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TÍTULO:O mistério da cruz egípcia AUTOR: QUEEN, Ellery GÉNERO: Romance CLASSIFICAÇÃO: Literatura norte-americana – Século XX – Ficção Aventino de Jesus Teixeira Gonçalves Outubro de 2003 *** Os livros desta colecção são constituídos por dois títulos. Este é o primeiro, sendo o segundo: O mistério do ataúde grego, do mesmo autor Nota do digitalizador por ELLERY QUEEN Num cruzamento de estradas próximo da cidadezinha onde vivia, foi descoberto um excêntrico mestre-escola decapitado e crucificado num poste de sinalização, figurando um T macabro. Como durante o ano seguinte apareceram mais três homens assassinados do mesmo modo, assim surgiu O Mistério da Cruz Egípcia, por muitos considerado «a mais apaixonante aventura de Ellery Queen». Por sua vez, o caso Khalkis que viria a estar na origem de O Mistério do Ataúde Grego constitui uma das primeiras investigações da longa e triunfal carreira de Ellery Queen, então ainda numa fase incipiente do seu método analítico-dedutivo, razão pela qual esteve prestes a falhar antes de, numa reviravolta inesquecível, conseguir obter um dos seus mais espectaculares triunfos. OBRAS ESCOLHIDAS DE ELLERY QUEEN Tradução de BAPTISTA DE CARVALHO * Título da edição original THE EGYPTIAN CROSS MYSTERY * Copyright e 1932 by Ellery Queen CAPÍTULO 1 UM NATAL EM ARROYO A história que vai contar-se teve início na Virgínia Ocidental no cruzamento de duas estradas, a meia milha de distância da pequena aldeia de Arroyo. Uma delas era a estrada principal entre New Cumberland e Pughtown e a outra uma ramificação que ligava com Arroyo. Ellery Queen notou logo a importância do factor geográfico. Muitas outras coisas notou ele, também, ao primeiro relance e ficou perplexo ante a natureza contraditória dos factos. Nada combinava. Era necessário abstrair-se e pensar. Exige explicação o motivo por que Ellery, um cosmopolita, se encontrava ao lado de um velho e desconjuntado Ford, no extremo da planície lamacenta e fria da Virgínia Ocidental, às duas horas da tarde de um dos últimos dias de Dezembro. Eram tantos os factos que tinham concorrido para esse estranho acontecimento! Um deles o principal era proporcionar um feriado ao Inspector Queen, seu pai. O velhote estava mergulhado no que podia chamar-se uma assembleia de polícias; as coisas em Chicago eram como de costume calamitosas, e o comissário tinha convidado os oficiais superiores da polícia das cidades mais importantes para lamentarem com ele o deplorável desrespeito pela lei que reinava no seu campo de acção. E foi precisamente quando o inspector, numa disposição de espírito rara, se apressava a sair do seu hotel, em Chicago, para o quartel-general da polícia, que Ellery, 5 que o acompanhava, soube do misterioso crime ocorrido perto de Arroyo um crime que a United Press baptizara pitorescamente de «O Crime dos TT». Havia tantos elementos nos relatos dos jornais a impressionarem Ellery por exemplo, o facto de Andrew Van ter sido decapitado e crucificado na manhã do dia de Natal que ele arrancou prontamente o pai às conferências fumarentas de Chicago e meteu-o no Ford uma relíquia em segunda mão, capaz, porém, de atingir uma velocidade inacreditável. O inspector, embora fosse um pai extremoso, depressa perdeu o bom-humor, como é de calcular, e durante todo o caminho de Chicago a Chester, na Virgínia Ocidental passando por Toledo, Sandusbry, Cleveland, Ravenna, e Lisbon, uma série de cidades de Illinois e Ohio manteve um obstinado silêncio apenas cortado pelo monologar de Ellery e pelo roncar do tubo de escape do velho calhambeque. Tinham atravessado Arroyo antes mesmo de se aperceberem de que estavam na aldeia; um lugarejo de umas duzentas almas. E depois... o cruzamento das estradas. A silhueta hirta do poste de sinalização com a sua viga transversal tornou-se visível algum tempo, antes do carro parar. Terminava ali a estrada de Arroyo que formava ângulo recto com a estrada principal New Cumberland-Pughtown. O poste estava por isso voltado para a saída de Arroyo, com um dos braços apontado para Pughtown e o outro para New Cumberland. Anda. Mete-te a ridículo resmungou o inspector. Carregares comigo para aqui só porque foi cometido um crime! Tolo... Eu não o faria! Ellery parou o motor e avançou a pé. A estrada estava deserta. Em volta, erguendo-se para o céu plúmbeo, estendiam-se as montanhas da Virgínia Ocidental. Fazia um frio agreste e o vento levantava as abas do sobretudo de Ellery. E ali em frente estava o poste de sinalização onde Andrew Van, excêntrico professor de Arroyo, havia sido crucificado. O poste tinha sido branco; agora, era de um cinzento sujo, salpicado de lama seca. Media seis pés de altura o topo ficava ao nível da cabeça de Ellery e os braços eram longos e fortes. A distância parecia um T gigantesco. Ellery compreendeu então a razão por que 6 o repórter da U. P. havia chamado ao crime o «Crime dos TT». Primeiro, este poste em forma de T, depois o encontro das estradas formando também um T e finalmente o fantástico T traçado com sangue na porta da casa do morto, por onde Ellery havia passado algumas centenas de metros antes. Ellery suspirou e tirou o chapéu. Não era propriamente um gesto de reverência: estava a transpirar apesar do frio e do vento. Enquanto limpava a testa, ia imaginando que louco teria cometido aquele crime brutal, original e desconcertante. Até o corpo... Recordava-se com exactidão de uma das reportagens acerca da descoberta do cadáver, feita por um famoso jornalista de Chicago bastante prático na descrição de violências: «Tivemos hoje conhecimento do mais horripilante acontecimento ocorrido neste Natal; na manhã de 20 de Dezembro, foi descoberto, crucificado num poste de sinalização de um cruzamento de estradas solitário, perto da aldeia de Arroyo, o corpo decapitado de Andrew Van, de 46 anos de idade, professor primário da aldeia. Pregos de ferro de 4 polegadas tinham sido enterrados nas palmas das mãos da vítima, fixando-as às extremidades dos braços do poste. Dois outros pregos trespassavam os pés do morto, sobrepostos na base desta cruz original. Sob os sovacos havia ainda mais dois pregos, os quais suportavam o peso do cadáver que, com a cabeça arrancada, se parecia muito com um grande T. O poste formava um T. As estradas cruzavam-se em T. Na porta da casa de Van, não muito longe da encruzilhada, o assassino tinha traçado Um T com o sangue da própria vítima. E sobre o poste, a concepção de um cérebro maníaco de um T humano. Porquê no Natal? Porque teria o criminoso arrastado a vítima por espaço de 300 metros desde a sua casa ao poste de sinalização, para aí a crucificar? Qual o significado daquele T? A polícia local está desorientada. Van era uma figura excêntrica, mas sossegada e inofensiva. Não tinha inimigos nem amigos. O seu único amigo íntimo era uma alma simples, de nome Kling, que lhe servia de criado. Kling desapareceu e diz-se que o delegado do Ministério Público do condado de Hemcock suspeita, por 7 motivos não revelados, que o criado haja sido igualmente vítima do louco mais sanguinário que figura nos anais do crime da América moderna... Muitos mais artigos do mesmo teor haviam sido publicados, incluindo detalhes da vida bucólica em Arroyo do infausto professor, as escassas informações recolhidas pela polícia sobre os últimos passos que se conheciam de Van e Kling, e as pomposas declarações do delegado. Ellery limpou o suor da testa e passeou o olhar penetrante sobre a horrível relíquia. Em ambos os braços, junto às extremidades da viga transversal, viam-se os buracos de onde a polícia tinha extraído os pregos. Cada buraco estava rodeado por uma mancha irregular de um castanho ferruginoso. Pequenos fios castanhos emergiam do lugar onde o sangue de Van havia gotejado das suas mãos mutiladas. Na junção dosbraços com o corpo havia mais dois buracos despidos de manchas; os pregos arrancados haviam sustentado os sovacos do cadáver. O poste em toda a sua superfície estava salpicado de sangue seco, partindo os sulcos do topo, onde tinha estado assente a ferida, gotejante da base do pescoço da vítima. Na parte inferior da trave vertical, encontravam-se dois buracos a menos de quatro polegadas um do outro, também cercados de sangue coagulado e destes buracos onde tinham sido cravados os pregos que tinham fixado à madeira os pés de Van, tinha pingado sangue sobre a terra onde o poste estava enterrado. Ellery voltou calmamente para o carro onde o inspector esperava numa atitude familiar de abatimento e irritação. O velho tinha atado ao pescoço um lenço de lã e o seu nariz vermelho e aguçado sobressaía como um sinal de perigo. bom irrompeu Anda daí! Estou gelado! Nem um pouquinho de curiosidade? perguntou Ellery tomando lugar ao volante. Não? O senhor está hoje outra pessoa comentou Ellery, pondo o motor a trabalhar. Depois sorriu e o carro deu um salto para a frente como um galgo, virou sobre duas rodas, descreveu um círculo e disparou na direcção contrária àquela de onde viera. 8 O inspector agarrava-se à beira ao assento, preso de um terror mortal. Singular ideia! gritou Ellery, procurando suplantar com a voz o ruído do motor. Crucificar um homem no dia de Natal! Hum resmungou o inspector. Parece-me gritou Ellery que vou gostar deste caso. Guia, maldito! vociferou o velho, subitamente. Ellery endireitou a direcção. Não vais gostar de coisa nenhuma! acrescentou de sobrancelha franzida. Voltas para Nova Iorque comigo! Chegavam a Arroyo. Bem sabemos disse o inspector, enquanto Ellery parava o carro com uma sacudidela em frente de um edifício baixo que é vergonhoso o modo como se fazem as coisas aqui. Deixar aquele poste no local do crime! Abanou a cabeça. Onde vais agora? inquiriu, inclinando para o lado a sua cabecinha de pássaro, acinzentada. Julguei que não lhe interessasse disse Ellery saltando para o passeio. Pst Pst! Ó tu! gritou para um camponês vestido de azul que varria o passeio com um vasculho esfarrapado. É aqui o tribunal de Arroyo? O homem abriu a boca estupidamente. Pergunta supérflua! Há uma inscrição para toda a gente ver... Anda daí, pateta! exclamou o inspector. Arroyo era um lugarejo de ar sonolento, um punhado de edifícios apinhados como um cacho. A casa baixa em frente da qual parara o Ford, parecia uma arca do velho Oeste. Ao lado havia um armazém de géneros de toda a espécie, tendo na frente uma bomba de gasolina já gasta e anexa uma pequena garagem. Na velha parede do edifício via-se uma pomposa inscrição manuscrita em péssimo cursivo, dizendo: CÂMARA MUNICIPAL DE ARROYO Encontraram o indivíduo que procuravam, sentado a dormir atrás de uma secretária instalada num gabinete em cuja porta se lia: «Agente da Polícia». Tratava-se de 9 um provinciano gordo, vermelho, de dentes amarelos e salientes: O inspector resfolgava e o homem abriu as pesadas pálpebras, coçou na cabeça e resmungou numa voz arrastada de baixo: Se procuram Matt Hollis, saiu. Sorrindo, Ellery respondeu: Procuramos o agente Luden, de Arroyo. Ah! Sou eu. Que querem? Senhor agente disse Ellery cortesmente deixe-me apresentar-lhe o Inspector Richard Queen, chefe da Repartição de Homicídios do Departamento de Polícia de Nova Iorque, em carne e osso. O homem gordo deu um pulo na cadeira e despertou completamente: Quem? De Nova Iorque?! Tão certo como estarmos aqui confirmou Ellery, pisando o pai intencionalmente. Faz favor de se sentar, disse Luden avançando uma cadeira na qual o inspector se sentou fungando. O assunto de Van, não? Não sabia que isso vos interessava, lá em Nova Iorque. Queiram dizer. Ellery puxou da cigarreira e apresentou-a ao agente que se serviu, resmungando um agradecimento. Conte-nos tudo o que souber acerca do assunto, Luden. Não há nada que dizer. Muita gente de Chicago tem voltado desiludida. Vou estando farto disto, também. Não posso levar-lhe a mal comentou o inspector, suspirando. Ellery tirou a carteira do bolso, abriu-a, e examinou atentamente as notas do banco nela contidas. Os olhos do agente esbugalharam-se. Claro que acrescentou não estou tão cansado da história que não possa contá-la uma vez mais. Quem encontrou o corpo? O velho Pete. Não o reconheceu. Vive há alguns anos numa cabana, nas montanhas. Sim, bem sei. Não havia também um lavrador envolvido no caso? É o Mike Orkins. Possui umas jeiras de terra no caminho de Pughtown. Parece que o Orkins conduzia o seu carro para Arroyo na sexta-feira de manhã cedo. O velho Pete vinha também para Arroyo desce muitas 10 vezes lá das montanhas e o Mike deu-lhe uma boleia. Foram andando até à encruzilhada e ao voltar o carro depararam com o corpo de Van hirto e pendurado no poste como um cação. Nós vimos o poste interrompeu Ellery. Creio que mais de uma centena de pessoas da cidade tem passado por aqui só para o verem elucidou Luden, pressuroso. Tive que resolver o problema do trânsito. O que é certo é que Orkins e o velho Pete apanharam um grande susto. Quase desmaiaram... Não tocaram no corpo, é claro? interrogou Ellery. Não eram eles quem se atrevia! Rodaram para Arroyo como se o próprio diabo os perseguisse, e logo que chegaram fizeram-me saltar da cama. A que horas foi isso? O agente corou. Oito, mas eu tinha passado parte da noite em casa de Matt Hollis e dormi mais do que a conta... Suponho que o senhor e o Sr. Hollis foram imediatamente à encruzilhada? Pois claro, Matt o presidente da Câmara e eu, chamámos quatro dos rapazes e fomos por aí abaixo. O pobre Van estava feito em salada. Nunca vi nada assim em toda a minha vida comentou Luden, abanando a cabeça. E logo no dia de Natal! Isto é uma blasfémia. Também Van era ateu. O quê? disse o inspector, de repente. O seu nariz vermelho emergia como um dardo das pregas do capuz. Um ateu? O que quer o senhor dizer? Bem, talvez não fosse precisamente um ateu murmurou o agente pouco seguro. Eu também não vou muito à igreja, mas Van nunca lá punha os pés. Passou... Bem, talvez seja melhor não falar mais nisto. É extraordinário observou Ellery voltando-se para o pai. Isto tem todo o ar de ser obra de um maníaco religioso. É o que todos dizem interveio Luden. Eu... não sei. Não passo de um polícia da província. Há três anos que não prendo senão um ou outro vagabundo. Mas sempre lhes digo, meus senhores , acres- 11 centou misteriosamente aqui anda mais alguma coisa do que religião. Não suspeita de ninguém da terra, suponho? disse Ellery franzindo as sobrancelhas. Não faço a menor ideia de quem seja o patife. Mas... é alguém ligado ao passado de Van. Têm vindo recentemente estranhos a Arroyo? Nem um... Identificámos a vítima pela altura, aspecto geral, vestuário e papéis e retirámo-la, mas ao regressar à aldeia parámos em casa de Van... E depois? inquiriu Ellery vivamente. Que encontraram? O Inferno a descoberto redarguiu o agente. Vestígios de uma luta terrível: as cadeiras todas de pernas para o ar, sangue por toda a parte, aquele grande T pintado a sangue na porta e o pobre do Kling desaparecido. Ah! fez o inspector. O criado. Desaparecido, hum? Levou os trapos, não? Isso é >que não sei ao certo respondeu Luden coçando a cabeça. O juiz de instrução quase que me tirou o caso das mãos. Sei que procuram o Kling... e creio fechou um olho devagar que mais alguém. Mas não posso dizer nada sobre isso acrescentou com precipitação. Já encontraram alguma pista de Kling? Não, que eu saiba. O corpo foi levado para a sede do distrito, Weirton isto é, para dez ou doze milhas daqui e ficou a cargo do médico legista, que selou a casa do Van. A polícia estadual estátratando do caso e o delegado também. Enquanto Ellery meditava, o inspector remexia-se na cadeira e Luden olhava como que fascinado para os óculos do jovem detective, que murmurou, por fim: A cabeça foi cortada com um machado, não? Parece que sim. Encontrámos o machado que pertencia ao Kling. Não tinha impressões digitais. E a cabeça? O agente encolheu os ombros. Não há vestígios dela. Calculo que o louco do assassino a tenha levado como recordação. Ellery pôs o chapéu. Vamos embora, pai. Obrigado, Luden. Ao dizer 12 isto, estendeu a mão que o agente apertou sem entusiasmo. Porém, ao sentir que um papel se lhe colava à mão, ficou tão satisfeito que adiou a sesta e acompanhou os visitantes à estrada. CAPÍTULO 2 ANO NOVO EM WEIRTON Não havia uma razão plausível para o interesse persistente de Ellery Queen pelo caso do mestre-escola crucificado. O seu lugar era em Nova Iorque. O inspector recebera ordens para interromper as férias e regressar ao serviço e, a observar-se a regra geral, Ellery deveria acompanhá-lo. Contudo, uma excitação reprimida que enchia as ruas da capital do distrito da Virgínia Ocidental, prendeu-o ali. O inspector desistiu de o convencer e voltou desgostoso para Nova Iorque. Mas afinal o que pensas fazer? perguntou o velhote, enquanto Ellery o instalava numa carruagem do Pullman>. Vamos, diz lá. Calculo que já resolveste. Oiça, inspector, tome cuidado com a pressão arterial, aconselhou Ellery, apaziguador. Eu limito-me a interessar-me pelo caso. Nunca vi nada tão sugestivo. Esperarei pelo inquérito para ouvir apresentar aquelas provas a que Luden se referiu. -Voltarás desiludido para Nova Iorque, profetizou o inspector. ’ Não perderei tudo asseverou Ellery. Como estou pobre de ideias para literatura de ficção, vou aproveitando este drama. E ficaram por aqui. O comboio partiu, deixando Ellery na estação em liberdade absoluta mas lutando com uma vaga sensação de remorso. O seu plano estava traçado: voltaria para Weirton nesse mesmo dia e certamente que de terça-feira a sábado, o dia seguinte ao Ano Novo teria oportunidade de extrair do delegado as informações que desejava. Crumit, o delegado, era um velho severo, de ambições desmedidas, que tinha um conceito exagerado da própria importância. Ellery atingiu a porta do seu gabinete e nem pedidos nem argumentos conseguiram levá-lo mais longe. 13 «O delegado está ocupado. O delegado não pode receber. O delegado está com o juiz. O delegado deu ordem para que ninguém entrasse. O filho do Inspector Queen de Nova Iorque? Lamento muito...» Ellery mordeu os lábios, vagueou pelas ruas e escutou com ouvidos atentos as conversas dos cidadãos de Weirton. A cidade, no meio das suas vistosas e brilhantes árvores de Natal, estava mergulhada numa vaga de indescritível terror. Era notória a escassez de mulheres nas ruas, e não se viam crianças. Os homens tinham encontros rápidos e discutiam os processos e os fins. Falava-se em linchamento propósito que falhava porque não havia a quem linchar. A polícia de Weirton rondava pelas ruas pouco segura de si. O delegado inspeccionava as medidas de segurança sem contudo se atrever a sair do automóvel. No meio da confusão que reinava, Ellery conservava-se sereno. Na quarta-feira fez uma tentativa para falar a Stapleton, o juiz de instrução, um jovem gordo mas sagaz. Ellery não soube por ele nada de novo. E assim, reservou os três dias que lhe restavam para obter esclarecimentos acerca de Andrew Van, a vítima. Poucos o tinham visto em vida: era um misantropo de hábitos solitários e raramente visitava Weirton. Dizia-se que a gente de Arroyo o considerava um professor exemplar, bondoso, embora enérgico, para com os alunos. No que respeitava a religião, limitava-se a não praticar o culto; isto, ao que parece, tinha cimentado a sua posição, numa comunidade sóbria e temendo a Deus. Na quinta-feira, o editor do principal periódico de Weirton tornou-se literato. No dia seguinte começava o Novo Ano, uma excelente oportunidade para o povo começar vida nova. Os seis sacerdotes que velavam pelas necessidades espirituais de Weirton tinham os seus sermões transcritos na primeira página. Andrew Van, diziam, tinha sido um homem sem Deus. E aquele que vive sem Deus morrerá sem Deus... O editor não ficou por aqui. Havia um editorial repleto de referências ao Landru, ao louco de Dusseldorf, a Jack, o Estripador, e a muitos outros monstros reais ou fictícios um saboroso manjar servido ao bom povo de Weirton à guisa de sobremesa para o seu jantar de Ano Novo. 14 O tribunal do distrito onde no sábado o juiz de instrução devia presidir ao interrogatório, estava repleto de curiosos muito antes da hora marcada para o início da sessão, Ellery, prudentemente, tinha sido dos primeiros a chegar e instalara-se na primeira fila, por detrás da balaustrada. Quando pouco antes das nove horas apareceu o juiz Stapleton, Ellery procurou-o e mostrou-lhe um telegrama assinado pelo comissário da polícia de Nova Iorque, documento em face do qual lhe foram franqueadas as portas da casa mortuária, onde jazia o corpo de Andrew Van. O cadáver está num feixe suspirou o juiz. Não foi possível abrir o inquérito na semana do Natal e já lá vão oito dias... Tem estado no depósito do nosso cangalheiro. Ellery respirou fundo e levantou o lençol que cobria o cadáver, mas tornou a cobri-lo imediatamente, tal o horror que lhe causou. O corpo era o de um homem alto e no sítio onde estivera a cabeça não havia nada... apenas um buraco. Na mesa ao lado estava o vestuário de um homem; um casaco cinzento-escuro, sapatos pretos, uma camisa, peúgas, roupa interior tudo endurecido pelo sangue seco. Os objectos que haviam sido retirados dos bolsos um lápis, caneta, carteira, um molho de chaves, um maço de cigarros amachucado, algumas moedas, um relógio barato, uma carta velha pareciam, pelo menos na opinião de Ellery, inteiramente destituídos de interesse. Não havia neles nada de importante para o inquérito, a não ser o facto de alguns dos objectos terem as iniciais A. V. e a carta de um livreiro de Pittsburgh ser dirigida ao Sr. Andrew Van. Stapleton voltou-se para apresentar um velhote afectado que acabava de entrar e fitava Ellery com desconfiança. O Sr. Queen, o delegado Crumit. Quem? perguntou Crumit desabridamente. Ellery sorriu, fez uma vénia e voltou à sala de audiências. Cinco minutos depois, o juiz Stapleton agitou a campainha e fez-se silêncio na sala apinhada. As fórmulas preliminares do costume foram rapidamente pronun- 15 ciadas e em seguida o juiz convidou Michael Orkins a ocupar o banco das testemunhas. Orkins avançou pela coxia seguido de murmúrios e olhares da assistência. Era um velho camponês, risonho, curvado, queimado pelo sol. Sentou-se com gestos nervosos e cruzou as mãos calosas. Sr. Orkins começou o juiz diga-nos como encontrou o cadáver. O camponês humedeceu os lábios. Sim, senhor. Eu vinha para Arroyo no meu Ford, na sexta-feira passada, de manhã. Antes de chegar ao cruzamento encontrei o velho Pete que vive nas montanhas, caminhando a pé. Dei-lhe uma boleia. Seguimos para a frente e na curva da estrada... lá estava o corpo, pregado no poste de sinalização. A voz da testemunha enfraqueceu. Ao vê-lo, desatámos a fugir para a aldeia. Um frouxo de riso foi o comentário da assistência. O juiz impôs silêncio. Tocou no corpo? Não, senhor. Nem sequer saímos do carro. Está bem, Sr. Orkins. O camponês suspirou, aliviado, e arrastou-se pela coxia limpando a testa com um grande lenço vermelho. Velho Pete! chamou o juiz. Do fundo da sala surgiu uma curiosa figura, Era um velho de corpo erecto, com uma barba grisalha e sobrancelhas espessas. Vestia como um maltrapilho um estranho aglomerado de roupas velhas, sujas e remendadas cobria-lhe o corpo. Avançou em passo vacilante, hesitou, e depois sacudiua cabeça e sentou-se no banco das testemunhas. O juiz parecia irritado. O seu nome completo? Hem? O velho abriu os olhos de espanto. Sim, o seu nome? Pete quê? O velho abanou de novo a cabeça. Não tenho outro nome. Sou apenas o velho Pete. Estou morto. Morri há vinte anos. Stapleton olhou em volta, desnorteado. O homenzinho de meia idade, baixo, de olhar esperto, que estava sentado junto ao estrado do juiz, levantou-se: Está certo, senhor juiz. ( Então porquê, Sr. Hollis? 16 Porque respondeu o interpelado o velho Pete é surdo. Está assim há anos desde que foi para as montanhas e desde então considera-se morto. Tem uma cabana lá para cima, perto de Arroyo, e vai à aldeia de dois em dois meses. Põe umas armadilhas para caça, lá no mato, suponho. Mas é um belo carácter, senhor juiz. O juiz limpou a cara gorda e o presidente do Município de Arroyo voltou a sentar-se no meio de um murmúrio de aprovação. O velho Pete deu mostras de alegria e estendeu a mão suja a Matt Hollis... O interrogatório prosseguiu. As respostas do homem eram vagas, mas apurou-se o bastante para confirmar o depoimento de Michael Orkins. Por fim, foi despedido e retirou-se para o seu canto piscando os olhos. O presidente Hollis e o agente Luden contaram em seguida como tinham sido acordados por Orkins e pelo velho Pete, como tinham ido à encruzilhada, identificado o cadáver, retirado os pregos, levado o corpo, parado na casa de Van, e notado os sinais de carnificina e o T traçado a sangue, na porta... A seguir foi chamado um velho alemão gordo e corado. Luther Bernheim! O homem sorriu, mostrou os dentes de ouro, levou a mão à barriga e sentou-se. É o dono dos armazéns gerais de Arroyo, não é verdade? >Sim, senhor. Conheceu Andrew Van? Decerto. Costumava abastecer-se nos meus armazéns. Há quanto tempo o conhecia? Havia muitos anos. Era um bom freguês. Pagava sempre a dinheiro. Era ele próprio quem comprava os géneros de mercearia? Às vezes. Em geral era o Kling. Mas era sempre o professor que vinha pagar as contas. Era amável? Bernheim hesitou. Bem... sim e não. Quer dizer que não tinha atenções particulares, que era apenas correcto no trato? 2 - Ellery Queen 1 17 Isso mesmo. Acha que Van era um indivíduo excêntrico? Absolutamente. Sobretudo porque encomendava sempre caviar. Caviar? Sim, senhor. Era até o meu único freguês desse artigo. Costumava mandá-lo vir de propósito para ele. Consumia de todas as qualidades: beluga, vermelho, mas com mais frequência o negro, a melhor qualidade. Sr. Bernheim, presidente Hollis e agente Luden; queiram passar à sala contígua para se proceder à identificação formal do corpo. O juiz abandonou o estrado, seguido pelos três cidadãos de Arroyo e a assistência deu largas aos seus comentários, até que eles voltaram com o horror estampado nos olhos. Ellery Queen cogitava. O mestre-escola de uma aldeia de duzentas almas, encomendando caviar! Talvez o agente Luden fosse mais perspicaz do que parecia; era evidente que o passado de Van fora mais brilhante do que indicava a sua profissão e o meio em que vivia. Crumit, o delegado, tomou por sua vez lugar no banco das testemunhas. A assistência comprimiu a respiração. O que até então se tinha passado nada era. As revelações iam começar agora. Senhor Delegado inquiriu o juiz, inclinando-se para diante, num esforço de atenção investigou o passado do morto? Sim. Ellery redobrou de curiosidade; detestava cordialmente o delegado, mas lia promessas nos olhos frios de Crumit. Tenha a bondade de relatar ao Tribunal o que descobriu. O delegado de Hemcock apertou com a mão o braço da cadeira. Andrew Van apareceu em Arroyo há nove anos. As informações que deu e a preparação que demonstrou satisfizeram, pelo que foi contratado pelo Município. Acompanhava-o um tal Kling, seu criado. Alugou a casa da estrada na qual viveu até à morte. Cumpria a contento os seus deveres de professor e durante a sua permanência em Arroyo a sua conduta foi impecável. 18 Crumit interrompeu o relato para causar maior sensação. Os meus investigadores seguiram a pista da vítima e descobriram que antes de vir para Arroyo tinha sido professor numa escola pública de Pittsburgh. E antes disso? Não se encontrou rasto dele. Era cidadão naturalizado dos Estados Unidos, tendo obtido a naturalização em Pittsburgh há treze anos. Os seus papéis, arquivados nesta última cidade, indicam a sua nacionalidade, antes da naturalização como arménio, nascido em 1885. Arménio! pensou Ellery acariciando o queixo. Perto da Galileia... Estranhos pensamentos, que repeliu imediatamente, atravessaram-lhe o cérebro. Também fez investigações sobre Kling, senhor Delegado? Sim. Era enjeitado e foi recolhido e educado no Orfanato de S. Vicente, em Pittsburgh. Ao atingir a maioridade foi empregado no orfanato como criado para todo o serviço e ali viveu até que Andrew Van, ao demitir-se do seu lugar de Pittsburgh e ao colocar-se em Arroyo, visitou o orfanato e mostrou desejos de dar emprego a um homem. Kling era bem comportado, ao que parece, e Van, após haver-se informado escrupulosamente a tal respeito, deu-se por satisfeito e contratou-o, indo ambos viver para Arroyo, onde ficaram até ao dia do crime. Ellery pôs-se a imaginar que motivos poderiam levar um homem a abandonar uma cidade como Pittsburgh para se ir fixar numa aldeia como Arroyo. Um passado criminoso que desejava esconder da polícia? Pouco provável; o esconderijo é mais fácil nas grandes cidades do que nas aldeias. Não, era alguma coisa mais importante e mais obscura que talvez tivesse ficado sepultada para sempre no cérebro do morto. Há homens que buscam a solidão, depois de uma vida tumultuosa; podia muito bem ser este o caso de Andrew Van, mestre-escola de Arroyo e apreciador de caviar. Que espécie de homem era Kling? perguntou Stapleton. O delegado pareceu aborrecido. O Orfanato aponta-o como sendo um espírito simples, um tipo inofensivo. Tinha mostrado alguma vez tendências homicidas? Não. Era considerado em S. Vicente como um 19 indivíduo de temperamento brando e dócil, bastante estúpido. Era bondoso para com as crianças do Orfanato e humilde e respeitador para com os superiores. O delegado teve um gesto teatral e pareceu disposto a desvendar as famosas revelações, mas o juiz despediu-o apressadamente e tornou a chamar o merceeiro de Arroyo. Conhecia o Kling, Sr. Bernheim? Sim, senhor. Que espécie de homem era ele? Sossegado. Boa pessoa. Mudo como uma pedra. Alguém riu e Stapleton ficou contrariado. Inclinou-se para a frente. É verdade, Sr. Bernheim, que esse Kling era famoso em Arroyo pela sua força física? Ellery riu-se intimamente. O juiz era um ingénuo. Bernheim sorriu. Decerto. Kling era tão forte que levantava uma barrica de açúcar! Mas não fazia mal a uma mosca, senhor juiz. Lembro-me até que uma vez... Basta cortou Stapleton, irritado. Presidente Hollis, queira voltar a depor. Matt Hollis avançou. «Um tipo untuoso», pensou Ellery. É o senhor o presidente do Município, Sr. Hollis? Sou sim, senhor. Diga ao júri o que sabe acerca de Andrew Van. Era cumpridor das suas obrigações. Não tinha questões com ninguém. Era estudioso; fora das aulas, conservava-se só, na bela casa que eu lhe arrendei. Alguns achavam-no intratável e mesmo estúpido, mas eu não. O presidente tomara um ar sentencioso. Era o que se chama um homem pacato. Não convivia, mas isso era lá com ele. Se não queria ir à pesca comigo e com o agente Luden, também não tenho nada com isso. Hollis sorriu e abanou a cabeça. E falava um inglês tão correcto como o meu ou o seu, senhor juiz. Sabe se ele recebia visitas? Não me parece. Mas, é claro que não posso garantir. Era no entanto um tipo extraordinário continuou, 20 com um ar pensativo.Quando eu ia a Pittsburgh pedia-me para lhe comprar livros, livros curiosos, de pomposa encadernação e versando os mais diversos assuntos tal como Filosofia, História, sobre as estrelas e outros do mesmo género. Bem, bem, muito interessante, Sr. Hollis. Ouça: o senhor é o banqueiro de Arroyo, não é? Sou sim, senhor. Matt Hollis corou e olhou modestamente para os pés. Ellery compreendeu pela expressão do homem que ele era quase tudo em Arroyo. Andrew Van tinha conta no seu banco? Nunca teve. Costumava receber o ordenado regularmente, em dinheiro, mas não me parece que o depositasse em qualquer parte, porque lho perguntei várias vezes bem vê, negócios são negócios , e ele respondeu-me sempre que o guardava em casa. Hollis encolheu os ombros. Dizia que não confiava nos bancos. Enfim, cada um tem o seu gosto. Não vou discutir... Sabia-se disso em Arroyo? Hollis hesitou. Bem, talvez eu contasse o caso a algumas pessoas. Penso que quase todos em Arroyo sabiam desta originalidade do professor. Hollis retirou-se e o agente Luden tomou o seu lugar, com um ar de quem tem ideias próprias acerca da forma como as coisas devem ser conduzidas. É certo que passou uma busca à casa de Andrew Van na manhã de sexta-feira, 25 de Dezembro? Exacto. , Encontrou algum dinheiro? Nenhum. ; Um murmúrio ecoou pela sala: Roubo! Ellery franziu a testa. Nada indicava tal. Primeiro, um crime com todo o aspecto de mania religiosa e depois um roubo de dinheiro. Decididamente, as duas coisas não ligavam. Inclinou-se para a frente. Nesse momento um homem transportava qualquer coisa para o estrado. Era uma caixa de folha, barata, pintada de verde e amolgada. O cadeado estava torcido e a pequena fechadura pendia, rebentada. 21 O juiz tomou-a das mãos do meirinho, abriu-a e virou-a de fundo para o ar. Estava vazia. Agente Luden, conhece esta caixa? Ia jurar que é a mesma que encontrei em casa de Van. É a caixa do dinheiro. O juiz apresentou a caixa ao júri de provincianos que estendia o nariz para ela. O júri fará o favor de examinar esta prova... Muito bem, agente. Passa a depor o chefe dos correios de Arroyo. Um velhinho encarquilhado tomou assento no banco das testemunhas. Andrew Van recebia muita correspondência? Nenhuma asseverou o funcionário. Apenas folhetos e raros. Sabe se a vítima recebeu alguma carta ou encomenda na semana anterior à sua morte? Não recebeu. Costumava expedir correspondência? Não. Uma ou duas cartas, apenas, de tempos a tempos. Nenhuma, porém, nos últimos três ou quatro meses. Foi chamado a depor o médico legista, Dr. Strang, um homem espigado, de aspecto triste. Ao ouvir o seu nome, a assistência começou a murmurar, freneticamente, enquanto ele avançava, vagaroso, pela coxia, como se tivesse muito tempo para chegar. Dr. Strang, quando examinou pela primeira vez o cadáver? Duas horas após a sua descoberta. Pode determinar a hora aproximada da morte? Sim, posso. O homem morreu seis a oito horas antes de ter sido encontrado na encruzilhada. Isso fixa a hora do crime como sendo cerca das seis horas da noite de Natal, não é assim? Precisamente. Pode fornecer ao júri mais detalhes acerca das condições em que se encontrava o cadáver e que sejam susceptíveis de interessar ao inquérito? Ellery sorriu. O Juiz Stapleton tinha-se preparado para o efeito: a sua linguagem era terrivelmente formal e os espectadores a julgar pelas suas bocas abertas estavam impressionadíssimos. 22 O Dr. Strang cruzou as pernas e retorquiu, aborrecido: Não havia sinais no corpo além da ferida no pescoço, onde a cabeça estivera ligada, e os buracos nos pés e nas mãos. O juiz soergueu-se e espichou a barriga sobre o bordo da mesa. Dr. Strang inquiriu com voz rouca que conclusão tira desse facto? Que o morto foi provavelmente agredido na cabeça a tiro ou de qualquer outra forma, visto não haver no seu corpo quaisquer outros sinais de violência. Ellery teve um gesto de assentimento. Este médico rural de aspecto triste tinha a cabeça no seu lugar. É minha opinião prosseguiu o médico que a vítima estava já morta quando lhe cortaram a cabeça. Pela natureza da ferida praticada no pescoço, depreende-se que deve ter sido empregado um instrumento muito cortante. O juiz pegou cuidadosamente num objecto colocado sobre a mesa, em frente dele, e levantou-o. Era um machado de longo cabo e aspecto contundente, cuja lâmina brilhava nos sítios onde não havia sangue. Parece-lhe, doutor, que este instrumento possa ter amputado a cabeça à vítima? Sim. O juiz voltou-se para o júri. Este objecto foi encontrado no chão da cozinha da casa de Andrew Van. Quero chamar a vossa atenção para o facto de não haver impressões digitais na arma, o que denota ter o criminoso usado luvas ou haver limpado o cabo ao machado, depois de o usar. Este instrumento foi reconhecido como tendo sido propriedade do morto e era habitualmente guardado na cozinha, utilizando-o Kling, em tempo normal, para rachar lenha... Obrigado, Dr. Strang. E em seguida, dirigindo-se ao coronel Pickett, um homem alto, de aspecto militar coronel, faça favor. O chefe da polícia do Estado da Virgínia Ocidental teve um pequeno gesto de aquiescência e sentou-se. Coronel Pickett, o que tem a declarar? Uma busca minuciosa aos arredores de Arroyo disse o coronel numa voz seca de metralhadora 23 falhou no objectivo de encontrar a cabeça do assassinado. Não se encontrou rasto do criado Kling, mas foi enviada uma descrição minuciosa do mesmo às autoridades de todos os Estados vizinhos que estão portanto alerta para o apanhar. Creio que o senhor foi encarregado das investigações relativas aos últimos movimentos, tanto do morto, como do criado desaparecido, coronel. O que descobriu? Andrew Van foi encontrado pela última vez às quatro horas da tarde de quinta-feira, 24 de Dezembro. Visitou a casa da Sr.ª Traub, residente em Arroyo, para a prevenir de que o seu filho, William, aluno da sua escola, estava a atrasar-se nos estudos. Depois, foi-se embora e pelo que averiguámos ninguém mais o tornou a ver com vida. E Kling? Esse foi visto pela última vez por Timothy Traynor um camponês que vive entre Arroyo e Pughtown na mesma tarde, pouco depois das 4 horas. Comprou um saco de batatas, pagou a dinheiro e carregou-o aos ombros. O saco de batatas foi encontrado em casa de Van? Isto é importante, coronel, para se determinar se Kling chegou ou não a casa. Sim. Intactas. Foram identificadas por Traynor como sendo as batatas que havia vendido. Tem mais alguma coisa a declarar? O coronel Pickett olhou em torno de si, antes de responder. A sua boca parecia uma ratoeira quando disse em tom inflexível: Decerto que tenho! A sala tornou-se silenciosa como um túmulo. Ellery sorriu; as revelações chegavam, por fim. O coronel inclinou-se para segredar qualquer coisa ao ouvido do juiz. Stapleton pestanejou, sorriu, limpou as faces e sacudiu a cabeça. Os espectadores pressentiram um acontecimento e remexeram-se nos seus lugares. Pickett acenou a alguém que se encontrava ao fundo da sala. A este sinal avançou um polícia de elevada estatura, segurando pelo braço um indivíduo extraordinário: um velhote de longos cabelos castanhos desgrenhados e barba hirsuta. Tinha uns olhinhos brilhantes, os olhos de um fanático. A pele era cor de bronze sujo, tostada e 24 ressequida pelo sol e pelo vento, como se sempre tivesse vivido ao ar livre. Ellery notou que o homem vestia um calção de caqui coberto de lama e uma velha camisola cinzenta de gola alta. Os pés escuros riscados de veias azuladas estavam metidos num curioso par de sandálias e na mão segurava um objecto estranho um bastão encimado pela representação grosseira de uma cobra, evidentemente talhada à mãopor um artista medíocre. A assistência agitou-se, estalaram gargalhadas e o juiz a custo conseguiu restabelecer a ordem. Atrás do polícia e do seu estranho prisioneiro seguia um jovem pálido, envergando um fato-macaco sujo de óleo, cuja popularidade entre a assistência era de certo muito grande, visto que à sua passagem muitas mãos se estenderam furtivamente para ele, ao mesmo tempo que lhe segredavam palavras de encorajamento. Os três homens passaram para a teia e sentaram-se. O velho das barbas castanhas estava positivamente possuído de um terror mortal; os olhos bailavam-lhe nas órbitas e as magras mãos apertavam e largavam convulsivamente o original bastão. Gaspar Croker, venha depor. O jovem pálido engoliu em seco, levantou-se e dirigiu-se para o banco das testemunhas. O senhor é proprietário de uma garagem situada na Main Street, em Weirton? Claro que sou. V. Ex.ª conhece-me, senhor... Responda às minhas perguntas interveio o juiz com autoridade. Conte ao Tribunal o que sucedeu, às onze horas da noite de Natal. Croker suspirou, olhou em volta como que buscando auxílio e começou: Fechei a minha garagem na noite de Natal queria festejar a data. Moro numa casa mesmo por detrás e quando às 11 horas me encontrava em casa com minha mulher, ouvi uma série de pancadas que pareciam provir da minha garagem, pelo que corri para lá. Estava escuro como breu. Tornou a engolir em seco e resumiu: Era um homem que batia de facto à porta da garagem. Quando me viu... Um momento, Sr. Croker. Como estava ele vestido? 25 O garagista encolheu os ombros. Estava escuro e não pude ver, nem me ocorreu reparar nisso. Observou bem a cara do homem? Sim, senhor. Estava por baixo da lanterna e tinha a gola levantada o frio era muito mas pareceu-me que não queria ser reconhecido. De qualquer forma, era um tipo bem barbeado, moreno e com aspecto de estrangeiro, embora se expressasse em bom americano. Que idade calcula que ele tivesse? Cerca de 35 anos, pouco mais ou menos. É difícil calcular. O que queria ele? Alugar um carro que o levasse a Arroyo. Ellery podia ouvir a respiração asmática de um homem forte que se sentava atrás dele, tal era o silêncio que reinava na sala. O auditório estava suspenso, sentado na borda das cadeiras. O que aconteceu então? interrogou o juiz. bom replicou Croker, mais seguro. Não me agradou muito a ideia. Eram 11 horas da noite de Natal, a minha mulher estava só, etc. Mas ele puxou da carteira e disse: «Dou-lhe 10 dólares para me levar lá». Isto é uma data de dinheiro para um pobre como eu, e respondi: Okay, senhor desconhecido, está combinado. Levou-o lá? Sim, senhor. Voltei atrás a buscar o casaco, avisei a mulher de que saía por meia hora, peguei no meu velho carro e lá fomos. Perguntei-lhe a que parte de Arroyo queria ir e ele disse: «Não há um sítio onde a estrada de Arroyo se encontra com a de Pughtown-New Cumberland?» Respondi-lhe que sim e disse-me: «É aí mesmo que eu quero ir». Levei-o lá, saiu, deu-me a nota, virei o carro e regressei a casa imediatamente. Sentia-me como que assustado. Viu o que o homem fazia, depois de o deixar? Sim. Croker fez um gesto enfático de assentimento. Observava-o por cima do ombro. Esteve prestes a cair numa vala e depois tomou o caminho de Arroyo, coxeando bastante. O excêntrico homenzinho sentado ao lado do polícia começou a arfar, procurando em volta uma porta por onde se escapulisse. 26 Coxeava? De qual das pernas? Parecia poupar a perna esquerda. Apoiava todo o peso do corpo na direita. Foi a última vez que o viu? ’ Sim, senhor. E a primeira, também. Nunca o tinha visto antes. Basta. Croker levantou-se do banco, aliviado, e apressou-se a seguir em direcção à porta. Agora nós exclamou o juiz, trespassando com o olhar o velho das barbas que se encolhia no banco. Venha depor. O polícia ergueu-se e fez levantar o homem, impelindo-o para a frente. O estranho personagem não resistiu, mas lia-se pânico nos seus olhos de doido e o corpo continuava a tremer-lhe. O polícia plantou-o sem cerimónia no banco das testemunhas e tornou para o seu lugar. Como se chama? começou Stapleton. Um frouxo de riso sacudiu a assistência no momento em que todo o ridículo do aspecto e vestuário do velho ficaram em evidência no estrado das testemunhas. Passou-se bastante tempo antes que a ordem fosse restabelecida, e entretanto a testemunha molhava os lábios e balouçava-se para um e outro lado, resmungando consigo próprio. Ellery foi assaltado pelo pressentimento de que o homem rezava o que” era desconcertante, à cobra de madeira que encimava a sua vara. Stapleton repetiu a pergunta com nervosismo. O velho ergueu o bastão a toda a altura do braço, endireitou os magros ombros, parecendo apelar para uma reserva de força e de dignidade, olhou de frente para o juiz e respondeu numa voz clara e aflautada: Sou aquele a quem chamam Harakht, o Deus do Meio Dia, Ra-Harakht, o falcão! Fez-se um silêncio de espanto. O juiz piscou os olhos e recuou como se alguém tivesse na sua frente pronunciado ameaças ininteligíveis. A assistência ficou a princípio boquiaberta e de repente rompeu em riso histérico, produzido, desta vez, não pelo irrisório da situação, mas por um medo sem nome. Havia algo de terrível e fantástico neste homem; emanava dele um 27 fervor demasiado anormal para que pudesse ser entendido. Quem? perguntou o juiz em voz fraca. O homem que a si próprio chamava Harakht cruzou os braços sobre o peito descarnado, com o bastão firmemente apoiado na sua frente e não se dignou responder. Stapleton limpou a testa e pareceu embaraçado para continuar. Em que se emprega, Sr. Ra-Harakht? Ellery encolheu-se no seu lugar e corou pelo juiz. A cena tornava-se penosa. Harakht moveu os lábios ao de leve: Eu sou o curador dos fracos, torno os corpos doentes sãos e fortes. Sou aquele que conduz Manzet, a Barca da Aurora. Aquele que guia Mesenktet, a Barca do Poente. Alguns chamam-me Hórus, Deus dos Horizontes; sou o Filho de Nut, Deusa do Firmamento, Esposa de Queb, Mãe de Isis e Osíris. Sou o Deus Supremo de Memphis. Sou um só com Etom... Basta! gritou o juiz. Por amor de Deus! Que significa isto, coronel Pickett? Creio que me disse que este lunático tinha qualquer coisa de importante a declarar. Eu... O chefe da polícia estadual levantou-se prontamente. Harakht esperava com calma, desaparecido por completo o seu primitivo terror, como se nos escaninhos do seu cérebro complicado compreendesse que estava senhor da situação. Sinto muito, senhor juiz disse o coronel. Devia tê-lo avisado. Este homem não é um ser normal. Acho melhor contar a V. Ex.ª e ao júri o que ele faz, para que possa pôr-lhe as perguntas de uma forma mais directa. Usa uma espécie de farmácia ambulante, uma coisa esquisita, toda decorada de sóis, estrelas, luas e figuras fantásticas de Faraós egípcios. Parece que se imagina o Sol ou coisa parecida. É inofensivo. Anda por aí de terra em terra como um cigano, numa carroça puxada por um cavalo. Já passou por Illinois, Indiana, Ohio e Virgínia Ocidental, pregando e vendendo um remédio para todas as doenças, que faz crescer o cabelo... É o elixir da juventude, interrompeu Harakht contrariado. Luz do Sol engarrafada. Eu sou o escolhido 28 de Deus e prego o evangelho da luz solar. Sou Mentu e Atmu, e... E... Liru disse Ellery de si para consigo. Trata-se apenas de óleo de fígado de bacalhau vulgar, ao que parece explicou o coronel Pickett, sorrindo. Ninguém sabe o verdadeiro nome do homem; presumo que ele próprio o tenha esquecido. Muito obrigado, coronel redarguiu o juiz com dignidade. Ellery, sentado no seu duro assento, estremeceu até à medula com uma descoberta súbita. Tinha reconhecido o tosco emblema que o louco segurava na mão.Era o uroeus, ceptro da serpente usado pela divindade principal dos antigos egípcios e seus reais descendentes. A princípio, tinha-se inclinado a supô-lo um símbolo de Mercúrio em forma de cobra, mas esse símbolo incluía sempre asas, e este, como podia ver aplicando melhor o olhar, tinha um grosseiro disco solar dominando a serpente das serpentes... O Egipto dos Faraós! Alguns dos nomes que tinham saído da boca do velho tonto eram-lhe familiares: Horus, Nut, Isis, Osíris. Os outros, conquanto estranhos, tinham um sabor egípcio... Hum... Harakht, ou lá como se chama dizia neste momento o juiz ouviu o depoimento de Gaspar Croker referente a um homem moreno, bem barbeado, que coxeava? Um olhar mais inteligente iluminou as pupilas do homem das barbas que respondeu, tomado do mesmo terror paralisante: O... o coxo? gaguejou ele. Sim. Reconhece alguém pela descrição feita? Hesitação. Em seguida: Sim. Uf! fez o juiz suspirando. Agora, Harakht, já nos entendemos. O seu tom era alegre e amistoso. Quem é esse homem e donde o conhece? É meu sacerdote. Sacerdote! Ouviram-se murmúrios na sala e Ellery distinguiu a voz do homem forte exclamando: Por Deus! Que blasfémia! Quer dizer que é seu... ajudante? É meu discípulo. Meu sacerdote. Pontífice Máximo de Hórus. 29 Sim, sim interrompeu Stapleton, impaciente. E o nome dele? Velja Krosac. Hum tornou o juiz, franzindo a testa. Um nome estrangeiro. Arménio? inquiriu de repente, fitando o homem das barbas. Não há outra nação senão o Egipto replicou Harakht placidamente. bom disse Stapleton com olhar penetrante. Como escreve esse nome? Temos tudo isso, Sr. Stapleton atalhou o coronel Pickett. É Velja Krosac. Encontrámo-lo nuns papéis, na carroça dele. Onde está esse Velja Krosac? interrogou o juiz. Harakht encolheu os ombros. Foi-se embora. Ellery viu um relâmpago de pânico nos olhinhos esgazeados do velho. Quando? O coronel Pickett entrou uma vez mais em cena. É melhor eu dizer, Sr. Stapleton, e apressar o interrogatório. Krosac manteve-se sempre oculto, pelo que conseguimos apurar. Há já um par de anos que andava com este homem. Era um tipo misterioso. Actuava como agente de publicidade e director de negócios. Uma espécie de factotum de Harakht. Este trouxe-o do Oeste. Krosac esteve pela última vez com Harakht na véspera de Natal. Tinham acampado junto da enseada de Holiday, a poucas milhas de Weirton. Ellery recordava-se de ter visto esse nome nalguns postes de sinalização Krosac partiu por volta das dez horas e foi esta a última vez que este não sei quê afirma tê-lo visto. O senhor não encontrou sinais de Krosac? O coronel pareceu irritado. Ainda não sibilou. Desapareceu como se a terra o tivesse engolido. Mas, encontrá-lo-emos. Eu não desisto. Enviámos para toda a parte descrições dele, juntamente com as de Kling. Harakht perguntou o juiz já esteve alguma vez em Arroyo? Arroyo? Ainda não. Não passaram para o norte deste distrito explicou o coronel. 30 O que sabe acerca de Krosac? É um verdadeiro crente afirmou Harakht com convicção. Adora todos os altares com fervor. Toma parte nos kuphi e ouve as sagradas escrituras com respeito. É o orgulho e a glória... Está bem interrompeu o juiz, cansado. Leve-o, agente. O polícia sorriu, pôs-se de pé, agarrou o braço magro do Barba-Castanha e carregou-o para fora. O juiz deu um suspiro de alívio ao vê-los desaparecer entre a multidão. Ellery fez coro com ele. Seu pai tinha razão; era evidente que ia regressar a Nova Iorque se não desiludido por completo, pelo menos com um caso insolúvel para narrar. Todo o processo era tão disparatado, a questão tão incompreensível e tão despida de lógica que descambava em farsa. E no entanto... havia aquele corpo brutalmente mutilado e crucificado... Crucificado! Estremeceu, com um arfar quase audível. Crucificação o Egipto antigo! Onde tinha ele deparado com este estranho encadeamento?... O inquérito prosseguia rapidamente. O coronel Pickett exibiu uma série de objectos que tinha encontrado na carroça de Harakht e que o mesmo declarara serem propriedade de Krosac. Não tinham qualquer valor intrínseco nem como possíveis pontos de esclarecimento acerca do passado e identidade do seu possuidor. Não havia fotografias de Krosac facto de que o juiz informou o júri, o que tornava ainda mais difícil a captura do homem. Para aumentar as dificuldades, também se não encontraram quaisquer espécimes da sua caligrafia. Outras testemunhas foram chamadas a depor. Esclareceram-se pontos sem importância. Não se descobriu ninguém que tivesse observado a casa de Andrew Van na noite de Natal, nem que tivesse visto Krosac depois que o garagista Croker o deixou na encruzilhada. A habitação de Van era a única na vizinhança do cruzamento, e ninguém por lá passara naquela noite... Os pregos encontrados no corpo de Van provinham da sua própria caixa de ferramentas, habitualmente guardada na despensa, junto da cozinha. Tinham sido comprados há muito por Kling ao armazenista Bernheim, como então se apu- 31 rou; muitos deles tinham sido usados na construção de um alpendre. Ellery só tomou consciência do que o rodeava quando o juiz Stapleton se levantou. Senhores jurados principiou este último , acabam de ouvir os depoimentos sobre o crime... Ellery levantou-se de um salto. Stapleton parou, aborrecido com a interrupção. Que há, Sr. Queen? O senhor está a interromper a marcha de... Um momento, Sr. Stapleton apressou-se Ellery a dizer. Antes de se dirigir ao júri quero declarar que estou de posse de um elemento que me parece importante para o inquérito. O que é? gritou o delegado Crumit, levantando-se do seu lugar. Um novo facto? Não é isso, senhor Delegado replicou Ellery sorrindo. Um facto bastante velho, mais velho do que a religião de Cristo. Venha cá ordenou o juiz. O público movimentava-se e segredava, e o júri tinha-se levantado em peso para observar melhor esta testemunha imprevista. A que se refere, Sr. Queen? O que tem a religião de Cristo a ver com este caso? inquiriu Stapleton. Nada... espero. Ellery voltou-se para o juiz. O aspecto mais significativo deste horrível crime disse em tom severo, se me é permitido falar assim, não foi ainda abordado durante todo este inquérito. Refiro-me à circunstância de o criminoso, quem quer que foi, se ter preocupado em fixar a letra ou símbolo T em volta da cena do crime. A forma do cruzamento em T, o poste de sinalização em T, o cadáver com o aspecto de um T, e até o T traçado na porta da casa da vítima; tudo isto foi comentado, e com razão, pela Imprensa. Sabemos tudo isso interrompeu o delegado desdenhosamente mas onde está a revelação que nos prometeu? Nisto. Ellery fitou-o pouco amenamente e Crumit, embaraçado, tornou a sentar-se. Não vejo bem a relação que possa existir confesso-o envergonhado mas já pensaram que o símbolo T pode não se referir ao alfabeto? 32 O que quer dizer, Sr. Queen? inquiriu o juiz ansiosamente. Que o símbolo T tem um significado religioso. Significado religioso? repetiu Stapleton. Um cavalheiro corpulento com um colarinho de sacerdote ergueu-se dentre a assistência. Se me permitem a intromissão disse em voz Cortante, sou um ministro do Evangelho, e nunca ouvi falar em qualquer significado religioso da letra T. Alguém gritou: Bem respondido, Parson! e o sacerdote corou e sentou-se. Ellery sorriu. Lamento contradizer o ilustre ministro de Deus, mas o significado é este: Entre os numerosos símbolos religiosos existe uma cruz com a forma de um T. É chamada a cruz tau ou crux commissa. O sacerdote levantou-se lesto. Sim, é verdade. Mas não é uma cruz cristã; era um símbolo pagão. Precisamente. Ellery sorriu por entre dentes. Ea cruz grega não foi usada por povos pré-cristãos, muitos séculos antes da Era de Cristo? A tau precedeu, de muitas centenas de anos, a cruz grega. Todos esperavam e o silêncio era absoluto. Ellery fez uma pausa para tomar fôlego. Depois levantou de novo os olhos para o juiz e explicou. Tau ou cruz T não é o seu único nome. Chamam-lhe por vezes... deteve-se um pouco e concluiu calmamente: Cruz Egípcia! CAPÍTULO 3 O PROFESSOR YARDLEY E com os acontecimentos precedentes terminou o caso. É extraordinário, é incrível... mas a questão morreu nesse ponto. A estranha correlação para a qual Ellery Queen chamara a atenção dos habitantes de Weirton adensou ainda mais o mistério. De resto, ele próprio não 3 -Ellery Queen 1 33 achava qualquer solução. Consolava-se, pensando que era difícil aplicar a lógica às divagações de um louco. Se o problema era demasiado complicado para ele, era-o com mais razão para o juiz Stapleton, para o delegado Crumit, para o coronel Pickett e para o júri de provincianos de Arroyo e Weirton, assim como para o bando de jornalistas que tinham invadido a cidade, no dia do interrogatório. Sob a pressão do juiz que persistia, teimosamente, em não querer aceitar um veredicto sem provas, o júri coçou a cabeça e pronunciou-se por morte às mãos de pessoa ou pessoas desconhecidas. Os jornalistas ainda rondaram por ali mais um ou dois dias. O coronel Pickett e o delegado Crumit foram reduzindo cada vez mais a sua actividade e por fim o caso morreu para a Imprensa o que equivale, na América, a uma verdadeira certidão de óbito. Ellery voltou para Nova Iorque com um filosófico encolher de ombros. Quanto mais pensava no assunto mais se inclinava a crer que a explicação era, no fim de contas, bem simples. Não havia motivo, pensava, para duvidar das evidentes indicações fornecidas pelos depoimentos, insuficientes, decerto, mas positivas. Existia um homem chamado Velja Krosac, um estrangeiro que falava inglês, um bocado charlatão, o qual, por motivos nebulosos só dele conhecidos, procurara um mestre-escola de aldeia também de origem estrangeira, e lhe tirara a vida. A forma como as coisas se haviam passado, embora interessante sob o ponto de vista criminológico, não era forçosamente importante. Era a horrível mas compreensível expressão de um espírito abrasado no fogo de uma psicologia anormal. O que se ocultava por detrás disto história sórdida de ofensas imaginárias, fanatismo religioso ou vingança sangrenta nunca se chegaria provavelmente a saber. Krosac, uma vez cumprida a sua missão cruel, desaparecera, e talvez nesse momento singrasse o alto mar em demanda da sua Pátria. E Kling, o criado? Sem dúvida uma vítima inocente, apanhada entre dois fogos, liquidada pelo criminoso por ter testemunhado o crime ou observado por um momento a face do assassino. Kling representava, segundo toda a evidência, a ponte que Krosac tivera que queimar na sua retirada. Era natural que um homem que não hesi- 34 tava à ideia de cortar uma cabeça humana apenas para ilustrar com a carne lacerada o T simbólico da sua vingança, não recuasse ante a necessidade de destruir um perigo inesperado para a sua segurança. E, deste modo, Ellery voltou para Nova Iorque para receber os remoques trocistas do inspector. Não te vou dizer uma vez mais que tinha razão advertiu o velho no decurso do jantar, na noite da chegada de Ellery mas sempre quero fazer-te notar a moral da história. Diga, diga murmurou Ellery, atacando uma costeleta. A moral é esta: um crime é um crime e 99,9% dos crimes cometidos em todo o Mundo são simples como o ABC. Sem fantasia! Entendes, meu pateta? O inspector prosseguiu: Não sei o que com o tempo esperavas fazer naquela terreola distante, mas qualquer pessoa pouco experiente te podia ter dado a resposta. Ellery pousou o garfo. Mas a lógica... Frioleiras cortou o inspector. Vai ver se dormes! Decorreram seis meses durante os quais Ellery esqueceu por completo os estranhos acontecimentos de Arroyo. Tinha que fazer. Nova Iorque, ao contrário da sua congénere Pensilvânia, não era o que pode chamar-se uma cidade onde reinasse o amor fraternal; os homicídios eram numerosos; o inspector andava de um lado para o outro, num delírio de investigações, e Ellery seguia-lhe no encalço, contribuindo com as suas notáveis faculdades para a resolução dos casos que lhe despertavam interesse. Apenas em Junho, seis meses depois da crucificação de Andrew Van na Virgínia Ocidental, foi forçado a recordar o crime de Arroyo. No dia 22 desse mês uma quarta-feira Ellery e o inspector Queen estavam tomando o pequeno-almoço quando a campainha tocou, e Djuna, o criado particular de Queen, apareceu com um telegrama para Ellery. É estranho disse este rasgando o sobrescrito. Quem será que se lembrou de me telegrafar tão cedo? 35 De quem é? resmungou o velhote com a boca cheia de torrada. É de... respondeu o filho desdobrando a mensagem e deitando um olhar para a assinatura. De Yardley concluiu, no auge da surpresa. Sorriu para o pai e acrescentou: Lembra-se do Professor Yardley, um dos meus mestres na Universidade? Claro que me lembro. O tipo da História Antiga, não é? Um muito feio, de pêra, que passou connosco um fim-de-semana, quando veio a Nova Iorque? Esse mesmo. Um dos meus melhores professores. Já não há gente assim suspirou Ellery. Há que anos nos não vemos! Nunca mais soube nada dele. Porque diabo... Sugiro que leias o telegrama interveio o velhote. É a melhor maneira de saberes tudo isso. O meu filho em certas coisas é tapado como uma porta! O brilho garoto que iluminava os olhos do inspector desapareceu ao atentar na cara de Ellery. A expressão deste tornara-se séria. Que aconteceu? inquiriu o pai de Queen com impaciência. Morreu alguém? Ele conservava a superstição burguesa de que os telegramas trazem desgraça. Ellery atirou o papel para cima da mesa, afastou a cadeira, entregou o guardanapo a Djuna e dirigiu-se para o seu quarto, desembaraçando-se do roupão pelo caminho. O inspector pegou no telegrama e leu: APESAR TANTOS ANOS SEPARAÇÃO PENSO DESEJE JUNTAR O ÚTIL AO AGRADÁVEL STOP. PORQUE NÃO ME FAZ VISITA HÁ TANTO PROMETIDA STOP. ENCONTRARÁ ESTRANHO CRIME OCORRIDO PRÓXIMO MINHA CASA STOP. UM VIZINHO MEU FOI ENCONTRADO ESTA MANHÃ DECAPITADO E CRUCIFICADO NO POSTE EXISTENTE SUA PROPRIEDADE STOP. POLICIA LOCAL ESTÁ AINDA CHEGANDO STOP. ESPERO-O HOJE. YARDLEY 36 CAPÍTULO 4 BRADWOOD Muitas milhas antes do velho Ford chegar ao seu destino era já fácil de notar que algo sucedera de extraordinário. A estrada principal de Long Island que Ellery percorria, como de costume, a uma velocidade doida, estava patrulhada por motociclistas da polícia que desta vez pareciam desinteressados por questões de excesso de velocidade. Ellery envaidecido pelo facto de ser portador de uma autorização especial para guiar depressa, quase desejava que o mandassem parar para assim ter oportunidade de gritar orgulhosamente: «Serviço Especial da Polícia». O inspector tinha telefonado a instâncias do filho para o inspector Vaughrt, da polícia distrital de Nassau, a anunciar que o seu famoso rebento como costumava dizer ia a caminho e que lhe pedia para ele todo o auxílio necessário, tanto mais que era portador de informações do mais alto interesse para a boa marcha das investigações. Em seguida telefonara para o delegado Isham, também do distrito de Nassau, repetindo a promessa e a recomendação e obtendo deste a garantia de que nada seria retirado do local do crime antes da chegada de Ellery. Era meio-dia quando o Ford tomou por uma das estradas particulares de Long Island e Ellery foi abordado por um motociclista da polícia. É este o caminho para Bradwood? É, mas o senhor não vai lá replicou o polícia sorrindo. Volte o carro e ponha-se a andar. O Inspector Vaughn e o delegadoIsham estão à minha espera retorquiu Ellery com ênfase. Oh! O senhor é o Sr. Queen? Peço desculpa. Queira prosseguir. Vingado e triunfante, Ellery arrancou e cinco minutos depois desembarcou numa estrada aberta entre duas propriedades uma, a julgar pelo aglomerado de carros oficiais espalhados no percurso, era, evidentemente, Bradwood, onde o crime havia sido cometido; a outra, do lado oposto da estrada, devia ser a do seu amigo e antigo mestre, professor Yardley. O professor, um homem alto e feio com uma seme- 37 lhança surpreendente com Abraham Lincoln, veio em pessoa ao seu encontro, sorridente e de mão estendida, mal o viu saltar do velho carro. Queen! Que prazer em voltar a vê-lo! É verdade, professor. Que prazer. Há anos que o não via! O que fez em Long Island? A última vez que tive notícias suas, ainda estava na Universidade a torturar os pobres caloiros. O professor agitou a barba preta num sorriso. Arrendei aquele Ta j Mahal, do outro lado da estrada, a um amigo maluco. Ellery voltou-se e avistou umas espirais e uma cúpula bizantina, espreitando acima das árvores, na direcção indicada pelo professor. Ele próprio construiu aquela monstruosidade quando estava possuído do vírus oriental continuou Yardley. Anda agora em viagem de turismo pela Ásia Menor, razão por que aproveitei este Verão para, em sossego, trabalhar na minha obra há muito adiada «Origens da Lenda da Atlântida». Recorda-se das alusões de Platão? Recordo-me replicou Ellery sorrindo da Nova Atlântida, de Bacon, porque o meu interesse nesse tempo era mais literário do que científico. A mesma juventude de espírito, pelo que vejo... comentou Yardley. Mas, falava eu em sossego. Olhe para isto. Porque se lembrou de mim? Iam andando ao longo do movimentado caminho de Bradwood que conduzia a uma grande casa em estilo colonial, com enormes colunas que brilhavam ao sol do meio-dia. O grande poder da coincidência retorquiu em tom breve o professor. Tenho seguido a sua carreira com natural interesse. E, como fico sempre fascinado com as suas aventuras, li com avidez os relatos do extraordinário crime de Arroyo, publicado há uns cinco ou seis meses. Ellery chegou ao local do crime antes de ter tido tempo para responder. A propriedade de Bradwood estava tratada com todo o cuidado, revelando a riqueza do seu possuidor. Devia ter calculado que nada escaparia aos olhos 38 que examinaram milhares de papiry e stelai. com que então leu a versão fortemente romanceada da minha estada em Arroyo? Li. E também a sua romanceada falha no caso troçou o professor. Ao mesmo tempo foi-me grato verificar que aplicava os princípios que tentei introduzir na sua cabeça teimosa ir sempre à origem das coisas. Uma Cruz Egípcia, meu rapaz? Receio que a sua tendência para o teatro lhe tenha ocultado a verdade científica... Bem, chegámos. O que quer dizer? perguntou Ellery ansioso. A cruz em tau era, certamente, um símbolo dos egípcios primitivos e... Discutiremos isso depois interrompeu o professor. Presumo que queira conhecer Isham, que tem sido bastante amável em me deixar bisbilhotar. O delegado Isham era um homem atarracado, de meia-idade, com os olhos de um azul muito claro e uma cabeleira grisalha em forma de ferradura, que nesse momento se encontrava de pé nos degraus da entrada principal da casa, entretido em animada conversa com um cavalheiro forte que trajava civilmente. Sr. Isham exclamou o professor Yardley. Eis o meu protegido, Ellery Queen. Os dois homens voltaram-se de repente. Ah! Sim fez Isham, como se pensasse noutra coisa. Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Queen. Não vejo em que nos possa auxiliar mas...encolheu os ombros apresento-lhe o Inspector Vaughn, da polícia distrital de Nassau. Ellery apertou a mão a ambos. Dão-me licença que dê uma volta por aí? Prometo não vos incomodar. O inspector Vaughn mostrou os dentes amarelos num sorriso. Precisamos de alguém que nos incomode. Estamos para aqui parados. quer ver o cenário principal? Creio que é costume. Venha daí, professor. Os quatro homens desceram os degraus da entrada e tomaram por um carreiro, coberto de cascalho que contornava a ala leste da casa. Ellery apercebeu-se da extensão da propriedade, verificando que a habitação estava situada a meio caminho, entre a estrada principal onde 39 tinha deixado o carro e as águas de uma baía cujas ondas salpicadas de manchas de sol se avistavam da elevação onde se erguia a casa. Este curso de água explicou o delegado Isham era um afluente do Sound; chamavam-lhe Baía de Ketcham. Para além das águas da baía podia ver-se a silhueta verdejante de uma ilhota. A ilha das Ostras explicou o professor que abriga uma curiosa colecção de... Ellery olhou-o interrogativamente, mas Isham interrompeu com modo brusco. Lá chegaremos. Yardley encolheu os ombros e remeteu-se ao silêncio. A vereda afastava-se da casa a pouco e pouco, e em breve o arvoredo se adensou em volta deles. A alguns metros de distância encontraram-se de repente numa clareira, no centro da qual estava um objecto grotesco, em face do qual estacaram, impressionados. Em torno do objecto postavam-se polícias e detectives, mas Ellery só tinha olhos para o centro, onde se erguia um poste esculpido, de cerca de nove pés de altura, que em tempos devia ter sido brilhantemente colorido, a avaliar pelo que restava da pintura, mas que agora se encontrava desbotado e manchado como se sobre ele tivessem passado séculos de tempestades. Os ornatos, um aglomerado de carrancas e figuras de animais híbridos, terminavam no topo com uma águia mal talhada, de bico baixo e asas abertas. As asas estendiam-se horizontalmente em relação ao solo, o que dava ao poste o aspecto de um T maiúsculo que impressionou Ellery logo ao primeiro relance. Do poste pendia o corpo decapitado de um homem, cujos braços estavam atados às asas por meio de um cordel forte, encontrando-se as pernas presas da mesma forma à trave vertical. O agudo bico de madeira da águia curvava-se alguns centímetros acima do buraco sangrento onde outrora assentara a cabeça da vítima. Havia algo de patético neste espectáculo horripilante; o cadáver mutilado apresentava a fraqueza e impotência de uma boneca de trapos sem cabeça. Que espectáculo! comentou Ellery impressionado. 40 Confrangedor murmurou Isham. Nunca vi nada igual. Faz gelar o sangue nas veias. E estremecendo, acrescentou: Vamos. Deixemos isto. Aproximando-se mais do poste, Ellery notou que a alguns metros de distância deste, existia uma pequena cabana de tecto de colmo, à entrada da qual se postava um polícia. Depois, volveu a sua atenção de novo para o cadáver. Pertencia a um homem de meia-idade, de grande barriga, mãos grossas e flácidas. O corpo envergava calças de flanela e uma camisa de seda aberta no pescoço, sapatos brancos, peúgas brancas e um casaco de veludilho. Do pescoço aos pés todo ele era um fardo ensanguentado, como se tivesse sido mergulhado num alguidar de sangue. É um pólo totemista, não é? perguntou Ellery ao professor Yardley, ao passarem por detrás do cadáver. Um poste totemista, corrigiu Yardley com severidade. É um termo mais adequado. Não sou uma autoridade em totemismo, nem em religiões dos peles-vermelhas, mas esta relíquia, ou data dos primitivos habitantes da América do Norte ou é uma imitação brilhante. Nunca vi outra igual. A águia deve representar o Clã da Águia. Calculo que o corpo tenha sido identificado?... Claro, informou o inspector Vaughn, O que está vendo é o que resta de Thomas Brad, dono da Bradwood, milionário e importador de tapetes. Mas... o corpo, ainda não foi retirado observou Ellery. Como podem ter a certeza? O delegado Isham mostrou-se admirado. Oh! É com certeza o Brad. Os fatos são dele, e não seria fácil imitar aquelabarriga. Também me parece. Quem descobriu o corpo? Foi encontrado esta manhã, às sete e meia, por um dos criados da casa, um misto de motorista e jardineiro, chamado Fox esclareceu o inspector Vaughn. Este homem vive numa cabana do outro lado da casa, no bosque, e quando esta manhã veio buscar o carro à garagem que fica nas traseiras da habitação, a mandado de Jonah Lincoln, uma das pessoas que aqui moram, soube que Lincoln não estava ainda preparado para sair e veio dar uma olhadela às flores, deparando então com isto. Diz ele que ficou quase doido. 41 Não custa a acreditar notou o professor Yardley traindo uma impressionante falta de sensibilidade; examinava o poste totemista e a sua carga bizarra como se se tratasse de um raro objecto histórico. Quando se refez do susto, o homem voltou para casa a correr continuou o inspector Vaughn. Deu-se o que era de esperar: acorreu toda a gente. Ninguém tocou em nada. Lincoln que é um nervoso, mas tem a cabeça no seu lugar, vigiou até à nossa chegada. E quem é Lincoln? inquiriu Ellery interessado. O director-geral da firma de Brad, Brad & Megara os conhecidos importadores de tapetes explicou Isham. Lincoln vive aqui. Parece que Brad gostava imenso dele. Um magnate de tapetes em embrião. E Megara? Também vive aqui?! Isham encolheu os ombros. Quando não anda em viagem, como agora. Há meses que está fora. Brad era o sócio-gerente. Concluo por isso que o Sr. Megara, o viajante, seja o dono do pólo-totemista ou poste, por deferência para com o professor. Um homenzinho de aspecto frio avançava pela vereda em direcção a eles, transportando uma mala preta. Aí vem o Dr. Rumsen anunciou Isham com um suspiro de alívio. Viva, doutor. Dê uma vista de olhos a isto. Estou a ver, retorquiu o médico legista de Nassau que é isto? O matadouro de Chicago? Ellery observou o corpo. Este parecia muito rígido. O Dr. Rumsen deitou-lhe um olhar profissional, fungou e disse: Desçam-no, desçam-no. Ou estão à espera que eu vá lá acima examiná-lo? O inspector Vaughn deu instruções a dois agentes que imediatamente se muniram de navalhas. Um deles desapareceu no interior da cabana, voltando momentos depois com uma cadeira rústica que colocou junto ao poste, trepando em seguida para o assento. Quer que corte, chefe? perguntou, antes de dar o golpe nos cordéis que sustinham o braço direito. Talvez queira que eu deixe a corda inteira. Parece-me que posso desatar o nó. 42 Corte-o ordenou o inspector secamente. Quero ver esse nó de perto. Talvez nos dê uma pista. Os outros avançaram, e a fúnebre tarefa de descer o corpo foi executada em silêncio. A propósito notou Ellery, enquanto observavam a marcha do trabalho. Como se arranjou o criminoso para içar o corpo e atar em seguida os braços às asas, a uma altura de nove pés? Da mesma forma que o agente agora replicou o delegado com frieza. Encontrámos uma cadeira manchada de sangue, igual à que ali está, dentro da cabana. Ou eram dois, ou o tipo que fez isto era um colosso. Deve ter sido um bom frete içar um corpo morto até àquela altura, mesmo com a ajuda de uma cadeira. Onde encontraram a cadeira? interrogou Ellery, pensativo. Na cabana? Sim. Deve ter sido posta depois da tarefa concluída. Há muitas outras coisas lá dentro que vale a pena ver, Sr. Queen. Há ainda outra coisa que deve interessá-lo acrescentou o inspector Vaughn, quando o corpo foi por fim depositado na relva. É isto. Pegou num pequeno objecto vermelho, circular, que tirou do bolso e apresentou-o a Ellery. Era uma pedra de xadrez, de madeira vermelha. Hum fez Ellery. Bastante prosaico! Onde encontrou isto, inspector? No solo desta mesma clareira retorquiu Vaughn alguns pés à direita do poste. O que o leva a supor que seja importante? perguntou ainda Ellery, revolvendo a peça entre os dedos. Vaughn sorriu. Eu explico. A pedra não pode ter estado aqui muito tempo, como se conclui do seu aspecto. Além disso, sobre este cascalho cinzento, um objecto vermelho daria nas vistas. O chão é limpo todos os dias por Fox com uma brossa de arame; não é portanto provável que estivesse aqui durante o dia; pelo menos, Fox afirma que não. Faz pensar que tem algo que ver com os acontecimentos da noite passada, pois na escuridão, teria passado despercebido. Óptimo, inspector! exclamou Ellery. Aqui está um homem às direitas. 43 O Dr. Rumsen soltava entretanto uma série de feias pragas, nada profissionais. O que aconteceu? apressou-se Isham a interrogar. Encontrou alguma coisa? A coisa mais curiosa que ainda vi foi a resposta. Ora, repare! O cadáver de Thomas Brad jazia estendido na relva junto ao poste, como uma estátua tombada. A sua rigidez era tão pouco natural que Ellery, com a triste mas real experiência adquirida, compreendeu que ainda se mantinha o rigor mortis. Enquanto ali jazia, com os braços abertos, o cadáver, à excepção da barriga e do vestuário, apresentava uma notável semelhança com o de Andrew Van, tal como Ellery o tinha contemplado em Weirton, seis meses antes. E ambos eram figuras humanas talhadas em forma de T... Ellery abanou a cabeça e seguiu com os outros para ver o que tinha espantado tanto o Dr. Rumsen. O médico havia levantado o braço direito do cadáver e apontava para a palma azulada da mão. No centro, claramente impressa, destacava-se uma mancha vermelha circular, cujos contornos eram apenas levemente irregulares. Que diabo chamam os senhores a isto? resmungou o Dr. Rumsen. Não é sangue. Mais parece tinta, mas eu seja preto se percebo a razão disto. Parece disse Ellery lentamente que as suas previsões se confirmam, inspector. A pedra de xadrez, o lado direito do poste, a mão direita da vítima... Por Deus! Tem razão! gritou o inspector Vaughn. Tirou de novo a pedra do bolso e colocou-a sobre a mancha da mão do morto. Ajustava-se e Vaughn ergueu-se com um olhar de triunfo e perplexidade. Mas... com a breca... O delegado Isham abanou a cabeça. Não considero o facto importante. Ainda não viu a biblioteca de Brad, Vaughn, por isso não sabe. Encontrei lá os restos de uma partida de xadrez. Saberá mais pormenores quando lá formos. Brad, tinha por qualquer motivo uma pedra na mão quando foi assassinado e o criminoso ignoravam». A pedra caiu quando ele foi ali pendurado, e eis tudo. 44 Então o crime foi cometido dentro de casa? inquiriu Ellery. Oh! Não. Nesta mesma cabana. Temos disso provas suficientes. Penso que a explicação para a presença da pedra é a mais simples possível. Parece uma pedra defeituosa que o calor e a transpiração da mão de Brad fizeram desbotar. Deixaram o Dr. Rumsen a examinar o corpo mutilado, e encaminharam-se para a cabana. Distava apenas alguns passos do poste. Ellery olhou em redor antes de entrar. Vejo que não há instalação eléctrica aqui fora. Pergunto a mim mesmo como... O assassino deve ter empregado uma lanterna. Isto se a coisa se passou realmente no escuro disse o inspector. O Dr. Rumsen esclarecerá esse ponto, quando nos disser há quanto tempo Brad está morto. O polícia que guardava a entrada, saudou militarmente e afastou-se para o lado. Os quatro homens entraram. A cabana era uma construção pequena e circular feita de ramos de árvores cruzados à maneira rústica. Tinha um tecto cónico de colmo e meias-paredes, sendo as partes superiores destas substituídas por gelosias verdes. Dentro, havia uma mesa feita de um tronco cortado, e duas cadeiras, uma das quais manchada de sangue. Não há dúvida que foi aqui disse o delegado, apontando para o chão. No centro, havia uma grande mancha espessa, de um vermelho acastanhado. Pela primeira vez, o professor Yardley mostrou nervosismo. Mas... Isto não é sangue humano... esta enorme nódoa. Claro que é replicou Vaughn. A abundância de sangue explica-se se admitirmos que a cabeça de Brad foi cortada aqui