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A Revoada Gabriel García Márquez A Revoada Gabriel García Márquez A REVOADA romance SERPENTE ,,,,,,,,,,, EMPLUMADA QUETZAL EDITORES A Revoada SERPENTE ,,,,,,,,,,,,,,, EMPLUMADA Gabriel García Márquez A Revoada Tradução de António Gonçalves Quetzal Editores Lisboa / 1989 Título da edição original: «La Hojarasca» A primeira edição desta obra foi publicada por Publicações Europa‑América com o título O Enterro do Diabo E quanto ao cadáver do infeliz Polinices, o édito proíbe que o enterrem ou o chorem. Que o deixem insepulto, sem lágrimas, um banquete de carne à mercê das ávidas aves de rapina. O bom Creonte! Foi isto que mandou anunciar‑nos, a ti e a mim; sim, também a mim. E em breve ele próprio virá aqui, para o anunciar aos que ainda o não saibam. A ameaça não é pequena: o castigo dos transgressores será a morte por lapidação na praça pública. (De Antígona) De súbito, como se um remoinho se tivesse instalado no centro da aldeia, chegou a companhia bananeira, perseguida pela revoada. Era uma revoada tumultuosa, alvoroçada, formada pelos detritos humanos e materiais das outras aldeias; resquícios de uma guerra civil que cada vez mais parecia remota e inverosímil. A revoada era implacável. Contaminava tudo com o seu revolto cheiro a gente, cheiro a secreções à flor da pele e a morte recôndita. Em menos de um ano, arremessou sobre a aldeia os escombros de numerosas catástrofes anteriores a ela própria, espalhou pelas ruas a sua confusa carga de detritos. E esses detritos, precipitadamente, ao ritmo convulso e imprevisto da tormenta, iam‑se seleccionando, individualizando, até converterem o que foi uma ruela com um rio numa ponta e um recinto para os mortos na outra, numa aldeia diferente e confusa, feita com os detritos das outras aldeias. A ela chegaram, confundidos com a revoada humana, arrastados pela sua impetuosa força, os detritos dos armazéns, dos hospitais, dos salões de festas, das centrais eléctricas; detritos de mulheres sozinhas e de homens que amarravam a mula a um poste do hotel, trazendo como única bagagem um baú de madeira ou uma trouxa de roupa, e daí a poucos meses tinham casa própria, duas concubinas e o título militar que lhes ficaram a dever por terem chegado tarde à guerra. Até os detritos do amor triste das cidades nos chegaram na revoada, e construíram pequenas casas de madeira, e fizeram primeiro um recanto onde meio catre era o sombrio lar para uma noite, e depois uma ruidosa rua clandestina, e depois toda uma aldeia de tolerância dentro da aldeia. No meio daquele venda‑val, daquela tempestade de caras desconhecidas, de tendas na via pública, de homens mudando de roupa na rua, de mulheres sentadas nos baús com os chapéus‑de‑sol abertos, e de mulas e mulas abandonadas, a morrerem à fome na cavalariça do hotel, nós, os primeiros, éramos os últimos; éramos os forasteiros, os intrusos. A seguir à guerra, quando chegámos a Macondo e apreciámos a qualidade do seu solo, soubemos que alguma vez havia de chegar a revoada, mas não contávamos com o seu ímpeto. Por isso, quando sentimos chegar a avalancha, a única coisa que pudemos fazer foi pôr o pra‑to com o garfo e a faca atrás da porta e sentar‑nos pacientemente à espera que os recém‑chegados nos conhecessem. Então, pela primeira vez, o comboio apitou. A revoada alvoroçou‑se e saiu para o receber e, com o alvoroço, perdeu o balanço, mas adquiriu unidade e solidez; e sofreu o natural pro‑cesso de fermentação e incorporou‑se aos gérmens da terra. (Macondo, 1909) 1. PELA primeira vez vi um cadáver. É quarta‑feira, mas é como se fosse domingo, porque não fui à escola e vestiram‑me este fato de bombazina verde que me fica apertado. Pela mão da mamã, seguindo o meu avô, que tacteia com a bengala a cada passo para não tropeçar nas coisas (não vê bem na penumbra e coxeia), passei em frente do espelho da sala e vime de corpo inteiro, vestido de verde e com este laço branco engomado que me aperta de um lado do pescoço. Vi‑me na redonda lua manchada e pensei: Aquele sou eu, como se hoje fosse domingo. Viemos à casa onde está o morto. O calor é sufocante na sala fechada. Ouve‑se o zumbido do sol pelas ruas, mas nada mais. O ar é denso e concreto; dá a impressão de que seria possível torcê‑lo, como a uma lâmina de aço. Na sala onde puseram o cadáver cheira a baús, mas não os vejo em parte nenhuma. Há uma rede no canto, suspensa da argola por uma das pontas. Há um cheiro a detritos. E creio que as coisas arruinadas e quase desfeitas que nos rodeiam têm o aspecto das coisas que devem cheirar a detritos, embora realmente tenham outro cheiro. Sempre julguei que os mortos deviam ter chapéu. Agora vejo que não. Vejo que têm a cabeça rígida e um lenço amarrado ao maxilar. Vejo que têm a boca um pouco aberta e que se vêem, por detrás dos lábios roxos, os dentes manchados e irregulares. Vejo que têm a língua mordida de lado, grossa e pastosa, um pouco mais escura do que a cor da cara, que é como a dos dedos quando os apertamos com uma corda. Vejo que têm os olhos abertos, muito mais do que os de um homem, ansiosos e desorbitados, e que a pele parece ser de terra compacta e húmida. Julguei que um morto parecia uma pessoa tranquila e adormecida, e agora vejo que é precisamente o contrário. Vejo que parece uma pessoa viva e irritada depois de uma discussão. A mamã também se vestiu como se fosse domingo. Pôs o antigo chapéu de palha que lhe cobre as orelhas e um vestido preto, fechado em cima, com mangas até aos punhos. Como hoje é quarta‑feira, vejo‑a distante, desconhecida, e tenho a impressão de que me quer dizer alguma coisa enquanto o meu avô se levanta para receber os homens que trouxeram o caixão. A mamã está sentada a meu lado, de costas para a janela fechada. Respira custosamente e a cada instante compõe os fios de cabelo que lhe caem por baixo do chapéu posto à pressa. O meu avô ordenou aos homens que pusessem o caixão ao pé da cama. Só então me dei conta de que o morto cabe de facto dentro dele. Quando os homens trouxeram a urna, tive a impressão de que era demasiado pequena para um corpo que ocupa todo o comprimento da cama. Não sei porque é que me trouxeram. Nunca tinha entrado nesta casa, e até julguei que estava desabitada. É uma casa grande, de esquina, cujas portas, creio, nunca foram abertas. Sempre julguei que a casa estivesse desocupada. Só agora, depois de a mamã me dizer: «Esta tarde não vais à escola», e eu não sentir alegria porque mo disse com voz grave e reservada, e de a ver regressar com o meu fato de bombazina e mo vestir sem falar e irmos até à porta ter com o meu avô, e de passarmos pelas três casas que separam esta da nossa, só agora me dei conta de que vivia alguém nesta casa de esquina. Alguém que morreu e que deve ser o homem a quem a minha mãe se referiu quando me disse: «Tens de estar com muito juízo no enterro do doutor.» Ao entrar não vi o morto. Vi o meu avô à porta, a falar com os homens, e vi-o depois a mandar‑nos entrar. Julguei então que havia alguém na sala, mas ao entrar senti‑a escura e vazia. O calor atingiu‑me o rosto desde o primeiro momento, e senti este cheiro a detritos que a princípio era sólido e permanente e que agora, como o calor, chega em ondas espaçadas e desaparece. A mamã levou‑me pela mão através da sala escura e sentou‑me a seu lado, a um canto. Só passado algum tempo comecei a distinguir ascoisas. Vi o meu avô tentando abrir uma janela que parece ter os bordos colados, soldados ao aro, e vi-o às bengaladas à aldraba, com o casaco cheio de pó que se soltava a cada pancada. Virei a cara para onde o meu avô se dirigiu quando se declarou incapaz de abrir a janela e só então vi que havia alguém na cama. Havia um homem desconhecido, esticado, imóvel. Então virei a cabeça para o lado da mamã, que permanecia distante e séria, a olhar para outra parte da sala. Como os meus pés não chegam ao chão e ficam suspensos no ar, a um palmo do soalho, pus as mãos debaixo das coxas, as palmas apoiadas no assento, e comecei a baloiçar as pernas, sem pensar em nada, até que me lembrei do que a mamã me tinha dito: «Tens de estar com muito juízo no enterro do doutor.» Então senti uma coisa fria, atrás de mim, voltei a olhar e apenas vi a parede de madeira seca e gretada. Mas foi como se alguém me tivesse dito da parede: «Não mexas as pernas, que o homem que está na cama é o médico e está morto.» E quando olhei para a cama já não o vi como antes. Já não o vi deitado, mas sim morto. Desde então, por muito que me esforce por não olhar para ele, é como se alguém me virasse a cara para aquele lado. E, apesar de fazer esforços para olhar para outras partes da sala, continuo a vê‑lo, em todos os la‑dos, com os olhos desorbita‑dos e a cara verde e morta na escuridão. Não sei porque não veio ninguém ao enterro. Viemos nós, o meu avô, a mamã e os quatro guajiros 1 que trabalham para o meu avô. Os homens trouxeram um saco de cal e esvaziaram‑no dentro do caixão. Se a minha mãe não estivesse estranha e ,,,,,,,,,,, 1 Índios da península de Gnajira, no nordeste da Colômbia (N' do T') distraída, perguntava‑lhe porque é que fazem isso. Não entendo porque é que têm que deitar cal dentro da urna. Quando o saco ficou vazio, um dos homens sacudiu‑o sobre o caixão e ainda caíram umas últimas aparas, mais parecidas com serradura do que com cal. Levantaram o morto pelos ombros e pelos pés. Tem umas calças ordinárias, presas à cintura por uma correia larga e preta, e uma camisa cinzenta. Só tem calçado o sapato esquerdo. Está, como diz Ada 2, com um pé rei e outro escravo. O sapato direito está caído a uma ponta da cama. Deitado, o morto parecia desconfortável. No caixão parece mais cómodo, mais tranquilo, e o rosto, que ,,,,,,,,,,, 2 Diminutivo de Adelaida (N' do T') era o de um homem vivo e acordado depois de uma discussão, adquiriu uma expressão repousada e firme. O perfil tornou‑se suave; e é como se ali, na urna, se sentisse já no lugar que lhe correspondia como morto. O meu avô andou de um lado para o outro na sala. Apanhou alguns objectos e colocou‑os na urna. Volto a olhar para a mamã com a esperança de que me diga porque é que o meu avô está a deitar coisas no caixão. Mas a minha mãe permanece imperturbável dentro do vestido preto e parece esforçar‑se por não olhar para o sítio onde está o morto. Eu também quero não olhar, mas não consigo. Olho para ele fixamente, examino‑o. O meu avô põe um livro dentro do caixão, faz um sinal aos homens, e três deles colocam a tampa sobre o cadáver. Só então me sinto liberto das mãos que me viravam a cabeça para aquele lado e começo a examinar a sala. Volto a olhar para a minha mãe. Ela, pela primeira vez desde que aqui chegámos, olha para mim e sorri com um sorriso forçado, sem nada dentro; e oiço ao longe o apito do comboio que se per‑de na última curva. Sinto um ruído no canto onde está o cadáver. Vejo que um dos homens levanta uma extremidade da tampa e que o meu avô introduz no caixão o sapato do morto, o que estava esquecido em cima da cama. O comboio volta a apitar, cada vez mais distante, e de repente penso: São duas e meia. E lembro‑me de que a esta hora (enquanto o comboio apita na última curva da aldeia) os rapazes formam filas na escola para assistirem à primeira aula da tarde. Abraão, penso. Não devia ter trazido a criança. Não lhe faz bem este espectáculo. A mim própria, que vou fazer trinta anos, perturba‑me este ambiente rarefeito devido à presença do cadáver. Pode‑ríamos sair agora. Podería‑mos dizer ao papá que não nos sentimos bem num quarto em que se acumularam, durante dezassete anos, os resíduos de um homem alheado de tudo o que possa ser considerado como afecto ou gratidão. Talvez tenha sido o meu pai a única pessoa que sentiu por ele alguma simpatia. Uma inexplicável simpatia que agora lhe vale para não apodrecer dentro destas quatro paredes. Preocupa‑me o ridículo que há em tudo isto. Inquieta‑me a ideia de sairmos à rua, daqui a pouco, seguindo um caixão que a ninguém inspirará um sentimento de compaixão. Imagino a expressão das mulheres às janelas, vendo passar o meu pai, vendo‑me passar com a criança atrás de uma urna mortuária em cujo interior vai apodrecendo a única pessoa a quem a aldeia tinha querido ver assim, conduzida ao cemitério no meio de um implacável abandono, seguida pelas três pessoas que decidiram fazer a obra de misericórdia que há‑de ser o princípio da sua própria vergonha. É possível que esta decisão do papá seja a causa de que amanhã não se encontre ninguém disposto a seguir o nosso enterro. Talvez por isso tenha trazido a criança. Quando o papá me disse, há pouco: «Tem de me acompanhar», a primeira coisa que me ocorreu foi trazer também a criança, para me sentir protegida. Agora estamos aqui, nesta sufocante tarde de Setembro, sentindo que as coisas que nos rodeiam são os agentes impiedosos dos nossos inimigos. O papá não tem com que se preocupar. Na realidade, passou a vida a fazer coisas como esta; fazendo a aldeia morder o pó, cumprindo os seus mais insignificantes compromissos de costas voltadas a todas as conveniências. Há vinte e cinco anos, quando este homem chegou a nossa casa, o papá devia ter suposto (ao dar‑se conta dos modos absurdos do visitante) que hoje não haveria na aldeia nem uma pessoa disposta sequer a atirar o cadáver aos galináceos. Talvez o papá tivesse previsto todos os obstáculos, medido e calculado os possíveis inconvenientes. E agora, vinte e cinco anos depois, deve sentir que isto é apenas o cumprimento de uma tarefa longamente premeditada, que teria levado a cabo de qualquer modo, ainda que tivesse de arrastar ele próprio o cadáver pelas ruas de Macondo. Todavia, chegada a hora, não teve coragem para o fazer sozinho, e obrigou‑me a participar nesse intolerável compromisso que deve ter as‑sumido muito antes de eu ter chegado ao uso da razão. Quando me disse: «Tem de me acompanhar», não me deu tempo para pensar nas consequências das suas palavras; não pude calcular quanto há de ridículo e impudico em enterrar um homem que toda a gente tinha esperado ver transformado em pó dentro do seu covil. Porque o povo não só tinha esperado isso, como se havia preparado para que as coisas acontecessem desse modo, e tinham‑no esperado de coração, sem remorsos, e até com a satisfação antecipada de algum dia virem a sentir o gostoso cheiro da sua decomposição flutuando na aldeia, sem que ninguém se sentisse comovi‑do, alarmado ou escandalizado, antes satisfeito por ver chegar a hora almejada, desejando que a situação se prolongasse até o tortuoso cheiro do morto saciar mesmo os mais recônditos ressentimentos. Agora privaremos Macondo de um prazer longamente esperado. É como se, de certa maneira, esta nossa decisão fizesse nascer no coração do povo não o melancólico sentimento de uma frustração mas o de um adiamento. Também por isso devia ter deixado a criança em casa; para não a comprometer nesta maquinação que agora se cevará em nós, como antes fez com o médico durante dez anos. A criança devia ter permanecido à margem deste compromisso. Nem sequer sabe porque está aqui, porque é que o trouxemos a este quarto cheio de escombros. Permanece silenciosa, perplexa, como se esperasse que alguém lhe explique o significado de tudo isto; como se aguardasse, sentada, baloiçandoas pernas e com as mãos apoiadas na cadeira, que alguém lhe decifre esta espantosa charada. Quero ter a certeza de que ninguém o fará; de que ninguém abrirá essa porta invisível que a impede de ultrapassar os limites dos seus sentidos. Olhou para mim várias vezes e sei que me achou estranha, desconhecida, com este vestido fechado e este chapéu antigo que pus para não ser identificada, nem sequer pelos meus próprios pressentimentos. Se Meme estivesse viva, aqui nesta casa, talvez fosse diferente. Poderia julgar‑se que vim por ela. Poderia julgar‑se que vim para partilhar uma dor que ela não teria sentido, mas que teria podido aparentar, e que a aldeia teria podido compreender. Meme desapareceu há cerca de onze anos. A morte do médico põe fim à possibilidade de conhecer o seu paradeiro, ou, pelo me‑nos, o paradeiro dos seus ossos. Meme não está aqui, mas é provável que, se cá estivesse ‑ se não tivesse acontecido o que aconteceu, e que nunca se conseguiu esclarecer ‑, se tivesse posto do lado da aldeia contra o homem que durante seis anos lhe aqueceu a cama com tanto amor e tanta compaixão como teria podido fazê‑lo um jumento. Ouço apitar o comboio na última curva. São duas e meia, penso; e não consigo afastar a ideia de que a esta hora toda a Macondo está suspensa do que fazemos nesta casa. Penso na senhora Rebeca, magra e encarquilhada, com algo de fantasma doméstico no olhar e no vestir, sentada ao pé da ventoinha eléctrica e com a sombra das redes das suas janelas no rosto. Enquanto ouve o comboio que se perde na última curva, a senhora Rebeca inclina a cabeça para a ventoinha, atormenta‑da pela temperatura e pelo ressentimento, com as velas do seu coração girando como as pás da ventoinha (mas em sentido inverso), e murmura: «Aqui anda a mão do diabo»; e estremece, ligada à vida pelas minúsculas raízes do quotidiano. E Agueda, a tolhida, vendo Solita que regressa da estação, onde foi despe‑dir‑se do noivo, vendo‑a abrir a sombrinha ao dobrar a esquina deserta, sentindo‑a aproximar‑se com o regozijo sexual que ela própria sentira outrora e que se transformou nessa paciente doença religiosa que a faz dizer: «Hás‑de chafurdar na cama como um porco no seu esterqueiro.» Não consigo ver‑me livre desta ideia. Não quero pensar que são duas e meia; que passa a mula do correio envolta numa poeirada abrasadora, seguida pelos homens que interromperam a sesta da quarta‑feira para receber o maço dos jornais. O padre Angel, sentado, dorme na sacristia, com um breviário aberto sobre a barriga gordurosa, ouvindo passar a mula do correio, sacudindo as moscas que lhe apoquentam o sono, arrotando, dizendo: «Envenenas‑me com as tuas almôndegas.» O papá tem sangue‑frio para isto tudo. Até para mandar destapar o caixão e pôr lá dentro o sapato esquecido em cima da cama. Só ele era capaz de se interessar pela grosseria deste homem. Não me surpreenderia que, quando sairmos com o caixão, a multidão esteja à porta à nossa espera com os excrementos acumulados durante a noite e nos dê um banho de imundícies por ir‑mos contra a vontade da aldeia. Talvez não o façam por se tratar do papá. Talvez o façam por se tratar de algo tão indigno como sonegar à aldeia um prazer prolongadamente almejado, imaginado durante muitas tardes sufocantes, de cada vez que os homens e as mulheres passavam por esta casa e diziam de si para si: «Mais tarde ou mais cedo havemos de almoçar com esse cheiro.» Porque era o que todos diziam, da primeira à última casa. Daqui a pouco serão três da tarde. A Señorita já sabe. A senhora Rebeca viu‑a passar e chamou‑a, invisível por detrás da rede, saiu por um momento da órbita da ventoinha e disse‑lhe: «Señorita, é o diabo, a senhora sabe'''» E amanhã já não será o meu filho que irá à escola, mas sim outra criança completamente diferente; uma criança que há‑de crescer, reproduzir‑se e morrer, por fim, sem que ninguém tenha para com ela uma dívida de gratidão que a torne merecedora de um enterro cristão. Eu estaria agora em casa, tranquila, se há vinte e cinco anos este homem não tivesse vindo ter com o meu pai, com uma carta de recomendação que nunca ninguém soube donde veio, e tivesse ficado connosco, alimentando‑se de erva e olhando para as mulheres com aqueles olhos ávidos de cão que lhe saltaram das órbitas. Mas o meu castigo já estava escrito quando nasci, e permanecera oculto, reprimido, até este fatal ano bissexto em que havia de fazer trinta de nascida e o meu pai me diria: «Tem de me acompanhar.» E depois, sem me dar tempo de perguntar nada, batendo com a bengala no chão: «Temos de sair disto seja como for, filha. O doutor enforcou‑se esta madrugada.» Os homens saíram e regressaram à sala com um martelo e uma caixa de pregos. Mas não pregaram o caixão. Puseram as coisas em cima da mesa e sentaram‑se na cama onde estivera o morto. O meu avô parece tranquilo, mas a sua tranquilidade é imperfeita e desesperada. Não é a tranquilidade do cadáver no caixão, mas sim a do homem impaciente que se esforça por não o parecer. É uma tranquilidade inquieta e ansiosa, a do meu avô, que dá voltas pela sala, coxeando, removendo os objectos amontoados. Quando descubro que há moscas na sala, começa a torturar‑me a ideia de que o caixão ficou cheio de mos‑cas. Ainda não o pregaram, mas parece‑me que este zumbido, que a princípio confundi com o rumor de uma ventoinha eléctrica na vizinhança, é o tropel das moscas batendo, cegas, contra as paredes do caixão e a cara do morto. Sacudo a cabeça, fecho os olhos; vejo o meu avô abrir um baú e tirar de lá coisas que não consigo distinguir; vejo em cima da cama as quatro brasas sem ninguém dos cigarros acesos. Acossado pelo calor sufocante, pelos minutos que não passam, pelo zumbido das moscas, é como se alguém me dissesse: «Hás‑de estar assim. Hás‑de estar dentro de um caixão cheio de moscas. Ainda não fizeste onze anos, mas um dia hás‑de estar assim, abandonado às moscas dentro de uma urna fechada.» E estico as pernas juntas, e vejo as minhas próprias botas pretas e lustrosas. Tenho um atacador solto, penso, e volto a olhar para a mamã. Ela também olha para mim e inclina‑se para me apertar o atacador da bota. O bafo que se desprende da cabeça da mamã, quente e a cheirar a armário fechado, a madeira adormecida, volta a recordar‑me a clausura do caixão. A respiração torna‑se‑me difícil, quero sair daqui; quero respirar o ar abrasado da rua, e lanço mão ao meu último recurso. Quando a mamã se endireita, digo‑lhe em voz baixa: «Mamã!» Ela sorri, diz: «Ah.» E eu, inclinando‑me para ela, para o seu rosto austero e brilhante, tremendo: «Preciso de ir lá atrás.» A mamã chama o meu avô, diz‑lhe qualquer coisa. Vejo os seus olhos miúdos e imóveis por trás das lentes, quando se aproxima e me diz: «Pois saiba que agora é impossível.» Estico‑me e depois permaneço quieto, indiferente ao meu fracasso. Mas as coisas acontecem de novo com demasiada lentidão. Houve um movimento rápido, outro e outro. E depois outra vez a mamã inclinada sobre o meu ombro, dizendo: «Já te passou?» E di‑lo com voz séria e concreta, como se, mais do que uma pergunta, fosse uma recriminação. Tenho a barriga seca e dura, mas a pergunta da mamã amolece‑a, deixa‑a cheia e relaxada, e então tudo, até a sua seriedade, se me torna agressivo, desafiador. «Não», digo‑lhe. «Ainda não passou.» Aperto o estômago e tento bater com os pés no chão (outro recurso extremo), mas em baixo só encontro o vazio, a distância que me separa do chão. Entra alguém na sala. É um dos homens do meu avô, seguido por um agente da polícia e por um homem que também veste calças de cotim verde, usa revólver no cinto e segura na mão um chapéu de aba larga e revirada. O meu avô avança para o receber. O homem das calças verdes tosse na escuridão, diz qualquer coisa ao meu avô, volta a tossir e, tossindo ainda, ordena ao agente que force a janela. As paredes de madeira são de aparência frágil.Parecem construídas com cinza fria e amassada. Quando o agente bate na aldraba com a coronha da espingarda, tenho a impressão de que as portadas não se abrirão. A casa virá abaixo, desmoronadas as paredes, mas sem estrépito, como ruiria no ar um palácio de cinzas. Creio que a uma segunda pancada ficaremos na rua, em pleno sol, sentados, com a cabeça coberta de escombros. Mas à segunda pancada a janela abre‑se e a luz penetra na sala; irrompe violentamente, como quando se abre a porta a um animal sem direcção, que corre e fareja, mudo; que se enfurece e arranha as paredes, espumando, e volta depois a deitar‑se, pacífico, no canto mais fresco da jaula. Quando a janela se abre, as coisas tornam‑se visíveis, mas consolidam‑se na sua estranha irrealidade. Então a mamã respira fundo, estende‑me as mãos e diz‑me: «Anda, vamos à janela ver a casa.» E, dos seus braços, vejo outra vez a aldeia, como se a ela regressasse depois de uma viagem. Vejo a nossa casa desbotada e arruinada, mas fresca sob as amendoeiras; e, daqui, é como se nunca tivesse estado dentro dessa frescura verde e cordial, como se a nossa casa fosse a perfeita casa imaginária prometida pela minha mãe nas minhas noites de pesadelos. E vejo Pepe passar sem nos ver, distraído. O rapazinho da casa do lado, que passa a assobiar, transformado e desconhecido, como se acabasse de cortar o cabelo. Então o alcaide levanta‑se, de camisa aberta, suado, a expressão completamente transtornada. Aproxima‑se de mim, congestionado pela exaltação que o seu próprio argumento lhe produz. «Não podemos garantir que esteja morto enquanto não começar a cheirar mal», diz, e acaba de abotoar a camisa e acende um cigarro, o rosto de novo virado para o caixão, pensando talvez: Agora não podem dizer que estou fora da lei. Olho‑o nos olhos e sinto que olhei para ele com a firmeza necessária para lhe dar a entender que penetro até ao mais fundo dos seus pensamentos. Digo‑lhe: «O senhor está a pôr‑se fora da lei para agradar aos outros.» E ele, como se tivesse sido exactamente isso que esperava ouvir, responde: «O senhor é um homem respeitável, coronel. O senhor sabe que estou no meu direito.» E eu digo‑lhe: «O senhor sabe melhor do que ninguém que ele está morto.» E ele diz: «É certo, mas afinal de contas eu não passo de um funcionário. A única coisa legal seria a certidão de óbito.» E eu digo‑lhe: «Se a lei está do seu lado, aproveite‑a para arranjar um médico que passe a certidão de óbito.» E ele, com a cabeça levantada, mas sem arrogância, mas também calmamente, mas sem o mais ligeiro assomo de fraqueza ou desconcerto, diz: «O senhor é uma pessoa respeitável e sabe que, isso sim, seria uma arbitrariedade.» Ao ouvi‑lo, compreendo que não está tão imbecilizado pela aguardente como pela cobardia. Apercebo‑me agora de que o alcaide partilha dos rancores da aldeia. É um sentimento alimentado ao longo de dez anos, desde aquela noite tormentosa em que trouxeram os feridos à porta e lhe gritaram (porque não abriu; falou de dentro): «Doutor, trate estes feridos que os outros médicos já não dão vazão», gritaram‑lhe, ainda sem abrir (por‑que a porta permaneceu fechada, os feridos deitados em frente dela): «O senhor é o único médico que nos resta. Tem de fazer uma obra de caridade»; e ele respondeu (e tão‑pouco então a porta se abriu), imaginado pela multidão no meio da sala, de candeeiro levantado, os duros olhos amarelos iluminados: «Esqueceu‑me tudo o que sabia disso. Levem‑nos a outro lado», e continuou (porque desde então a porta nunca mais se abriu) com a porta fechada, enquanto o rancor crescia, se ramificava, se transformava numa virulência colectiva, que não daria tréguas a Macondo até ao resto da sua vida, para que em cada ouvi‑do continuasse a ressoar a sentença ‑ gritada nessa noite ‑ que condenou o médico a apodrecer por detrás destas paredes. Passaram ainda dez anos sem que bebesse a água da aldeia, acossado pelo temor de que estivesse envenenada, alimentando‑se com os legumes que ele e a sua concubina índia semeavam no pátio. Agora a aldeia sente chegar a hora de lhe negar a piedade que ele há dez anos negou à aldeia, e Macondo, que o sabe morto (porque todos de‑vem ter acordado esta manhã um pouco mais aliviados), prepara‑se para desfrutar este prazer esperado, que todos consideram merecido. Apenas desejam sentir o cheiro a decomposição orgânica através das portas que não se abriram daquela vez. Agora começo a acreditar que o meu compromisso de nada valerá contra a ferocidade de uma aldeia e que estou encurralado, cercado pelos ódios e pela impenitência de um bando de ressentidos. Até a Igreja encontrou maneira de estar contra a minha decisão. O padre Angel disse‑me há momentos: «Nem sequer permitirei que sepultem em terra sagrada um homem que se enforca depois de ter vivido sessenta anos fora de Deus. Até a si, o Senhor vê‑lo‑ia com bons olhos se desistisse de levar a cabo o que não seria uma obra de misericórdia, mas antes um pecado de rebeldia.» E eu disse‑lhe: «Enterrar os mortos, como está escrito, é uma obra de misericórdia.» E o padre Angel disse: «Está bem. Mas neste caso não nos cabe a nós fazê‑la, mas sim à Delegação de Saúde.» Vim. Chamei os quatro guajiros que se criaram em minha casa. Obriguei a minha filha Isabel a acompanhar‑me. Assim, o acto transforma‑se numa coisa mais familiar, mais humana, menos pessoal e desafiadora do que se eu próprio tivesse arrastado o cadáver pelas ruas da aldeia até ao cemitério. Creio Macondo capaz de tudo, depois do que já vi desde o princípio deste século. Mas, se não me respeitarem a mim nem sequer por ser velho, coronel da República e para cúmulo coxo de corpo e inteiro de consciência, espero que pelo menos respeitem a minha filha por ser mulher. Não o faço por mim. Talvez também não seja pela tranquilidade do morto. Apenas para cumprir um compromisso sagrado. Se trouxe Isabel, não foi por cobardia, mas por caridade. Ela trouxe a criança (e entendo que o fez por isso mesmo), e agora estamos aqui, os três, suportando o peso desta dura ocorrência. Chegámos há momentos. Pensei que iríamos encontrar o cadáver ainda suspenso do tecto, mas os homens adiantaram‑se, estenderam‑no na cama e quase o amor‑talharam, com a secreta convicção de que a coisa não duraria mais de uma hora. Quando chego, espero que tragam o caixão, vejo a minha filha e a criança que se sentam ao canto, e examino a sala pensando que o médico possa ter deixado alguma coisa que explique a sua decisão. A escrivaninha está aberta, cheia de papéis confusos, nenhum escrito por ele. Na escrivaninha está a pasta das receitas, a mesma que trouxe para casa há vinte e cinco anos, quando abriu aquele baú enorme dentro do qual poderia caber a roupa de toda a minha família. Mas não tinha no baú senão duas camisas ordinárias, uma dentadura postiça, que não podia ser sua simplesmente porque tinha a sua dentadura natural, forte e completa, um retrato e um maço de receitas. Abro as gavetas e em todas elas encontro papéis impressos; apenas papéis antigos, poeirentos; e em baixo, na última gaveta, ainda a dentadura postiça que trouxe há vinte e cinco anos, coberta de pó, amarela do tempo e da falta de uso. Sobre a mesinha, ao pé do candeeiro apagado, há vários maços de jornais por abrir. Examino‑os. Estão escritos em francês, os mais recentes de há três meses: Julho de 1928. E há outros, também por abrir: Janeiro de 1927. Novembro de 1926. E os mais antigos: Outubro de 1919. Penso: Há nove anos, um depois de pronunciada a sentença, que não abria os jornais. Renunciara desde então à última coisa que o ligava à sua terra e à sua gente. Os homens trazem o ataúde e põem lá dentro o cadáver. Então recordo o dia de há vinte e cinco anos atrás em que chegou a minha casa e me entregou a carta de recomendação, datada do Panamá e dirigida a mim pelo intendente‑geral do Litoral Atlântico, no final da guerra grande, o coronelAureliano Buendía. Procuro na obscuridade daquele baú sem fundo as suas bugigangas dispersas. Está sem chave, no outro canto, com as mesmas coisas que trouxe há vinte e cinco anos. Recordo: Tinha duas camisas ordinárias, uma caixa com dentes, um retrato e esta velha pasta de receitas. E vou recolhendo estas coisas antes que fechem o caixão e ponho‑as lá dentro. O retrato ainda está no fundo do baú, quase no mesmo sítio em que estava daquela vez. É o daguerreótipo de um militar condecorado. Ponho o retrato na urna. Ponho lá dentro a dentadura postiça e por fim a pasta das receitas. Quando termino, faço um sinal aos homens para que fechem o caixão. Penso: Agora está outra vez de viagem. O mais natural é que na última leve consigo as coisas que o acompanharam na penúltima. Pelo menos, isso é o mais natural. E então parece‑me vê‑lo, pela primeira vez, comodamente morto. Examino a sala e vejo que nos esquecemos de um sapato em cima da cama. Faço novo sinal aos meus homens, com o sapato na mão, e eles tornam a levantar a tampa no preciso instante em que apita o comboio, perdendo‑se na última curva da aldeia. São duas e meia, penso. Duas e meia de 12 de Setembro de 1928; quase a mesma hora daquele dia de 1903 em que este homem se sentou pela primeira vez à nossa mesa e pediu erva para comer. Adelaida disse‑lhe, daquela vez: «Que espécie de erva, doutor?» E ele, com a sua parcimoniosa voz de ruminante, ainda para mais perturbada pela nasalidade: «Erva vulgar, senhora. Da que comem os burros.» 2. A verdade é que Meme não está nesta casa e ninguém seria capaz de dizer com exactidão quando deixou de estar. Vi‑a pela última vez há onze anos. Ainda tinha nesta esquina a taberna que as exigências dos aldeãos foram modificando insensivelmente até a converterem numa miscelânea. Tudo muito ordenado, muito arrumado pela escrupulosa e metódica aplicação de Meme, que passava os dias a costurar para os aldeãos numa das quatro Domestic que havia então na aldeia, atrás do balcão, atendendo a clientela com aquela simpatia que nunca deixou de ter e que era ao mesmo tempo aberta e reservada: uma complexa mistura de ingenuidade e des‑confiança. Eu deixara de ver Meme desde que saiu de nossa casa, mas a verdade é que já não seria capaz de dizer com exactidão quando é que ela veio viver para a casa de esquina com o médico, nem como pôde ser indigna ao ponto de se transformar na mulher de um homem que lhe negou os seus serviços, apesar de ambos partilharem a casa de meu pai, ela como filha adoptiva e ele como hóspede permanente. Soube pela minha madrasta que o médico era um homem de mau carácter, que tivera uma longa discussão com o papá para o convencer de que o mal de Meme não se revestia de qualquer gravidade. E disse‑o sem a ter visto, sem sequer ter saído do quarto. Fosse como fosse, mesmo que a guajira não tivesse mais do que um achaque passageiro, devia tê‑la assistido, mais que não fosse pela consideração com que foi tratado em nossa casa durante os oito anos em que nela viveu. Não sei como se passaram as coisas. Sei que uma bela manhã Meme já não estava em casa, e ele também não. Então a minha madrasta mandou fechar o quarto e não voltou a falar dele até há doze anos, quando costurávamos o meu vestido de noiva. Três ou quatro domingos depois de ter abandonado a nossa casa, Meme foi à igreja, à missa das oito, com um espampanante vestido de seda estampada e um ridículo chapéu que rematava em cima com um ramo de flores artificiais. Tinha‑a visto sempre tão simples em nossa casa, descalça a maior parte do dia, que nesse domingo, quando entrou na igreja, me pareceu uma Meme diferente da nossa. Assistiu à missa à frente, entre as senhoras, direita e afectada, sob aquele montão de coisas que tinha vestido e que a tornavam complicadamente nova, com uma novidade espectacular e cheia de ouropéis. Esteve ajoelhada, à frente. E até a devoção com que ou‑viu a missa era desconhecida nela; até na maneira de se benzer havia algo daquela presunção florida e resplandecente com que entrou na igreja, ante a perplexidade dos que a conheceram como criada em nossa casa e a surpresa dos que nunca a tinham visto. Eu (por essa altura não teria mais de treze anos) perguntava a mim própria a que se deveria aquela trans‑formação; porque é que Meme tinha desaparecido da nossa casa e reaparecia naquele domingo no templo, vestida mais como uma árvore de Na‑tal do que como uma senhora, ou como três senhoras juntas para assistirem à missa pascal, apesar de ainda sobrarem na guajira folhos e missangas para vestir mais uma senhora. Quando a missa terminou, as mulheres e os homens detiveram‑se à porta para a verem sair; puseram‑se no átrio, em dupla fileira diante da porta principal, e creio que até houve algo de secretamente premeditado naquela solenidade indolente e trocista com que estiveram à espera, sem dizer palavra, até que Meme chegou à porta, fechou os olhos, e a seguir abriu‑os em perfeita harmonia com a sua sombrinha de sete cores. Passou assim, por entre a dupla fila de mulheres e homens, ridícula no seu disfarce de pavão real com tacões altos, até que um dos homens começou a fechar o círculo e Meme ficou no meio, aniquilada, confusa, tentando sorrir com um sorriso de distinção tão apara‑toso e falso como o seu aspecto. Mas quando Meme saiu, abriu a sombrinha e começou a andar, o papá aproximou‑se de mim e arrastou‑me para o grupo. Por isso, quando os homens começaram a fechar o círculo, o meu pai tinha já aberto passagem até junto de Meme, que, atarantada, tentava encontrar uma maneira de fugir. O papá ofereceu‑lhe o braço, sem se preocupar com a assistência, e levou‑a pelo meio da praça com aquela atitude soberba e desafiadora que adopta quando faz alguma coisa com que os demais não estarão de acordo. Passou algum tempo antes de eu saber que Meme tinha vindo viver como concubina do médico. Nessa altura a taberna já estava aberta e ela continuava a assistir à missa como uma perfeita senhora da melhor sociedade, sem se importar com o que se dizia ou pensava, como se se tivesse esquecido do que acontecera no primeiro domingo. Todavia, passados dois meses não voltámos a vê‑la na igreja. Eu recordava o médico em nossa casa. Recordava o seu bigode preto e retorcido e a sua maneira de olhar as mulheres com os seus lascivos e ávidos olhos de cão. Mas lembro‑me de que nunca me aproximei dele, talvez porque o visse como um animal estranho que se sentava à mesa depois de todos se terem levantado e que se alimentava com a mesma erva que alimenta os burros. Até à doença do papá, há três anos, o médico não saíra desta casa de esquina uma única vez, depois da noite em que negou assistência aos feridos, da mesma maneira que seis anos antes a negara à mulher que dois dias mais tarde seria sua concubina. O tasco fechou antes de a aldeia ter ditado a sentença ao médico. Mas sei que Meme continuou a viver aqui, vários meses ou anos depois de ter fechado a loja. Foi com certeza muito mais tarde que desapareceu, ou pelo menos que se soube que tinha desaparecido, porque assim o dizia o panfleto que apareceu nesta porta. De acordo com esse panfleto, o médico assassinara a sua amante e enterrara‑a na horta por recear que a aldeia se servisse dela para o envenenar. Mas eu tinha visto Meme antes do meu casamento. Há onze anos, quando voltava do terço, a guajira chegou à porta da loja e disse‑me, com o seu arzinho alegre e um tanto irónico: «Menina, vais‑te casar e não me dizias nada.» «Pois», digo‑lhe, «a coisa deve ter sido assim.» Então estico a corda, onde numa das pontas se vê ainda a carne viva das suas fibras recém‑cortadas à faca. Dou outra vez o nó que os meus homens cortaram para tirar o corpo e atiro uma das pontas por cima da viga, até deixar a corda suspensa, firme, com força suficiente para proporcionar muitas mortes iguais à deste homem. Enquanto se abana como chapéu, o rosto transtornado pela sufocação e pela aguar‑dente, a olhar para a corda, calculando a sua força, ele diz: «É impossível que uma corda tão delgada tenha aguentado o corpo dele.» E eu digo‑lhe: «Essa corda é a mesma que aguentou com ele na rede durante muitos anos.» E ele puxa uma cadeira, entrega‑me o chapéu e pendura‑se a pulso na corda, com o rosto congestionado pelo esforço. Depois torna a ficar de pé em cima da cadeira, a olhar para a ponta caída. Diz: «É impossível. Essa corda não chega para me dar a volta ao pescoço.» E então compreendo que é deliberadamente ilógico, que está a inventar pretextos para impedir o enterro. Olho‑o de frente, perscrutando‑o. Digo‑lhe: «Não reparou que você lhe chegava, quando muito, ao ombro?» E ele volta‑se, para olhar para o caixão. Diz: «Mesmo assim, não tenho a certeza de que o tenha feito com esta corda.» Tenho a certeza que foi assim. E ele sabe‑o, mas pretende ganhar tempo, com medo de criar compromissos. Vê‑se‑lhe a cobardia pelo modo de andar de um lado para o outro, sem direcção precisa. Uma cobardia dupla e contraditória: para impedir a cerimónia e para a autorizar. Então, quando chega ao pé do caixão, roda sobre os calcanhares, olha para mim e diz: «Tinha de o ver pendurado para me convencer.» Eu tê‑lo‑ia feito. Te‑ria autorizado os meus homens a abrirem o caixão e a voltarem a pendurar o enforcado, como esteve até há pouco. Mas seria de mais para a minha filha. Seria de mais para a criança, que ela não devia ter trazido. Se não me repugnasse tratar assim um morto, ultrajar a carne indefesa, perturbar o homem pela primeira vez tranquilo dentro do seu casulo, se o facto de tocar num cadáver que repousa se‑rena e merecidamente no seu caixão não fosse contra os meus princípios, mandá‑lo‑ia pendurar de novo, para saber até onde é que este homem é capaz de chegar. Mas é impossível. E digo‑lhe: «Pode estar certo de que não darei essa ordem. Se quiser, pendure‑o o senhor mesmo e assuma a responsabilidade do que acontecer. Lembre‑se de que não sabemos há quanto tempo está morto.» Ele não se mexeu. Está ainda ao pé do caixão, a olhar para mim; olha depois para Isabel e depois para a criança e a seguir outra vez para o caixão. De repente, a sua expressão torna‑se sombria e ameaçadora. Diz: «O senhor não ignora o que pode acontecer‑lhe por isto.» E compreendo então até que ponto a sua ameaça é verdadeira. Digo‑lhe: «Claro que não. Sou uma pessoa responsável.» E ele, agora com os braços cruzados, suando, avançando para mim com movimentos estudados e cómicos que pretendem ser ameaçadores, diz: «Poderia perguntar‑lhe como é que soube que este homem se tinha enforcado ontem à noite.» Espero que chegue ao pé de mim. Permaneço imóvel, a olhar para ele, até que a sua respiração quente e áspera me atinge no rosto; até que ele se detém, ainda com os braços cruzados, abanando o chapéu por detrás da axila. Então digo‑lhe: «Quando me fizer essa pergunta oficialmente, terei muito gosto em responder‑lhe.» Continua à minha frente, na mesma posição. Quando lhe falo, não há nele surpresa nem perturbação. Diz: «Claro, coronel. Estou a perguntar‑lho oficialmente.» Estou disposto a dar‑lhe a corda toda. Tenho a certeza de que, por muitas voltas que ele tente dar‑lhe, terá de ceder perante uma atitude férrea, embora paciente e tranquila. Digo‑ ‑lhe: «Estes homens tiraram o corpo porque eu não podia permitir que continuasse ali, pendurado, até o senhor se decidir a vir cá. Há duas horas que lhe disse que viesse e o senhor demorou todo este tempo para andar dois quarteirões.» Continua imóvel. Estou em frente dele, apoiado na bengala, ligeiramente inclinado para a frente. Digo: «Além disso era meu amigo.» Antes de eu acabar de falar, ele sorri ironicamente, mas sem mudar de posição, atirando‑me ao rosto o seu hálito espesso e ácido. Diz: «É a coisa mais simples do mundo, não?» E subitamente deixa de sorrir: «Portanto, o senhor sabia que este homem se ia enforcar.» Tranquilo, paciente, convencido de que só pretende enredar as coisas, digo‑lhe: «Repito‑lhe que a primeira coisa que fiz quando soube que se tinha enforcado foi ir ter consigo, e já lá vão mais de duas horas.» E, como se eu lhe tivesse feito uma pergunta e não prestado um esclarecimento, diz: «Eu estava a almoçar.» E eu digo‑lhe: «Bem sei. Parece‑me que até teve tempo de dormir a sesta.» Então não sabe que dizer. Recua. Olha para Isabel, sentada ao lado da criança. Olha para os homens e, finalmente, para mim. Mas agora a sua ex‑pressão mudou. Parece decidir‑se por algo que lhe ocupa o pensamento desde há momentos. Vira‑me as costas, caminha para o agente e diz‑lhe qualquer coisa. O agente faz um gesto e sai do quarto. A seguir vira‑se para mim e pega‑me no braço. Diz: «Gostaria de falar consigo na outra sala, coronel.» Agora a sua voz mudou por completo. Agora está tensa e alterada. E, enquanto me dirijo para a sala ao lado, sentindo a pressão insegura da sua mão no meu braço, surpreende‑me a ideia de que sei o que me vai dizer. Esta sala, ao contrário da outra, é ampla e fresca. Invade‑a a claridade do pá‑tio. Aqui vejo‑lhe os olhos alterados, o sorriso que não corresponde à expressão do seu olhar. Oiço a sua voz, que diz: «Coronel, isto podia‑se resolver de outra maneira.» E eu, sem lhe dar tempo de acabar, digo‑lhe: «Quanto?». E então trans‑forma‑se num homem totalmente diferente. Meme trouxera um prato com bolos e dois pãezinhos salgados dos que tinha aprendido a fazer com a minha mãe. O relógio dera as nove. Meme estava sentada diante de mim, nas traseiras da loja, e comia sem apetite, como se os bolos e os pãezinhos não passassem de uma maneira de prolongar a visita. Eu assim o entendia, e deixava‑a perder‑se nos seus labirintos, afundar‑se no passado com aquele entusiasmo nostálgico e triste que a fazia parecer, à luz do candeeiro que se consumia em cima do balcão, muito mais enxovalhada e envelhecida do que no dia em que entrou na igreja de chapéu e saltos altos. Era evidente que naquela noite Meme desejava recordar. E, enquanto o fazia, dava a impressão de que durante os anos anteriores tinha ficado parada numa única idade estática e sem tempo, e que naquela noite, ao recordar, punha de novo em marcha o seu tempo pessoal e começava a sofrer o seu longamente diferido processo de envelhecimento. Meme estava direita e sombria, falando daquele pitoresco esplendor feudal da nossa família nos últimos anos do século passado, antes da guerra grande. Meme recordava a minha mãe. Recordou‑a nessa noite em que eu voltava da igreja e ela me disse, com o seu arzinho trocista e um pouco irónico: «Menina, vais‑te casar e não me dizias nada.» Foi precisamente na época em que eu sentira a falta da minha mãe e procurava fazê‑la voltar com mais força à minha memória. «Era o teu retrato vivo», disse. E eu acreditava realmente nela. Estava sentada em frente da índia, que falava com uma inflexão mesclada de precisão e incerteza, como se houvesse muito de lendário no que recordava, mas como se o recordasse de boa‑fé e até com a convicção de que a passagem do tempo transformara a lenda numa realidade remota, mas difícil de esquecer. Falou‑me da viagem dos meus pais durante a guerra, da dura peregrinação que haveria de terminar com o estabelecimento deles em Macondo. Os meus pais fugiam dos percalços da guerra e procuravam um recanto próspero e tranquilo onde assentarem arraiais, quando ouviram falar do bezerro de ouro e o vieram procurar no que era então uma aldeia em formação, fundada por várias famílias refugiadas, cujos membros se esmeravam tanto na conservação das suas tradições e nas práticas religiosas, como na engorda dos seus porcos. Macondo foi para os meus pais a terra prometida, a paz e o Velo de Ouro. Aqui encontraram o sítio apropriado para reconstruírem a casa que poucos anos depois seria uma mansão rural, com três cava‑lariças e dois quartos para os hóspedes.Meme recordava os pormenores sem amargura e falava das coisas mais extravagantes com um irreprimível desejo de as viver de novo ou com a dor que lhe provocava a evidência de que não as voltaria a viver. Não houve sofrimento nem privações na viagem, dizia. Até os cavalos dormiam com mosquiteiro, não porque o meu pai fosse um esbanjador ou um louco, mas porque a minha mãe possuía um estranho sentido de caridade, dos sentimentos humanitários, e considerava que, aos olhos de Deus, produzia tanta satisfação o facto de proteger um homem dos mosquitos como o de proteger um animal. Levaram para toda a parte o seu extravagante e incómodo carregamento; os baús cheios com a roupa dos mortos anteriores ao nascimento deles próprios, dos antepassados que seria impossível encontrar vinte braças debaixo da terra; caixotes cheios de utensílios de cozinha há muito postos de parte e que tinham pertencido aos mais remotos parentes dos meus pais (eram primos direitos entre si), e até um baú cheio de imagens, com que reconstruíam o altar doméstico em cada lugar que visitavam. Era uma curiosa trupe, com cavalos e galinhas e os quatro guajiros (companheiros de Meme) que tinham crescido em casa e seguiam os meus pais por toda a região, como animais amestrados num circo. Meme recordava com tristeza. Dava a impressão de que considerava a passagem do tempo como uma perda pessoal, como se pensasse, com o coração dilacerado pelas recordações, que, se o tempo não tivesse passado, ainda estaria naquela peregrinação que deve ter sido um castigo para os meus pais mas que para as crianças tinha algo de festa, com espectáculos insólitos como o dos cavalos debaixo dos mosquiteiros. Depois tudo começou a andar ao contrário, disse. A chegada à nova aldeiazinha de Macondo, nos últimos dias do século, foi a de uma família devastada, ainda apegada a um recente passado de esplendor, desorganizada pela guerra. A guajira recordava a minha mãe quando chegou à aldeia, sentada de lado numa mula, grávida, com o rosto esverdeado e palúdico e os pés inutilizados pelo inchaço. Talvez no espírito do meu pai germinasse a semente do ressentimento, mas vinha disposto a lançar âncora contra ventos e marés, enquanto aguardava que a minha mãe tivesse aquele filho que lhe cresceu no ventre durante a travessia e que a ia matando progressivamente, à medida que se aproximava a hora do parto. A luz do candeeiro dava‑lhe de perfil. Meme, com a sua dura expressão de índia, o seu cabelo liso e grosso como crina de cavalo ou rabo de cavalo, parecia um ídolo sentado, verde e espectral no quartinho quente das traseiras, falando como o faria um ídolo que se tivesse posto a recordar a sua antiga existência terrena. Nunca tinha privado com ela de perto, mas nessa noite, depois daquela repentina e espontânea manifestação de intimidade, sentia‑me ligada a ela por laços mais firmes que os do sangue. De súbito, numa pausa de Meme, ouvi‑o tossir no quarto, neste mesmo aposento em que agora me encontro com a criança e o meu pai. Tossiu com uma tosse seca e curta, a seguir pigarreou e depois ouviu‑se o ruído inconfundível que faz um homem quando se vira na cama. Me‑me calou‑se instantaneamente, e uma nuvem sombria e silenciosa toldou‑lhe o rosto. Eu tinha‑me esquecido dele. Durante o tempo que permaneci ali (eram umas dez horas), era como se a guajira e eu estivéssemos sozinhas em casa. A tensão do ambiente mudou logo. Senti o cansaço do braço com que segurava, sem lhe tocar, o prato com os bolos e os pãezinhos. Inclinei‑me para a frente e disse: «Está acordado.» Ela, agora impassível, fria e completamente indiferente, disse: «Vai estar acordado até de madrugada.» E de repente percebi o desencanto que se notava em Meme quando recordava o passado da nossa casa. As nossas vidas tinham mudado, os tempos eram bons e Macondo uma aldeia ruidosa em que o dinheiro chegava até para esbanjar ao sábado à noite. Enquanto lá fora se tosquiava o bezerro de ouro, lá dentro, no quarto das traseiras, a sua vida era estéril, anónima, todo o dia ao balcão e à noite com um homem que só adormecia de madrugada, que passava o tempo às voltas pela casa, de um lado para o outro, olhando‑a avidamente com aqueles lascivos olhos de cão que nunca pude esquecer. Comovia‑me imaginar Meme com este homem que uma noite lhe negou os seus serviços e que continuava a ser um animal endurecido, sem amargura nem compaixão, todo o dia numa interminável errância pela casa, de pôr fora de si os mais equilibrados. Recuperando o tom de voz, sabendo que ele estava aqui, acordado, abrindo tal‑vez os seus ávidos olhos de cão de cada vez que as nossas palavras ressoavam nas traseiras, procurei dar uma volta à conversa. «E que tal te corre o negócio?», perguntei. Meme sorriu. O seu sorriso era triste e taciturno, como se não fosse o resultado de um sentimento actual, como se o tivesse guardado na gaveta e só de lá o tirasse nos momentos indispensáveis, mas usando‑o sem nenhuma propriedade, como se o uso pouco frequente do sorriso a tivesse feito esquecer a maneira normal de o utilizar. «Assim assim», disse, mo‑vendo a cabeça de uma forma ambígua, e voltou a ficar silenciosa, abstracta. Então compreendi que eram horas de me ir embora. Entreguei o prato a Meme, sem dar nenhuma explicação pelo facto de o seu conteúdo estar intacto, e via levantar‑se e pô‑lo em cima do balcão. De lá, olhou para mim e repetiu: «És o retrato vivo dela.» Eu estava certamente sentada a contra‑luz, ofuscada pela claridade oposta, e Meme não me via a cara enquanto falava. De‑pois, quando se levantou para pôr o prato em cima do balcão, por detrás do candeeiro, viu‑me de frente, e foi por isso que disse: «És o retrato vivo dela.» E veio sentar‑se. Então começou a recordar os dias em que a minha mãe chegou a Macondo. Tinha ido directamente da mula para a cadeira de baloiço e ficara sentada três meses a fio, sem se mexer, ingerindo os alimentos sem apetite. Às vezes almoçava e ficava até ao meio da tarde com o prato na mão, rígida, sem se baloiçar, com os pés apoia‑dos numa cadeira, sentindo crescer a morte dentro deles, até que alguém chegava e lhe tirava o prato das mãos. Quando chegou o dia, as dores do parto tiraram‑na do seu esquecimento, e pôs‑se ela própria de pé, mas foi preciso ajudá‑la a dar os vinte passos que separavam a varanda do quarto de dormir, martirizada pela ocupação de uma morte que se tinha identificado com ela em nove meses de silencioso sofrimento. A sua travessia da cadeira de baloiço até ao leito teve toda a dor, a amargura e as provações que a viagem realizada há poucos meses não tivera, mas chegou até onde sabia que devia chegar antes de cumprir o último acto da sua vida. O meu pai pareceu desesperado com a morte da minha mãe, disse Meme. Mas, segundo ele próprio disse depois, quando ficou sozinho em casa, «Ninguém pode confiar na honestidade de um lar em que o homem não tem à mão uma mulher legítima.» Como tinha lido num livro que quando morre uma pessoa amada devemos semear um jasmineiro para a recordarmos todas as noites, plantou a trepadeira junto ao muro do pátio e um ano depois casou em segundas núpcias com Adelaida, a minha madrasta. Às vezes julgava que Meme ia chorar enquanto falava. Mas manteve‑se firme, satisfeita por estar a expiar o pecado de ter sido feliz e de ter deixado de o ser por sua livre vontade. A seguir estirou‑se na cadeira e humanizou‑se por completo. Foi como se tivesse feito mentalmente as contas à sua dor; inclinou‑se para a frente e viu que ainda lhe restava um saldo favorável de boas recordações, e então sorriu com a sua antiga simpatia ampla e trocista. Disse que aquilo tinha começado cinco anos mais tarde, quando chegou à sala onde o meu pai estava a almoçar e lhe disse: «Coronel, coronel, está no escritório um forasteiro à sua procura.» 3. POR detrás da igreja, do outro lado da rua, havia um pátio sem árvores. Isto era nos fins do séculopassado, quando chegámos a Macondo e ainda não se iniciara a construção do templo. Eram terreiros pelados, secos, onde os miúdos brincavam quando saíam da escola. Mais tarde, quando se iniciou a construção do templo, cravaram quatro postes de um dos lados do pátio e viu‑se que o espaço cercado era bom para fazer um quarto. E fizeram‑no. E guardaram nele os materiais da igreja em construção. Quando deram por terminados os trabalhos do templo, alguém acabou de rebocar as paredes do quartinho e abriu uma porta na parede posterior, para o patiozinho pelado e pedregoso onde não medrava nem uma piteira. Um ano depois o quartinho estava construído, capaz de albergar duas pessoas. Lá dentro sentia‑se um cheiro a cal viva. Era o único cheiro agradável que se tinha sentido durante muito tempo dentro daquele espaço e o único gratificante que alguma vez se sentiria. Depois de terem caiado as paredes, a mesma mão que dera por concluída a construção correu a tranca na porta de dentro e pôs um cadeado na da rua. O quarto não tinha dono. Ninguém se preocupou em tornar efectivos os seus direitos sobre o terreno, nem sobre os materiais de construção. Quando chegou o primeiro pároco, alojou‑se em casa de uma das famílias abastadas de Macondo. De‑pois foi transferido para outra paróquia. Mas, por essa altura (e possivelmente antes de o primeiro pároco se ter ido embora), uma mulher com uma criança de peito tinha ocupado o quartinho, sem que ninguém soubesse quando, nem como fez para abrir a porta. Havia a um canto uma toalha negra e verde do musgo e um jarro pendurado num prego. Mas já não restava cal nas paredes. No pátio, sobre as pedras, formara‑se uma crosta de terra endurecida pela chuva. A mulher construiu um cara‑manchão para se proteger do sol. E, como não tinha recursos para lhe pôr tecto de palma, telha ou zinco, plantou um pé de videira junto ao caramanchão e pendurou um ramo de aloés e um pão na porta da rua, para se proteger dos malefícios. Quando se anunciou a chegada do novo pároco, em 1903, a mulher continuava a viver no quarto com a criança. Meia aldeia foi até à estrada principal, esperar o sacerdote. A banda local tocou trechos sentimentais, até que chegou um rapaz, ofegante, estoirado, a dizer que a mula do pároco estava na última curva da estrada. Então os músicos trocaram de posições e iniciaram uma marcha. O encarregado do discurso de boas‑vindas subiu à tribuna improvisada e aguardou a chegada do pároco, para dar início à saudação. Mas daí a pouco o trecho marcial cessou, o orador desceu da mesa e a multidão, atónita, viu passar um forasteiro, montado numa mula em cujas ancas viajava o maior baú que alguma vez se vira em Macondo. O homem passou ao largo em direcção à aldeia, sem olhar para ninguém. Mesmo que o pároco se tivesse vestido à civil para fazer a viagem, a ninguém passaria pela cabeça que aquele viajante queimado do sol, com polainas de militar, fosse um sacerdote vestido à civil. E de facto não era, porque a essa mesma hora, pelo atalho, do outro lado da aldeia, viram entrar um sacerdote estranho, espantosamente magro, de rosto seco e esguio, escarranchado numa mula, a sotaina arregaçada até aos joelhos e protegido do sol por um guarda‑sol gasto e desbotado. O pároco perguntou nas imediações do templo onde ficava a casa paroquial, e deve tê‑lo perguntado a alguém que não tinha a menor ideia de nada, porque lhe responderam: «É o quartinho que fica atrás da igreja, padre.» A mulher tinha saído, mas a criança brincava lá dentro, por de‑trás da porta entreaberta. O sacerdote apeou‑se, arrastou até ao quarto uma ma‑la a rebentar, meio aberta e sem fechos, apenas presa com um cinto de couro diferente do da própria mala e, depois de examinar o quartinho, puxou a mula e amarrou‑a no pátio, à sombra das vides. A seguir abriu a mala, tirou de lá uma rede que devia ter a mesma idade e o mesmo uso do guarda‑sol, pendurou‑a em diagonal no quarto, de poste a poste, tirou as botas e deitou‑se a dormir, sem se preocupar com a criança, que olhava para ele com os seus olhos redondos espantados. Quando a mulher voltou, deve ter‑se sentido desorientada com a estranha presença do sacerdote, cujo rosto era tão inexpressivo que em nada se distinguia de uma caveira de vaca. A mulher deve ter atravessado a habitação nas pontas dos pés. Deve ter arrastado o catre até à porta, feito uma trouxa com a sua roupa e com os trapos da criança e abandonado a habitação, confusa, sem sequer se preocupar com a toalha e o jarro, porque uma hora mais tarde, quando a comitiva percorreu a aldeia em sentido inverso, precedida pela banda, que tocava a ária marcial por entre um magote de rapazes fugidos à escola, foram dar com o pároco sozinho no quarto, negligentemente estirado na rede, com a sotaina desabotoada, e sem sapa‑tos. Alguém deve ter levado a notícia à estrada principal, mas ninguém se lembrou de perguntar o que é que o pároco fazia naquele quarto. Devem ter pensado que tinha algum parentesco com a mulher, tal como ela deve ter deixado o quartinho por julgar que o pároco tivesse ordem para o ocupar, ou que fosse propriedade da igreja, ou simplesmente por recear que lhe perguntassem porque é que vivera mais de dois anos num quarto que não lhe pertencia, sem pagar aluguer e sem autorização de ninguém. Também não passou pela cabeça da comitiva pedir explicações, nem nesse momento nem em nenhum dos seguintes, porque o pároco não aceitou os discursos, pôs as ofertas no chão e limitou‑se a saudar os homens e as mulheres com frieza, apressadamente, pois, segundo disse, não pregara olho durante toda a noite. A comitiva dissolveu‑se, perante aquele frio acolhimento por parte do sacerdote mais estranho que alguma vez tinham visto. Comentava‑se que o seu rosto parecia uma caveira de vaca, que tinha cabelo grisalho, cortado à escovinha, e que não tinha lábios, mas sim uma fenda horizontal que não parecia estar no lugar da boca desde o nascimento, mas antes feita posteriormente, com uma navalhada súbita e única. Mas, nessa mesma tarde, acharam‑no parecido com alguém. E antes de amanhecer todos sabiam quem era. Lembravam‑se de o ter visto com a fisga e a pedra, nu, mas de sapatos e chapéu, nos tempos em que Macondo era um humilde casario de refugiados. Os veteranos lembravam‑se das suas acções na guerra civil de 85. Lembraram‑se de que tinha sido coronel aos dezassete anos, e de que era intrépido, tenaz e oposicionista. Só que em Macondo ninguém voltara a saber dele até àquele dia em que regressava para tomar conta da paróquia. Muito poucos se lembravam do seu nome de baptismo. Em contrapartida, a maioria dos veteranos lembrava‑se do que a mãe lhe pusera (porque era voluntarioso e rebelde), e que foi o mesmo com que veio a ser conhecido pelos seus companheiros de guerra. To‑dos lhe chamavam El Cachorro. E assim continuaram a chamar‑lhe em Macondo, até à hora da sua morte: «Cachorro, Cachorrito.» Este homem chegou pois a nossa casa no mesmo dia e quase à mesma hora que El Cachorro a Macondo. O primeiro pela estrada principal, quando ninguém o esperava nem fazia a menor ideia do seu nome ou da sua profissão; o pároco pelo atalho, quando toda a aldeia o aguardava na estrada principal. Eu voltei para casa a seguir à recepção. Acabáva‑mos de nos sentar à mesa ‑ um pouco mais tarde que de costume ‑ quando Meme se aproximou para me dizer: «Coronel, coronel, está no escritório um forasteiro à sua procura.» Eu disse‑lhe: «Manda‑o entrar.» E Meme disse: «Está no escritório e diz que precisa de falar consigo com urgência.» Adelaida parou de dar a sopa a Isabel (naquele tempo ela não tinha mais de cinco anos) e foi receber o recém‑chegado. Voltou daí a pouco, visivelmente preocupada: «Estava a remexer no escritório», disse. Vi‑a caminhar por detrás dos candelabros. Depois voltou a dar a sopa a Isa‑bel. «Devias tê‑lo mandado entrar», disse eu, sem parar de comer. E ela disse: «Erao que eu ia fazer. Mas ele estava a remexer no escritório quando cheguei e lhe dei as boas‑tardes, e não respondeu porque estava a olhar para a prateleira, para a bailarinazinha de corda. E, quando eu lhe ia dar outra vez as boas‑tardes, começou a dar corda à bailarinazinha, pô‑la em cima da secretária e ficou a vê‑la bailar. Não sei se foi a musiquinha que não o deixou ouvir‑me quando lhe dei de novo as boas‑tardes e fiquei parada em frente da secretária, sobre a qual estava inclinado, a ver a bailarinazinha, que ainda tinha corda para um bocado.» Adelaida estava a dar a sopa a Isabel. Eu disse‑lhe: «Deve estar muito interessado no brinquedo.» E ela, continuando a dar a sopa a Isabel: «Estava a remexer no escritório, mas depois, quando viu a bailarinazinha, pegou nela como se soubesse de antemão para que servia, como se conhecesse o seu funcionamento. Estava a dar‑lhe corda quando lhe dei as boas‑tardes pela primeira vez, antes de a musiquinha começar a soar. Então pousou‑a em cima da secretária e ficou a olhar para ela, mas sem sorrir, como se não estivesse interessado no bailado, mas sim no mecanismo.» Nunca me anunciavam ninguém. Quase todos os dias chegavam visitas: viajantes desconhecidos que deixavam os animais na cavalariça e se abeiravam com total confiança, com a familiaridade de quem espera encontrar sempre um lugar desocupado à nossa mesa. Disse a Adelaida: «Deve trazer algum recado, ou qualquer coisa.» E ela disse: «Seja como for, tem um comportamento estranho. Ele a olhar para a bailarinazinha até se lhe acabar a corda e eu para ali parada, em frente da secretária, sem saber que lhe dizer, porque sabia que não me responderia enquanto a musiquinha não parasse de soar. Depois, quando a bailarinazinha deu o saltinho que dá sempre quando se lhe acaba a corda, ficou ainda a olhar para ela com curiosidade, inclinado sobre a secretá‑ria, mas sem se sentar. Então olhou para mim e vi que sabia que eu estava no escritório, mas que não tinha feito caso de mim porque queria saber quanto tempo a bailarinazinha estaria a dançar. Mas já não voltei a dar‑lhe as boas‑tardes, sorri‑lhe quando olhou para mim porque vi que tinha os olhos enormes, com as pupilas amarelas, que vêem de uma vez o corpo todo. Quando lhe sor‑ri, ele continuou sério, mas fez uma inclinação de cabeça muito formal e disse: \«O coronel? É com o coronel que quero falar.»' Tinha a voz funda, como se conseguisse falar com a boca fechada. É como se fosse ventríloquo.» Ela estava a dar a sopa a Isabel. Eu continuei a almoçar, porque julguei que se tratava de um simples recado; porque não sabia que naquela mesma tarde estavam a começar as coisas que hoje se concluem. Adelaida continuou a dar a sopa a Isabel e disse: «Ao princípio estava a remexer no escritório.» Então compreendi que o forasteiro a tinha impressionado de uma maneira pouco comum e que tinha um interesse especial em que eu o recebesse. Contudo, continuei a almoçar enquanto ela dava a sopa a Isabel e falava. Disse: «Depois, quando disse que queria falar com o coronel, foi quando eu lhe disse, tenha a bondade de entrar para a sala de jantar, e ele empertigou‑se onde estava, com a bailarina na mão. Levantou a cabeça e pôs‑se rígido e firme como um soldado, parece‑me, porque tinha botas altas e um fato ordinário com a camisa abotoada até ao colarinho. Eu não sabia o que lhe havia de dizer quando não respondeu nada e ficou quieto, com o brinquedo na mão, como se estivesse à espera que eu saísse do escritório para lhe dar corda outra vez. Foi então, de súbito, que me fez lembrar alguém, que percebi ser um militar.» Eu disse‑lhe: «Então tu achas que é alguma coisa de grave.» Olhei para ela por cima dos candelabros. Ela não olhava para mim. Estava a dar a sopa a Isabel. Disse: «É que quando cheguei ele estava a remexer no escritório, de modo que não podia ver‑lhe a cara. Mas depois, quando ficou parado ao fundo, tinha a cabeça tão levantada e os olhos tão fixos que me pareceu ser um militar, e disse‑lhe: «O senhor quer falar com o coronel em privado, não é verdade?» E ele disse que sim com a cabeça. Então vim dizer‑lhe que se parece com alguém, ou melhor, que é a própria pessoa com quem se parece, embora não perceba como está aqui.» Eu continuei a almoçar, mas olhava para ela por cima dos candelabros. Ela parou de dar a sopa a Isabel. Disse: «Tenho a certeza de que não é um recado. Tenho a certeza que não é parecido, que é mesmo o próprio com quem se parece. Tenho a certeza, dizendo melhor, que é um militar. Tem um bigode preto e pontiagudo e a cara como de cobre. Tem botas altas, e tenho a certeza que não é parecido, que é mesmo o próprio com quem se parece.» Falava num tom uniforme e monótono, insistente. Estava calor, e, talvez por isso, comecei a sentir‑me irritado. Disse‑lhe: «Ah, com quem é que se parece?» E ela disse: «Quando estava a remexer no escritório não lhe vi a cara, só depois.» E eu, irritado com a monotonia e a insistência das suas palavras: «Bom, bom, falo com ele quando acabar de almoçar.» E ela, dando outra vez a sopa a Isabel: «Ao princípio não lhe pude ver a cara porque estava a remexer no escritório. Mas depois, quando lhe disse tenha a bondade de entrar, ele ficou quieto, encostado à parede, com a bailarinazinha na mão. Foi então que me lembrei com quem se parece, e vim avisar‑te. Tem os olhos enormes e indiscretos, e, quando me voltei para sair, senti que estava a olhar directamente para as minhas pernas.» Calou‑se de repente. Na sala de jantar ficou a vibrar o tilintar metálico da colher. Eu acabei de almoçar e dobrei o guardanapo debaixo do prato. Nisto ouviu‑se, no escritório, a musiquinha festiva do brinquedo de corda. 4. LÁ em casa, na cozinha, há uma velha cadeira de madeira lavrada, sem travessas, em cujo fundo o meu avô põe os sapatos a secar, ao pé do fogão. Tobias, Abraão, Gil‑berto e eu saímos da escola, ontem por esta hora, e fomos às plantações com uma fisga, um chapéu grande para afugentar os pássaros e uma na‑valha nova. Pelo caminho, eu ia‑me lembrando da cadeira partida, abandonada a um canto da cozinha, que em tempos serviu para receber visitas e que agora é utilizada pelo morto que todas as noites se senta, com o chapéu preto posto, a contemplar as cinzas da lareira apagada. Tobias e Gilberto estavam a chegar ao fim da passagem escura. Como tinha chovido durante a manhã, os sapatos resvalavam‑lhes na erva enlameada. Um deles assobiava e o seu assobio duro e firme ressoava na galeria vegetal, como quando nos pomos a cantar dentro de um tonel. Abraão vinha atrás, comigo. Ele com a fisga e a pedra pronta para ser disparada. Eu com a na‑valha aberta. De repente o sol rompeu o tecto de folhas apertadas e densas e um corpo luminoso caiu esvoaçando na erva, como um pássaro vivo. «Vis‑te?», disse Abraão. Eu olhei para a frente e vi Gilberto e Tobias no fim da passagem. «Não é um pás‑saro», disse. «É o sol que entrou com força.» Quando chegaram à margem, começaram a despir-se e a atirar um ao outro fortes chapinhadas daquela água crepuscular, que parecia não lhes molhar a pele. «Não há um único pássaro, esta tarde», disse Abraão. «Quando chove não há pássaros», disse eu. E eu próprio acreditei nisso. Abraão desatou a rir. O seu riso é tonto e simples e faz um ruído como o de um fio de água numa bacia. Despiu‑se. «Vou meter‑me na água com a navalha e encher o chapéu de peixes», disse. Abraão estava nu diante de mim, com a mão aberta, à espera da navalha. Eu não respondi logo. Apertava a navalha com força e sentia na mão o seu aço limpo e temperado. Não lhe vou dar a navalha, pensei. E disse‑lho: «Não te vou dar a navalha. Só ma deram ontem e vou ficar com ela toda a tarde.» Abraão continuou com a mão estendida. Então disse‑lhe: «Incomploruto.» Abraão entendeu‑me. Só ele entende as minhas palavras: «Está bem», disse, e caminhou para a água através do ar denso e ácido. Disse: «Começaa despir‑te e esperamos‑te na pedra.» E disse‑o enquanto mergulhava e voltava a aparecer reluzente como um peixe prateado e enorme, como se a água se tivesse tornado líquida em contacto com ele. Eu permaneci na margem, deitado sobre a lama morna. Quando abri a navalha de novo, deixei de olhar para Abraão e levantei os olhos, em direcção ao outro lado, para cima das árvores, para o entardecer furioso cujo céu tinha a monstruosa imponência de uma cavalariça incendiada. «Despacha‑te», disse Abraão, do outro lado. Tobias estava a assobiar no rebordo de pedra. Então pensei: Hoje não tomo banho. Amanhã. Quando regressávamos, Abraão escondeu‑se atrás das silvas. Eu ia persegui‑lo, mas ele disse‑me: «Não venhas para aqui. Estou ocupado.» Obedeci, sentado nas folhas mortas do caminho, a olhar para a única andorinha que traçava uma curva no céu. Disse: «Esta tarde só há uma andorinha.» Abraão não respondeu logo. Estava silencioso, atrás das silvas, como se não me pudesse ouvir, como se estivesse a ler. O seu silêncio era profundo e concentrado, cheio de uma recôndita força. Só depois de um longo silêncio suspirou. Então disse: «Andorinhas.» Tornei a dizer‑lhe: «Há só uma, esta tarde.» Abraão continuava atrás das silvas, mas não se sabia nada dele. Estava silencioso e concentrado, mas a sua quietude não era estática. Era uma imobilidade desesperada e impetuosa. Daí a pouco, disse: «Só uma? Aaah. Pois, pois.» Desta vez não disse nada. Foi ele que começou a mexer‑se atrás das silvas. Sentado nas folhas, eu ouvi perto dele o barulho de outras folhas mortas debaixo dos seus pés. Depois tornou a ficar silencioso, como se se tivesse ido embora. A seguir respirou profundamente e perguntou: «O que é que estás a dizer?» Tornei a dizer‑lhe: «Que esta tarde há só uma andorinha.» E, enquanto lho dizia, olhava para a asa arqueada, traçando círculos no céu de um azul incrível. «Está a voar alto», disse. Abraão respondeu imediatamente: «Ah, pois, claro. Deve então ser por isso.» Saiu de trás das silvas, a abotoar as calças. Olhou para cima, para onde a ando‑rinha continuava a traçar círculos, e, ainda sem me responder, disse: «O que é que estavas a dizer há bocado sobre as andorinhas?» Isto atrasou‑nos. Quando chegámos, as luzes da aldeia estavam acesas. Entrei em casa a correr e tropecei, no varandim, nas mulheres gordas e cegas, as gémeas de San Jerónimo que todas as terças‑feiras vêm cantar para o meu avô, desde antes de eu nascer, segundo disse a minha mãe. Passei a noite inteira a pensar que hoje voltaríamos a sair da escola e que iria‑mos ao rio, mas não com Gilberto e Tobias. Queria ir sozinho com Abraão, para lhe ver o brilho da barriga quando mergulha e torna a aparecer como um peixe metálico. Toda a noite desejei regressar com ele, sozinho pela obscuridade do túnel verde, para lhe roçar a coxa pelo caminho. Sempre que o faço, é como se alguém me mordesse com uns mordiscos suaves, que me eriçam a pele. Se este homem que saiu para ir conversar com o meu avô na outra sala não demorar muito, pode ser que cheguemos a casa antes das quatro. Então irei ao rio com Abraão. Ficou a viver em nossa casa. Ocupou um dos quartos da galeria, o que dá para a rua, porque eu assim achei conveniente; porque sabia que um homem do seu carácter não arranjaria maneira de estar à vontade no hotelzinho da aldeia. Pôs um aviso na porta (até há poucos anos, quando caiaram a casa, ainda estava no seu lugar, escrito a lápis por ele próprio, em letra cursiva), e na semana seguinte foi preciso arranjar mais cadeiras, para satisfazer as exigências de uma numerosa clientela. Depois de me ter entregue a carta do coronel Aureliano Buendía, a nossa conversa no escritório prolongou‑se de tal maneira que Adelaida não duvidou que se tratava de um funcionário militar em importante missão, e dispôs a mesa como para uma festa. Falámos do coronel Buendía, da sua filha nascida de sete meses e do primogénito meio tolo. Ainda a conversa não ia longa quando percebi que aquele homem conhecia bem o Intendente‑Geral e que tinha suficiente estima por ele para corresponder à sua confiança. Quando Meme nos veio dizer que a refeição estava servida, pensei que a minha esposa tinha improvisado umas coisitas para obsequiar o recém‑chegado. Mas estava muito longe da improvisação, aquela mesa esplêndida, posta com uma toalha nova, com a louça de porcelana exclusivamente destinada aos jantares de família do Natal e do Ano Novo. Adelaida estava solene e altiva numa das extremidades da mesa, com o vestido de veludo fechado até acima, aquele que usou antes do nosso casamento para tratar dos assuntos da sua família na cidade. Adelaida tinha hábitos mais refinados do que os nossos, certa experiência social que, a partir do nosso casamento, começou a influenciar os costumes da minha casa. Tinha posto o medalhão familiar, aquele que ostentava em ocasiões de extrema importância, e toda ela, como a mesa, como os móveis, como o ar que se respirava na sala de jantar, produzia uma severa sensação de compostura e asseio. Quando chegámos ao salão, até ele, que sempre foi tão descuidado no vestir e nas maneiras, se deve ter sentido envergonhado e deslocado, porque levou a mão ao botão do colarinho, como se tivesse gravata, e notou‑se‑lhe uma ligeira hesitação no andar despreocupado e enérgico. Não há nada que recorde com tanta precisão como aquele instante em que ir‑rompemos na sala de jantar e eu próprio me senti vestido demasiado caseiramente para uma mesa como a preparada por Adelaida. Nas travessas havia aves de criação e caça grossa. Exactamente como, de resto, nas nossas refeições daquele tempo; mas a sua apresentação na louça nova, por entre os candelabros recém‑area‑dos, era espectacular e diferente do habitual. Embora a minha esposa soubesse que se receberia um único visitante, pôs os oito talheres, e a garrafa de vinho, ao centro, era uma exagerada manifestação da diligência com que tinha preparado a homenagem para o homem que, desde o primeiro momento, confundira com um distinto funcionário militar. Nunca vi em minha casa um ambiente mais carregado de irrealidade. A indumentária de Adelaida teria podido parecer ridícula se não fossem as suas mãos (eram realmente bonitas, e demasiado brancas), que equilibravam com a sua distinção o muito de falso e rebuscado que tinha o seu aspecto. Foi quando ele levou a mão ao botão da camisa que eu me apressei a dizer: «A minha esposa em segundas núpcias, doutor.» Uma nuvem toldou o rosto de Adelaida e tornou‑o diferente e sombrio. Ela não se mexeu de onde estava, com a mão estendida, sorrindo, mas já não com o ar de cerimoniosa altivez que tinha quando entrámos na sala de jantar. O recém‑chegado bateu as botas, como um militar, levou a ponta dos dedos esticados à fronte e a seguir dirigiu‑se para ela. «Senhora», disse. Mas não pronunciou nenhum nome. Só quando o vi apertar a mão de Adelaida com uma sacudidela tosca me apercebi da vulgaridade e da grosseria do seu comportamento. Sentou‑se na outra extremidade da mesa, entre os cristais novos, entre os candelabros. A sua presença desleixada destacava‑se como uma nódoa de sopa na toalha. Adelaida serviu o vinho. A sua emoção do princípio tinha‑se transformado num nervosismo passivo que parecia dizer: Está bem, tudo se fará como estava previsto, mas deves‑me uma explicação. E foi depois de ela servir o vinho e se sentar no outro extremo da mesa, enquanto Meme se preparava para servir os pratos, que ele se deitou para trás na cadeira, apoiou as mãos na toalha e disse, sorrindo: «Olhe, menina, ponha a ferver um pouco de erva e traga‑me isso como se fosse sopa.» Meme não se mexeu. Tentou rir, mas não pôde, e voltou‑se para Adelaida. Então ela, sorrindo também, mas visivelmente desconcertada, perguntou‑lhe: «Que espécie de erva, doutor?» E ele, com a sua parcimoniosa voz de ruminante: «Erva vulgar, minha senhora; da que comem os
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