Buscar

Heinz G. Konsalik A FOTO INDECOROSA

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 77 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 77 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 77 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

A FOTO INDECOROSA
Heinz G. Konsalik
 http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
Sinopse
Tendo a seu crédito uma extensa bibliografia, Konsalik, em um considerável número de romances abordou temas russos, colocou personagens russos em seus argumentos e usou a própria Rússia como local das histórias. Isso tudo acontece em A Foto Indecorosa, com a particularidade de que, abandonando o tom predominantemente sério de seus livros, ele aqui nos oferece uma obra em que o forte é exatamente a sátira.
Não há dúvida de que Konsalik é o grande romancista da Rússia em idioma alemão, fama merecidamente conquistada com a publicação de livros do quilate de Noites de Amor nas Estepes, Expresso Transiberiano, Amores Sobre o Don, Só Restou Uma Vela Vermelha, para citar apenas alguns de seus memoráveis romances, que constituem uma longa lista de sucessos. E seu traço marcante é a observação arguta das oscilações mais sutis da alma e da vida russas, em seus aspectos mais sérios, mais profundos, por isso Konsalik chega a surpreender com um livro como A Foto Indecorosa, no qual, numa prova de grande versatilidade, aborda um tema leve, extremamente divertido.
A história deste novo livro do escritor alemão é como sempre rica em personagens e, do mesmo modo que em muitos de seus livros anteriores, se desenrola numa pequena localidade russa, cuja vida é descrita pelo autor com detalhes geniais. Um incidente gera toda a trama, e ele aconteceu quando um fotógrafo local ao trabalhar certo dia na revelação de um filme verificou perplexo que pouco a pouco, porém cada vez mais claramente, o revelador fazia aparecer no papel um lindo corpo desnudo de mulher, com um defeito: a cabeça fora cortada da fotografia, não se podia identificar a mulher...
A Foto Indecorosa é um livro que nos apresenta um novo Konsalik, mas como sempre encaminhando sua história para um desfecho verdadeiramente surpreendente.
OBRAS DO AUTOR
AMANDO PERIGOSAMENTE
AMOR DE COSSACO
AMOR EM SÃO PETERSBURGO
O AMOR FLORESCE NA PRIMAVERA
AMORES SOBRE O DON
O ANJO DOS ESQUECIDOS
A CASA DOS CORAÇÕES PERDIDOS
CASAMENTO POR PROCURAÇÃO
O CORAÇÃO DO SEXTO EXÉRCITO
EXPRESSO TRANSIBERIANO
O LADO OCULTO DA GLÓRIA
LUAR SOBRE AS ESTEPES
MANOBRAS DE OUTONO
O MÉDICO DA CZARINA
O MÉDICO DE STALINGRADO
NATACHA NINGUÉM VIVE DE SEUS SONHOS
NINOTCHKA
NO VALE DOS SONHOS
NOITES DE AMOR NAS ESTEPES
QUENTE COMO VENTO DAS ESTEPES
SÓ RESTOU UMA VELA VERMELHA
UM MUNDO DESCONHECIDO
A FOTO INDECOROSA
ELES ERAM DEZ
A FOTO INDECOROSA
Heinz G. Konsalik
Ilustrações de J.A. HESS
Tradução de REINALDO GUARANY
2ª EDIÇÃO
Editora Record
Título original alemão DAS UNANS TAENDIGE FOTO
Copyright (C) 1980 by Autor und AVA, Autoren-und Verlags-Agentur, Muenchen-Breitbrunn
Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S. A.
Rua Argentina 171 - 20921 Rio de Janeiro, RJ que se reserva a propriedade literária desta tradução
I
Todo mundo em Novo Korsaki tirou o chapéu diante de Nikita Romanovitch Babajev.
Kasutin, o secretário do Partido} ficou parado na rua quando encontrou Babajev e deu-me umas batidinhas afáveis no ombro; Zvetkov, o gordo comissário de construção, rico e indecoroso, fez-lhe sinais de seu automóvel; o farmacêutico Dudorov não deixou que ele passasse por sua loja sem um pequeno bate-papo; e até mesmo Akif Victorovitch Mamedov, o pope, recostou-se na cerca do jardim da igreja, apoiou-se no cabo de sua enxada e disse:
— Como é que estão as coisas para nós hoje, seu pagão? Já é um verdadeiro milagre que o sol de Deus ainda o esteja iluminando.
Em seguida, Babajev deu um sorriso presunçoso, replicou algumas palavras gozadoras e continuou seu caminho.
A amabilidade geral que o cercava não se devia aseus cabelos estranhamente vermelhos, apesar de que estes fossem, ali na Sibéria, uma coisa digna de ser vista; antes, ele devia agradecer à sua profissão.
Babajev era fotógrafo.
Mas as pessoas vão replicar e com razão: Muito bem, qual o problema? Se todos os popes lançassem uma bênção quando vissem um fotógrafo, onde é que se chegaria com isso? Claro que isso é impossível, mas é preciso se levar em consideração que se está ali, em Novo Korsaki.
Ao sul do Ural sulino, no curso inferior do rio Tobol, nas proximidades dos seis lagos que, enigmaticamente, são chamados de ”Seis Virgens”, está situada essa pequena cidade, em uma baixada cercada de bosques, para a qual só há uma estrada de ligação. No inverno essa estrada é intransitável por causa do acúmulo de neve, na primavera e no outono os veículos chafurdam em lama, e só no verão é possível chegar-se, de alguma maneira, até Kustanai, uma cidade um pouquinho maior, de onde se pode alcançar Magnitogorsk de trem, depois de repetidas baldeações.
Afirma-se que os primeiros habitantes da região de Novo Korsaki foram descobertos no ano de 1789, quando um destacamento de cossacos a caminho do Ural parou para dar de beber aos cavalos no Tobol; de repente, viram fumaça elevando-se dos bosques. Os selvagens sujeitos cavalgaram com uma grande gritaria em direção à colónia solitária, souberam que os habitantes eram desterrados e postos em liberdade, estupraram as mulheres e moças e, principalmente por isso, deleitaram-se tanto nas choupanas que por lá ficaram e ampliaram a colónia. A pequena cidade surgida dessa maneira foi balizada, segundo os costumes de seu dirigente cossaco, de Korsaki. Finalmente, raptaram um pope do lugarejo Orsk, junto ao Ural. construíram uma igreja e a partir de então viveram tão livres como as nuvens no céu e as ondas do Tobol.
As transformações políticas da Rússia eles só assistiram da margem. Mesmo quando, em 1922, um homem vestido com uma jaqueta preta de couro apareceu pela primeira vez em Magnitogorsk, apresentando-se como comissário dos bolcheviques, fazendo discursos tonitruantes e proclamando que agora seria tudo diferente, que a Rússia pertencia aos russos — coisa que ninguém nunca havia duvidado em Novo Korsaki — mesmo então não mudou muita coisa por lá. Foi construída uma sede do Partido na pequena cidade, de repente teve-se que pagar impostos e um monumento de gesso de tamanho sobrenatural, que mostrava um homem chamado Lenin, foi erguido. Ele apontava com os braços esticados e olhos fixos para as Seis Virgens, como se quisesse exclamar em voz alta: ”Lá embaixo tem uns esturjões bem gordos!”
Os habitantes de Novo Korsaki suportaram tudo isso com a serenidade de verdadeiros homens de floresta. Só quando o funcionário do Partido quis mandar demolir a igreja e, de modo provocador, puxou a longa e negra barba do pope daquele tempo, Bulak, foi que borbulhou o velho sangue cossaco de novo. O homem do Partido sucumbiu a uma misteriosa doença, a qual faz com que a abóbada craniana das pessoas estale. Foi enterrado rapidamente e, em seguida, Novo Korsaki esperou com serenidade pelo novo comissário que deveria vir de Magnitogorsk.
Com o passar dos anos, a pequena cidade cresceu consideravelmente, mesmo não havendo mudado nada em termos de possibilidades de acesso. Surgiu uma serraria, foi construído um armazém, o companheiro Zvetkov foi nomeado comissário de construção e fundou um grande estabelecimento de ensino, no qual eram formados engenheiros agrónomos. Veio um médico para Novo Korsaki, a este seguiu-se um farmacêutico, e como a nova colónia evidenciava-se como a realização da ideia de um louco (pois como é que se pode habitar casas que não têm nenhuma estrada de acesso?), Zvetkov recebeu a incumbência de cuidar também da construção de um pequeno aeroporto. Dessa maneira, Novo Korsaki foi ligada ao grande e vasto mundo, mesmo que só os helicópteros e aviões de transporte da escola de agronomia aterrissassem e levantassem voo por lá.
Por fim, não faltou também que, um dia, Babajev, que havia ido quando jovem para formar-se em Smolensk, retornasse à terra e inaugurasse uma loja de fotografias na casados pais. Retirou as cortinas de uma janela, martelou um caixote de madeira por trás do marco, colocou aí dentro duas máquinas fotográficas e dois cartazes, estirados sobre papelão, com fotos coloridas de Moscou e Leningrado, pintou um letreiro: ”N. R. Babajev — Fotógrafo” e preparou um retrato da avó de Kasutin, o secretário do Partido. A velhíssima Schanna Bespulova arregalhou os olhos para sua fotografia, bateu palmas, virou os olhos e perdeu os sentidos. Era a primeira foto que ela via de sua pessoa.
Claro que esse tipo de coisa era divulgado. Com isso, Babajev conseguiu rapidamente muito que fazer, fotografou quase todos os cidadãos de Novo Korsaki, construiu mais um ateliê junto à casa, mandou vir da cidade os mais modernos equipamentos de laboratório, que ele apresentava como um diretor de museu apresenta seus tesouros raros, e elevou-se à categoria de pessoa respeitada. Sua especialidade eram as fotografias de mortos. Metidos no caixão; em câmara ardente, emoldurados por flores, os amados falecidos viravam modelos dignos de serem admirados. Logo essas fotos com molduras pretas, iluminadas de modo impressionante, não faltavam em nenhuma casa decente de Novo Korsaki.
Mas também as demais produções de Babajev demonstravam um grande talento. Suas fotos da igreja, suas tomadas da paisagem campestre, suas reportagens sobre casamentos ou festas do Partido locupletavam a vida cultural de Novo Korsaki. Claro que, além disso, ele vendia máquinas fotográficas, organizava cursos de fotografia, revelava e ampliava as tomadas dos amadores e dava conferências com acompanhamento de fotografias. Poder-se-ia dizer, com toda razão: Nikita Romanovitch Babajev contribuía em larga escala para cunhar a história de Novo Korsaki.
É extremamente importante saber-se de tudo isso. Pois afinal quem é que já conhece a vida ali, na parte inferior do Tobol, nos bosques junto às Seis Virgens, onde só se podem encontrar linces e martas vivendo ainda de modo selvagem, onde os castores constróem seus diques nas regiões pantanosas e onde, no inverno, o uivo das alcateias de lobos faz estremecer todo o país solidificado em gelo?
Esse tipo de coisas molda o ser humano, torna-o mais duro e faz com que ele permaneça honesto. Obriga-o a tornar-se uma grande comunidade estreitamente unida, na qual a alegria e a tristeza são partilhadas. Claro que pequenas fraquezas humanas existem e estão em marcha. Mas, para isso, Akif Victorovitch era a pessoa competente em Novo Korsaki, a pessoa que levava para a igreja todos os pecadores, mandava que rezassem diante da iconoteca e, a cada um, de acordo com o pecado, arrastava-o para um insípido cómodo contíguo — no qual só havia uma fotografia de Babajev pendurada na parede, representando um ícone do inferno da Catedral de São Isaak, em Leningrado e, ou o esbofeteava e desferia repetidos pontapés em seu traseiro, ou convidava-o à caixa com intenção de ampliar a construção da igreja. Por conseguinte, havia poucos pecadores em Novo Korsaki e também só por causa disso é que o secretário do Partido, Piotr Dementievitch Kasutin, suportava a existência da igreja em seu distrito. Ele encarava-a, de modo económico, como uma espécie de filtro.
Em um belo dia de verão prematuro, perante o qual qualquer ser humano que possuísse um mínimo de sentimento estaria disposto a agradecer a Deus, começou o drama que sacudiu Novo Korsaki mais que um terremoto de fòrça mediana.
O drama começou de maneira bem inocente: Victor Semionovitch Jankovski entregou um rolo de filmes ao fotógrafo Babajev, 12 tomadas de 6x6.
— Companheiro, eu preferiria se as fotografias pudessem ser ampliadas para 18 x 18. Claro que isso deve ser possível, não é mesmo?
— Se você quiser, faço disso aqui um póster tão grande quanto uma parede de casa — respondeu Babajev de modo ingénuo. — Para quando você precisa das fotos, companheiro?
— O mais rápido possível.
— Digamos... depois de amanhã?
— Está bem.
— Fosco ou brilhante?
— Bem brilhante.
Babajev anotou o nome, colocou o filme em uma bolsa castanha, anotando o pedido do freguês sobre ela. Jankovski ainda comprou mais um filme, seisflashes e depois saiu da loja fazendo com que soassem os sininhos situados na padieira da porta.
Havia nove semanas que Victor Semionovitch Jankovski aparecera em Novo Korsaki e, imediatamente, causara celeuma. Era jovem, cabelos louros claros, alto, músculos de esportista, tinha olhos de um azul brilhante, sempre com um sorriso nos lábios, e vinha de Leningrado. Havia chegado à cidadezinha em um desses carros para todos os terrenos, bem alto, abarrotado de instrumentos. Anunciara-se a Kasutin e apresentara um documento muito interessante. De acordo com esse documento, ele tinha a missão de realizar pesquisas geológicas, testes de perfuração e medições nos arredores de Novo Korsaki e o Ministério pedia que lhe fosse concedido todo apoio.
Kasutin prometeu-lhe tudo, alojou Jankovski em uma velha casa que pertencia ao deficiente auditivo e telhador Fessenko, um ancião de 82 anos de idade, que na maioria das vezes ficava sentado em uma cadeira de braços e que há 11 anos estava lendo um livro ilustrado que descrevia a conquista de Odessa pelo Exército Vermelho. Jankovski saía muito, na maior parte ia para as. Seis Virgens e para os bosques; também muitas vezes permanecia nas selvas alguns dias e noites, dormindo em um saco de dormir forrado e caçando seus assados, escolhidos entre os abundantes animais selvagens. Ninguém se dava conta do que ele realmente fazia, nem mesmo Kasutin.
— Ele é geólogo — dizia Kasutin para os curiosos que o importunavam. — Ele tem consigo um ofício do Ministério. Isso basta, não é mesmo, companheiros? Estamos autorizados, ou mesmo na posição de fazer uma vistoria em um ofício do Ministério? Por favor, meus queridos! O documento tem três assinaturas e quatro carimbos!
Esse tipo de coisa impressionava qualquer russo. Uma carta com três assinaturas provocava respeito. E, ainda por cima, mais quatro carimbos... companheiros, calem a boca! Victor Semionovitch chegou aqui com uma missão importante. Ainda que ele mesmo não fale sobre ela... mantenham a calma, ele deve ter lá suas razões. Ouvem-se tantas coisas estranhas sobre tudo que deve estar escondido sob o solo da Sibéria. Nós, estúpidos homens comuns e correntes, claro que só vemos a superfície.
Em pouco tempo, Jankovski tornou-se um hóspede querido em Novo Korsaki. Ele sabia contar histórias de uma maneira que prendia a atenção, tinha modos educados, não olhava imediatamente para os seios das mulheres dos anfitriões, não contava nenhuma piada picante, jogava xadrez muito bem e, acima de tudo, era um homem que pautava em ser amável e contido. De início, sua beleza masculina provocou alarme em muitos maridos e pais de filhas crescidas, mas quando evidenciou-se que o sedutor Victor Semionovitch não se dedicava a nenhuma escapada noturna, foi encarado como um tremendo achado de hóspede. Até mesmo o pope convidava-o muitas vezes para comer; aliás, pelo contrário, em cada uma dessas oportunidades, Akif Victorovitch Mamedov relatou a situação de um sacerdote na solitária Sibéria de um modo tão comovedor, que a Jankovski não restou senão evitar ser convidado, passando ele próprio a oferecer ao pope uma opulenta comida. Mamedov apareceu com uma Bíblia na mão, abençoou Jankovski, leu algo da Sagrada Escritura antes da comida e depois devorou todas as travessas.
Um dos mais entusiasmados com Jankovski era o velho Fessenko, o proprietário da casa onde o jovem senhor vivia: Victor Semionovitch trouxe-lhe de uma viagem a Sverdlovsk um novo livro ilustrado: A Defesa de Leningrado contra as Tropas Nazistas. Isso preencheu a velhice de Fessenko. O ancião fez 82 anos nesse ano.
Portanto, o fotógrafo Babajev fechou sua loja nesse dia pontualmente às 19:00, tirou o filme de amador da caixa de madeira e desapareceu em seu laboratório.
Apesar de que isso fosse sua profissão e, portanto, seu trabalho, Babajev sempre experimentava alegria pelas fotos inocentes que seus clientes tiravam e queele revelava e ampliava: mamuschka pendurando a roupa; o avozinho partindo a lenha; uma roda de chá com mulheres de sorrisos largos e idiotas; um cachorro vira-latas que justo nesse momento caga na bolsa do titio; um jovem andando de bicicleta; uma adolescente em um balanço entre duas bétulas; em resumo, o pequeno e importante mundo de seus próximos, que foi preservado em fotos.
Por volta das 22:00, Babajev havia revelado e lavado todos os filmes. Estavam pendurados na linha para secagem e pouco depois deveriam passar pela ampliadora. Nisto também Babajev estava equipado com as mais modernas aquisições... As cópias normais ele confiava a uma máquina. Procedeu de um modo diferente com as fotografias de Jankovski. Como era um cliente-problema, isto exigia algumas sutilezas, sendo necessário que se procedesse ao trabalho manual. Neste caso, era preciso que se conseguissem alguns tons intermediários, que se suprimissem grandes sombras na ampliação... existem alguns truques só conhecidos por profissionais como Babajev.
Pouco depois das 22:00, só havia o filme de Jankovski pendurado na linha. Babajev cravou os olhos nos negativos, depois, com os dedos trémulos, preparou a ampliação, engatou o primeiro negativo, projetou-o no tamanho 24x24 (ao invés.de 18x18 como havia sido desejado) sobre a mesa e em seguida colocou o papel por baixo. Com grandes gotas de suor escorrendo-lhe pela testa, ele iluminou, em seguida levou com uma pinça o papel para o banho de revelação e colocou-o lá. Pouco a pouco, a foto foi despertando sob seus olhos que estavam cravados no papel, tomava forma, tornava-se clara, alcançava os pontos corretos. Babajev retirou a folha do caldo, mexeu-a no banho fixador e depois pendurou-a com um gancho no fio. Deixou-a gotejando pouco tempo, agarrou a ampliação e foi correndo para fora. Colocou-a sob uma lâmpada forte, jogou-se em uma velha poltrona de vime em frente e a outra coisa que fez foi enxugar o suor do rosto. Um leve tremor percorria-lhe o corpo, assim como se alguém o tivesse ligado a uma fraca corrente elétrica que agora, através da circulação sangüínea, estivesse percorrendo todas as veias.
— Mas isso é magnífico! — disse Babajev com a garganta seca. — Pelo amor de Deus, isso aí é mais que magnífico! Fique bem tranqüilo, Nikita Romanovitch... não se deixe derrubar por um ataque do coração. Mantenha a frieza de nervos. Respire bem fundo, volte à câmara escura e amplie também todas as outras fotos. Bem tranqüilo...
Uma hora depois, as 12 ampliações estavam penduradas diante de Babajev, bem focadas e brilhantes. Ele sentou-se então com as mãos cruzadas, deliciando-se com a contemplação e tendo perfeita consciência que não poderia dormir nessa noite. Também os fotógrafos têm uma alma vulnerável.
Completamente extenuado, Nikita Romanovitch desempenhou sua tarefa: ampliou as 12 fotos para o tamanho desejado de 18x18, colocou-as em um grande envelope, escreveu com caneta vermelha ”para o companheiro Jankovski” e fechou à chave as fotografias na gaveta.
Em seguida, retornou às suas ampliações particulares 24x24, recostou-se bem comodamente em sua poltrona e deixou o olhar vaguear pelas 12 fotografias. De vez em quando bebia um gole de vodca, apanhava uma grande cebola, descascava-a e comia acompanhada com um pedacinho de pão.
— Monstruoso — dizia de vez em quando — uma grandiosa, magnífica sacanagem. E isso em Novo Korsaki! O anonimato é uma baixeza. Mas eu descobrirei. Descobrirei! Victor Semionovitch Jankovski, você é um sacana de meter inveja em qualquer um. Ah, meu Deus do céu, você é realmente um finório. Aposto como não vai ficar nem embaraçado nem ruborizado quando vier buscar as fotografias comigo. Ah, como você deve ser espertalhão!
Realmente, Babajev teve uma péssima noite
Qualquer um podia falar com o camarada secretário do Partido Piotr Dementievitch Kasutin, quando ele aparecia na sede entre 11 e 12 horas e quando se tinha alguma coisa realmente importante para se dizer. Mas se fosse o caso de só um bate-papo, e sobre isso quem decidia era o próprio Kasutin, em virtude de sua função, então o caso era de punição por causa de roubo do precioso e nacionalizado tempo de trabalho. Aqueles que não pudessem pagar com rublos deviam entregar o correspondente em géneros — um pouco de toucinho ou ovos, carne-seca ou geléia — ou tinham de dedicar-se uma hora ou mais para a limpeza da cidade, sem receber pagamento. Através de tais métodos progressistas, Kasutin tornou-se uma das pessoas menos importunadas de Novo Korsaki. Podia ir com freqüência para as caçadas, contudo dedicava-se também ao estudo dos documentos do Partido e brilhava nos discursos das festas do Partido, com citações de Lenin, Marx, Brejnev e com palavras comoventes de grandes poetas russos. O pope Akif tinha dificuldades em impor-se contra esse estado de coisas; tarefa mais difícil de executar com as devotas sentenças da Bíblia; soavam muito envelhecidas contra as vigorosas palavras de Kasutin, até que Akif recordou-se de que, no longínquo Ocidente, houvera um sacerdote chamado Abraham Santa Clara, que havia conseguido encher as igrejas com pragas e imprecações. Portanto, Akif tentou-o também, depois de haver pedido perdão a Deus antecipadamente e de haver acendido uma grande vela.
Um domingo, os fiéis ouviram, admirados, Akif Victorovitch gritando sobre suas cabeças com uma voz trovejante:
— Que é que sou obrigado a ouvir? Que vocês ficam aí dedicando-se à pularia, comem até rebentar a pança e bebem como vacas em épocas de seca! Não me venham com essa de levantar a cabeça! Essa mirada pecaminosa de vocês poderia arrombar o paraíso!
Depois do sermão, entrando pela porta dos fundos, Kasutin apareceu na residência de Akif e examinou-o com o olhar sombrio.
— Isso aí é algum estilo novo? — perguntou, apreensivo.
— Sim — replicou Akif.
— Onde é que você quer chegar com isso?
— À verdade. Vou repreender a cada um por seus pecados, e isso de público.
— Eles vão tomar a igreja de assalto.
— É, mas de joelhos.
— Desmentirão tudo.
— Essa é a especialidade de vocês. Estou sabendo. Piotr Dementievitch, você tem suas citações de Lenin, eu entro em cheio na vida humana.
— Que é que você está sabendo de mim? — perguntou Kasutin, com a voz cheia de cuidado. — Paizinho Akif, a gente pode conversar sobre isso na maior calma do mundo.
Mamedov era inteligente o bastante para não dizer que não sabia absolutamente nada. Ele só piscou o olho Para Kasutin, como se fosse um conspirador, voltou a piscar o olho, deu um amplo sorriso, passou a mão por sua longa barba e deu umas tossidinhas impertinentes. Kasutin empalideceu um pouco, deu a entender que não precisava dizer nada e virou-se para ir embora.
— Você pode voltar quando quiser — gritou-lhe Akif.
E, desde essa conversa, ficou matutando sobre qual vilania desconhecida Kasutin era passível de ser incriminado.
Mas hoje, a secretária de Kasutin, a sinistra Dunia Sergeievna, anunciou que o companheiro Babajev deveria conversar, fora da hora de turno, com o camarada secretário do Partido. Kasutin olhou confuso para o relógio, viu que passava das nove e mandou que Babajev entrasse de imediato. Como sempre pelas manhãs, Kasutin estava tomando seu café, ao mesmo tempo em que lia o jornal, sendo servido por Dunia Sergeievna. Ela passava manteiga e mel de abelha em um pão para ele, enchia uma xícara de chá, adoçava-o, acrescentava um pouco de creme e entregava-lhe o suntuoso desjejum por trás e, assim fazendo, pousava os seios em seu ombro. O prazer do café da manhã era reforçado pelo fato de Vera, a mulher de Kasutin, e as duas crianças terem partido numa viagem de férias para Rostov, quer dizer, estavam longe o bastante para deixar que o chefe da família ficasse a salvo de surpresas.
— Meu bom Nikita Romanovitch, desse jeito você me assusta — disse Kasutin, quando Babajev entrou na sala. — Pelo amor de Deus, você está com uma cara... Você tem algum fantasma em casa?
Babajev sentou-se com um gemido, colocou o grande envelope em cima da mesa e deu algumas respiradas profundas.Seus olhos estavam emoldurados por sombras escuras, os lábios estavam pálidos, tremiam, e os músculos das faces tiritavam. Babajev lançou um olhar para o lado de Dunia Sergeievna, que estava postada junto à porta, esperando. Ele levantou a mão, enfiou o polegar no nariz e, desesperado, acenou com o dedo mindinho. Finalmente, Kasutin compreendeu.
— Mando chamá-la de novo se for preciso, camarada — disse ele, com uma entonação de voz formal.
Dunia deixou o cómodo. Com um suspiro, Babajev encolheu-se todo. Abriu a presilha do envelope, mas não tirou o conteúdo.
— Você conhece Victor Semionovitch Jankovski? — perguntou, de modo áspero.
Kasutin levantou a sobrancelha:
— Claro que conheço! — disse ele. — Quem é que não conhece? Que é que você está querendo?
— Que acha você dele?
— Ele não é um homem vulgar.
— Pode-se dizer — Babajev emitiu um ofego pelo nariz — e você também me conhece...
Kasutin tornou-se cauteloso. Examinou Babajev com mais acuidade e balançou a cabeça.
— Você não está com aparência de quem está bêbedo.
— Sempre fui uma pessoa honesta, sempre fui digno de confiança, sempre reservado, discreto como um muro caiado de branco, um amigo de verdade, um cidadão diligente, um comunista fiel, um cristão decente...
— Você está querendo algum certificado de conduta oficial? — perguntou Kasutin, impaciente. — Aqueles que vêm a mim às 9 horas da manhã...
Babajev levantou os braços, como se precisasse exorcizar algum espírito; depois, retirou as ampliações do envelope e colocou-as sobre a mesa, com a parte da frente para baixo. Kasutin sentiu um formigar debaixo de seus cabelos. Foi atacado também pelo grande medo de todos os russos, o medo de que algum espião ou então algum elemento nocivo ao Estado andasse metido no círculo de suas amizades. Até aquele momento, Novo Korsaki havia sido dispensada desse tipo de problemas, com exceção da briga que Kasutin fora obrigado a empreender com a direção do Partido em Magnitogorsk, que o havia recriminado porque ele ainda suportava uma igreja e um pope em sua cidade. Isso era uma vergonha. Depois disso, Kasutin convidara o primeiro e o segundo secretários da direção do Partido para uma caçada em Novo Korsaki, a fim de que eles pudessem ter uma visão pessoal da população. Também o pope, o paizinho Akif, meteu-se com eles dentro dos bosques. Foram formados dois grupos e, de uma maneira que não se sabe bem, aconteceu que o grupo com os dois convidados perdeu-se e vagou de um lado para o outro, desamparado. O cidadão cossaco Ivan Filippovitch, também acometido dessa inquietação, revelou-se como um perfeito imbecil e covarde naquela situação: sentou-se num cepo, chorou lágrimas amargas enquanto chamava desesperado pelo pope, a fim de que pudesse confessá-lo ainda uma última vez antes que os lobos o espedaçassem.
Os convidados da capital conheceram o grande tremor. Na noite seguinte, sentados juntos a uma fogueira que fumegava miseravelmente por causa da madeira úmida, eles ouviram os uivos da matilha assassina, às vezes próxima, às vezes mais afastada, mas sempre em volta deles, e esses uivos penetraram-lhes tanto nos ossos, que o primeiro-secretário teve de desaparecer e agachar-se atrás de uma árvore cinco vezes nessa noite, para comprimir para fora das tripas todo o medo que sentia.
E os lobos seguiam uivando. Finalmente tão próximos, que o semi-idiota Ivan Filippovitch caiu de joelhos, cantou uma música de igreja e rezou.
— Agora chega — Kasutin cochichou então para o Pope Akif, que sabia imitar tão bem o uivo de um lobo.
— Agora vamos partir para salvá-los.
Por conseguinte, o paizinho Akif agarrou sua espingarda e deu uns tiros, gritando e ofegando e, saindo da espessura da mata, irrompeu no lugar de acampamento. Sua aparência era impressionante, com seu casaco de pele incrustado de gelo e a barba congelada.
— Eles já foram embora — gritou, agitando sua espingarda. — Dei cabo de dois e os outros... pernas pra que te quero... saíram em disparada! Não passavam de covardes. Só o que se tem a fazer é contrapor-se a eles de maneira valente, assim como vocês fizeram, companheiros de Magnitogorsk. Muito bem, vocês são uns homens durões!
Três dias depois, os funcionários do Partido viajaram de volta. Nunca mais se falou de um fechamento da igreja.
Portanto, essa havia sido a única dificuldade que Kasutin tivera até aquele momento. Mas agora o fotógrafo Babajev estava sentado diante dele, às nove horas da manhã, trémulo e empalidecido, e ainda por cima apresentando fotografias desconhecidas, nas quais, na certa, deveria haver algo monstruoso.
— Que... que foi que você fotografou aí? — perguntou Kasutin com a voz cautelosa.
— Eu, nada. O companheiro Jankovski. Eu só fiz revelar e ampliar o filme.
Jankovski! Minha suspeita, pensou Kasutin. A sensação que tive! Minha voz interior. Já quando ele entrou aqui pela primeira vez, alto, louro, livre e desimpedido, já então eu sabia: vou acabar tendo dificuldades com esse sujeito. Tão vigoroso, tão certo da vitória, aí está o tipo de pessoa que é capaz de cuspir na cara da gente e ainda por cima gritar saúde.
Aí está, Jankovski. Apesar de três assinaturas e quatro carimbos. Que camuflagem mais completa! Geólogo!
Assim pode-se chegar a qualquer lugar com seus instrumentos, sem dar na vista do que se está realmente fazendo. Então, pode-se ficar olhando por aí. E o sujeito espionando.
— Que é que tem nessas fotografias para ser visto? — perguntou Kasutin, aflito.
— Peço-lhe a mais rigorosa discrição — Babajev levantou a primeira foto e manteve-a diante dos olhos de Kasutin — e, por favor, fique bem calmo.
Curvando-se para a frente, Kasutin mirou a ampliação e seus globos oculares começaram a tremer. Babajev balançou a cabeça.
— Isso é que é fotografia, não é mesmo? — disse ele, arrastando as palavras.
Kasutin recolheu a cabeça, esfregou os olhos descuidadamente e depois apontou para a pilha.
— Tudo assim? — perguntou, enrouquecido.
— Sim.
— Todas com a mulher nua?
— Todas. Às vezes de frente, às vezes de lado, às vezes por trás, depois enviesado de cima, enviesado por baixo...
— Pare com isso, Nikita Romanovitch! — gritou Kasutin. — Isso é inacreditável.
— Convença-se você mesmo. Cada fotografia pior que a outra. São realmente pontos culminantes em termos de indecência.
— Fotos do nosso companheiro Jankovski?
— É isso aí, Piotr Dementievitch.
Então, Babajev dispôs as fotos umas ao lado das outras. Os olhos de Kasutin quase saltaram para fora da órbita. Ali estavam as coxas esticando-se, os quadris arredondando-se, os seios empinando-se, a barriga brilhando, os ombros cintilando, os músculos das costas enrijecendo-se, as nádegas chamando a atenção. Jankovski era um mestre da fotografia.
— É evidente que essa aqui é uma mulher maravilhosamente linda e deve morar em Novo Korsaki — explicou Babajev. — Essas fotografias foram tiradas há pouco tempo. Contudo, Jankovski nunca foi visto junto com uma mulher. Isso quer dizer que são tomadas clandestinas, são fotos de uma mulher sobre a qual ninguém sabe que ela se deixa fotografar nua por Jankovski. E é isso que me deixa assim tão intranqúilo. Qual a mulher que vive por aqui e é tão linda? Que mulher tem um corpo tão esplêndido como esse? Que mulher teria essa relação clandestina com Jankovski? Essas perguntas me deixam doente.
Kasutin calou-se. Cravou os olhos nas fotografias e compreendeu a agitação de Babajev. Os retratos eram tão perfeitos, mas em todos faltava a cabeça. Aquela beleza começava na parte inferior do pescoço e terminava abaixo do joelho. Não importava de que parte e de que perspectiva aquelas fotos indecorosas haviam sido tiradas, a cabeça faltava sempre. Aquele superlativo de beleza era anónimo... mas era um superlativo que vivia no meio deles.
Kasutin pigarreou, segurou cada uma das fotos, levou-as para bem perto dos olhos e apalpou cada milímetro.
— É inútil — Babajev fez-se ouvir. — Já revistei todas elas com uma lupa.
— Você é um indecente, camarada Babajev!
— Para mim só se tratava de tentar esclarecer.
Quero desmascararessa imoralidade, estou querendo minar-lhe o terreno.
Kasutin deixou que as fotografias caíssem. Contemplá-las mais de perto alvoroçava-o mais do que ele queria reconhecer. Além do que, a forma dos seios recordava-lhe demais as formas de Dunia Sergeievna. Com esses pensamentos, entorpeceu-se internamente e seu rosto tornou-se avermelhado. Explodiu nele um pedaço de recordação. Como é mesmo que Jankovski dizia sempre que se encontrava com Dunia lá fora, na antecâmara? ”Ah, aí está meu pequeno esquilo! Dunia, você está se transformando em um perigo permanente: a cada dia que passa você se torna mais bela!” E que é que Dunia fazia então? Ela dava uns risinhos meio bobos, revirava os olhos e balançava a bunda.
Kasutin apoderou-se de uma fotografia que mostrava a desconhecida por trás. A semelhança era evidente. Piotr Dementievitch gemeu consigo mesmo, dando uma mordida no lábio inferior. Podia ser Dunia. Essa racha característica entre as polpas. O débil ponto do cóccix que se salientava na pele. Kasutin conhecia tão bem o corpo de Dunia que, quanto mais tempo contemplava as fotografias, mais ruidosa se tornava sua respiração. É possível isso?, pensou amargurado. Ela me engana com esse sujeito. Enquanto eu fico aqui estudando Lenin, ela se deixa fotografar por baixo e por cima, da direita e da esquerda, por trás e pela frente. Mas que coisa mais abjeta! Que imoralidade! Mas é claro que ele a persuadiu com seus cabelos louros e seus olhos azuis, com suas histórias de fanfarrão, com aquele maldito talento que tem para agradar às mulheres. Dunia Sergeienka! Porra, como dói no coração!
Kasutin jogou as fotos para um lado e escondeu suas mãos debaixo da mesa. Babajev não deveria ver como elas estavam tremendo.
— A maneira mais simples de se proceder seria perguntar ao próprio Jankovski — adiantou-se ele.
— Pelo amor de Deus, isso é impossível. Um fotógrafo tem a mesma obrigação de calar-se que um confessor.
Um fotógrafo é o confidente mais íntimo de seu cliente. É completamente impossível fazer-se a pergunta: Victor Semionovitch, quem é essa bela mulher nua? Ele poderia esbofetear-me e eu nem ao menos poderia denunciá-lo. Você não está nem autorizado a saber nada sobre os retratos.
— E então por que é que veio mostrá-los a mim? — Kasutin agitou-se. — Por que é que veio me roubar a tranqüilidade?
Com olhos infelizes, Babajev fitou Kasutin.
— Nós somos amigos — disse ele — e somos pessoas com princípios rígidos. Em nosso meio, uma mulher divinamente bela encontra-se num mau caminho. Não dá nem para imaginar o que pode resultar disso. Tragédias matrimoniais, assassinato, suicídio, choros de crianças e mães, um pai enforca-se por causa de sua filha imoral... Nós podemos impedir tudo isso, Piotr Dementievitch, se conseguirmos descobrir quem é essa mulher que aparece nua nas fotos. Só é preciso que se busque a cabeça desse corpo, então nós a teremos. É preciso que se faça comparações, dando uma olhada em volta. Quem é que poderia ter um corpo tão belo assim? A escolha é infimamente pequena. Afinal, quem é que tem esse corpo tão perfeito, esses seios tão rígidos, essas coxas tão lisas, essa protuberância traseira?
— Isso mesmo, quem é que tem esse tipo de coisa? — novamente Kasutin pensou em Dunia Sergeievna e na possibilidade de que ela se deliciasse secretamente com prazeres proibidos. Isso era possível na casa do velho Fessenko. O velho era deficiente auditivo e se Dunia estivesse arquejando e gemendo lá em cima, no quarto de Jankovski, nunquinha que Fessenko iria ouvir, principalmente se estivesse folheando seu livro de guerra. Agora Kasutin compreendeu também por que Jankovski havia trazido de Leningrado o livro ilustrado para o velho.
Ele rangeu os dentes; por baixo da mesa, cerrou os punhos, irado, e começou a suar de raiva.
— Como é que você imagina que a coisa pode ser? — perguntou a Babajev, com a voz áspera. — Claro que não posso estar chamando todas as criaturas femininas para que compareçam à sede do Partido e ordenar: camarada, dispa-se, por favor, tenho de dar uma examinada em você em caráter oficial. Existiriam homens que, antes de mais nada, iriam querer dar uma olhada nesse decreto.
— Poder-se-ia fazer de uma outra maneira — disse Babajev, pensativo. — A legislação da Saúde contém o regulamento do exame de precaução. Se amanhã você der a conhecer que surgiram alguns casos de cólera na região do Tobol inferior e que por isso todas as mulheres teriam de ser examinadas como medida de cautela, você teria todas elas aqui. Essa seria a maneira mais discreta.
— Isso só daria certo se o Dr. Lallikov participasse
— Kasutin olhou melancólico para Babajev. Estava sendo devorado pela falta de confiança em Dunia Sergeievna. Mais uma vez,, agarrou as fotografias, folheouas e ficou preso à foto das coxas. E então a coisa caiu-lhe como um relâmpago: ele conhecia essa postura. Era assim que muitas vezes Vera ficava sentada quando saía do banho e penteava-se diante do espelho. Exatamente dessa maneira. A posição de suas costas. Sua mulher, Vera. Coxas magníficas, lisas e bem delineadas, brilhando depois do banho e com o perfume de sabonete de rosas.
Vera! A mãe de seus dois filhos. Com que freqüência Jankovski havia comparecido a sua casa como convidado? Quase não dava para contar. E todas as vezes Vera comportara-se como se fosse uma mocinha, cozinhara de uma maneira especialmente boa e saltitara de um lado para o outro como uma potranca. Sim, exatamente assim. Caiu como caspa diante dos olhos de Kasutin. E as fotos estavam de acordo com isso. Não eram retratos das coxas de uma jovem e sim de uma mulher saudável e vigorosa de 39 anos. Vera Konstantinovna Kasutina. Ah, meu Deus, segure-me para que eu não arranque minha espingarda do armário e saia correndo em direção a Jankovski! Afinal de contas, não estou sabendo de nada, não tenho permissão para ver as fotos. Tudo tem de ser feito na maior tranqüilidade possível. Até agora Novo Korsaki foi uma cidade sem nenhum escândalo...
— Claro que nós temos de meter o Dr. Lallikov nesse segredo — disse Babajev, de modo penetrante — só ele pode proceder ao rastreio. Nesse caso será muito simples. Eu ficarei atrás de uma parede, olhando através de um buraco e com as fotos na mão. Meu olho fotográfico verá imediatamente quando o modelo de Jankovski virar-se diante do Dr. Lallikov. Então, farei um sinal para você.
— Vai ser impossível — Kasutin balançou a cabeça. — O Dr. Lallikov jamais permitirá que você fique olhando todas as mulheres peladas de Novo Korsaki. Porra, mas que ideia!
— Mas o Dr. Lallikov vai poder?
— Foi para isso que ele estudou medicina. Quando os médicos estão cumprindo sua missão, são criaturas assexuadas. Realmente, trata-se de uma profissão bem difícil — Kasutin olhou pela janela. Lá fora, o gordo comissário de construção estava passando; ele era a única pessoa que possuía uma grande limusine Volga. Sua mulher, Antonina Pavlovna, estava sentada a seu lado. Ela era conhecida por sua beleza, só que se maquiava muito. Havia dançado a noite inteira com o geólogo Jankovski na festa da Associação da Juventude. O bondoso Zvetkov alegrara-se com o fato, ele estava gordo demais para dançar.
Kasutin entorpeceu-se, voltou a dar uma mirada nas fotografias indecentes e foi dilacerado pela dúvida. Dunia, Vera ou talvez, quem sabe?... Antonina Zvetkova? Babajev tinha razão: o caso ali era de se fazer um esclarecimento. Viver com essa incerteza era fatal, suicídio. Essa bela pelada tinha de receber uma cabeça e com isso uma identidade.
Kasutin agarrou o telefone e chamou o Dr. Lallikov.
— Estou precisando de você com urgência, Simon Mikhailovitch — disse ele, enrouquecido— senão minha cabeça vai explodir.
O Dr. Lallikov foi imediatamente. Era um homem baixo e gordo e usava óculos cujas lentes eram tão grossas e polidas, que aqueles que só olhassem para seus óculos começavam a lacrimejar imediatamente. Era asmático, coisa que ele, no entanto, não atribuía a sua obesidade e sim a um padecimento puramente psíquico, provocado por seus malditos pacientesque, como ele mesmo afirmava, estreitavam seus pulmões e comprimiam seu coração.
Na verdade, Lallikov tivera uma formação como cirurgião e, durante muitos anos, sonhara em ser o médico-chefe de uma grande clínica. Mas então a ruptura dos testículos do presidente do complexo industrial de ferro ”Honra do Ural”, em Sverdlovsk, meteu-se em seu caminho. Boris Nikolaievitch Werschokin, era assim que se chamava o influente homem, entregara-se aos cuidados do Dr. Lallikov com sua enfadonha ruptura, com a legítima esperança de, após alguns dias, poder voltar a saltitar de um lado para o outro como um cabritinho. Lallikov fez uma fantástica operação, extirpou, arrumou as coisas, costurou de uma maneira bem artística. Mas quando o camarada Werschokin, contente e confiante, retornou a sua cidade natal e, como esperava Praskuja, sua mulher sedenta de amor, proporcionou-lhe uma demonstração palpável, da boca da mulher escapou um grito de espanto, enquanto Boris Nikolaievitch sucumbia em um choque entorpecedor.
A coisa tornara-se irreparável: o Dr. Lallikov havia castrado o presidente Werschokin com a perfeição mais artística possível. Naturalmente que o escândalo foi abafado e com isso se impediu que Werschokin estoporasse com o crânio de Lallikov, mas, em relação à grande carreira do cirurgião Lallikov, o sonho estava acabado de uma vez para sempre. Na clínica, o Dr. Lallikov teve de assumir a autópsia dos mortos cujas causas de morte estavam sendo estudadas. Depois disso, por desgosto, ele carcomeu sua monstruosa barriga em três anos até que, finalmente, renunciou, com os nervos à flor da pele. Mudou-se para Novo Korsaki, onde haviam instituído um consultório médico. Ali, em seu consultório, ele vivia perdendo a calma com seus pacientes e tornando-se, grama após grama, sempre mais gordo e asmático.
— Se se considera — dizia ele muitas vezes — que eu estava fadado a transplantar órgãos inteiros e a revolucionar a cirurgia, mas que no entanto encontro-me largado aqui nesses bosques, sendo obrigado a desalojar peidos renitentes, então sabe-se que a miséria da humanidade inteira caiu sobre meus ombros.
Que tenha podido atender de imediato à chamada de Kasutin, ele devia agradecer à sua péssima maneira de tratar os pacientes. Ele era ligado ao secretário do Partido pelo amor ao xadrez, que era a única distração que o Dr. Lallikov se permitia; aliás, diga-se de passagem, que contava-se também entre suas predileções a lavagem intestinal que ministrava semanalmente no pope, o paizinho Akif.
— A misericórdia de Deus não é tanta assim para fazer com que Ele se ocupe do intestino paralítico de seu pope — gritava cada semana o Dr. Lallikov com a voz de disfarçada alegria, quando o paizinho Akif, com o rosto contido e deitado de barriga para baixo, estendia-lhe seu traseiro pelado. — Paizinho, respire bem fundo. Agora nós vamos dar um gargarejo mais forte.
Portanto, nessa manhã, depois da chamada de emergência de Kasutin, o Dr. Lallikov escancarou a porta que dava para a sala de espera, lançou um olhar para a multidão dos pacientes que estavam à espera e grunhiu:
— Alguém aí vai ser levado pela corrente? Não! Alguém aí vai morrer? Não! Todos vocês podem muito bem esperar, seus fingidos de olhos arregalados. Preciso sair para atender um caso que pode ser fatal.
Como ninguém ousasse aborrecer o Dr. Lallikov — afinal de contas, ele era o único médico em Novo Korsaki e nunca se sabia se realmente se iria precisar dele com urgência algum dia — todos eles inclinaram a cabeça, fazendo rostos entristecidos e permanecendo pacientemente sentados. Isso também tinha seu sentido, pois quando Lallikov não estava no consultório, sempre havia a ajuda de consulta de Marfa Felixovna...
Na verdade, Marfa havia estudado corte e costura, coisa que Lallikov via como a combinação mais perfeita para se estar enrolando ataduras e ligando suturas. E, no fundo, Marfa familiarizara-se perfeitamente com o trabalho. Era ela quem levava 80 por cento do consultório sozinha, especializou-se mais com as leituras de revistas especializadas e, com isso, foi auferida com o título de ”assistente médica”. E como ela assumiu o trabalho relativo a tal ”assistência”, exigiu, e com toda razão, que a partir daquele momento fosse intitulada ”senhora assistente”. Os pacientes mudaram de atitude voluntariamente e, com todo o respeito, saudavam-na com a nova designação, pois nenhum ser humano se sente mais miserável e desprotegido que um paciente que esteja exposto por completo à misericórdia de um tratamento médico. Pois foi assim que aconteceu que se respirou fundo quando o Dr. Lallikov teve de abandonar rapidamente o consultório e entregar a loja a Marfa Felixovna. Primeiro, porque agora tudo iria caminhar mais rápido; segundo, porque as pessoas não iriam ser xingadas; terceiro, porque Marfa tinha mãos sensíveis e delicadas, mãos que faziam com que as pessoas se deixassem apalpar com gosto e, em quarto lugar, porque quase sempre seus diagnósticos estavam corretos. Eram bem diferentes daqueles do Dr. Lallikov. Quando Lallikov grunhia:
— Você está dizendo que está com dores nas costas? Aí está, mais uma vez! Você comeu ontem, domingo, mais uma vez como um touro e agora está tudo congestionado no intestino! Volte de novo quando você tiver enchido a cuba!
Num caso como este, podia-se ouvir de Marfa Felixovna:
— O maldito reumatismo. Aqui tem você um bom bálsamo. Faça massagens vigorosas nas costas pela noite.
Pode-se compreender que se visse Marfa como uma verdadeira bênção que, infelizmente, não era possível sem o Dr. Lallikov.
Kasutin e Babajev estremeceram quando o Dr. Lallikov irrompeu no escritório do Partido e interrompeu a secretária Dunia Sergeievna com a seguinte observação:
— Cale o bico. Sempre se pode tapar com pó as manchas de carimbo.
Kasutin estremeceu, como se tivesse recebido um potente golpe e fitou o médico com irritação.
— Que é que o senhor tem a dizer, camarada Lallikov? — perguntou ele, com a voz engrolada.
— Você não escutou nada — vociferou Lallikov, sentando-se ao lado de Babajev — estou subordinado à obrigação do silêncio profissional.
— Como é que Dunia Sergeievna tem manchas de carimbo? — Mesmo assim, Kasutin perguntou, com um tremor na voz: — E, por favor, onde é que ela tem essas manchas de carimbo?
— Por que é que eu deveria vir imediatamente? — Lallikov tratou de esquivar-se.
— Por causa da obrigação profissional de manter o segredo — interrompeu Babajev.
— Ela é de ferro.
— Graças aos céus — Babajev esfregou as mãos. — O senhor poderia ser-nos de uma ajuda valiosa, doutor.
Kasutin acenou com ambas as mãos.
— Qual é o problema com Dunia? — seguiu ele, sondando. — Camarada Lallikov, como secretário do Partido e como empregador, sou responsável pela integridade e bem-estar de meus queridos cidadãos. Como é que estão aparecendo manchas de carimbo em Dunia Sergeievna? Desde quando? Essas manchas são de origem animal ou mecânica? Em que lugares elas se encontram?
— Trata-se — disse Babajev começando a suar novamente — de encontrar uma mulher sem cabeça.
— Ah! — Lallikov estremeceu no espaldar da cadeira. — Um assassinato? — Seu coração deu um salto.
Ele sempre havia desejado poder participar de um caso de crime como perito, para provar como seus pensamentos ainda estavam aguçados. Mas em Novo Korsaki não acontecia nada, as pessoas ali fediam a honestidade. Quando, um dia, quatro anos atrás, o motorista interurbano Sergeij engravidou com violência a filha do marceneiro Njemlenko, o caso foi resolvido de imediato, com Sergeij casando-se com a moça. Nenhum sinal do drama. Na Sibéria as pessoas estouravam de tanta honestidade. Mas agora isso aí! Uma mulher sem cabeça! Em Novo Korsaki!. O Dr. Lallikov teve um de seus ataques de asma e precisou amparar-se no canto da mesa.
— Um assassinato com estupro? — arquejou ele, com os olhos quase saltando para fora das órbitas. — Abusada e depois com a cabeça arrancada? Nossa Senhora! Começou a soprar aqui nesse lugarejo um certo vento de grande cidade. Onde é que se pode inspecionara senhora?
— Aqui — Babajev pousou suas mãos sobre as fotografias. — Eu já ampliei-as.
— Que foi que você fez? — perguntou Lallikov, sem respiração.
— Tenho 12 fotografias dela. De cima e por baixo, de todos os lados.
— Magnífico.
— Mas está faltando a cabeça.
— Claro — o Dr. Lallikov esticou a mão e agitou os dedos. — Passe para cá. Não fique aí falando, Nikita Romanovitch. Foi uma decapitação limpa? Quero dizer: um corte elegante? As fotos para cá! Por favor, não impeça o esclarecimento da verdade.
— Trata-se de nossas pessoas, doutor — disse Kasutin, apoderando-se das fotografias antes que Lallikov pudesse agarrá-las — se o senhor puder identificar a desconhecida. Será que dá para reconhecê-la mesmo sem cabeça, só com a ajuda do corpo? Os seios, a barriga, as coxas...
— Ela está nua? — perguntou Lallikov, arquejando pesadamente.
— Sim, completamente.
— É incontestável que se trata de um delito sexual.
— Pode-se chamá-lo dessa maneira — disse Babajev — em todo caso, trata-se de um gigantesco escândalo para nossa cidade. Como uma mulher se deixou fotografar nua...
— Sempre é perdoável se não se dispõe de mais nenhuma cabeça — Lallikov voltou a sentar-se. Havia passado seu ataque de asma. — Onde é que está a mulher? O corpo, ao vivo, dá mais explicações que as fotografias.
— Nós só temos os retratos — Kasutin suspirou. — O negócio é esse, companheiro, nós só temos as fotografias sem a cabeça e estamos querendo saber quem é. Claro que já apareceram todas as mulheres de Novo Korsaki em seu consultório; por isso mesmo, seria possível que você, com a ajuda de sinais físicos particulares, estivesse capacitado a dizer: esta é a companheira fulana de tal.
— Quem foi que fotografou a morta?
— O geólogo Jankovski.
— Meu Deus! — o Dr. Lallikov respirou com dificuldade. — Mas isso é impossível. Victor Semionovitch não é nenhum assassino.
— As fotografias mostram também uma viva — disse Babajev em voz alta.
— Sem cabeça? — vociferou Lallikov. — Será que vocês todos já estão bêbedos pela manhã?
— Ele deixou que as cabeças ficassem de fora. Todas as fotografias começam do pescoço. Uma imper tinência.
Com que então ele fotografa um corpo nu de mulher e deixa a cabeça de fora! Uma infâmia! Uma carga espiritual para qualquer um! — Kasutin engoliu em seco de tanta agitação, tossiu como se estivesse latindo e, com muito esforço, recuperou-se. — A gente acaba tendo uns pensamentos, doutor, mas uns pensamentos... são capazes de despedaçar qualquer um. E não se pode ir perguntar a Jankovski. Como fotógrafo, Babajev é uma pessoa de confiança, como o senhor também é como médico. Mas não se pode deixar de dar atenção à mulher nua, ela está aí, vive entre nós e posou nua diante da câmara de Jankovski — Kasutin estava quase estertorando. — Dê uma examinada o senhor mesmo.
O Dr. Lallikov folheou as fotografias, olhando-as detalhadamente com desconfiança e, de vez em quando, como as lentes embaçassem, limpava os grossos óculos.
— Excelente — disse a certa altura. — Muito bonito. Convincente. Ora, ora, ora, isso sim é que é perspectiva! Ah, que excitante! Isso aqui foi realizado com o olhar de amante. Não, essas formas! Nenhuma ruguinha. Nenhuma celulite. Não tem nada pendurado.
Kasutin afundou a cabeça entre as mãos e, desesperado, cravou os olhos no médico.
— Qual a mulher nessa nossa pequena cidade que tem um corpo como esse? — perguntou ele, abafado. — Quem poderia ser? Simon Mikhailovitch, agora estoulhe perguntando, não como médico e sim como companheiro do nosso glorioso Partido Comunista. Dê uma olhada no retrato de Lenin, olhe bem em seus olhos, reconheça nossa missão no olhar dele: a verdade em benefício do socialismo. Você tem de falar, Dr. Lallikov. É a sua obrigação como membro do Partido. Com isso, estará servindo à tranqüilidade de Novo Korsaki.
O Dr. Lallikov voltou a colocar as 12 fotos dispostas em fila, e, mais uma vez, examinou-as detalhadamente.
Babajev fumava umpapyrossa com dedos trémulos, Kasutin sorvia o chá frio do café da manhã. Se ele falar Vera, dou um tiro em Jankovski, pensava o secretário do Partido, enquanto isso. Se ele disser Dunia Sergeievna, meto bala nos dois. Mas se for a aristocrática e orgulhosa Zvetkova, encho a cara de alegria. Vejo com bons olhos que o nojento Zvetkov, que enriqueceu no Departamento de Construções, tenha merecido tal coisa.
— É difícil — disse o Dr. Lallikov, devagar e cauteloso. — Quase nunca vi um corpo de mulher tão perfeito como esse em meu consultório. No entanto, existem alguns. Poucos! Raridades!
— Nomes! — disse Kasutin, com a voz rouca. — Por favor, nomes, querido camarada...
— É perigoso.
— Poderia ser também minha mulher Vera?
— Não. Completamente fora de propósito. Os seios dela já estão um pouco caídos.
— Tem razão — disse Kasutin, com a voz mais rouca ainda. — Dois filhos, camarada...
— Justamente — Lallikov golpeou com a dobra dos dedos sobre as fotografias. — Esses aqui são seios virginais. Rígidos como um melão. Pode-se vê-lo também no corpo. Esse corpo nunca pariu. É de uma natureza ainda não arada.
— Nomes — voltou a dizer Kasutin. — Por favor...
— Só hipóteses.
— Naturalmente. Elas só serão pontos de partida.
— Poderia tratar-se também de Galina Ivanovna.
— Não! — Babajev deu um salto. — A pequena que trabalha no supermercado? Aquela criatura amigável que sempre me dá um pedacinho a mais de queijo porque eu forneço papel de escrever para ela?
— Ou também Alia Filippovna.
— Seria possível — Kasutin alisou o nariz. — A viúva Sitkina é um verdadeiro diabinho. Desde que ela se viu liberada do velho Sitkin, os rapazes passeiam por sua casa como gatos. A viúva Sitkina... talvez fosse a solução.
— Mas ela tem um sinal embaixo do seio esquerdo... onde está ele? — O Dr. Lallikov examinou mais profundamente uma fotografia. — Não dá para ver nada. Sem a sarda não posso identificar Alia Filippovna. Ah, como é difícil. Se fixo bem a vista, chego à conclusão de que também poderia ser Rimma Ifanovna.
— A cesteira? — Babajev balançou a cabeça. — Sabemos que ela é um pouco débil mental. Caiu da janela quando criança e desde então não presta para nada. Ainda conseguiu aprender a fazer cestos. Acho impossível que Jankovski, um esteta como se pode ver, tenha-se aproximado de Rimma Ifanovna.
— O corpo dela é encantador e imaculado — disse o Dr. Lallikov. — Ela é a moça mais bonita de Novo Korsaki. Por que é que Victor Semionovitch iria se deter com valores espirituais, quando pode obter valores físicos incomparáveis? Portanto, por que não Rimma Ifanovna?
— E como é que é a coisa com Dunia Sergeievna? — perguntou Kasutin como quem não quer nada.
O Dr. Lallikov voltou a fixar a vista nas fotografias.
— Por que não? — disse ele, depois de uma torturosa observação. — As coxinhas podem ser as dela. A bunda também.
Eu já sabia disso, pensou Kasutin. Era o que eu suspeitava. Sentia isso. Dunia e Jankovski. É a bunda de Dunia. Conheço essa bunda bem demais. Em todo caso, melhor que o Dr. Lallikov, que voltou a enrugar a testa. Pode parar por aí, companheiro, trata-se de Dunia Sergeievna. Só ela tem essa racha tão doce nas nádegas. Pobre de mim. Eu, o derrotado.
— Mas poderia ser também Antonina Pavlovna disse Lallikov.
Babajev expeliu o ar, soltando um ruído.
— A mulher do camarada Zvetkov?
— Muito atraente. Ela também ainda não teve filhos. Mas o problema é de Zvetkov. Rassul Alekseievitch está gordo demais. Poupem-me de entrar em detalhes, companheiros. Mas poderia ser também o corpo de Antonina Pavlovna. Um corpo como que de mármore — o Dr. Lallikov assoou-se e esfregou seus óculos de novo. — Realmente, trata-se de uma tarefa difícil, meus queridos. Um corpo de deusa... e depois, nenhuma cabeça! É exigir demais de um médico. Geralmente nós olhamos as pacientes em uma situação melhor.
— Mas em princípio! — arquejou Kasutin. — Em princípio, camarada.
— Bom, em princípio poderia ser também Stella Gavrilovna.
— Desisto — disse Babajev, comovido. — Como é que a jardineira do nosso cemitério vai ter uma silhueta tão magníficacomo essa?
— Isso aí a gente tem de perguntar ao bom Deus — o Dr. Lallikov golpeou sobre duas fotografias. — Isso aqui parece muito com Stella Gavrilovna. Essas cadeiras! Eu gostaria de dizer: quase inconfundíveis. E a curva do corpo... ainda me lembro perfeitamente quando um tubinho de comprimidos rolou acidentalmente desde seu umbigo até o meio de suas coxas. E o que ela fez foi rir-se, rir-se.
— Também acredito nessa possibilidade — Kasutin mordeu o lábio inferior. — Quantas nós temos até agora?
— O bastante para desesperar — disse Babajev. — É impossível que Jankovski fosse tão íntimo assim de todas, que...
— Por que não? — O Dr. Lallikov pigarreou, o que fez aumentar o suspense. — Jankovski é um rapagão robusto. Trinta e dois anos de idade. Um tronco da melhor árvore. E há quanto tempo ele já se encontra em Novo Korsaki? Bem... certamente já há uns nove meses. Queridos companheiros, quanta coisa um homem como Jankovski pode ter aprontado em nove meses? Precisamos levar tudo isso em consideração. Tudo e todos. Essas fotografias provam: Jankovski é um excelente conhecedor da beleza. E essa mulher que ele eternizou... ela vale a pena. Como médico que sou, tenho suficientes possibilidades de comparação para sentenciar: Este aqui é um corpo único, sem igual.
— E isso em nossa cidade!
— Sim! Deveríamos ficar orgulhosos disso!
— Uma Vénus sem cabeça!
— Vamos colocar-lhe uma! — Agora, o Dr. Lallikov foi acometido também por uma espécie de febre de caçada. Ele via o problema todo de um modo bem esportista: uma caçada com objetivo ainda desconhecido, a descoberta de terras virgens; o término de um quebracabeça. A tarefa tinha de ser resolvida. — Vamos resumir o que temos em mãos. Camarada Kasutin, vá anotando. São as seguintes as que estão em dúvida: Antonina Pavlovna Zvetkova, Alia Filippovna Sitkina, Galina Ivanovna, Rimma Ifanovna, Stella Gavrilovna.
— E Dunia Sergeievna? — perguntou Kasutin, de modo abafado.
— Também. Entra na lista do mesmo modo que as outras.
— Na lista também — a mão de Kasutin tremeu quando ele anotou o nome. O suor escorria de sua nuca, encharcando a camisa e as costas. — E como vai ser a coisa daqui por diante?
— Começaremos por onde na maioria das vezes as coisas terminam: pelo cemitério. — O Dr. Lallikov esfregou as mãos. — Stella Gavrilovna colabora estreitamente com o pope. Pode ser que Mamedov tenha visto, casualmente e mais do que era preciso, Jankovski conversando com Stella. Talvez ele a tenha visitado na casa do jardineiro, não é mesmo? Vamos interrogar o paizinho Akif.
— Isso significa que temos de meter o pope no segredo — disse Kasutin, amargo.
— Ele vai ficar feliz por descobrir pecadores em sua comunidade. Além disso, tudo ficará entre nós: um médico, um sacerdote, um fotógrafo e um secretário do Partido são os confidentes dos cidadãos. Nós somos o muro das lamentações. Somos nós que engolimos tudo. Seria descortês manter o pope fora desse assunto.
— Ele vai ser a pessoa que dará menos informações sobre quem é a mulher nua que aparece nas fotografias — disse Kasutin, de modo brusco.
— Nisso aí também as pessoas se enganam — o Dr. Lalikov deu um sorriso amplo e malicioso. — Não se deve subestimar nenhuma pessoa.
As pessoas que entravam na igreja, não importando que posição social tinham na vida, nem que nome possuíam, sentiam veneração no mesmo momento em que reparavam em Akif Victorovitch Mamedov. Quando o pope dobrava a iconoteca, com o hábito ondeante, com a barba branca bem espalhada, de sobrancelhas carregadas, olhos ardentes e com uma voz que dava uma ideia do toque de fanfarra da ressurreição, então elas faziam o sinal-da-cruz e sucumbiam naquele estado que Lenin comparava com a embriaguez do ópio.
Akif Victorovitch, que nessa manhã estava sentado em um banquinho atrás da iconoteca, polindo duas cruzes douradas de missa, ouviu admirado a porta da igreja ranger. Refletiu sobre quem poderia ser aquele que pudesse estar tão atormentado pelos pecados naquele momento que tivesse necessidade da assistência sacerdotal. E então pôs o trapo de limpeza a um lado. A igreja de Novo Korsaki era pobre, não podia dar-se ao luxo de ter um sacristão. Tudo tinha de ser feito pelo próprio Mamedov. E quando algumas mulheres velhas, voluntariamente e com a promessa de que iriam para o paraíso, não esfregavam o chão, não espanavam a poeira, nem limpavam as janelas, então também essas atividades dependiam do paizinho Akif. Ele já tivera muitas dificuldades em encontrar um chantre para o culto religioso, pois os velhos já não tinham a voz forte e o Partido fazia propaganda contra o pope entre os jovens, dizendo-lhes que aqueles que fossem à igreja, ou mesmo que se apresentassem como chantres, estariam traindo o grande pai Lenin e não seriam dignos de serem aceitos na nação.
Por isso, o paizinho Akif teve de contentar-se com algo que era único no culto ortodoxo: deixou que a virgem Stella Gavrilovna fosse a chantre. Exatamente... a jardineira do cemitério de Novo Korsaki. Kasutin denominou esse arranjo de um péssimo jeitinho, mas com Stella era impossível se falar.
— Gosto de cantar — declarara para o protocolo em cinco citações da comissão do Partido. — Onde é que Lenin escreveu que um russo não pode cantar?
— Mas na igreja? — vociferou Kasutin.
— Canto também na Associação da Juventude, na festa do Primeiro de Maio e na comemoração da Revolução de Outubro, se me pedirem — respondeu Stella Gavrilovna. — Minha voz está à disposição de todo mundo.
Claro que Kasutin nunca lhe pediu. Por isso mesmo, mais forte borbulhava nele o triunfo de poder esclarecer ao pope que, provavelmente, Stella também estava à disposição de todo mundo de outra maneira, se lhe pedissem. Para Kasutin, esse momento significava uma batalha ganha contra os reacionários.
Akif pôs de lado o trapo de limpeza, ajeitou seu hábito de sacerdote, penteou a barba com os dedos escarranchados, colocou debaixo do braço a maior das duas cruzes polidas e entrou na igreja com grande dignidade. Contudo, ainda assustou-se quando viu de pé, um ao lado do outro, em fila, como se estivessem querendo cantar um cânone: Kasutin, Babajev e o Dr. Lallikov.
— A Trindade do Diabo — disse o paizinho Akif, com sua voz de trovão. Levantou a cruz, fez o sinal da bênção e ficou parado diante da iconoteca. — Qual a praga que vocês estão trazendo, meus filhos?
— Viemos em particular — disse Kasutin, com um largo sorriso que deveria servir para prevenir Akif. Quando Kasutin sorria na igreja, era sinal de que as portas do paraíso viriam abaixo.
— Trata-se de algo muito importante — fez-se constar Babajev. Com Babajev, o paizinho Akif tinha menos problemas... ele fotografava com virtuosismo as festas da igreja na Páscoa e no Natal. Uma grande fotografia dele, que mostrava Mamedov na celebração da Páscoa, em paramentos completos, estava pendurada na residência do pope, bem ao lado do altar com o fogo eterno.
— Estamos necessitando de seus valiosos conselhos — o Dr. Lallikov concluiu o misterioso cortejo.
Akif Victorovitch sucumbiu em um estado similar ao de vácuo. Não estava ligado ao Dr. Lallikov com nenhuma amizade direta; em compensação, o médico era um bom comunista e militante do Partido, mas o pope sempre teve Lallikov na maior conta, quando este dizia junto a cama de algum pobre enfermo:
— Aqui nenhum pozinho ajuda mais, só Deus.
Naturalmente que a parentada aflita saía imediatamente atrás do pope e Akif sempre conseguia fazer com que os pacientes de Lallikov morressem com dignidade e com a alma pacificada. Esse trabalho de mãos dadas provocou uma consideração mútua. Portanto, se o Dr. Lallikov aparecia na igreja pedindo conselhos, é porque devia tratar-se de um delito gigantesco.
O paizinho Akif colocou a cruz com cuidado sobre uma mesa, acenou e disse:
— Cheguem-se. Podemos beber um vinho de morangos enquanto conversamos.
Isso chegava quase a ser uma ameaça. Todos sabiam que o próprio sacerdote fazia um vinho de morango, vinho esse que tinha um efeito retumbante e que em nada ficava atrás de uma lavagemcom óleo de rícino. Só com Akif mesmo é que o vinho se recusava a fazer o que a lavagem semanal fazia, lavagem essa que o Dr. Lallikov sempre acompanhava com citações da Bíblia. Akif sentia-se impotente contra tamanho conhecimento da Bíblia.
Sentaram-se em volta de uma mesa redonda na sala de estar. Akif foi buscar copos e uma garrafa de um litro, verde-escura, com seu vinho infernal. Esperaram gentilmente até que ele servisse, depois Babajev colocou suas ampliações sobre a mesa, primeiro com a parte da frente para baixo. O pope apertou o queixo, sua barba branca eriçou-se violentamente, os olhos miraram com uma agudeza desafiante.
— Estou ouvindo — disse ele em voz alta, já que ninguém falava.
— Vamos encurtar o assunto — explicou Kasutin, com a voz límpida. Vibrava por seu triunfo. — Claro que ele tem de calar-se.
— Vai ser uma confissão em comum? — Akif respirou fundo. — Será que as relações políticas mudaram de repente?
— Aqui! — Kasutin agarrou as fotografias, virou-as e jogou-as de novo sobre a mesa, em frente do pope. Ombros, seios, quadris, coxas, nádegas.
O Dr. Lallikov mandou um olhar de reprimenda para Kasutin.
— Seu bruto — disse ele, em tom de acusação — o paizinho podia ter tido um choque.
Akif Victorovitch deu um longo olhar nas fotografias e depois disse, tranqüilo:
— Uma mulher.
— Ele está reconhecendo — Kasutin deu um largo sorriso. — Isso nos poupa de mais explicações. Qual a sua opinião, camarada Mamedov?
O paizinho Akif, a quem sempre esse ”camarada Mamedov” caía como uma pedra no estômago, juntou as fotografias como se elas fossem uma coisa acabada para ele.
— Uma bela mulher — completou ele, agarrando seu copo de vinho de morango. — Seus indivíduos de baixos pensamentos: toda beleza é uma obra de Deus. Se uma rosa floresce, se um vidoeiro balança elegante ao vento, ou se um raio de sol cai sobre um seio de moça... Deus está sempre sorrindo.
— Com isso nós podemos ir — disse o Dr. Lallikov, de maneira sóbria. — Não se pode esperar mais nada aqui nesses cómodos sagrados.
— Nós pensamos que o senhor conhecesse essa mulher — Babajev fez-se ouvir.
O paizinho Akif estremeceu, colocou seu copo sobre a mesa sem haver bebido e vociferou, irritado:
— Euuu?
— Nós queremos dizer... — grasnou Babajev, afundando-se na cadeira.
— Eu? Com que então vocês vêm a mim, mostram-me uma mulher pelada e ficam aí esperando de mim as informações correspondentes? Ah, Deus que está aí em cima, o quanto eu tenho de padecer entre esses homens! Como essas criaturas afundaram! Fora daqui, todos vocês!
— Eu só queria dizer um nome...
— Para fora!
— Essa mulher nua não podia ser Stella Gavrílovna?
— Não! — vociferou o paizinho Akif.
— O senhor está tão seguro disso assim?
— Sim!
O Dr. Lallikov coçou o nariz, mas não havia mais volta atrás. Estavam entre eles, haviam formado a comunidade dos silentes.
— Como é que o senhor está tão seguro assim? — perguntou ele. — Akif Victorovitch, eu, como médico, não poderia estar tão seguro assim num caso como esse.
— Mas eu posso! — Akif pousou o poderoso punho sobre as fotografias. Olhou-as novamente e em seguida balançou a cabeça. — Não é Stella Gavrilovna! Onde estão os cabelos?
— Mas claro que está faltando a cabeça — disse Kasutin, em tom de desaprovação.
— Mas quem é que está falando de cabeça?
Babajev suspirou e fechou os olhos, comovido. Kasutin enrubesceu como uma papoula. O Dr. Lallikov cruzou as mãos sobre sua barriga em forma de bola como se fosse começar uma ladainha. Só Akif, o austero paizinho, é que ficou indignado, não consciente da revelação que acabara de fazer.
— Tem razão — disse Kasutin, compungido — ela não tem cabelos. Companheiro Lallikov, por que é que o senhor, como médico, não viu isso imediatamente? Será que precisamos de um sacerdote para esse tipo de coisas?
— Prestei atenção nas formas e não nos pentelhos — gritou Lallikov, ofendido.
— Moderem-se! — berrou Kasutin, agitado. Desmoronara-se seu triunfo sobre Akif. — Estamos diante de uma situação completamente nova: a mulher pelada raspou os pêlos de seu corpo.
— Nossa Senhora! — opinou Babajev, cheio de assombro.
— Uma mulher raspa os pêlos do corpo em nossa cidade e ainda por cima deixa-se fotografar dessa maneira. Isso golpeia no rosto toda a moral. Sem sombra de dúvida, trata-se da decadência ocidental. Com isso as fotografias se tornam políticas e passam a dizer respeito à direção do Partido. Trata-se de um ataque político e sexual à nossa ideologia. É uma sabotagem com a ajuda do baixo-ventre. Ah, isso não pode ser apresentado a Magnitogorsk de maneira nenhuma. Temos de extinguir esse vício, sozinhos e no maior silêncio possível. — Kasutin respirou fundo. — Essa fêmea raspa os pêlos do corpo... aí, nesse lugar! Companheiros, temos de impedir que Novo Korsaki seja infestado dessa maneira repugnante pelo Ocidente. Temos de encontrar essa mulher, custe o que custar. Esse corpo sem pêlos é uma declaração de guerra.
O paizinho Akif soltou um grunhido fundo, bebeu de um só gole seu copo de vinho de morango e voltou a cravar os olhos nas fotografias indecorosas.
— Portanto, Stella Gavrilovna está fora de suspeita — disse o Dr. Lallikov com pose de perito. — Akif Victorovitch está se responsabilizando por isso.
— Fiquem tranqüilos — disse o pope, rangendo os dentes.
— Qual foi a última vez que o senhor teve oportunidade de se convencer da existência de pentelhos?
— Seu diabo! — o paizinho Akif tremeu os olhos selvagemente. — Só Deus pode ver no coração de uma pessoa!
— Pelo menos Stella conhece o geólogo Jankovski? A cabeça de Akif pendeu para trás.
— Que é que Victor Semionovitch tem a ver com isso?
— As fotografias são originárias dele — explicou Kasutin, cheio de alegria. — Ele conhece Stella?
— Sim — Akif balançou a cabeça, em sinal de afirmação. — Ele vem buscar flores com ela, para embelezar sua moradia.
— Ah, ah! — Babajev gargalhou, gozando. — Que tipo de florezinhas são as que ele vem buscar? Esporeiras e botões de rosa negra?
— Em todo caso não a ”fidelidade masculina” — Kasutin meteu-se a fundo na discussão. — As fotografias são de data recente, já sabemos disso. Não seria possível que Stella Gavrilovna se tenha raspado de um dia para o outro? Principalmente por causa das fotografias? E o senhor não pudesse saber de nada, paizinho?
— Raspara-se havia pouco tempo, não dá para ver a mínima penugem nesses retratos — disse Babajev. — Procurei com a lupa.
— Todos nós sabemos: Stella Gavrilovna não só possui uma bela voz, mas tem também um corpo magnífico, cheio de personalidade. — O Dr. Lallikov puxou as fotografias para si. — Quando se acrescenta em pensamento... que tinha, não, que tem cabelos longos e negros... Akif Victorovitch, para quando podemos contar com informações mais precisas de sua parte?
O paizinho Mamedov estava recostado em sua poltrona, olhando para o teto de madeira de seu quarto. Dava a impressão de estar bem abatido. Sua orgulhosa barba pendia triste no peito, seus dedos enrolavam-se no canto da mesa. Gostara muito do simpático geólogo Jankovski. Jankovski sabia conversar, era inteligente e com experiência do mundo... aliás, experiente demais, como podia-se comprovar agora. Um fetichista de compleições físicas lisas. Quem poderia supor que ele fosse capaz disso? Um homem que podia discutir filosofia grega e que também tinha conhecimento do culto de Zoroastro? Ele não somente comprava flores com Stella Gavrilovna... ele preocupava-se também com as raízes...
O paizinho Akif convenceu-se internamente. Citou mentalmente a sentença de sua prédica: ”... e perdoem seus verdugos, pois o perdão abre as portas do paraíso.” Percebeu que nunca havia dito algo mais disparatado.
— Só colaborarei para que possam atingir o objetivo de descobrir a verdade — disse ele, abafado. — Só para fazer frente ao diabo e para aniquilá-lo. Só por isso! É minha obrigação fazer frente à imoralidade.
— Muito bem! — disse o Dr. Lallikov. — Vamos dar uma olhada em nossa lista. Quem mais está nela?
— Podemos riscar também Dunia Sergeievna — disseKasutin, hesitante. — Camaradas, por favor, não façam perguntas, nada de olhares enviesados, nenhum sorriso irónico e impertinente, porque senão também vou dar o troco. Constato simplesmente: depois da descoberta da raspagem, Dunia Sergeievna e.stá fora de cogitação, com certeza.
— Com certeza? — perguntou o Dr. Lallikov, riscando o nome da relação.
— Claro que é com certeza! — berrou Kasutin. — Vocês estão satisfeitos agora, seus sacanas?
— A descoberta da verdade, companheiro — Lallikov deu um sorriso ordinário. As lentes de seus óculos cintilaram. — Mas ainda restam mulheres suficientes. Aqui está a bela viúva Sitkina.
— Ela a gente pode imaginar que fosse capaz disso — opinou Babajev. — Comenta-se por aí que ela teria nove amantes. Por que é que Jankovski não poderia ser o número dez? Alia Filippovna é capaz de tudo.
— A quem poderíamos perguntar? — meditou Kasutin. — Afinal, essa falta de cabelos também vai dar na vista para os outros.
— Eu assumo essa — disse o Dr. Lallikov.
— O senhor? — o paizinho Akif grunhiu, satisfeito.
— Que é que o senhor tem a ver com isso?
— Sou o médico dela! — contrapôs Lallikov. — Alia Filippovna sofre de uma bronquite renitente. Está sempre tossindo. Está querendo ir até o meu consultório amanhã de novo. Então, poderei informar-me.
— O senhor diagnostica a bronquite entre as coxas? — perguntou Akif, deliciado. — Ai de quem aparecer por lá com alguma coisa no esôfago...
— Só ficou na lista Rimma Ifanovna — berrou o Dr. Lallikov, com o rosto completamente ruborizado. — Ela tem os cabelos mais belos e avermelhados que já se viu.
— Não é qualquer um que vai estar raspando esses cabelos — disse o paizinho Akif, retumbante. — Seria uma vergonha!
— Rimma seria estúpida o bastante para estar concordando com isso — explicou Babajev.
— Mas Jankovski não é tão estúpido assim — Kasutin deu de ombros. — No entanto, como é que se pode saber? Como reagiria um fetichista de corpos lisos diante de um tufo de cabelos vermelhos? Talvez como um animal selvagem, como um touro, justamente porque eles são vermelhos. Esses perversos são imprevisíveis. Dr. Lallikov, que tem a medicina a dizer a esse respeito?
— Minha especialidade é a cirurgia — vociferou Lallikov. — Sempre fui muito cauteloso com a psiquiatria. Os psiquiatras sabem demais e, no fundo, no fundo, não sabem de nada. Portanto, como fica a coisa com Rimma?
— Eu poderia perguntar a ela — o paizinho Akif acariciou sua barba branca. — Ela é uma pessoa de fé. Daria informações voluntárias para seu sacerdote.
— Rimma poderia explicar-lhe muitas coisas — disse Kasutin.
— Essa criança tranqüila de espírito não iria mentir para mim.
— Eu procuraria me convencer disso — propôs Babajev.
— Quem é que pode afastar esse porcalhão do Nikita Romanovitch de minha casa? — berrou Mamedov.
— A proposta do camarada Babajev não é tão despropositada assim — Kasutin aprumou-se na cadeira. — Pensem nas palavras de Lenin: ”a confiança é boa, a fiscalização é melhor!” Akif Victorovitch, considero-o como sondagem da consciência um pouco mais aprofundada. Claro que basta com uma olhada, bem rápida e casta.
O paizinho Akif calou-se, bebeu um segundo copo de vinho de morango e olhou de soslaio para as fotografias. Propôs-se a conversar ele mesmo com Jankovski sobre seu interesse na jardineira do cemitério.
— A próxima — disse o Dr. Lallikov. — Galina Ivanovna. Ela está noiva.
— Isso é simples — Kasutin fez um sinal interrompendo-o.
— Como assim? O senhor está querendo conversar com o noivo?
— Por que não?
— O noivo é Maxim Ferapontovitch Lagatin, campeão regional de boxe meio-pesado. Vamos, pergunte-lhe, Piotr Dementievitch, acabo recebendo de volta seu rosto. Você já está parecendo com um macaco.
— Vocês sempre têm de complicar tudo — Kasutin recostou-se de novo, atrevendo-se a tomar um gole do vinho de morango de Akif. O vinho tinha um ótimo sabor, doce e de bom paladar, mas era isso mesmo o mais diabólico nele. Bebia-se inocentemente e depois ficava-se agachado durante três dias inteiros na privada — como é que se pode verificar se Jankovski e Calina Ivanovna...?
— Estou sabendo que Jankovski compra tudo no supermercado e que já esteve com Galina no cinema — interrompeu Babajev. — O filme intitulava-se: Quando o Grou Canta, Uma dessas histórias cem por cento de amor.
— Ora, então existe maior clareza? — Kasutin deu um sorriso de satisfação. — Pode ser que seja nossa bela Galina.
— E o campeão de peso meio-pesado Lagatin ia suportar essa raspagem de pêlos assim, sem mais nem menos? — indagou paizinho Akif. — Como é que Galina não tem nenhuma cabeça atada ao corpo? Por que nenhum olho azul? E principalmente: como é que Jankovski continua à solta por aí com um rosto?
— Lagatin e Jankovski são amigos — disse o Dr. Lallikov.
— Um rapazinho bem malandro, esse tal de Victor Semionovitch — sorriu Babajev. — Bebe vodca com o noivo e depois vai raspar os pêlos da noiva.
— Um precipício — disse o paizinho Akif, berrando de modo surdo — um precipício de imoralidade! É preciso que se tenha um coração forte num caso como esse.
Ele pensava em Stella Gavrilovna, nas compras de flores por Jankovski e nas possíveis conseqüências. Era humano desejar que Jankovski fosse para o inferno.
— Portanto, só resta minha insignificância — constatou o Dr. Lallikov. — Vou examinar Galina Ivanovna. Tenho direitos a isso. A legislação sobre víveres. Toda vendedora que entre em contato com mercadorias abertas tem de apresentar um certificado de saúde; portanto, tem de deixar que examinem sua saúde. Faz parte disso também um exame dos pés até a cabeça. Por causa de fungo de pé...
— Jamais esquecerei seu sacrifício, camarada Lallikov — disse Kasutin, de modo solene. — Isso quer dizer que podemos cortar Galina da lista. Quem fica sobrando?
— Um caso difícil: Antonina Pavlovna Zvetkova. Nossa fêmea de parada.
— Ela tinge os cabelos — disse Babajev.
— Na cabeça. Mas a cabeça está cortada e não é importante.
— Claro que tampouco se pode ir perguntar a Zvetkov.
— E como! — O Dr. Lallikov deu a entender que não. — Ele teria primeiro de ir verificar, de cor é que ele não sabe mesmo. E Antonina Pavlovna iria admirar-se muito e acreditaria em alguma enfermidade psíquica de Rassul Alekseievitch se este, de repente, mostrasse algum interesse mais profundo. Vou logo dizendo de antemão: eu não posso examinar Antonina.
— Por que não? — perguntou interessado o paizinho Akif. — Será que os óculos vão cair de seu nariz?
— A Zvetkova viaja para Magnitogorsk. Lá ela tem um especialista para doenças internas, um ginecologista, um urologista e ainda alguns legistas mais. A reação típica dos ricos. O médico da aldeia é uma espécie de imbecil... quanto maior a cidade, mais avançada e inteligente é a medicina. Até hoje, ela só esteve duas vezes em meu consultório.
— Mas você a viu nua?
— Com a maior acentuação possível da discrição: sim. Ela estava com uma erupção cutânea com comichões em volta do umbigo. Ainda hoje não sei por que ela foi até meu consultório.
— E?
— Que significa esse ”e”? Eu pude curá-la. Zvetkov agradeceu oferecendo-me um fiambre todo cozido. Mas, desde então, fiquei sabendo que Antonina Pavlovna possui um dos corpos femininos mais belos que já vi em toda minha vida.
— E uma coisinha como essa está em poder do gordo e impotente Zvetkov! É um verdadeiro escândalo! — Mais uma vez, Kasutin folheou as fotografias. Seu coração comprimiu-se com tanta beleza feminina aglomerada em um só corpo. — Como é que se pode verificar se se trata mesmo da Zvetkova, se foi ela mesma o modelo que Jankovski fotografou? Todos nós sabemos que Jankovski vive entrando e saindo da casa dos Zvetkovs.
— E de que nos adianta sabê-lo? — o Dr. Lallikov foi suficientemente grosseiro para continuar falando. — Afinal de contas, estamos sabendo que Jankovski é conhecido de todas as mulheres de nossa lista.
— Com exceção de Dunia Sergeievna — disse Kasutin, orgulhoso. — Com toda a certeza, ela pode ser eliminada da lista. O tempo está totalmente a favor dela.
— Não devemos

Continue navegando