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Ellery Queen O MISTERIO DA CRUZ EGIPCIA

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TÍTULO:O mistério da cruz egípcia
AUTOR: QUEEN, Ellery
GÉNERO: Romance
CLASSIFICAÇÃO: Literatura norte-americana – Século XX – Ficção
Aventino de Jesus Teixeira Gonçalves
Outubro de 2003
	***
	Os livros desta colecção são constituídos por dois títulos. Este é o primeiro, sendo o segundo:
O mistério do ataúde grego, do mesmo autor
Nota do digitalizador
por
ELLERY QUEEN
Num cruzamento de estradas
 próximo da cidadezinha
onde vivia, foi descoberto
um excêntrico mestre-escola
decapitado e crucificado num
poste de sinalização, figurando
 um T macabro. Como
durante o ano seguinte apareceram
 mais três homens
assassinados do mesmo
modo, assim surgiu O Mistério
 da Cruz Egípcia, por muitos
 considerado «a mais apaixonante
 aventura de Ellery
Queen».
Por sua vez, o caso Khalkis
 que viria a estar na
origem de O Mistério do
Ataúde Grego constitui
uma das primeiras investigações
 da longa e triunfal carreira
 de Ellery Queen, então
ainda numa fase incipiente
do seu método analítico-dedutivo,
 razão pela qual esteve
prestes a falhar antes de,
numa reviravolta inesquecível, conseguir obter um dos
seus mais espectaculares
triunfos.
OBRAS ESCOLHIDAS DE
ELLERY
QUEEN
Tradução de
BAPTISTA DE CARVALHO
*
Título da edição original
THE EGYPTIAN CROSS MYSTERY
*
Copyright e 1932 by Ellery Queen
CAPÍTULO 1
UM NATAL EM ARROYO
A história que vai contar-se teve início na Virgínia
Ocidental no cruzamento de duas estradas, a meia milha
de distância da pequena aldeia de Arroyo. Uma delas era
a estrada principal entre New Cumberland e Pughtown
e a outra uma ramificação que ligava com Arroyo.
Ellery Queen notou logo a importância do factor
geográfico. Muitas outras coisas notou ele, também, ao
primeiro relance e ficou perplexo ante a natureza contraditória
 dos factos. Nada combinava. Era necessário
abstrair-se e pensar.
Exige explicação o motivo por que Ellery, um cosmopolita,
 se encontrava ao lado de um velho e desconjuntado
 Ford, no extremo da planície lamacenta e fria da
Virgínia Ocidental, às duas horas da tarde de um dos
últimos dias de Dezembro. Eram tantos os factos que
tinham concorrido para esse estranho acontecimento!
Um deles o principal era proporcionar um feriado
ao Inspector Queen, seu pai. O velhote estava mergulhado
no que podia chamar-se uma assembleia de polícias; as
coisas em Chicago eram como de costume calamitosas,
e o comissário tinha convidado os oficiais superiores da
polícia das cidades mais importantes para lamentarem
com ele o deplorável desrespeito pela lei que reinava no
seu campo de acção.
E foi precisamente quando o inspector, numa disposição
 de espírito rara, se apressava a sair do seu hotel,
em Chicago, para o quartel-general da polícia, que Ellery,
5
que o acompanhava, soube do misterioso crime ocorrido
perto de Arroyo um crime que a United Press baptizara
 pitorescamente de «O Crime dos TT». Havia tantos
elementos nos relatos dos jornais a impressionarem
Ellery por exemplo, o facto de Andrew Van ter sido
decapitado e crucificado na manhã do dia de Natal
que ele arrancou prontamente o pai às conferências
fumarentas de Chicago e meteu-o no Ford uma relíquia
 em segunda mão, capaz, porém, de atingir uma velocidade
 inacreditável.
O inspector, embora fosse um pai extremoso,
depressa perdeu o bom-humor, como é de calcular, e
durante todo o caminho de Chicago a Chester, na Virgínia
 Ocidental passando por Toledo, Sandusbry, Cleveland,
 Ravenna, e Lisbon, uma série de cidades de Illinois
e Ohio manteve um obstinado silêncio apenas cortado
pelo monologar de Ellery e pelo roncar do tubo de escape
do velho calhambeque.
Tinham atravessado Arroyo antes mesmo de se aperceberem
 de que estavam na aldeia; um lugarejo de umas
duzentas almas. E depois... o cruzamento das estradas.
A silhueta hirta do poste de sinalização com a sua
viga transversal tornou-se visível algum tempo, antes do
carro parar. Terminava ali a estrada de Arroyo que formava
 ângulo recto com a estrada principal New Cumberland-Pughtown.
 O poste estava por isso voltado para
a saída de Arroyo, com um dos braços apontado para
Pughtown e o outro para New Cumberland.
 Anda. Mete-te a ridículo resmungou o inspector.
 Carregares comigo para aqui só porque foi cometido
 um crime! Tolo... Eu não o faria!
Ellery parou o motor e avançou a pé. A estrada
estava deserta. Em volta, erguendo-se para o céu plúmbeo,
 estendiam-se as montanhas da Virgínia Ocidental.
Fazia um frio agreste e o vento levantava as abas do
sobretudo de Ellery. E ali em frente estava o poste de
sinalização onde Andrew Van, excêntrico professor de
Arroyo, havia sido crucificado.
O poste tinha sido branco; agora, era de um cinzento
 sujo, salpicado de lama seca. Media seis pés de
altura o topo ficava ao nível da cabeça de Ellery
e os braços eram longos e fortes. A distância parecia um
T gigantesco. Ellery compreendeu então a razão por que
6
o repórter da U. P. havia chamado ao crime o «Crime
dos TT». Primeiro, este poste em forma de T, depois o
encontro das estradas formando também um T e finalmente
 o fantástico T traçado com sangue na porta da
casa do morto, por onde Ellery havia passado algumas
centenas de metros antes.
Ellery suspirou e tirou o chapéu. Não era propriamente
 um gesto de reverência: estava a transpirar apesar
 do frio e do vento. Enquanto limpava a testa, ia imaginando
 que louco teria cometido aquele crime brutal,
original e desconcertante. Até o corpo... Recordava-se
com exactidão de uma das reportagens acerca da descoberta
 do cadáver, feita por um famoso jornalista de
Chicago bastante prático na descrição de violências:
«Tivemos hoje conhecimento do mais horripilante acontecimento
 ocorrido neste Natal; na manhã de 20 de
Dezembro, foi descoberto, crucificado num poste de sinalização
 de um cruzamento de estradas solitário, perto da
aldeia de Arroyo, o corpo decapitado de Andrew Van, de
46 anos de idade, professor primário da aldeia.
 Pregos de ferro de 4 polegadas tinham sido enterrados
 nas palmas das mãos da vítima, fixando-as às
extremidades dos braços do poste. Dois outros pregos
trespassavam os pés do morto, sobrepostos na base
desta cruz original. Sob os sovacos havia ainda mais
dois pregos, os quais suportavam o peso do cadáver que,
com a cabeça arrancada, se parecia muito com um
grande T.
 O poste formava um T. As estradas cruzavam-se
em T. Na porta da casa de Van, não muito longe da
encruzilhada, o assassino tinha traçado Um T com o
sangue da própria vítima. E sobre o poste, a concepção
de um cérebro maníaco de um T humano.
 Porquê no Natal? Porque teria o criminoso arrastado
 a vítima por espaço de 300 metros desde a sua
casa ao poste de sinalização, para aí a crucificar? Qual
o significado daquele T?
 A polícia local está desorientada. Van era uma
figura excêntrica, mas sossegada e inofensiva. Não tinha
inimigos nem amigos. O seu único amigo íntimo era
uma alma simples, de nome Kling, que lhe servia de
criado. Kling desapareceu e diz-se que o delegado do
Ministério Público do condado de Hemcock suspeita, por
7
motivos não revelados, que o criado haja sido igualmente
vítima do louco mais sanguinário que figura nos anais
do crime da América moderna...
Muitos mais artigos do mesmo teor haviam sido
publicados, incluindo detalhes da vida bucólica em Arroyo
do infausto professor, as escassas informações recolhidas
 pela polícia sobre os últimos passos que se conheciam
 de Van e Kling, e as pomposas declarações do delegado.
Ellery limpou o suor da testa e passeou o olhar penetrante
 sobre a horrível relíquia.
Em ambos os braços, junto às extremidades da viga
transversal, viam-se os buracos de onde a polícia tinha
extraído os pregos. Cada buraco estava rodeado por uma
mancha irregular de um castanho ferruginoso. Pequenos
fios castanhos emergiam do lugar onde o sangue de
Van havia gotejado das suas mãos mutiladas. Na junção
dosbraços com o corpo havia mais dois buracos despidos
 de manchas; os pregos arrancados haviam sustentado
 os sovacos do cadáver. O poste em toda a sua
superfície estava salpicado de sangue seco, partindo os
sulcos do topo, onde tinha estado assente a ferida, gotejante
 da base do pescoço da vítima. Na parte inferior
da trave vertical, encontravam-se dois buracos a menos
de quatro polegadas um do outro, também cercados de
sangue coagulado e destes buracos onde tinham sido
cravados os pregos que tinham fixado à madeira os pés
de Van, tinha pingado sangue sobre a terra onde o poste
estava enterrado.
Ellery voltou calmamente para o carro onde o inspector
 esperava numa atitude familiar de abatimento e
irritação. O velho tinha atado ao pescoço um lenço de
lã e o seu nariz vermelho e aguçado sobressaía como um
sinal de perigo.
 bom irrompeu Anda daí! Estou gelado!
 Nem um pouquinho de curiosidade? perguntou
Ellery tomando lugar ao volante. Não? O senhor está
hoje outra pessoa comentou Ellery, pondo o motor a
trabalhar.
Depois sorriu e o carro deu um salto para a frente
como um galgo, virou sobre duas rodas, descreveu um
círculo e disparou na direcção contrária àquela de onde
viera.
8
O inspector agarrava-se à beira ao assento, preso de
um terror mortal.
 Singular ideia! gritou Ellery, procurando suplantar
 com a voz o ruído do motor. Crucificar um homem
no dia de Natal!
 Hum resmungou o inspector.
 Parece-me gritou Ellery que vou gostar deste
caso.
 Guia, maldito! vociferou o velho, subitamente.
Ellery endireitou a direcção.
 Não vais gostar de coisa nenhuma! acrescentou
 de sobrancelha franzida. Voltas para Nova Iorque
comigo!
Chegavam a Arroyo.
 Bem sabemos disse o inspector, enquanto
Ellery parava o carro com uma sacudidela em frente de
um edifício baixo que é vergonhoso o modo como se
fazem as coisas aqui. Deixar aquele poste no local do
crime! Abanou a cabeça. Onde vais agora? inquiriu,
 inclinando para o lado a sua cabecinha de pássaro,
acinzentada.
 Julguei que não lhe interessasse disse Ellery
saltando para o passeio. Pst Pst! Ó tu! gritou para
um camponês vestido de azul que varria o passeio com
um vasculho esfarrapado. É aqui o tribunal de Arroyo?
O homem abriu a boca estupidamente.
 Pergunta supérflua! Há uma inscrição para toda
a gente ver... Anda daí, pateta! exclamou o inspector.
Arroyo era um lugarejo de ar sonolento, um punhado
de edifícios apinhados como um cacho. A casa baixa em
frente da qual parara o Ford, parecia uma arca do velho
Oeste. Ao lado havia um armazém de géneros de toda
a espécie, tendo na frente uma bomba de gasolina já
gasta e anexa uma pequena garagem. Na velha parede
do edifício via-se uma pomposa inscrição manuscrita em
péssimo cursivo, dizendo:
CÂMARA MUNICIPAL DE ARROYO
Encontraram o indivíduo que procuravam, sentado a
dormir atrás de uma secretária instalada num gabinete
em cuja porta se lia: «Agente da Polícia». Tratava-se de
9
um provinciano gordo, vermelho, de dentes amarelos e
salientes: O inspector resfolgava e o homem abriu as
pesadas pálpebras, coçou na cabeça e resmungou numa
voz arrastada de baixo:
Se procuram Matt Hollis, saiu.
Sorrindo, Ellery respondeu:
 Procuramos o agente Luden, de Arroyo.
Ah! Sou eu. Que querem?
 Senhor agente disse Ellery cortesmente deixe-me
 apresentar-lhe o Inspector Richard Queen, chefe
da Repartição de Homicídios do Departamento de Polícia
de Nova Iorque, em carne e osso.
O homem gordo deu um pulo na cadeira e despertou
completamente:
 Quem? De Nova Iorque?!
 Tão certo como estarmos aqui confirmou Ellery,
pisando o pai intencionalmente.
 Faz favor de se sentar, disse Luden avançando
uma cadeira na qual o inspector se sentou fungando.
O assunto de Van, não? Não sabia que isso vos interessava,
 lá em Nova Iorque. Queiram dizer.
Ellery puxou da cigarreira e apresentou-a ao agente
que se serviu, resmungando um agradecimento.
 Conte-nos tudo o que souber acerca do assunto,
Luden.
 Não há nada que dizer. Muita gente de Chicago
tem voltado desiludida. Vou estando farto disto, também.
 Não posso levar-lhe a mal comentou o inspector,
 suspirando.
Ellery tirou a carteira do bolso, abriu-a, e examinou
atentamente as notas do banco nela contidas. Os olhos
do agente esbugalharam-se.
 Claro que acrescentou não estou tão cansado
 da história que não possa contá-la uma vez mais.
 Quem encontrou o corpo?
 O velho Pete. Não o reconheceu. Vive há alguns
anos numa cabana, nas montanhas.
 Sim, bem sei. Não havia também um lavrador
envolvido no caso?
 É o Mike Orkins. Possui umas jeiras de terra no
caminho de Pughtown. Parece que o Orkins conduzia o
seu carro para Arroyo na sexta-feira de manhã cedo.
O velho Pete vinha também para Arroyo desce muitas
10
vezes lá das montanhas e o Mike deu-lhe uma boleia.
Foram andando até à encruzilhada e ao voltar o carro
depararam com o corpo de Van hirto e pendurado no
poste como um cação.
 Nós vimos o poste interrompeu Ellery.
 Creio que mais de uma centena de pessoas da
cidade tem passado por aqui só para o verem elucidou
 Luden, pressuroso. Tive que resolver o problema
do trânsito. O que é certo é que Orkins e o velho Pete
apanharam um grande susto. Quase desmaiaram...
 Não tocaram no corpo, é claro? interrogou
Ellery.
 Não eram eles quem se atrevia! Rodaram para
Arroyo como se o próprio diabo os perseguisse, e logo
que chegaram fizeram-me saltar da cama.
 A que horas foi isso?
O agente corou. Oito, mas eu tinha passado parte
da noite em casa de Matt Hollis e dormi mais do que a
conta...
Suponho que o senhor e o Sr. Hollis foram imediatamente
 à encruzilhada?
 Pois claro, Matt o presidente da Câmara e
eu, chamámos quatro dos rapazes e fomos por aí abaixo.
O pobre Van estava feito em salada. Nunca vi nada
assim em toda a minha vida comentou Luden, abanando
 a cabeça. E logo no dia de Natal! Isto é uma
blasfémia. Também Van era ateu.
 O quê? disse o inspector, de repente. O seu
nariz vermelho emergia como um dardo das pregas do
capuz. Um ateu? O que quer o senhor dizer?
 Bem, talvez não fosse precisamente um ateu
murmurou o agente pouco seguro. Eu também não vou
muito à igreja, mas Van nunca lá punha os pés. Passou...
Bem, talvez seja melhor não falar mais nisto.
 É extraordinário observou Ellery voltando-se
para o pai. Isto tem todo o ar de ser obra de um maníaco
 religioso.
 É o que todos dizem interveio Luden.
 Eu... não sei. Não passo de um polícia da província.
 Há três anos que não prendo senão um ou outro vagabundo.
 Mas sempre lhes digo, meus senhores , acres-
11
centou misteriosamente aqui anda mais alguma coisa
do que religião.
 Não suspeita de ninguém da terra, suponho?
disse Ellery franzindo as sobrancelhas.
 Não faço a menor ideia de quem seja o patife.
Mas... é alguém ligado ao passado de Van.
 Têm vindo recentemente estranhos a Arroyo?
 Nem um... Identificámos a vítima pela altura,
aspecto geral, vestuário e papéis e retirámo-la, mas ao
regressar à aldeia parámos em casa de Van...
 E depois? inquiriu Ellery vivamente. Que
encontraram?
 O Inferno a descoberto redarguiu o agente.
Vestígios de uma luta terrível: as cadeiras todas de pernas
 para o ar, sangue por toda a parte, aquele grande T
pintado a sangue na porta e o pobre do Kling desaparecido.
 Ah! fez o inspector. O criado. Desaparecido,
hum? Levou os trapos, não?
 Isso é >que não sei ao certo respondeu Luden
coçando a cabeça. O juiz de instrução quase que me
tirou o caso das mãos. Sei que procuram o Kling... e
creio fechou um olho devagar que mais alguém.
Mas não posso dizer nada sobre isso acrescentou com
precipitação.
Já encontraram alguma pista de Kling?
 Não, que eu saiba. O corpo foi levado para a sede
do distrito, Weirton isto é, para dez ou doze milhas
daqui e ficou a cargo do médico legista, que selou a
casa do Van. A polícia estadual estátratando do caso
e o delegado também.
Enquanto Ellery meditava, o inspector remexia-se na
cadeira e Luden olhava como que fascinado para os
óculos do jovem detective, que murmurou, por fim:
 A cabeça foi cortada com um machado, não?
 Parece que sim. Encontrámos o machado que pertencia
 ao Kling. Não tinha impressões digitais.
 E a cabeça?
O agente encolheu os ombros.
 Não há vestígios dela. Calculo que o louco do
assassino a tenha levado como recordação.
Ellery pôs o chapéu.
 Vamos embora, pai. Obrigado, Luden. Ao dizer
12
isto, estendeu a mão que o agente apertou sem entusiasmo.
 Porém, ao sentir que um papel se lhe colava
à mão, ficou tão satisfeito que adiou a sesta e acompanhou
 os visitantes à estrada.
CAPÍTULO 2
ANO NOVO EM WEIRTON
Não havia uma razão plausível para o interesse
persistente de Ellery Queen pelo caso do mestre-escola
crucificado. O seu lugar era em Nova Iorque. O inspector
recebera ordens para interromper as férias e regressar
ao serviço e, a observar-se a regra geral, Ellery deveria
acompanhá-lo. Contudo, uma excitação reprimida que
enchia as ruas da capital do distrito da Virgínia Ocidental,
 prendeu-o ali. O inspector desistiu de o convencer
e voltou desgostoso para Nova Iorque.
 Mas afinal o que pensas fazer? perguntou o
velhote, enquanto Ellery o instalava numa carruagem do
Pullman>. Vamos, diz lá. Calculo que já resolveste.
Oiça, inspector, tome cuidado com a pressão arterial, aconselhou
 Ellery, apaziguador. Eu limito-me a
interessar-me pelo caso. Nunca vi nada tão sugestivo.
Esperarei pelo inquérito para ouvir apresentar aquelas
provas a que Luden se referiu.
-Voltarás desiludido para Nova Iorque, profetizou
o inspector. ’
 Não perderei tudo asseverou Ellery. Como
estou pobre de ideias para literatura de ficção, vou aproveitando
 este drama.
E ficaram por aqui. O comboio partiu, deixando Ellery
na estação em liberdade absoluta mas lutando com uma
vaga sensação de remorso. O seu plano estava traçado:
voltaria para Weirton nesse mesmo dia e certamente
que de terça-feira a sábado, o dia seguinte ao Ano
Novo teria oportunidade de extrair do delegado as
informações que desejava. Crumit, o delegado, era um
velho severo, de ambições desmedidas, que tinha um
conceito exagerado da própria importância. Ellery atingiu
a porta do seu gabinete e nem pedidos nem argumentos
conseguiram levá-lo mais longe.
13
«O delegado está ocupado. O delegado não pode receber.
 O delegado está com o juiz. O delegado deu ordem
para que ninguém entrasse. O filho do Inspector Queen
de Nova Iorque? Lamento muito...»
Ellery mordeu os lábios, vagueou pelas ruas e
escutou com ouvidos atentos as conversas dos cidadãos
de Weirton. A cidade, no meio das suas vistosas e brilhantes
 árvores de Natal, estava mergulhada numa vaga
de indescritível terror. Era notória a escassez de mulheres
 nas ruas, e não se viam crianças. Os homens tinham
encontros rápidos e discutiam os processos e os fins.
Falava-se em linchamento propósito que falhava porque
 não havia a quem linchar. A polícia de Weirton rondava
 pelas ruas pouco segura de si. O delegado inspeccionava
 as medidas de segurança sem contudo se atrever
a sair do automóvel.
No meio da confusão que reinava, Ellery conservava-se
 sereno. Na quarta-feira fez uma tentativa para
falar a Stapleton, o juiz de instrução, um jovem gordo
mas sagaz. Ellery não soube por ele nada de novo.
E assim, reservou os três dias que lhe restavam para
obter esclarecimentos acerca de Andrew Van, a vítima.
Poucos o tinham visto em vida: era um misantropo de
hábitos solitários e raramente visitava Weirton. Dizia-se
que a gente de Arroyo o considerava um professor exemplar,
 bondoso, embora enérgico, para com os alunos. No
que respeitava a religião, limitava-se a não praticar o
culto; isto, ao que parece, tinha cimentado a sua posição,
numa comunidade sóbria e temendo a Deus.
Na quinta-feira, o editor do principal periódico de
Weirton tornou-se literato. No dia seguinte começava o
Novo Ano, uma excelente oportunidade para o povo
começar vida nova. Os seis sacerdotes que velavam pelas
necessidades espirituais de Weirton tinham os seus sermões
 transcritos na primeira página. Andrew Van, diziam,
tinha sido um homem sem Deus. E aquele que vive sem
Deus morrerá sem Deus... O editor não ficou por aqui.
Havia um editorial repleto de referências ao Landru, ao
louco de Dusseldorf, a Jack, o Estripador, e a muitos
outros monstros reais ou fictícios um saboroso manjar
 servido ao bom povo de Weirton à guisa de sobremesa
 para o seu jantar de Ano Novo.
14
O tribunal do distrito onde no sábado o juiz de instrução
 devia presidir ao interrogatório, estava repleto de
curiosos muito antes da hora marcada para o início da
sessão, Ellery, prudentemente, tinha sido dos primeiros
a chegar e instalara-se na primeira fila, por detrás da
balaustrada. Quando pouco antes das nove horas apareceu
o juiz Stapleton, Ellery procurou-o e mostrou-lhe um telegrama
 assinado pelo comissário da polícia de Nova
Iorque, documento em face do qual lhe foram franqueadas
 as portas da casa mortuária, onde jazia o corpo de
Andrew Van.
 O cadáver está num feixe suspirou o juiz.
Não foi possível abrir o inquérito na semana do Natal e
já lá vão oito dias... Tem estado no depósito do nosso
cangalheiro.
Ellery respirou fundo e levantou o lençol que cobria
o cadáver, mas tornou a cobri-lo imediatamente, tal o
horror que lhe causou. O corpo era o de um homem alto
e no sítio onde estivera a cabeça não havia nada...
apenas um buraco.
Na mesa ao lado estava o vestuário de um homem;
um casaco cinzento-escuro, sapatos pretos, uma camisa,
peúgas, roupa interior tudo endurecido pelo sangue
seco. Os objectos que haviam sido retirados dos bolsos
 um lápis, caneta, carteira, um molho de chaves, um
maço de cigarros amachucado, algumas moedas, um
relógio barato, uma carta velha pareciam, pelo menos
na opinião de Ellery, inteiramente destituídos de interesse.
 Não havia neles nada de importante para o inquérito,
 a não ser o facto de alguns dos objectos terem
as iniciais A. V. e a carta de um livreiro de Pittsburgh
 ser dirigida ao Sr. Andrew Van.
Stapleton voltou-se para apresentar um velhote afectado
 que acabava de entrar e fitava Ellery com desconfiança.
 O Sr. Queen, o delegado Crumit.
 Quem? perguntou Crumit desabridamente.
Ellery sorriu, fez uma vénia e voltou à sala de
audiências.
Cinco minutos depois, o juiz Stapleton agitou a
campainha e fez-se silêncio na sala apinhada. As fórmulas
 preliminares do costume foram rapidamente pronun-
15
ciadas e em seguida o juiz convidou Michael Orkins a
ocupar o banco das testemunhas.
Orkins avançou pela coxia seguido de murmúrios e
olhares da assistência. Era um velho camponês, risonho,
curvado, queimado pelo sol. Sentou-se com gestos nervosos
 e cruzou as mãos calosas.
 Sr. Orkins começou o juiz diga-nos como
encontrou o cadáver.
O camponês humedeceu os lábios.
 Sim, senhor. Eu vinha para Arroyo no meu Ford,
na sexta-feira passada, de manhã. Antes de chegar ao
cruzamento encontrei o velho Pete que vive nas montanhas,
 caminhando a pé. Dei-lhe uma boleia. Seguimos
para a frente e na curva da estrada... lá estava o corpo,
pregado no poste de sinalização. A voz da testemunha
enfraqueceu. Ao vê-lo, desatámos a fugir para a aldeia.
Um frouxo de riso foi o comentário da assistência.
O juiz impôs silêncio.
 Tocou no corpo?
 Não, senhor. Nem sequer saímos do carro.
 Está bem, Sr. Orkins.
O camponês suspirou, aliviado, e arrastou-se pela
coxia limpando a testa com um grande lenço vermelho.
 Velho Pete! chamou o juiz.
Do fundo da sala surgiu uma curiosa figura, Era
um velho de corpo erecto, com uma barba grisalha e
sobrancelhas espessas. Vestia como um maltrapilho
um estranho aglomerado de roupas velhas, sujas e
remendadas cobria-lhe o corpo. Avançou em passo vacilante,
 hesitou, e depois sacudiua cabeça e sentou-se
no banco das testemunhas.
O juiz parecia irritado.
 O seu nome completo?
Hem? O velho abriu os olhos de espanto.
 Sim, o seu nome? Pete quê?
O velho abanou de novo a cabeça.
 Não tenho outro nome. Sou apenas o velho Pete.
Estou morto. Morri há vinte anos.
Stapleton olhou em volta, desnorteado. O homenzinho
 de meia idade, baixo, de olhar esperto, que estava
sentado junto ao estrado do juiz, levantou-se:
 Está certo, senhor juiz. (
 Então porquê, Sr. Hollis?
16
 Porque respondeu o interpelado o velho Pete
é surdo. Está assim há anos desde que foi para as
montanhas e desde então considera-se morto. Tem
uma cabana lá para cima, perto de Arroyo, e vai à aldeia
de dois em dois meses. Põe umas armadilhas para caça,
lá no mato, suponho. Mas é um belo carácter, senhor
juiz.
O juiz limpou a cara gorda e o presidente do Município
 de Arroyo voltou a sentar-se no meio de um murmúrio
 de aprovação. O velho Pete deu mostras de alegria
e estendeu a mão suja a Matt Hollis...
O interrogatório prosseguiu. As respostas do homem
eram vagas, mas apurou-se o bastante para confirmar o
depoimento de Michael Orkins. Por fim, foi despedido
e retirou-se para o seu canto piscando os olhos.
O presidente Hollis e o agente Luden contaram em
seguida como tinham sido acordados por Orkins e pelo
velho Pete, como tinham ido à encruzilhada, identificado
o cadáver, retirado os pregos, levado o corpo, parado na
casa de Van, e notado os sinais de carnificina e o T traçado
 a sangue, na porta...
A seguir foi chamado um velho alemão gordo e
corado.
 Luther Bernheim!
O homem sorriu, mostrou os dentes de ouro, levou
a mão à barriga e sentou-se.
 É o dono dos armazéns gerais de Arroyo, não é
verdade? 
>Sim, senhor.
 Conheceu Andrew Van?
 Decerto. Costumava abastecer-se nos meus armazéns.
 Há quanto tempo o conhecia?
 Havia muitos anos. Era um bom freguês. Pagava
sempre a dinheiro.
 Era ele próprio quem comprava os géneros de
mercearia?
 Às vezes. Em geral era o Kling. Mas era sempre
o professor que vinha pagar as contas.
 Era amável?
Bernheim hesitou. Bem... sim e não.
 Quer dizer que não tinha atenções particulares,
que era apenas correcto no trato?
2 - Ellery Queen 1 
17
 Isso mesmo.
 Acha que Van era um indivíduo excêntrico?
 Absolutamente. Sobretudo porque encomendava
sempre caviar.
Caviar?
 Sim, senhor. Era até o meu único freguês desse
artigo. Costumava mandá-lo vir de propósito para ele.
Consumia de todas as qualidades: beluga, vermelho,
mas com mais frequência o negro, a melhor qualidade.
 Sr. Bernheim, presidente Hollis e agente Luden;
queiram passar à sala contígua para se proceder à identificação
 formal do corpo.
O juiz abandonou o estrado, seguido pelos três cidadãos
 de Arroyo e a assistência deu largas aos seus
comentários, até que eles voltaram com o horror estampado
 nos olhos.
Ellery Queen cogitava. O mestre-escola de uma
aldeia de duzentas almas, encomendando caviar! Talvez
o agente Luden fosse mais perspicaz do que parecia;
era evidente que o passado de Van fora mais brilhante
do que indicava a sua profissão e o meio em que vivia.
Crumit, o delegado, tomou por sua vez lugar no
banco das testemunhas. A assistência comprimiu a respiração.
 O que até então se tinha passado nada era. As
revelações iam começar agora.
 Senhor Delegado inquiriu o juiz, inclinando-se
para diante, num esforço de atenção investigou o
passado do morto?
 Sim.
Ellery redobrou de curiosidade; detestava cordialmente
 o delegado, mas lia promessas nos olhos frios
de Crumit.
 Tenha a bondade de relatar ao Tribunal o que
descobriu.
O delegado de Hemcock apertou com a mão o braço
da cadeira.
 Andrew Van apareceu em Arroyo há nove anos.
As informações que deu e a preparação que demonstrou
satisfizeram, pelo que foi contratado pelo Município.
Acompanhava-o um tal Kling, seu criado. Alugou a casa
da estrada na qual viveu até à morte. Cumpria a contento
 os seus deveres de professor e durante a sua
permanência em Arroyo a sua conduta foi impecável.
18
 Crumit interrompeu o relato para causar maior sensação.
 Os meus investigadores seguiram a pista da
vítima e descobriram que antes de vir para Arroyo tinha
sido professor numa escola pública de Pittsburgh.
 E antes disso?
 Não se encontrou rasto dele. Era cidadão naturalizado
 dos Estados Unidos, tendo obtido a naturalização
em Pittsburgh há treze anos. Os seus papéis, arquivados
nesta última cidade, indicam a sua nacionalidade, antes
da naturalização como arménio, nascido em 1885.
 Arménio! pensou Ellery acariciando o queixo.
 Perto da Galileia... Estranhos pensamentos, que
repeliu imediatamente, atravessaram-lhe o cérebro.
 Também fez investigações sobre Kling, senhor
Delegado?
 Sim. Era enjeitado e foi recolhido e educado no
Orfanato de S. Vicente, em Pittsburgh. Ao atingir a maioridade
 foi empregado no orfanato como criado para todo
o serviço e ali viveu até que Andrew Van, ao demitir-se
do seu lugar de Pittsburgh e ao colocar-se em Arroyo,
visitou o orfanato e mostrou desejos de dar emprego a
um homem. Kling era bem comportado, ao que parece,
e Van, após haver-se informado escrupulosamente a tal
respeito, deu-se por satisfeito e contratou-o, indo ambos
viver para Arroyo, onde ficaram até ao dia do crime.
Ellery pôs-se a imaginar que motivos poderiam levar
um homem a abandonar uma cidade como Pittsburgh
para se ir fixar numa aldeia como Arroyo. Um passado
criminoso que desejava esconder da polícia? Pouco provável;
 o esconderijo é mais fácil nas grandes cidades
do que nas aldeias. Não, era alguma coisa mais importante
 e mais obscura que talvez tivesse ficado sepultada
para sempre no cérebro do morto. Há homens que buscam
 a solidão, depois de uma vida tumultuosa; podia
muito bem ser este o caso de Andrew Van, mestre-escola
 de Arroyo e apreciador de caviar.
 Que espécie de homem era Kling? perguntou
Stapleton.
O delegado pareceu aborrecido.
 O Orfanato aponta-o como sendo um espírito
simples, um tipo inofensivo.
 Tinha mostrado alguma vez tendências homicidas?
 Não. Era considerado em S. Vicente como um
19
indivíduo de temperamento brando e dócil, bastante
estúpido. Era bondoso para com as crianças do Orfanato
e humilde e respeitador para com os superiores.
O delegado teve um gesto teatral e pareceu disposto
 a desvendar as famosas revelações, mas o juiz
despediu-o apressadamente e tornou a chamar o merceeiro
 de Arroyo.
 Conhecia o Kling, Sr. Bernheim?
 Sim, senhor.
 Que espécie de homem era ele?
Sossegado. Boa pessoa. Mudo como uma pedra.
Alguém riu e Stapleton ficou contrariado. Inclinou-se
para a frente.
 É verdade, Sr. Bernheim, que esse Kling era
famoso em Arroyo pela sua força física?
Ellery riu-se intimamente. O juiz era um ingénuo.
Bernheim sorriu.
 Decerto. Kling era tão forte que levantava uma
barrica de açúcar! Mas não fazia mal a uma mosca,
senhor juiz. Lembro-me até que uma vez...
 Basta cortou Stapleton, irritado. Presidente
Hollis, queira voltar a depor.
Matt Hollis avançou. «Um tipo untuoso», pensou
Ellery.
 É o senhor o presidente do Município, Sr. Hollis?
 Sou sim, senhor.
 Diga ao júri o que sabe acerca de Andrew Van.
 Era cumpridor das suas obrigações. Não tinha
questões com ninguém. Era estudioso; fora das aulas,
conservava-se só, na bela casa que eu lhe arrendei.
Alguns achavam-no intratável e mesmo estúpido, mas
eu não.
O presidente tomara um ar sentencioso.
 Era o que se chama um homem pacato. Não
convivia, mas isso era lá com ele. Se não queria ir à
pesca comigo e com o agente Luden, também não tenho
nada com isso.
Hollis sorriu e abanou a cabeça.
 E falava um inglês tão correcto como o meu ou
o seu, senhor juiz.
 Sabe se ele recebia visitas?
 Não me parece. Mas, é claro que não posso garantir.
 Era no entanto um tipo extraordinário continuou,
20
com um ar pensativo.Quando eu ia a Pittsburgh
pedia-me para lhe comprar livros, livros curiosos, de
pomposa encadernação e versando os mais diversos
assuntos tal como Filosofia, História, sobre as estrelas
e outros do mesmo género.
Bem, bem, muito interessante, Sr. Hollis. Ouça:
o senhor é o banqueiro de Arroyo, não é?
Sou sim, senhor. Matt Hollis corou e olhou
modestamente para os pés. Ellery compreendeu pela
expressão do homem que ele era quase tudo em Arroyo.
 Andrew Van tinha conta no seu banco?
 Nunca teve. Costumava receber o ordenado regularmente,
 em dinheiro, mas não me parece que o depositasse
 em qualquer parte, porque lho perguntei várias
vezes bem vê, negócios são negócios , e ele respondeu-me
 sempre que o guardava em casa. Hollis
encolheu os ombros. Dizia que não confiava nos
bancos. Enfim, cada um tem o seu gosto. Não vou
discutir...
 Sabia-se disso em Arroyo?
Hollis hesitou.
 Bem, talvez eu contasse o caso a algumas pessoas.
 Penso que quase todos em Arroyo sabiam desta
originalidade do professor.
Hollis retirou-se e o agente Luden tomou o seu lugar,
com um ar de quem tem ideias próprias acerca da forma
como as coisas devem ser conduzidas.
 É certo que passou uma busca à casa de Andrew
Van na manhã de sexta-feira, 25 de Dezembro?
 Exacto.
, Encontrou algum dinheiro?
 Nenhum.
; Um murmúrio ecoou pela sala:
 Roubo!
Ellery franziu a testa. Nada indicava tal. Primeiro,
um crime com todo o aspecto de mania religiosa e
depois um roubo de dinheiro. Decididamente, as duas
coisas não ligavam. Inclinou-se para a frente.
Nesse momento um homem transportava qualquer
coisa para o estrado. Era uma caixa de folha, barata,
pintada de verde e amolgada. O cadeado estava torcido
e a pequena fechadura pendia, rebentada.
21
O juiz tomou-a das mãos do meirinho, abriu-a e
virou-a de fundo para o ar. Estava vazia.
 Agente Luden, conhece esta caixa?
 Ia jurar que é a mesma que encontrei em casa
de Van. É a caixa do dinheiro.
O juiz apresentou a caixa ao júri de provincianos
que estendia o nariz para ela.
 O júri fará o favor de examinar esta prova...
 Muito bem, agente. Passa a depor o chefe dos
correios de Arroyo.
Um velhinho encarquilhado tomou assento no banco
das testemunhas.
 Andrew Van recebia muita correspondência?
 Nenhuma asseverou o funcionário. Apenas
folhetos e raros.
 Sabe se a vítima recebeu alguma carta ou
encomenda na semana anterior à sua morte?
 Não recebeu.
 Costumava expedir correspondência?
Não. Uma ou duas cartas, apenas, de tempos a
tempos. Nenhuma, porém, nos últimos três ou quatro
meses.
Foi chamado a depor o médico legista, Dr. Strang,
um homem espigado, de aspecto triste. Ao ouvir o seu
nome, a assistência começou a murmurar, freneticamente,
enquanto ele avançava, vagaroso, pela coxia, como se
tivesse muito tempo para chegar.
 Dr. Strang, quando examinou pela primeira vez
o cadáver?
 Duas horas após a sua descoberta.
 Pode determinar a hora aproximada da morte?
 Sim, posso. O homem morreu seis a oito horas
antes de ter sido encontrado na encruzilhada.
 Isso fixa a hora do crime como sendo cerca das
seis horas da noite de Natal, não é assim?
 Precisamente.
 Pode fornecer ao júri mais detalhes acerca das
condições em que se encontrava o cadáver e que sejam
susceptíveis de interessar ao inquérito?
Ellery sorriu. O Juiz Stapleton tinha-se preparado
para o efeito: a sua linguagem era terrivelmente formal
e os espectadores a julgar pelas suas bocas abertas
 estavam impressionadíssimos.
22
O Dr. Strang cruzou as pernas e retorquiu, aborrecido:
 Não havia sinais no corpo além da ferida no
pescoço, onde a cabeça estivera ligada, e os buracos
nos pés e nas mãos.
O juiz soergueu-se e espichou a barriga sobre o
bordo da mesa.
 Dr. Strang inquiriu com voz rouca que conclusão
 tira desse facto?
 Que o morto foi provavelmente agredido na
cabeça a tiro ou de qualquer outra forma, visto não
haver no seu corpo quaisquer outros sinais de violência.
Ellery teve um gesto de assentimento. Este médico
rural de aspecto triste tinha a cabeça no seu lugar.
 É minha opinião prosseguiu o médico que a
vítima estava já morta quando lhe cortaram a cabeça.
Pela natureza da ferida praticada no pescoço, depreende-se
 que deve ter sido empregado um instrumento
muito cortante.
O juiz pegou cuidadosamente num objecto colocado
sobre a mesa, em frente dele, e levantou-o. Era um
machado de longo cabo e aspecto contundente, cuja
lâmina brilhava nos sítios onde não havia sangue.
 Parece-lhe, doutor, que este instrumento possa
ter amputado a cabeça à vítima?
 Sim.
O juiz voltou-se para o júri.
 Este objecto foi encontrado no chão da cozinha
da casa de Andrew Van. Quero chamar a vossa atenção
para o facto de não haver impressões digitais na arma,
o que denota ter o criminoso usado luvas ou haver limpado
 o cabo ao machado, depois de o usar. Este instrumento
 foi reconhecido como tendo sido propriedade
do morto e era habitualmente guardado na cozinha,
utilizando-o Kling, em tempo normal, para rachar lenha...
Obrigado, Dr. Strang. E em seguida, dirigindo-se ao
coronel Pickett, um homem alto, de aspecto militar
coronel, faça favor.
O chefe da polícia do Estado da Virgínia Ocidental
teve um pequeno gesto de aquiescência e sentou-se.
 Coronel Pickett, o que tem a declarar?
 Uma busca minuciosa aos arredores de Arroyo
 disse o coronel numa voz seca de metralhadora
23
falhou no objectivo de encontrar a cabeça do assassinado.
Não se encontrou rasto do criado Kling, mas foi enviada
uma descrição minuciosa do mesmo às autoridades de
todos os Estados vizinhos que estão portanto alerta
para o apanhar.
 Creio que o senhor foi encarregado das investigações
 relativas aos últimos movimentos, tanto do morto,
como do criado desaparecido, coronel. O que descobriu?
 Andrew Van foi encontrado pela última vez às
quatro horas da tarde de quinta-feira, 24 de Dezembro.
Visitou a casa da Sr.ª Traub, residente em Arroyo, para
a prevenir de que o seu filho, William, aluno da sua
escola, estava a atrasar-se nos estudos. Depois, foi-se
embora e pelo que averiguámos ninguém mais o tornou
a ver com vida.
 E Kling?
 Esse foi visto pela última vez por Timothy Traynor
 um camponês que vive entre Arroyo e Pughtown
 na mesma tarde, pouco depois das 4 horas. Comprou
um saco de batatas, pagou a dinheiro e carregou-o aos
ombros.
 O saco de batatas foi encontrado em casa de
Van? Isto é importante, coronel, para se determinar se
Kling chegou ou não a casa.
 Sim. Intactas. Foram identificadas por Traynor
como sendo as batatas que havia vendido.
 Tem mais alguma coisa a declarar?
O coronel Pickett olhou em torno de si, antes de
responder. A sua boca parecia uma ratoeira quando disse
em tom inflexível:
 Decerto que tenho!
A sala tornou-se silenciosa como um túmulo. Ellery
sorriu; as revelações chegavam, por fim. O coronel inclinou-se
 para segredar qualquer coisa ao ouvido do juiz.
Stapleton pestanejou, sorriu, limpou as faces e sacudiu
a cabeça. Os espectadores pressentiram um acontecimento
 e remexeram-se nos seus lugares. Pickett acenou
a alguém que se encontrava ao fundo da sala.
A este sinal avançou um polícia de elevada estatura,
segurando pelo braço um indivíduo extraordinário: um
velhote de longos cabelos castanhos desgrenhados e
barba hirsuta. Tinha uns olhinhos brilhantes, os olhos de
um fanático. A pele era cor de bronze sujo, tostada e
24
ressequida pelo sol e pelo vento, como se sempre
tivesse vivido ao ar livre. Ellery notou que o homem
vestia um calção de caqui coberto de lama e uma velha
camisola cinzenta de gola alta. Os pés escuros riscados
de veias azuladas estavam metidos num curioso par
de sandálias e na mão segurava um objecto estranho
 um bastão encimado pela representação grosseira de
uma cobra, evidentemente talhada à mãopor um artista
medíocre.
A assistência agitou-se, estalaram gargalhadas e o
juiz a custo conseguiu restabelecer a ordem. Atrás do
polícia e do seu estranho prisioneiro seguia um jovem
pálido, envergando um fato-macaco sujo de óleo, cuja
popularidade entre a assistência era de certo muito
grande, visto que à sua passagem muitas mãos se estenderam
 furtivamente para ele, ao mesmo tempo que lhe
segredavam palavras de encorajamento.
Os três homens passaram para a teia e sentaram-se.
O velho das barbas castanhas estava positivamente
possuído de um terror mortal; os olhos bailavam-lhe nas
órbitas e as magras mãos apertavam e largavam convulsivamente
 o original bastão.
 Gaspar Croker, venha depor.
O jovem pálido engoliu em seco, levantou-se e dirigiu-se
 para o banco das testemunhas.
 O senhor é proprietário de uma garagem situada na Main Street, em Weirton?
 Claro que sou. V. Ex.ª conhece-me, senhor...
 Responda às minhas perguntas interveio o juiz
com autoridade. Conte ao Tribunal o que sucedeu, às
onze horas da noite de Natal.
Croker suspirou, olhou em volta como que buscando
auxílio e começou:
 Fechei a minha garagem na noite de Natal
queria festejar a data. Moro numa casa mesmo por
detrás e quando às 11 horas me encontrava em casa
com minha mulher, ouvi uma série de pancadas que pareciam
 provir da minha garagem, pelo que corri para lá.
Estava escuro como breu. Tornou a engolir em seco e
resumiu: Era um homem que batia de facto à porta
da garagem. Quando me viu...
 Um momento, Sr. Croker. Como estava ele
vestido?
25
O garagista encolheu os ombros.
 Estava escuro e não pude ver, nem me ocorreu
reparar nisso.
 Observou bem a cara do homem?
 Sim, senhor. Estava por baixo da lanterna e tinha
a gola levantada o frio era muito mas pareceu-me
que não queria ser reconhecido. De qualquer forma,
era um tipo bem barbeado, moreno e com aspecto de
estrangeiro, embora se expressasse em bom americano.
 Que idade calcula que ele tivesse?
 Cerca de 35 anos, pouco mais ou menos. É difícil
calcular.
 O que queria ele?
 Alugar um carro que o levasse a Arroyo.
Ellery podia ouvir a respiração asmática de um
homem forte que se sentava atrás dele, tal era o silêncio
 que reinava na sala. O auditório estava suspenso,
sentado na borda das cadeiras.
 O que aconteceu então? interrogou o juiz.
 bom replicou Croker, mais seguro. Não me
agradou muito a ideia. Eram 11 horas da noite de Natal,
a minha mulher estava só, etc. Mas ele puxou da carteira
e disse: «Dou-lhe 10 dólares para me levar lá». Isto é
uma data de dinheiro para um pobre como eu, e respondi:
 Okay, senhor desconhecido, está combinado.
 Levou-o lá?
 Sim, senhor. Voltei atrás a buscar o casaco, avisei
a mulher de que saía por meia hora, peguei no meu
velho carro e lá fomos. Perguntei-lhe a que parte de
Arroyo queria ir e ele disse: «Não há um sítio onde a
estrada de Arroyo se encontra com a de Pughtown-New
Cumberland?» Respondi-lhe que sim e disse-me: «É aí
mesmo que eu quero ir». Levei-o lá, saiu, deu-me a nota,
virei o carro e regressei a casa imediatamente. Sentia-me
 como que assustado.
 Viu o que o homem fazia, depois de o deixar?
 Sim. Croker fez um gesto enfático de assentimento.
 Observava-o por cima do ombro. Esteve prestes
 a cair numa vala e depois tomou o caminho de
Arroyo, coxeando bastante.
O excêntrico homenzinho sentado ao lado do polícia
começou a arfar, procurando em volta uma porta por
onde se escapulisse.
26
 Coxeava? De qual das pernas? 
 Parecia poupar a perna esquerda. Apoiava todo
o peso do corpo na direita.
 Foi a última vez que o viu? ’
 Sim, senhor. E a primeira, também. Nunca o tinha
visto antes.
 Basta.
Croker levantou-se do banco, aliviado, e apressou-se
a seguir em direcção à porta.
 Agora nós exclamou o juiz, trespassando com
o olhar o velho das barbas que se encolhia no banco.
Venha depor.
O polícia ergueu-se e fez levantar o homem, impelindo-o
 para a frente. O estranho personagem não resistiu,
 mas lia-se pânico nos seus olhos de doido e o corpo
continuava a tremer-lhe. O polícia plantou-o sem cerimónia
 no banco das testemunhas e tornou para o seu
lugar.
 Como se chama? começou Stapleton.
Um frouxo de riso sacudiu a assistência no momento
em que todo o ridículo do aspecto e vestuário do velho
ficaram em evidência no estrado das testemunhas.
Passou-se bastante tempo antes que a ordem fosse
restabelecida, e entretanto a testemunha molhava os
lábios e balouçava-se para um e outro lado, resmungando
consigo próprio. Ellery foi assaltado pelo pressentimento
 de que o homem rezava o que” era desconcertante, à
 cobra de madeira que encimava a sua vara.
Stapleton repetiu a pergunta com nervosismo.
O velho ergueu o bastão a toda a altura do braço, endireitou
 os magros ombros, parecendo apelar para uma
reserva de força e de dignidade, olhou de frente para
o juiz e respondeu numa voz clara e aflautada:
 Sou aquele a quem chamam Harakht, o Deus do
Meio Dia, Ra-Harakht, o falcão!
Fez-se um silêncio de espanto. O juiz piscou os
olhos e recuou como se alguém tivesse na sua frente
pronunciado ameaças ininteligíveis. A assistência ficou
a princípio boquiaberta e de repente rompeu em riso
histérico, produzido, desta vez, não pelo irrisório da
situação, mas por um medo sem nome. Havia algo de
terrível e fantástico neste homem; emanava dele um
27
fervor demasiado anormal para que pudesse ser entendido.
 Quem? perguntou o juiz em voz fraca.
O homem que a si próprio chamava Harakht cruzou
os braços sobre o peito descarnado, com o bastão firmemente
 apoiado na sua frente e não se dignou responder.
Stapleton limpou a testa e pareceu embaraçado para
continuar.
 Em que se emprega, Sr. Ra-Harakht?
Ellery encolheu-se no seu lugar e corou pelo juiz.
A cena tornava-se penosa. Harakht moveu os lábios ao
de leve:
Eu sou o curador dos fracos, torno os corpos
doentes sãos e fortes. Sou aquele que conduz Manzet,
a Barca da Aurora. Aquele que guia Mesenktet, a Barca
do Poente. Alguns chamam-me Hórus, Deus dos Horizontes;
 sou o Filho de Nut, Deusa do Firmamento,
Esposa de Queb, Mãe de Isis e Osíris. Sou o Deus
Supremo de Memphis. Sou um só com Etom...
 Basta! gritou o juiz. Por amor de Deus! Que
significa isto, coronel Pickett? Creio que me disse que
este lunático tinha qualquer coisa de importante a declarar.
 Eu...
O chefe da polícia estadual levantou-se prontamente.
 Harakht esperava com calma, desaparecido por
completo o seu primitivo terror, como se nos escaninhos
 do seu cérebro complicado compreendesse que
estava senhor da situação.
 Sinto muito, senhor juiz disse o coronel.
Devia tê-lo avisado. Este homem não é um ser normal.
Acho melhor contar a V. Ex.ª e ao júri o que ele faz, para
que possa pôr-lhe as perguntas de uma forma mais
directa. Usa uma espécie de farmácia ambulante, uma
coisa esquisita, toda decorada de sóis, estrelas, luas
e figuras fantásticas de Faraós egípcios. Parece que se
imagina o Sol ou coisa parecida. É inofensivo. Anda por
aí de terra em terra como um cigano, numa carroça
puxada por um cavalo. Já passou por Illinois, Indiana,
Ohio e Virgínia Ocidental, pregando e vendendo um
remédio para todas as doenças, que faz crescer o
cabelo...
 É o elixir da juventude, interrompeu Harakht
contrariado. Luz do Sol engarrafada. Eu sou o escolhido
28
de Deus e prego o evangelho da luz solar. Sou Mentu
e Atmu, e...
 E... Liru disse Ellery de si para consigo.
 Trata-se apenas de óleo de fígado de bacalhau
vulgar, ao que parece explicou o coronel Pickett,
sorrindo. Ninguém sabe o verdadeiro nome do homem;
presumo que ele próprio o tenha esquecido.
 Muito obrigado, coronel redarguiu o juiz com
dignidade.
Ellery, sentado no seu duro assento, estremeceu
até à medula com uma descoberta súbita. Tinha reconhecido
 o tosco emblema que o louco segurava na mão.Era o uroeus, ceptro da serpente usado pela divindade
principal dos antigos egípcios e seus reais descendentes.
A princípio, tinha-se inclinado a supô-lo um símbolo
de Mercúrio em forma de cobra, mas esse símbolo
incluía sempre asas, e este, como podia ver aplicando
melhor o olhar, tinha um grosseiro disco solar dominando
a serpente das serpentes... O Egipto dos Faraós! Alguns
dos nomes que tinham saído da boca do velho tonto
eram-lhe familiares: Horus, Nut, Isis, Osíris. Os outros,
conquanto estranhos, tinham um sabor egípcio...
 Hum... Harakht, ou lá como se chama dizia
neste momento o juiz ouviu o depoimento de Gaspar
Croker referente a um homem moreno, bem barbeado,
que coxeava?
Um olhar mais inteligente iluminou as pupilas do
homem das barbas que respondeu, tomado do mesmo
terror paralisante:
 O... o coxo? gaguejou ele. Sim.
 Reconhece alguém pela descrição feita?
Hesitação. Em seguida:
 Sim.
 Uf! fez o juiz suspirando. Agora, Harakht,
já nos entendemos. O seu tom era alegre e amistoso.
 Quem é esse homem e donde o conhece?
 É meu sacerdote.
 Sacerdote! Ouviram-se murmúrios na sala e
Ellery distinguiu a voz do homem forte exclamando:
 Por Deus! Que blasfémia!
 Quer dizer que é seu... ajudante?
É meu discípulo. Meu sacerdote. Pontífice Máximo
de Hórus.
29
 Sim, sim interrompeu Stapleton, impaciente.
 E o nome dele?
 Velja Krosac.
 Hum tornou o juiz, franzindo a testa. Um
nome estrangeiro. Arménio? inquiriu de repente,
fitando o homem das barbas.
 Não há outra nação senão o Egipto replicou
Harakht placidamente.
 bom disse Stapleton com olhar penetrante.
Como escreve esse nome?
 Temos tudo isso, Sr. Stapleton atalhou o
coronel Pickett. É Velja Krosac. Encontrámo-lo nuns
papéis, na carroça dele.
 Onde está esse Velja Krosac? interrogou o juiz.
Harakht encolheu os ombros.
 Foi-se embora.
Ellery viu um relâmpago de pânico nos olhinhos
esgazeados do velho.
Quando?
O coronel Pickett entrou uma vez mais em cena.
 É melhor eu dizer, Sr. Stapleton, e apressar o
interrogatório. Krosac manteve-se sempre oculto, pelo
que conseguimos apurar. Há já um par de anos que
andava com este homem. Era um tipo misterioso. Actuava
como agente de publicidade e director de negócios. Uma
espécie de factotum de Harakht. Este trouxe-o do Oeste.
Krosac esteve pela última vez com Harakht na véspera
de Natal. Tinham acampado junto da enseada de Holiday,
a poucas milhas de Weirton. Ellery recordava-se de ter
visto esse nome nalguns postes de sinalização Krosac
partiu por volta das dez horas e foi esta a última vez
que este não sei quê afirma tê-lo visto.
 O senhor não encontrou sinais de Krosac?
O coronel pareceu irritado.
 Ainda não sibilou. Desapareceu como se a
terra o tivesse engolido. Mas, encontrá-lo-emos. Eu não
desisto. Enviámos para toda a parte descrições dele, juntamente
 com as de Kling.
 Harakht perguntou o juiz já esteve alguma
vez em Arroyo?
 Arroyo? Ainda não.
 Não passaram para o norte deste distrito explicou
 o coronel.
30
 O que sabe acerca de Krosac?
 É um verdadeiro crente afirmou Harakht com
convicção. Adora todos os altares com fervor. Toma
parte nos kuphi e ouve as sagradas escrituras com respeito.
 É o orgulho e a glória...
 Está bem interrompeu o juiz, cansado.
Leve-o, agente.
O polícia sorriu, pôs-se de pé, agarrou o braço magro
do Barba-Castanha e carregou-o para fora. O juiz deu
um suspiro de alívio ao vê-los desaparecer entre a multidão.
Ellery fez coro com ele. Seu pai tinha razão; era evidente
 que ia regressar a Nova Iorque se não desiludido
por completo, pelo menos com um caso insolúvel para
narrar. Todo o processo era tão disparatado, a questão
tão incompreensível e tão despida de lógica que descambava
 em farsa. E no entanto... havia aquele corpo
brutalmente mutilado e crucificado... Crucificado! Estremeceu,
 com um arfar quase audível. Crucificação o
Egipto antigo! Onde tinha ele deparado com este estranho
 encadeamento?...
O inquérito prosseguia rapidamente. O coronel
Pickett exibiu uma série de objectos que tinha encontrado
 na carroça de Harakht e que o mesmo declarara
serem propriedade de Krosac. Não tinham qualquer valor
intrínseco nem como possíveis pontos de esclarecimento
acerca do passado e identidade do seu possuidor. Não
havia fotografias de Krosac facto de que o juiz informou
 o júri, o que tornava ainda mais difícil a captura
do homem. Para aumentar as dificuldades, também se
não encontraram quaisquer espécimes da sua caligrafia.
Outras testemunhas foram chamadas a depor. Esclareceram-se
 pontos sem importância. Não se descobriu
ninguém que tivesse observado a casa de Andrew Van
na noite de Natal, nem que tivesse visto Krosac depois
que o garagista Croker o deixou na encruzilhada. A habitação
 de Van era a única na vizinhança do cruzamento,
e ninguém por lá passara naquela noite... Os pregos
encontrados no corpo de Van provinham da sua própria
caixa de ferramentas, habitualmente guardada na despensa,
 junto da cozinha. Tinham sido comprados há muito
por Kling ao armazenista Bernheim, como então se apu-
31
rou; muitos deles tinham sido usados na construção de
um alpendre.
Ellery só tomou consciência do que o rodeava
quando o juiz Stapleton se levantou.
 Senhores jurados principiou este último ,
acabam de ouvir os depoimentos sobre o crime...
Ellery levantou-se de um salto. Stapleton parou,
aborrecido com a interrupção.
 Que há, Sr. Queen? O senhor está a interromper
a marcha de...
 Um momento, Sr. Stapleton apressou-se Ellery
a dizer. Antes de se dirigir ao júri quero declarar
que estou de posse de um elemento que me parece
importante para o inquérito.
 O que é? gritou o delegado Crumit, levantando-se
 do seu lugar. Um novo facto?
 Não é isso, senhor Delegado replicou Ellery
sorrindo. Um facto bastante velho, mais velho do que
a religião de Cristo.
 Venha cá ordenou o juiz. O público movimentava-se
 e segredava, e o júri tinha-se levantado em
peso para observar melhor esta testemunha imprevista.
 A que se refere, Sr. Queen? O que tem a religião
de Cristo a ver com este caso? inquiriu Stapleton.
 Nada... espero.
Ellery voltou-se para o juiz.
O aspecto mais significativo deste horrível crime
 disse em tom severo, se me é permitido falar assim,
não foi ainda abordado durante todo este inquérito. Refiro-me
 à circunstância de o criminoso, quem quer que foi,
se ter preocupado em fixar a letra ou símbolo T em volta
da cena do crime. A forma do cruzamento em T, o poste
de sinalização em T, o cadáver com o aspecto de um T,
e até o T traçado na porta da casa da vítima; tudo isto
foi comentado, e com razão, pela Imprensa.
 Sabemos tudo isso interrompeu o delegado
desdenhosamente mas onde está a revelação que nos
prometeu?
 Nisto. Ellery fitou-o pouco amenamente e Crumit,
 embaraçado, tornou a sentar-se. Não vejo bem a
relação que possa existir confesso-o envergonhado
mas já pensaram que o símbolo T pode não se referir
ao alfabeto?
32
 O que quer dizer, Sr. Queen? inquiriu o juiz
ansiosamente.
 Que o símbolo T tem um significado religioso.
 Significado religioso? repetiu Stapleton.
Um cavalheiro corpulento com um colarinho de
sacerdote ergueu-se dentre a assistência.
 Se me permitem a intromissão disse em voz
Cortante, sou um ministro do Evangelho, e nunca ouvi
falar em qualquer significado religioso da letra T.
Alguém gritou:
 Bem respondido, Parson! e o sacerdote corou
e sentou-se.
Ellery sorriu.
 Lamento contradizer o ilustre ministro de Deus,
mas o significado é este: Entre os numerosos símbolos
religiosos existe uma cruz com a forma de um T. É chamada
 a cruz tau ou crux commissa.
O sacerdote levantou-se lesto. Sim, é verdade.
Mas não é uma cruz cristã; era um símbolo pagão.
 Precisamente. Ellery sorriu por entre dentes.
Ea cruz grega não foi usada por povos pré-cristãos, muitos
 séculos antes da Era de Cristo? A tau precedeu, de
muitas centenas de anos, a cruz grega.
Todos esperavam e o silêncio era absoluto.
Ellery fez uma pausa para tomar fôlego. Depois
levantou de novo os olhos para o juiz e explicou.
 Tau ou cruz T não é o seu único nome. Chamam-lhe
 por vezes... deteve-se um pouco e concluiu calmamente:
 Cruz Egípcia!
CAPÍTULO 3
O PROFESSOR YARDLEY
E com os acontecimentos precedentes terminou o
caso. É extraordinário, é incrível... mas a questão morreu
nesse ponto. A estranha correlação para a qual Ellery
Queen chamara a atenção dos habitantes de Weirton
adensou ainda mais o mistério. De resto, ele próprio não
3 -Ellery Queen 1
 33
achava qualquer solução. Consolava-se, pensando que
era difícil aplicar a lógica às divagações de um louco.
Se o problema era demasiado complicado para ele,
era-o com mais razão para o juiz Stapleton, para o delegado
 Crumit, para o coronel Pickett e para o júri de
provincianos de Arroyo e Weirton, assim como para o
bando de jornalistas que tinham invadido a cidade, no
dia do interrogatório. Sob a pressão do juiz que persistia,
teimosamente, em não querer aceitar um veredicto sem
provas, o júri coçou a cabeça e pronunciou-se por morte
às mãos de pessoa ou pessoas desconhecidas. Os jornalistas
 ainda rondaram por ali mais um ou dois dias.
O coronel Pickett e o delegado Crumit foram reduzindo
cada vez mais a sua actividade e por fim o caso morreu
para a Imprensa o que equivale, na América, a uma
verdadeira certidão de óbito.
Ellery voltou para Nova Iorque com um filosófico
encolher de ombros. Quanto mais pensava no assunto
mais se inclinava a crer que a explicação era, no fim de
contas, bem simples. Não havia motivo, pensava, para
duvidar das evidentes indicações fornecidas pelos depoimentos,
 insuficientes, decerto, mas positivas. Existia um
homem chamado Velja Krosac, um estrangeiro que falava
inglês, um bocado charlatão, o qual, por motivos nebulosos
 só dele conhecidos, procurara um mestre-escola de
aldeia também de origem estrangeira, e lhe tirara a vida.
A forma como as coisas se haviam passado, embora
interessante sob o ponto de vista criminológico, não era
forçosamente importante. Era a horrível mas compreensível
 expressão de um espírito abrasado no fogo de uma
psicologia anormal. O que se ocultava por detrás disto
 história sórdida de ofensas imaginárias, fanatismo
religioso ou vingança sangrenta nunca se chegaria
provavelmente a saber. Krosac, uma vez cumprida
a sua missão cruel, desaparecera, e talvez nesse momento
 singrasse o alto mar em demanda da sua Pátria.
E Kling, o criado? Sem dúvida uma vítima inocente,
apanhada entre dois fogos, liquidada pelo criminoso por
ter testemunhado o crime ou observado por um momento
a face do assassino. Kling representava, segundo toda
a evidência, a ponte que Krosac tivera que queimar na
sua retirada. Era natural que um homem que não hesi-
34
tava à ideia de cortar uma cabeça humana apenas para
ilustrar com a carne lacerada o T simbólico da sua vingança,
 não recuasse ante a necessidade de destruir
um perigo inesperado para a sua segurança.
E, deste modo, Ellery voltou para Nova Iorque para
receber os remoques trocistas do inspector.
 Não te vou dizer uma vez mais que tinha razão
 advertiu o velho no decurso do jantar, na noite da
chegada de Ellery mas sempre quero fazer-te notar
a moral da história.
 Diga, diga murmurou Ellery, atacando uma
costeleta.
 A moral é esta: um crime é um crime e 99,9%
dos crimes cometidos em todo o Mundo são simples
como o ABC. Sem fantasia! Entendes, meu pateta?
O inspector prosseguiu: Não sei o que com o tempo
esperavas fazer naquela terreola distante, mas qualquer
pessoa pouco experiente te podia ter dado a resposta.
Ellery pousou o garfo. Mas a lógica...
 Frioleiras cortou o inspector. Vai ver se
dormes!
Decorreram seis meses durante os quais Ellery
esqueceu por completo os estranhos acontecimentos de
Arroyo. Tinha que fazer. Nova Iorque, ao contrário da
sua congénere Pensilvânia, não era o que pode chamar-se
uma cidade onde reinasse o amor fraternal; os homicídios
 eram numerosos; o inspector andava de um lado
para o outro, num delírio de investigações, e Ellery
seguia-lhe no encalço, contribuindo com as suas notáveis
faculdades para a resolução dos casos que lhe despertavam
 interesse.
Apenas em Junho, seis meses depois da crucificação
de Andrew Van na Virgínia Ocidental, foi forçado a
recordar o crime de Arroyo. No dia 22 desse mês uma
quarta-feira Ellery e o inspector Queen estavam
tomando o pequeno-almoço quando a campainha tocou,
e Djuna, o criado particular de Queen, apareceu com um
telegrama para Ellery.
 É estranho disse este rasgando o sobrescrito.
 Quem será que se lembrou de me telegrafar tão cedo?
35
 De quem é? resmungou o velhote com a boca
cheia de torrada.
 É de... respondeu o filho desdobrando a mensagem
 e deitando um olhar para a assinatura. De
Yardley concluiu, no auge da surpresa. Sorriu para
o pai e acrescentou:
 Lembra-se do Professor Yardley, um dos meus
mestres na Universidade?
Claro que me lembro. O tipo da História Antiga,
não é? Um muito feio, de pêra, que passou connosco
um fim-de-semana, quando veio a Nova Iorque?
 Esse mesmo. Um dos meus melhores professores.
 Já não há gente assim suspirou Ellery. Há que
anos nos não vemos! Nunca mais soube nada dele. Porque
diabo...
 Sugiro que leias o telegrama interveio o
velhote. É a melhor maneira de saberes tudo isso.
O meu filho em certas coisas é tapado como uma porta!
O brilho garoto que iluminava os olhos do inspector
desapareceu ao atentar na cara de Ellery. A expressão
deste tornara-se séria.
Que aconteceu? inquiriu o pai de Queen com
impaciência. Morreu alguém?
Ele conservava a superstição burguesa de que os
telegramas trazem desgraça.
Ellery atirou o papel para cima da mesa, afastou a
cadeira, entregou o guardanapo a Djuna e dirigiu-se para
o seu quarto, desembaraçando-se do roupão pelo caminho.
O inspector pegou no telegrama e leu:
APESAR TANTOS ANOS SEPARAÇÃO PENSO DESEJE
JUNTAR O ÚTIL AO AGRADÁVEL STOP. PORQUE NÃO
ME FAZ VISITA HÁ TANTO PROMETIDA STOP. ENCONTRARÁ
 ESTRANHO CRIME OCORRIDO PRÓXIMO MINHA
CASA STOP. UM VIZINHO MEU FOI ENCONTRADO ESTA
MANHÃ DECAPITADO E CRUCIFICADO NO POSTE EXISTENTE
 SUA PROPRIEDADE STOP. POLICIA LOCAL ESTÁ
AINDA CHEGANDO STOP. ESPERO-O HOJE.
YARDLEY
36
 CAPÍTULO 4
BRADWOOD
Muitas milhas antes do velho Ford chegar ao seu
destino era já fácil de notar que algo sucedera de extraordinário.
 A estrada principal de Long Island que Ellery
percorria, como de costume, a uma velocidade doida,
estava patrulhada por motociclistas da polícia que desta
vez pareciam desinteressados por questões de excesso
de velocidade. Ellery envaidecido pelo facto de ser
portador de uma autorização especial para guiar depressa,
quase desejava que o mandassem parar para assim ter
oportunidade de gritar orgulhosamente: «Serviço Especial
 da Polícia». O inspector tinha telefonado a instâncias
 do filho para o inspector Vaughrt, da polícia distrital
de Nassau, a anunciar que o seu famoso rebento
como costumava dizer ia a caminho e que lhe pedia
para ele todo o auxílio necessário, tanto mais que era
portador de informações do mais alto interesse para a
boa marcha das investigações. Em seguida telefonara
para o delegado Isham, também do distrito de Nassau,
repetindo a promessa e a recomendação e obtendo deste
a garantia de que nada seria retirado do local do crime
antes da chegada de Ellery.
Era meio-dia quando o Ford tomou por uma das
estradas particulares de Long Island e Ellery foi abordado
 por um motociclista da polícia.
 É este o caminho para Bradwood?
 É, mas o senhor não vai lá replicou o polícia
sorrindo. Volte o carro e ponha-se a andar.
 O Inspector Vaughn e o delegadoIsham estão à
minha espera retorquiu Ellery com ênfase.
Oh! O senhor é o Sr. Queen? Peço desculpa.
Queira prosseguir.
Vingado e triunfante, Ellery arrancou e cinco minutos
 depois desembarcou numa estrada aberta entre duas
propriedades uma, a julgar pelo aglomerado de carros
oficiais espalhados no percurso, era, evidentemente,
Bradwood, onde o crime havia sido cometido; a outra, do
lado oposto da estrada, devia ser a do seu amigo e
antigo mestre, professor Yardley.
O professor, um homem alto e feio com uma seme-
37
lhança surpreendente com Abraham Lincoln, veio em
pessoa ao seu encontro, sorridente e de mão estendida,
mal o viu saltar do velho carro.
 Queen! Que prazer em voltar a vê-lo!
 É verdade, professor. Que prazer. Há anos que o
não via! O que fez em Long Island? A última vez que
tive notícias suas, ainda estava na Universidade a torturar
 os pobres caloiros.
O professor agitou a barba preta num sorriso.
 Arrendei aquele Ta j Mahal, do outro lado da
estrada, a um amigo maluco.
Ellery voltou-se e avistou umas espirais e uma
cúpula bizantina, espreitando acima das árvores, na direcção
 indicada pelo professor.
 Ele próprio construiu aquela monstruosidade
quando estava possuído do vírus oriental continuou
Yardley. Anda agora em viagem de turismo pela Ásia
Menor, razão por que aproveitei este Verão para, em
sossego, trabalhar na minha obra há muito adiada
«Origens da Lenda da Atlântida». Recorda-se das alusões
de Platão?
 Recordo-me replicou Ellery sorrindo da Nova
Atlântida, de Bacon, porque o meu interesse nesse tempo
era mais literário do que científico.
 A mesma juventude de espírito, pelo que vejo...
 comentou Yardley. Mas, falava eu em sossego. Olhe
para isto.
 Porque se lembrou de mim?
Iam andando ao longo do movimentado caminho de
Bradwood que conduzia a uma grande casa em estilo
colonial, com enormes colunas que brilhavam ao sol do
meio-dia.
 O grande poder da coincidência retorquiu em
tom breve o professor. Tenho seguido a sua carreira
com natural interesse. E, como fico sempre fascinado
com as suas aventuras, li com avidez os relatos do
extraordinário crime de Arroyo, publicado há uns cinco
ou seis meses.
Ellery chegou ao local do crime antes de ter tido
tempo para responder. A propriedade de Bradwood estava
tratada com todo o cuidado, revelando a riqueza do seu
possuidor.
 Devia ter calculado que nada escaparia aos olhos
38
que examinaram milhares de papiry e stelai. com que
então leu a versão fortemente romanceada da minha
estada em Arroyo?
 Li. E também a sua romanceada falha no caso
troçou o professor. Ao mesmo tempo foi-me grato
verificar que aplicava os princípios que tentei introduzir
na sua cabeça teimosa ir sempre à origem das coisas.
Uma Cruz Egípcia, meu rapaz? Receio que a sua tendência
 para o teatro lhe tenha ocultado a verdade científica...
 Bem, chegámos.
 O que quer dizer? perguntou Ellery ansioso.
A cruz em tau era, certamente, um símbolo dos egípcios
primitivos e...
 Discutiremos isso depois interrompeu o professor.
 Presumo que queira conhecer Isham, que tem sido
bastante amável em me deixar bisbilhotar.
O delegado Isham era um homem atarracado, de
meia-idade, com os olhos de um azul muito claro e uma
cabeleira grisalha em forma de ferradura, que nesse momento
 se encontrava de pé nos degraus da entrada principal
 da casa, entretido em animada conversa com um
cavalheiro forte que trajava civilmente.
 Sr. Isham exclamou o professor Yardley. Eis
o meu protegido, Ellery Queen.
Os dois homens voltaram-se de repente.
 Ah! Sim fez Isham, como se pensasse noutra
coisa. Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Queen. Não
vejo em que nos possa auxiliar mas...encolheu os
ombros apresento-lhe o Inspector Vaughn, da polícia
distrital de Nassau.
Ellery apertou a mão a ambos.
 Dão-me licença que dê uma volta por aí? Prometo
não vos incomodar.
O inspector Vaughn mostrou os dentes amarelos num
sorriso.
 Precisamos de alguém que nos incomode. Estamos
 para aqui parados. quer ver o cenário principal?
 Creio que é costume. Venha daí, professor.
Os quatro homens desceram os degraus da entrada
e tomaram por um carreiro, coberto de cascalho que contornava
 a ala leste da casa. Ellery apercebeu-se da extensão
 da propriedade, verificando que a habitação estava
situada a meio caminho, entre a estrada principal onde
39
tinha deixado o carro e as águas de uma baía cujas ondas
salpicadas de manchas de sol se avistavam da elevação
onde se erguia a casa.
 Este curso de água explicou o delegado Isham
 era um afluente do Sound; chamavam-lhe Baía de
Ketcham. Para além das águas da baía podia ver-se a
silhueta verdejante de uma ilhota. A ilha das Ostras
explicou o professor que abriga uma curiosa colecção
 de...
Ellery olhou-o interrogativamente, mas Isham interrompeu
 com modo brusco.
 Lá chegaremos.
Yardley encolheu os ombros e remeteu-se ao
silêncio.
A vereda afastava-se da casa a pouco e pouco, e em
breve o arvoredo se adensou em volta deles. A alguns
metros de distância encontraram-se de repente numa
clareira, no centro da qual estava um objecto grotesco,
em face do qual estacaram, impressionados. Em torno
do objecto postavam-se polícias e detectives, mas Ellery
só tinha olhos para o centro, onde se erguia um poste
esculpido, de cerca de nove pés de altura, que em tempos
 devia ter sido brilhantemente colorido, a avaliar pelo
que restava da pintura, mas que agora se encontrava
desbotado e manchado como se sobre ele tivessem passado
 séculos de tempestades. Os ornatos, um aglomerado
 de carrancas e figuras de animais híbridos, terminavam
 no topo com uma águia mal talhada, de bico baixo
e asas abertas. As asas estendiam-se horizontalmente em
relação ao solo, o que dava ao poste o aspecto de um T
maiúsculo que impressionou Ellery logo ao primeiro
relance.
Do poste pendia o corpo decapitado de um homem,
cujos braços estavam atados às asas por meio de um
cordel forte, encontrando-se as pernas presas da mesma
forma à trave vertical. O agudo bico de madeira da águia
curvava-se alguns centímetros acima do buraco sangrento
onde outrora assentara a cabeça da vítima.
Havia algo de patético neste espectáculo horripilante;
 o cadáver mutilado apresentava a fraqueza e impotência
 de uma boneca de trapos sem cabeça.
 Que espectáculo! comentou Ellery impressionado.
40
 Confrangedor murmurou Isham. Nunca vi
nada igual. Faz gelar o sangue nas veias. E estremecendo,
 acrescentou: Vamos. Deixemos isto.
Aproximando-se mais do poste, Ellery notou que a
 alguns metros de distância deste, existia uma pequena
 cabana de tecto de colmo, à entrada da qual se postava
 um polícia. Depois, volveu a sua atenção de novo para o
cadáver. Pertencia a um homem de meia-idade, de grande
barriga, mãos grossas e flácidas. O corpo envergava
calças de flanela e uma camisa de seda aberta no pescoço,
 sapatos brancos, peúgas brancas e um casaco de
veludilho. Do pescoço aos pés todo ele era um fardo
ensanguentado, como se tivesse sido mergulhado num
alguidar de sangue.
 É um pólo totemista, não é? perguntou Ellery
ao professor Yardley, ao passarem por detrás do cadáver.
 Um poste totemista, corrigiu Yardley com severidade.
 É um termo mais adequado. Não sou uma
autoridade em totemismo, nem em religiões dos peles-vermelhas,
 mas esta relíquia, ou data dos primitivos
habitantes da América do Norte ou é uma imitação brilhante.
 Nunca vi outra igual. A águia deve representar o
Clã da Águia.
 Calculo que o corpo tenha sido identificado?...
Claro, informou o inspector Vaughn, O que
está vendo é o que resta de Thomas Brad, dono da Bradwood,
 milionário e importador de tapetes.
 Mas... o corpo, ainda não foi retirado observou
Ellery. Como podem ter a certeza?
O delegado Isham mostrou-se admirado.
Oh! É com certeza o Brad. Os fatos são dele, e
não seria fácil imitar aquelabarriga.
 Também me parece. Quem descobriu o corpo?
 Foi encontrado esta manhã, às sete e meia, por
um dos criados da casa, um misto de motorista e jardineiro,
 chamado Fox esclareceu o inspector Vaughn.
Este homem vive numa cabana do outro lado da casa, no
bosque, e quando esta manhã veio buscar o carro à garagem
 que fica nas traseiras da habitação, a mandado de
Jonah Lincoln, uma das pessoas que aqui moram, soube
que Lincoln não estava ainda preparado para sair e veio
dar uma olhadela às flores, deparando então com isto.
Diz ele que ficou quase doido.
41
 Não custa a acreditar notou o professor Yardley
traindo uma impressionante falta de sensibilidade; examinava
 o poste totemista e a sua carga bizarra como se
se tratasse de um raro objecto histórico.
Quando se refez do susto, o homem voltou para
casa a correr continuou o inspector Vaughn. Deu-se
o que era de esperar: acorreu toda a gente. Ninguém
tocou em nada. Lincoln que é um nervoso, mas tem a
cabeça no seu lugar, vigiou até à nossa chegada.
E quem é Lincoln? inquiriu Ellery interessado.
 O director-geral da firma de Brad, Brad & Megara
 os conhecidos importadores de tapetes explicou
 Isham. Lincoln vive aqui. Parece que Brad gostava
imenso dele.
 Um magnate de tapetes em embrião. E Megara?
Também vive aqui?!
Isham encolheu os ombros.
 Quando não anda em viagem, como agora. Há
meses que está fora. Brad era o sócio-gerente.
 Concluo por isso que o Sr. Megara, o viajante,
seja o dono do pólo-totemista ou poste, por deferência
 para com o professor.
Um homenzinho de aspecto frio avançava pela vereda
em direcção a eles, transportando uma mala preta.
Aí vem o Dr. Rumsen anunciou Isham com um
suspiro de alívio. Viva, doutor. Dê uma vista de olhos
a isto.
 Estou a ver, retorquiu o médico legista de Nassau
 que é isto? O matadouro de Chicago?
Ellery observou o corpo. Este parecia muito rígido.
O Dr. Rumsen deitou-lhe um olhar profissional, fungou
e disse:
 Desçam-no, desçam-no. Ou estão à espera que
eu vá lá acima examiná-lo?
O inspector Vaughn deu instruções a dois agentes
que imediatamente se muniram de navalhas. Um deles
desapareceu no interior da cabana, voltando momentos
depois com uma cadeira rústica que colocou junto ao
poste, trepando em seguida para o assento.
 Quer que corte, chefe? perguntou, antes de
dar o golpe nos cordéis que sustinham o braço direito.
 Talvez queira que eu deixe a corda inteira. Parece-me
que posso desatar o nó.
42
 Corte-o ordenou o inspector secamente.
Quero ver esse nó de perto. Talvez nos dê uma pista.
Os outros avançaram, e a fúnebre tarefa de descer o
corpo foi executada em silêncio.
A propósito notou Ellery, enquanto observavam
a marcha do trabalho. Como se arranjou o criminoso
para içar o corpo e atar em seguida os braços às asas,
a uma altura de nove pés?
 Da mesma forma que o agente agora replicou
o delegado com frieza. Encontrámos uma cadeira manchada
 de sangue, igual à que ali está, dentro da cabana.
Ou eram dois, ou o tipo que fez isto era um colosso.
Deve ter sido um bom frete içar um corpo morto até
àquela altura, mesmo com a ajuda de uma cadeira.
 Onde encontraram a cadeira? interrogou Ellery,
pensativo. Na cabana?
 Sim. Deve ter sido posta depois da tarefa concluída.
 Há muitas outras coisas lá dentro que vale a pena
ver, Sr. Queen.
 Há ainda outra coisa que deve interessá-lo
acrescentou o inspector Vaughn, quando o corpo foi por
fim depositado na relva. É isto. Pegou num pequeno
objecto vermelho, circular, que tirou do bolso e apresentou-o
 a Ellery. Era uma pedra de xadrez, de madeira
vermelha.
 Hum fez Ellery. Bastante prosaico! Onde
encontrou isto, inspector?
 No solo desta mesma clareira retorquiu Vaughn
 alguns pés à direita do poste.
O que o leva a supor que seja importante? perguntou
 ainda Ellery, revolvendo a peça entre os dedos.
Vaughn sorriu.
 Eu explico. A pedra não pode ter estado aqui muito
tempo, como se conclui do seu aspecto. Além disso,
sobre este cascalho cinzento, um objecto vermelho daria
nas vistas. O chão é limpo todos os dias por Fox com
uma brossa de arame; não é portanto provável que estivesse
 aqui durante o dia; pelo menos, Fox afirma que
não. Faz pensar que tem algo que ver com os acontecimentos
 da noite passada, pois na escuridão, teria passado
 despercebido.
 Óptimo, inspector! exclamou Ellery. Aqui está
um homem às direitas.
43
O Dr. Rumsen soltava entretanto uma série de feias
pragas, nada profissionais.
 O que aconteceu? apressou-se Isham a interrogar.
 Encontrou alguma coisa?
 A coisa mais curiosa que ainda vi foi a resposta.
 Ora, repare!
O cadáver de Thomas Brad jazia estendido na relva
junto ao poste, como uma estátua tombada. A sua rigidez
era tão pouco natural que Ellery, com a triste mas real
experiência adquirida, compreendeu que ainda se mantinha
 o rigor mortis. Enquanto ali jazia, com os braços
abertos, o cadáver, à excepção da barriga e do vestuário,
 apresentava uma notável semelhança com o de
Andrew Van, tal como Ellery o tinha contemplado em
Weirton, seis meses antes. E ambos eram figuras humanas
 talhadas em forma de T...
Ellery abanou a cabeça e seguiu com os outros para
ver o que tinha espantado tanto o Dr. Rumsen.
O médico havia levantado o braço direito do cadáver
e apontava para a palma azulada da mão. No centro, claramente
 impressa, destacava-se uma mancha vermelha
circular, cujos contornos eram apenas levemente irregulares.
 Que diabo chamam os senhores a isto? resmungou
 o Dr. Rumsen. Não é sangue. Mais parece tinta,
mas eu seja preto se percebo a razão disto.
Parece disse Ellery lentamente que as suas
previsões se confirmam, inspector. A pedra de xadrez,
o lado direito do poste, a mão direita da vítima...
 Por Deus! Tem razão! gritou o inspector
Vaughn. Tirou de novo a pedra do bolso e colocou-a sobre
a mancha da mão do morto. Ajustava-se e Vaughn
ergueu-se com um olhar de triunfo e perplexidade.
Mas... com a breca...
O delegado Isham abanou a cabeça.
 Não considero o facto importante. Ainda não viu
a biblioteca de Brad, Vaughn, por isso não sabe. Encontrei
 lá os restos de uma partida de xadrez. Saberá mais
pormenores quando lá formos. Brad, tinha por qualquer
motivo uma pedra na mão quando foi assassinado e o
criminoso ignoravam». A pedra caiu quando ele foi ali
pendurado, e eis tudo.
44
 Então o crime foi cometido dentro de casa?
inquiriu Ellery.
 Oh! Não. Nesta mesma cabana. Temos disso provas
 suficientes. Penso que a explicação para a presença
da pedra é a mais simples possível. Parece uma pedra
defeituosa que o calor e a transpiração da mão de Brad
fizeram desbotar.
Deixaram o Dr. Rumsen a examinar o corpo mutilado,
 e encaminharam-se para a cabana. Distava apenas
alguns passos do poste. Ellery olhou em redor antes de
entrar.
 Vejo que não há instalação eléctrica aqui fora.
Pergunto a mim mesmo como...
O assassino deve ter empregado uma lanterna.
Isto se a coisa se passou realmente no escuro disse
o inspector. O Dr. Rumsen esclarecerá esse ponto,
quando nos disser há quanto tempo Brad está morto.
O polícia que guardava a entrada, saudou militarmente
 e afastou-se para o lado. Os quatro homens
entraram.
A cabana era uma construção pequena e circular
feita de ramos de árvores cruzados à maneira rústica.
Tinha um tecto cónico de colmo e meias-paredes, sendo
as partes superiores destas substituídas por gelosias
verdes. Dentro, havia uma mesa feita de um tronco cortado,
 e duas cadeiras, uma das quais manchada de
sangue.
 Não há dúvida que foi aqui disse o delegado,
apontando para o chão.
No centro, havia uma grande mancha espessa, de
um vermelho acastanhado. Pela primeira vez, o professor
 Yardley mostrou nervosismo.
 Mas... Isto não é sangue humano... esta enorme
nódoa.
 Claro que é replicou Vaughn. A abundância
de sangue explica-se se admitirmos que a cabeça de Brad
foi cortada aqui

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