulher com melancolia. - Mas as máquinas são mais rápidas. Hoje em dia, já não nos querem na maior parte dos sítios.
Laurie acenou com a cabeça. - Mas aqui querem?
- Claro. O Stan é um bom patrão.
- Há muito tempo que vêm para aqui? A mulher riu-se.
- Mais do que quero lembrar-me! - Olhou de soslaio a plantação de lúpulo, protegendo os olhos do sol. - O verificador vem aí - afirmou ela. - Há competição hoje para ver quem é o apanhador mais rápido... com prémios e tudo. - Apontou para um outro grupo de apanhadores. - Aqueles são jornaleiros. Vêm todos os dias de autocarro. - Piscou o olho a Laurie. - Mas não conhecem o ofício como nós.
- Qual é o prémio? - perguntou Laurie, sorrindo.
- Não sei. P'raí uma garrafa de cerveja. Ou cidra. - Olhou de esguelha para Laurie e perguntou: - Vai cá ficar muito tempo?
- Não -suspirou Laurie. - Quem me dera...
- Parece-me que lhe faria bem - comentou a mulher com perspicácia. Estendeu o olhar para. as alas altas e verdes onde Jason e Midge brincavam entre um grupo de crianças aos gritos e continuou num tom surpreendentemente mais suave: - Faz muitíssimo bem aos miúdos e tudo.
Laurie concordou. Havia muito, muito tempo, que não via as crianças tão descontraídas e sem medo. Até Penny dava a impressão de ter perdido um pouco do ar pesado e corria com os miúdos. Laurie ficou comovida pela visão do seu abandono infantil. Afinal, lembrou a si mesma, a própria Penny ainda era apenas uma criança.
- Porque não fica? - sugeriu a mulher com suavidade. - Há lugar nas cabanas e ainda há muito lúpulo para apanhar enquanto o tempo está bom. Acho que dava jeito ao patrão.
Laurie mirou-a. Todo o tipo de possibilidades amontoava-se-lhe na cabeça. Mas não disse nada. Exactamente nessa altura, o verificador, alto e esguio - Spider -, dirigiu-se para elas. Relanceou uma olhadela em volta, com ar experiente, pelas protuberâncias verdes nos sacos. Após um cálculo arguto do volume, começou a tirar o lúpulo e a atirá-lo para dentro do seu cesto de alqueire, a contar enquanto o fazia e despejando-o para os grandes sacos que iam ser postos no tractor e levados para a secagem.
- Três... quatro... cinco... - a voz continuava, monótona. Depois, somou-os todos e escreveu no bloco-notas preto. - Estás à frente até agora, Dorrie - afirmou, sorrindo, para a mulher.
- E aqueles outros ali? - perguntou Dorrie, continuando a debulhar lúpulo para dentro do saco vazio enquanto falava.
- Nem perto - retorquiu ele, rindo-se. Depois, pôs outra vez o boné sobre o cabelo ruivo e olhou para Laurie. - É nova aqui, não é?
- Estou só de visita - respondeu Laurie com timidez.
Ele reparou como o longo cabelo louro brilhava ao sol e como aqueles olhos azuis, tão fortemente marcados pelo cansaço, o miravam do fundo de uma fortaleza de decisão escondida e profunda.
- Bem - retorquiu - divirta-se! - e passou ao grupo seguinte de apanhadores.
Algures no outro extremo, perto da estrada, uma campainhacomo a de uma carrinha de gelados ecoou pelo ar rescendente a lúpulo.
- A comida chegou - exclamou Dorrie, e bamboleou-se na direcção do som da campainha. De toda a plantação de lúpulo e dos pomares e campos longínquos, apanhadores e crianças acorreram, numa multidão chilreante e alegre.
- Hamburgers e batatas fritas - anunciou a voz de Joe mesmo atrás de Laurie. - Como prometido. Vamos lá.
Sentaram-se num banco cheio de pó e marcas de pés e comeram hamburgers em papéis gordurentos, lambendo o sal dos dedos. Era a primeira vez que Laurie sentia fome desde... desde Deus sabia quando, e reparou que Jason e Midge já tinham devorado a sua parte e olhavam à volta à procura de mais. Penny entregava-lhes, a rir, as suas batatas fritas para os manter sossegados.
Joe observava-os a todos com olhos experientes, mas não dizia nada. Depois, afastou-se e comprou gelados para todos.
- Mãe - declarou Jason com a boca cheia -, gosto disto aqui. Não podíamos cá ficar?
- Ficar! - concordou Midge, e comeu outra batata frita. Laurie desviou os olhos deles para Penny e suspirou.
- Bem, e porque não? - replicou Penny. - Fazia-nos bem.
- Fazia-nos... ? - murmurou Laurie, com uma questão mais profunda em mente.
- Sim, a nós - confirmou Penny. - Para onde forem, eu também vou. - Depois, corou com súbita timidez e sacudiu o cabelo ruivo ao sol. - Isto é, se não se importar.
Joe regressou então com os gelados, e Laurie tentou pagá-los em vão. - Mas eu tenho algum dinheiro, Joe. O pessoal da Segurança Social deu-me um subsídio de emergência para eu me orientar. A Jane tratou disso.
- Ela contou-me - resmungou Joe. - Mas isto é um presente, percebe?
Laurie olhou para o seu rosto determinado e percebeu. Agradeceu-lhe com seriedade.
- Tem razão, claro. Não posso esbanjá-lo. Só Deus sabe de onde virá o próximo. Estava a pensar se não podia ganhar algum aqui.
- Aqui? - perguntou Joe. - Quer dizer, a apanhar lúpulo?
- Porque não? - Ela relanceou os olhos pelas caras das crianças, que a fitavam em súplica muda. - Eles adoram isto, Joe, o espaço e o... a verdura. Depois de Londres é tão limpo.
Se Joe ouviu o tom de dor na voz dela, preferiu ignorá-lo.
- Está preparada para trabalhar então? - indagou. Mirou-a com ar severo. - Não seria muito conveniente andar por aí a desmaiar pelos cantos outra vez... - Laurie apercebeu-se do brilho no olhar dele e riu-se. - Outra coisa - continuou ele, sério. - Se ficar aqui, a Jane pode não ter quarto vago quando você voltar.
Laurie acenou que sim.
- Eu sei. Mas não posso lá ficar para sempre, Joe. - Afastou o cabelo dos olhos num gesto familiar de ansiedade. - Não é bom para os miúdos. Pelo menos permanentemente, quero dizer.
Joe concordou.
- O que é que gostaria de fazer então?
Laurie respirou fundo e levantou os olhos para o céu azul.
- Gostava de:,. - murmurou - de me afastar de Londres - “... e de Jeff e da sua raiva”, pensou - para um sítio calmo. Talvez perto do mar, onde fosse limpo... e eu pudesse trabalhar.
Joe ficou em silêncio por momentos. A seguir, meio a sorrir, perguntou:
- O que é que sabe fazer então, para além de colher lúpulo? Laurie suspirou.
- Pouco. Sei cozinhar qualquer coisa e limpar uma casa, creio. E tratar de um jardim. - Suspirou de novo. - Costumava ajudar o meu pai com no jardim quando voltava do banco.
- Do banco? - A voz de Joe soou mais penetrante.
- Ah, sim, esqueci-me. Sei fazer balancetes de contabilidade. O meu pai era subgerente do banco local. Arranjou-me lá um emprego. - Você vale o seu peso em ouro, rapariga - comentou Joe. Depois, deu uma vista de olhos às plantações de lúpulo. - Quer mesmo ficar aqui?
- Se houver trabalho.
- Vou ver - ripostou Joe, mirando-a com ar duvidoso. - E eu? - exigiu Penny. - Posso colher.
- Nada de muito pesado - protestou Joe. - No teu estado, não, rapariga! O Stan não ia gostar disso. - Pensou por instantes. - Há os grelos - afirmou devagar. - E os morangos serôdios ainda. Mas isso é agachar demais.
- E daí? - bufou Penny. - Não. sou de vidro. Ele abanou a cabeça.
- Para que é que vou pôr o Stan em dificuldades?
Mas elas continuaram a olhar para ele com um apelo urgente nos olhos. Joe suspirou.
- Está bem, está bem, vou pedir-lhe. - Sentia uma necessidade urgente de dissipar a ansiedade do olhar de Laurie. - Mais alguma coisa que queiram?
- Cisnes	declarou de súbito Laurie, a olhar para o vasto céu. Joe pareceu espantado.
- Cisnes? - indagou. - Bem, há o rio ali mesmo ao fundo, em baixo. O lamacento Medway. Porque não vão ver enquanto falo com o Stan?
Laurie,. com Penny e as duas crianças a dançar à frente dela, desceu até ao rio vagaroso. As margens estavam cor de ferrugem com as ervas do fim de Setembro, mas ainda floridas, com balsaminas e ulmeiras. Umas galinhas-d'água e galeirões chapinhavam por lá entre os canaviais e um casal de patos-reais vogava rio abaixo.
- Ali! - disse suavemente Jason, apontando um dedo, excitado. - Ali estão eles. Era o que queria?
E além, flutuando pacificamente na superfície serena do rio, estavam dois cisnes calmos e graciosos.
- Não são lindos?- sussurrou Laurie, e afundou-se na relva para os observar, com os olhos rasos de lágrimas inesperadas.
Penny olhou para ela de lado e depois, afastou-se e começou a falar com Jason muito a sério sobre patos-reais e barcos. Afastaram-se lentamente, com Midge segura com firmeza pela mão.
Laurie sentou-se ao sol a observar os sossegados cisnes, que navegavam tão orgulhosos à frente do vento, como garbosos veleiros de outras eras. Nessa altura, pareceram acordar do seu deslizar sonolento, quase como se tivessem sido chamados, e começaram a nadar na direcção de uma pequena língua de terra saliente. Ao chegarem aos baixios cheios de juncos, Laurie viu a figura de um homem delineada contra o sol. Quase parecia fundir-se com a paisagem, de tão quieto que estava, plantado direito na margem do rio, como uma árvore a crescer.
Laurie afastou o cabelo dos olhos para observar novamente. Ele ergueu uma mão para os cisnes, como que a cumprimentar velhos amigos, e eles aproximaram-se bastante, de tal modo que, inclinando-se, ele acariciou a bela curva das suas cabeças e longos pescoços brancos. Enfiou a mão num bolso e tirou um pouco de comida, e eles comeram-na da sua mão com uma dignidade calma. Depois, fez-lhes uma carícia final e Laurie ouviu o fraco murmúrio da sua voz quando ele se afastou deles e se aproximou dela.
- Fortaleçam-se	pareceu-lhe ouvir.
Ela não se mexeu. Ficou sentada a observá-lo enquanto ele se aproximava com passos longos e lentos. Parecia quase hipnotizada pela sua presença, como os cisnes estavam. Era tão calmo e pacífico. Uma sensação extraordinária de libertação e felicidade parecia avolumar-se dentro de Laurie ao vê-lo chegar, uma sensação de quase reconhecimento. Ali estava alguém sem medos, intocado pelas sementes da raiva ou do despeito, que estendia os braços para os cisnes com mãos meigas e compassivas. Alguém que caminhava pelo mundo sarapintado dos campos húmidos, não como se o possuísse, mas como se fizesse parte dele.
Quando ele se aproximou, Laurie deu por si a olhar para um rosto moreno e magro, com rugas finas à volta de olhos perspicazes, de um profundo cinzento de sombra de nuvem, que a miravam numa interrogação amigável. Tinha cãs prateadas no cabelo castanho e ligeiramente encaracolado, que se erguia de uma testa alta e abaulada. E a boca era bondosa, embora Laurie suspeitasse de que seria capaz de se tornar severa em certas ocasiões.
Ele, por seu lado, viu uma rapariga frágil e pálida com longos cabelos louros que brilhavam ao sol e olhos que eram demasiado grandes e demasiado escurecidos por sombras, mas que já deviam ter sido de um azul-genciano límpido.
- São seus? - indagou ela. - O quê?
- Os cisnes.
- Ah... Ah, não. São cisnes-bravos, completamente selvagens e livres. - Sorriu-lhe e o sol pareceu dardejar e dançar-lhe no rosto.
- Mas... conheciam-no.
- Isso é porqueos encontrei feridos, e os tratei. Mas já estão bem de novo e livres de partir e voltar.
- Livres? - murmurou Laurie, como se fosse uma palavra que não conhecia.
- Só voltam porque sabem que sou amigo e é seguro - explicou ele, e havia ternura no seu sorriso.
Porque sabem que sou amigo e é seguro. Laurie fechou os olhos por instantes, fazendo retroceder lágrimas estúpidas. Quando voltou a abri-los, ele estava sentado na margem ao seu lado.
- Há muitos cisnes no rio?
- Bastantes. Não tantos como era costume haver. - Porquê?
- Fazem-lhes mal... E eles morrem. - A expressão dele tornou-se sombria.
- O que é que lhes acontece?
- Tudo. Ficam presos em linhas de pesca, dão-lhes tiros, ficam com anzóis presos nas gargantas, são atacados por pessoas nas margens ou nos barcos.
- Atacados? Cisnes?
- Ah, sim. Espancados com remos. Amarrados a uma árvore e usados como alvo de setas. Atropelados por barcos a motor e cortados pela hélice. Nem pode imaginar.
Os olhos de Laurie estavam arregalados e quase negros de fúria.
- Porquê? O que é que nós, seres humanos, temos? Porque é que somos tão violentos? - Estremeceu.
- Acho que é uma espécie de desespero - murmurou ele. - Desespero?
- Sim, desespero. De que a vida possa ser tão feia e desapontadora. Laurie fez que sim com a cabeça.
- Por isso espancam? - Conhecia o padrão.
- Mas não é, claro - acrescentou ele com o olhar pousado nos cisnes.
- O que é que não é?
- A vida não é desapontadora e feia. - Não é?
- Não - respondeu ele. - Nem sempre.
Exactamente nessa altura, nos longínquos pomares, um tiro soou e a seguir uns gritos e uma série de detonações agudas como chicotadas. Laurie deu um salto e começou a tremer.
- Não faz mal - afirmou o homem dos cisnes. - Espanta-pardais. Normalmente, põem estes engenhos nos pomares depois de os apanhadores irem para casa. Salva muita fruta.
- Ah! - Laurie tentava em vão parar de tremer. - Que tolice assustar-me...
Ele mirou-a com gravidade.
- Leva tempo - declarou de forma obscura. - Às vezes, os cisnes que salvo levam muito tempo.
- Le-levam? - Parecia mais do que uma simples pergunta.
- Ao princípio, não suportam ser tocados. - Ele não olhava para ela agora, tinha o olhar perdido no rio. - Assustam-se com qualquer som. Até uma colher a tirar comida de um prato de alumínio fá-los retesar com medo. Detestam os homens. - Continuava a não olhar para ela.
- Não se pode culpá-los, pois não? A violência marca profundamente. - Sim - sussurrou Laurie.
- Mas por fim aprendem a confiar em mim - afirmou com a voz viva de compaixão. - E vêm comer-me à mão, como viu!
Laurie fez um sorriso cheio de dor.
- Sim, vi. - Ao longe, na margem, ouviu as vozes de Penny e das crianças, que regressavam.
- Vai melhorar - murmurou ele para ninguém em especial, e observou as figuras pequenas que se lhes dirigiam.
Midge correu para a mãe, palrando com alegria de patos e nenúfares. Mas Jason aproximou-se dela devagar, de olhos pregados no seu rosto, e estendeu-lhe uma longa pena branca de cisne que tinha encontrado.
- Mãe? - chamou, e pousou a pena no seu colo.
Não disse mais nada, mas no seu olhar estranhamente maduro Laurie viu uma nova tranquilidade e nítida compreensão.
“Eu sei”, dizia. “Eu sei que nunca houve tempo para se sentar numa margem de rio e olhar para os cisnes. Sei que quando uma coisa é bela isso fá-la chorar. Mas eu estou aqui. E a Midge está aqui. E a Penny. E estamos seguros. Não há nada aqui para nos atemorizar. Está tudo bem.”
Laurie estendeu a mão e apanhou a macia pena de asa. Avassalou-a um desejo súbito e pungente de se meter no rio e mergulhar bem fundo, até que todo o seu velho ser e a sua antiga vida tivessem sido expulsos dela e lavados para que pudesse vir à superfície completamente nova e limpa, como os puros e imaculados cisnes que deslizavam tão orgulhosos, totalmente curados e livres. Mas em voz alta comentou apenas:
- Um pequeno pedaço de liberdade, Jay - e levantou a pena brilhante na luz do sol de fins de Setembro.
O homem ao seu lado tocou na pena. Sorriu-lhe, e havia no seu olhar compassivo a mesma consciência e tranquilidade que ela vira nos olhos de Jason.
- Vai haver outros - afirmou suavemente; depois, levantou-se e afastou-se deles em direcção ao sol.
Stan concordou em contratá-los pelo menos durante a semana seguinte, uma vez que a apanha estava quase no fim. Laurie abraçou Joe e foi telefonar a Jane, que aconselhou:
- Tire o máximo partido disso!
Para Laurie, Penny e as crianças começou então um tempo de inesperada paz e liberdade. Os alojamentos eram simples mas limpos, as cabanas tinham sido caiadas por dentro recentemente. Havia uma cozinha comunitária, mas a maior parte das famílias preferia fazer os seus cozinhados em fogões de campismo a gás ou fogueiras no chão plano e espezinhado em frente das cabanas. Isto proporcionava reuniões de convívio envolvidas pelo cheiro rodopiante do fumo das fogueiras nas noites frescas de Setembro.
Toda a gente era simpática, e alguém emprestou a Laurie uma panela velha enegrecida e uma lata de feijão até ela poder abastecer-se na loja ambulante que vinha no dia seguinte; Penny conseguiu que a mulher do lavrador lhe arranjasse uns ovos e leite e outra pessoa deu-lhe uma velha chaleira, chá e meio-pão escuro “para remediar”, por isso aquela primeira noite pareceu-lhes um banquete.
Levantavam-se cedo, tal como os outros, e iam para as plantações de lúpulo. Trabalhavam todo o dia ao vento e ao sol, arrancando o lúpulo verde-claro das hastes, e à noite sentavam-se às fogueiras e cozinhavam mais feijão, salsichas no espeto e batatas assadas nas brasas.
O verificador, Spider, afeiçoara-se a Laurie, e uma noite aproximou-se em grandes passadas da fogueira dela e ficou de pé a mirá-la na luz que diminuía.
- Importa-se que me junte a vocês? - Como queira - retorquiu Laurie.
Ele fitou-a atentamente antes de se sentar na relva amassada. O rosto dela tinha perdido algum do seu ar cansado e atormentado, mas ainda havia sombras sob aqueles olhos azuis.
- Está sozinha, é? - indagou ele. Laurie olhou para ele com firmeza.
- Sim - ripostou, e a seguir ouviu a sua própria voz continuar: - E tenciono manter-me assim.
Spider riu-se e esticou as pernas compridas na relva. - Não seja assim. Só estava a perguntar.
Laurie suspirou. Serviu-lhe chá numa caneca de alumínio e deitou-lhe algum leite.
- Tome - ofereceu. - Lamento, mas não tenho açúcar. - Observou-o por instantes em silêncio enquanto ele beberricava o chá, e percebeu que ele estava a magicar como haveria de prosseguir. - Ouça, Spider - declarou de repente. - Lá porque tenho cabelo comprido e olhos azuis não quer dizer que seja presa fácil para qualquer homem que apareça.
- Eh, espere lá. Eu não quis dizer...
- Não? - exclamou ela, incrédula. - Bem, de qualquer forma, não sou. - Mirou-o de novo, quase com desespero. - Para lhe dizer a verdade, Spider, estou um bocado farta de homens.
Ele olhou-a de relance, meio a sorrir. - A sério?
- Sim, a sério. Isto é, a não ser que você consiga tratar-me como qualquer outro trabalhador, homem ou mulher. - Voltou a mirá-lo com perspicácia, quase como se esperasse ver algo na cara dele que lá não estava. - Sabia-me bem ter um ou dois amigos normais - murmurou meio para si própria.
Spider sorriu e esvaziou a caneca de chá.
- Mensagem recebida e entendida - declarou, e levantou-se. Laurie sentiu um ligeiro tremor de desilusão. Seria impossível a amizade normal com Um homem?
Mais tarde nessa noite, quando estavam deitadas lado a lado no escuro, Laurie pediu a Penny:
- Eras capaz de me cortar o cabelo?
Penny estava meio adormecida, mas apoiou-se num cotovelo para espreitar Laurie, abismada.
- Cortar-lhe o cabelo? O que é... quer dizer, curto?
- Sim, curto. Bastante curto. - A sua voz soava decidida. - Acho que sim, desde que tenha uma tesoura.
- A Dorrie deve ter.
Deu a impressão de que ia levantar-se eperguntar-lhe logo naquele momento, mas Penny aconselhou numa voz calma:
- Amanhã de manhã. Quando houver luz. Não posso fazer isso agora... podia arrancar-lhe a cabeça! - Riram-se baixinho no escuro. - Porquê? - indagou Penny. - Por causa do Spider?
- Não, mas... - Laurie hesitou.- Decidi que tenho de ser diferente de agora em diante.
De manhã, pediram a tesoura emprestada a Dorrie, e quando as longas madeixas douradas jaziam em molhos aos pés de Laurie, Midge pareceu que ia chorar. Mas Jason afirmou determinado:
- Fica-lhe a matar. Parece um rapaz, só que mais bonito.
Laurie riu-se. Parecia-se, de facto, mais com um rapaz delgado e frágil, com o corte escadeado e laivos de sardas do sol de Outono. Tentou ver o seu reflexo na panela com água em cima da fogueira. Uma imagem pálida e tremeluzente de uma desconhecida, nova e decidida, olhava para ela. “Toda nova”, pensou. “Tenho de começar de novo.” Mas só disse:
- Gosto. Faz-me sentir bastante forte!
Após o trabalho desse dia, Laurie foi à quinta buscar mais ovos e leite. No escritório, ao lado da vacaria, Stan, um homem forte de cabelos cor de areia, com mãos grandes, estava sentado à secretária a rever dolorosamente os números para calcular a colheita do dia. Spider encontrava-se de pé a seu lado. Quando Laurie passou pareceu ficar boquiaberto perante o aspecto dela. Assobiou elogiosamente.
- Santo Deus - exclamou. - O que é que você fez? Laurie abanou a cabeça loura.
- O meu novo eu - explicou. - Precisava de uma mudança. - Começou a afastar-se.
- Espere um bocadinho - chamou Stan, levantando-se. - O Joe diz que você percebe de contabilidade. É verdade?
Laurie hesitou.
- Sei somar dinheiro e fazer um balancete.
Stan convidou-a a entrar e mostrou-lhe os registos complicados e riscados dos seus livros.
- Isto faz algum sentido para si? - indagou.
- É possível... - respondeu Laurie cautelosamente. Stan suspirou de alívio.
- Quer encarregar-se disto? É menos duro do que a colheita. Laurie abanou a cabeça, pedindo desculpa.
- Não. Tenho de estar com as crianças. É importante para elas sentirem-se seguras neste momento. - Stan e Spider ficaram nitidamente desiludidos. - Mas talvez pudesse vir durante uma hora, à tarde.
A cara de Stan abriu-se num sorriso.
- Podia? Tirava-me um grande peso de cima. - Olhou dela para Spider com um certo pesar. - Não tenho grande cabeça para números... não tenho mesmo.
- Já somos dois - retorquiu Spider. Laurie sorriu.
- Está bem. Amanhã. -Hoje não?
- Não, desculpe. Prometi aos miúdos ovos para o lanche. Tenho de voltar.
Saiu do escritório muito calmamente. “Acho que o corte de cabelo me tornou mesmo mais forte”, pensou.
Com a colheita do lúpulo e o trabalho na contabilidade de Stan, passaram-se alguns dias antes de Laurie ter oportunidade de descer novamente até ao rio para ver os cisnes. Ou seria o homem dos cisnes que ela queria ver? Não sabia. Mas algo lhe martelava a mente e a atraía para aquele lento rio castanho...
Uma tarde chovia, por isso pararam de trabalhar cedo, incapazes de apanhar o lúpulo enquanto estava húmido. Penny e as crianças ofereceram-se para fazer o jantar, e assim Laurie saiu sozinha para passear à chuva.
Ainda havia alturas em que as recordações de Jeff a atormentavam. Alturas em que se sentia torturada pela culpa de ele estar na cadeia. Mas depois lembrava-se das cenas de violência. Passeando ao longo da margem do rio, perseguida por estes pensamentos, quase esbarrou com o homem dos cisnes, que estava agachado à borda d'água com um deles nos braços.
- Desculpe - sussurrou, ansiosa por não assustar a ave ferida. - Posso ajudar? - Deixou-se cair na relva húmida ao lado dele.
- Um anzol na garganta- explicou ele. - Está a sufocar. - Mirou Laurie, como que a avaliá-la. - Sim. Veja se consegue mantê-lo quieto enquanto lhe enfaixo as asas.
De uma maleta de médico que se encontrava aberta na relva junto dele tirou uma longa tira de pano. Enrolou-a com presteza à volta das poderosas asas, mantendo-as bem junto do corpo do cisne para que o animal não pudesse debater-se.
- Um golpe destas asas - explicou - pode partir um braço ou uma perna sem mais nada.
Laurie segurou a ave magoada nos braços, sentindo o calor do peito sedoso nos dedos e o bater selvagem e agitado do coração enquanto o cisne se esforçava por respirar. “Era como eu me sentia”, pensou. “Agitada e desesperada, quase a morrer de medo.”
Logo que o cisne ficou bem seguro, o homem estendeu a mão para o saco e tirou um fórceps fino. Com cuidado e delicadeza, obrigou o bico a abrir-se e começou a procurar.
- Está muito fundo - afirmou entredentes. - Se calhar não consigo chegar-lhe. - Mas continuou a tentar.
E Laurie continuou a segurar firmemente a ave.
- Fica quieto, cisne - trauteou. - Ele não te vai magoar. Vais ficar melhor não tarda.
Por fim, o homem dos cisnes torceu o ferro um pouco e deu-lhe um puxão ligeiro e seco.
- Cá está! - exclamou, triunfante, e retirou a mão da garganta do cisne. Entre as estreitas lâminas do fórceps, encontrava-se um anzol de aço com um pedaço de fio de nylon agarrado. O cisne teve uma náusea convulsiva, pareceu arquejar e a seguir começou a respirar mais normalmente.
- Está tudo bem, meu amigo - afirmou o homem, sorrindo um pouco e afagando o longo pescoço com uma mão consoladora. - Vais ficar bom depois de um descanso. Vou levar-te para casa agora. - Levantou-se e olhou para Laurie. Agora que a ave estava livre de perigo, parecia vê-la melhor. Tocou ao de leve numa madeixa do cabelo certinho. - Outro pequeno pedaço de liberdade?
Ela sorriu-lhe e continuou com as mãos à volta do cisne, até que ele se baixou e meteu a ave abatida debaixo do braço.
- Vem? - Ficou de pé a observá-la, enquanto ela hesitava. - Pode ajudar-me a deitá-lo.
Caminharam juntos ao longo da margem, sem pressas, com medo de perturbar o cisne.
- Como se chama? - indagou Laurie. Ele voltou-se e sorriu-lhe.
- A maior parte das vezes, chamam-me aquele tontinho dos cisnes, Harper. Mas os meus amigos chamam-me Clem. E você?
- Eu? Laurie.
- Então, venha lá, Laurie - convidou. E alargou um pouco as passadas, de tal modo que ela teve de esticar as suas pernas para conseguir acompanhá-lo.
Chegaram por fim a uma curva do rio e a uma pequena represa, onde se encontrava uma velha roulotte apoiada em tijolos e atrás dela, meio escondida numa confusão de salgueiros verdes, uma casinha com telhado de telhas avermelhadas e um amontoado de telheiros e anexos. Havia um lago artificial perto da casa, escavado a partir da represa, onde Laurie viu um grande número de cisnes e outras aves aquáticas a nadarem em pacífica reclusão.
Clem abriu a porta da cozinha com o ombro e pousou o seu fardo num cesto baixo e largo cheio de juncos secos e ervas. Fez uma última festa meiga à ave e virou-se para Laurie.
- Pão com queijo? - ofereceu. - E chá? Vamos sentar-nos lá fora a ver os cisnes. A chuva parou.
Sentaram-se juntos no degrau da cozinha, rodeados por um mundo aquático e verde, sereno e tranquilo. Não falaram muito, mas crescia entre os dois uma sensação de companheirismo e de curiosa união sem palavras. Nenhum deles a entendia; nenhum deles a questionava. Laurie sentiu anos de tensão e medo a abandonarem-na. Finalmente, mexeu-se e disse baixinho:
- Tenho de ir andando.
Ele não tentou retê-la. Voltou para ela o seu sorriso meigo e lento e acenou em concordância.
- Voltamos a ver-nos - declarou. Estava a fazer uma afirmação, e não uma pergunta.
Laurie mirou-lhe o rosto e respondeu: - Voltamos, claro.
Mas no fim da semana Laurie não voltara a ver Clem, e Joe devia estar a vir comprar hortaliças e a levar o pequeno grupo de volta. Ela descobriu que estava a ficar apavorada com isso. Não queria regressar ao Esconderijo nem aos seus urgentes problemas de habitação, advogados e papéis de divórcio. Queria ficar numa plantação de lúpulo do Kent, com o Medway a correr ao lado e os cisnes. E Clem? Sim, respondeu

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