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TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS AULA 4 Prof.ª Ludmila Andrzejewski Culpi 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, você conhecerá os pressupostos centrais da Escola Inglesa, vista como uma alternativa ao se situar no meio termo entre o realismo e o liberalismo, aproximando-se mais do construtivismo. Os principais conceitos apresentados a seguir são os de sociedade internacional, regras, instituições, ordem e justiça. Ademais, apresentaremos a perspectiva da Escola Inglesa sobre a ONU e sobre as demais organizações internacionais. TEMA 1 – ORIGEM DA ESCOLA INGLESA E CONTEXTO HISTÓRICO A Escola Inglesa foi fundada em 1958, no período em que predominava o pensamento realista nas Relações Internacionais, com a criação do Comitê Britânico de Teoria de Política Internacional pelo professor Herbert Butterfield. O objetivo das reuniões do Comitê era o debate de temas relacionados às relações entre Estados. Os criadores da Escola, que tem entre seus principais nomes Hedley Bull e Martin Wight, tinham o objetivo de assegurar um intercâmbio de ideias com o Comitê Americano, que teve duração limitada. O Comitê tinha como fim maior conhecer dos elementos fundamentais das relações diplomáticas, as intenções das atitudes dos Estados. Buscava-se assegurar o desenvolvimento de uma análise mais científica das relações internacionais, mostrando a preocupação metodológica dessa teoria (Sarfati, 2005). Ademais, a Escola buscava apresentar uma visão oposta ao pensamento que predomina nas RI, calcados em análises formuladas por pesquisadores dos EUA. Sarfati (2005) assinala que o tema que prevaleceu nas publicações dos estudiosos membros do Comitê foi o sistema de Estados, o que esteve presente nas obras de Bull e Wight. Em 1985, o Comitê foi extinto, após a morte de Bull. Porém, as descobertas da escola ainda representam uma relevante contribuição para compreender as relações internacionais e ainda possui seguidores que buscam aperfeiçoá-la. Waever (citado por Sarfati, 2005, p. 122) identifica quatro fases nas quais a escola Inglesa avançou: Fase 1 (1959-1966): Nessa fase, a escola determinou como foco das investigações os temas relacionados ao sistema internacional e à sociedade internacional, sendo que esses conceitos foram aprimorados pela teoria. 3 Fase 2 (1966-1977): Uma fase na qual foram publicados os livros centrais da Escola: A sociedade anárquica, de Hedley Bull, e O sistema de Estados, de Martin Wight. Fase 3 (1977 até 1992): Período de consolidação da teoria e de surgimento de novos estudiosos que dão continuidade à Escola, como R. J. Vincent, Cornelia Navari e James Mall. Foi nessa fase que a Escola ganhou o seu nome, pelo pesquisador Roy Jones. Fase 4 (1992 até os dias atuais): Nessa fase, aparece um grupo de estudiosos desvinculados do Comitê que analisam os pressupostos principais da Escola, contrapondo-a a outras teorias, como o Construtivismo e o Neorrealismo. Saraiva (2006) aponta que a Escola Inglesa tem uma relevância específica por estar posicionada em um meio-termo para os pesquisadores das Relações Internacionais: entre o liberalismo e o realismo. De acordo o autor, a Escola entende o cenário internacional de modo mais condizente com a realidade, próxima à concepção do construtivismo social. Essa escola esforça- se para buscar uma abordagem pluralista e não tem uma preocupação em assumir somente uma premissa teórica, o que pode ser um ponto positivo da teoria, mas também uma de suas debilidades. Essa escola determina seu próprio caminho, elaborando uma tradição própria, que se situa entre o racionalismo realista e o neoliberalismo institucionalista, afastando-se do realismo e se aproximando do construtivismo ao dar ênfase ao papel das ideias e das identidades na construção de interesses e na explicação dos comportamentos dos agentes (Silva; Culpi, 2017). TEMA 2 – CONCEITO DE SOCIEDADE INTERNACIONAL O pressuposto central da Escola Inglesa é a diferenciação entre três conceitos: sistema internacional, sociedade internacional e sociedade mundial. O primeiro deles, sistema internacional, relaciona-se à simples política de poder entre os Estados. Essa conceituação baseia-se na concepção do realismo moderno de Hobbes sobre o sistema de Estados, o qual conclui que a configuração de poder assentada em um sistema anárquico, ou seja, sem uma autoridade central, promove o equilíbrio de poder entre os Estados em termos tanto econômicos quanto militares. Nesse contexto, não há uma atitude 4 planejada dos Estados para se destacar em relação aos outros, porém, um comportamento automático de balanceamento de poder, que assegura a sobrevivência dos Estados e possibilita uma ordem em um cenário anárquico. O conceito mais central e mais discutido dentro da teoria da Escola Inglesa é o de sociedade internacional, desenvolvido por Bull e inspirado em Kant e Grotius. A sociedade internacional é entendida como um grupo de Estados vinculados por valores e interesses em comum, em que as interações ocorrem baseadas em um conjunto de regras (normas) e instituições. Parte-se do pressuposto de que os Estados, assim como os indivíduos, são constituídos por sociedades, isto é, devem levar em conta os comportamentos dos outros Estados na sua tomada de decisão. Essa necessidade de considerar a ação dos demais provoca um diálogo entre ele e promove a formulação de regras comuns e instituições compartilhadas entre eles (Sarfati, 2005). A sociedade internacional, para Bull (2002), pressupõe um ordenamento de difícil alcance, que varia conforme as mudanças na distribuição de poder entre os Estados e as alterações dos princípios de legitimidade. Para a constituição de um sistema internacional, é suficiente que existam unidades autônomas as quais tenham qualquer contato entre si, como as trocas e os conflitos. Porém, para que emerja uma sociedade internacional, é necessário que os Estados definam uma interação deliberada para buscar a formação de uma ordem internacional que supere a anarquia (Pereira, 2016). TEMA 3 – REGRAS E INSTITUIÇÕES NA SOCIEDADE INTERNACIONAL As distintas perspectivas dos autores da Escola Inglesa, como Hedley Bull, Nardin, Walzer e Wight, aproximam-se especificamente na relevância dada às normas e regras e às instituições internacionais para o entendimento do comportamento dos atores internacionais. Para Bull (2002), regras e instituições são elementos centrais da sociedade internacional. A existência das regras e o cumprimento destas pelos participantes dessa sociedade viabilizam a convivência entre os Estados. As regras garantem a manutenção da ordem e podem ter o status de lei, moral, costume ou simplesmente regras de procedimento (Bull, 2002, p. 66). Bull apresentou a conexão entre as regras e os interesses e valores comuns dos outros membros da sociedade que são responsáveis pela elaboração dessas regras. Segundo o autor, os interesses e valores comuns fornecem o conteúdo 5 das regras, que são dependentes da obediência dos membros da sociedade para serem eficazes. Essa eficácia é assegurada pelas instituições (a exemplo do direito internacional, das organizações internacionais e da diplomacia). No cenário interno, são os governos nacionais que garantem o cumprimento das regras; já no sistema internacional, devido à anarquia, são os estados que devem se responsabilizar por essa obediência. De acordo com Bull (2002), o direito internacional possui um papel primordial para a preservação da ordem em função de assegurar uma relação moral entre os Estados(Pereira, 2016). Em relação às instituições, Bull aponta que não são socialmente organizações administrativas, mas sim entendidas como um conjunto de práticas e hábitos direcionados para alcançar objetivos comuns da sociedade internacional. São várias as instituições internacionais que garantem a ordem e o cumprimento das regras, sendo que as mais importantes são os Estados, o balanceamento de poder, a diplomacia, a guerra e o papel das grandes potências. Em resumo, regras e instituições estão vinculadas e são fundamentais para a preservação da ordem internacional (Bull, 2002). TEMA 4 – ORDEM E JUSTIÇA NA SOCIEDADE INTERNACIONAL Em seu livro A sociedade anárquica, Hedley Bull (2002) se propõe a analisar a ordem e a justiça na sociedade internacional. Uma distinção importante proposta pelo autor é entre ordem internacional e ordem mundial. Bull (2002) busca entender a dinâmica dos comportamentos dos Estados diante do conceito de ordem e de moralidade internacional, em um contexto de anarquia. O autor define a ordem internacional como “um padrão de atividades que sustenta objetivos elementares ou primários da sociedade de estados ou sociedade internacional” (Bull, 2002, p. 13), que são proteção da vida, garantia de cumprimento dos acordos e da propriedade das coisas, não sendo os únicos objetivos de uma sociedade, mas os mais fundamentais. Para Bull (2002, p. 26), a ordem mundial é vista como “os padrões ou disposições da atividade humana que sustentam os objetivos elementares ou primários da vida social na humanidade considerada em seu conjunto”. Ele afirma dentro da concepção de ordem internacional de Estados que há aspectos mais profundos sobre o objetivo da ordem para a humanidade como um todo e não somente para um grupo de Estados. De acordo com o autor, a partir do início 6 do século XX emerge um sistema político global, o qual define como ordem mundial, que é o sistema de estados europeus (Bull, 2002, p. 27). Desse modo, a ordem mundial é mais abrangente que a ordem internacional, porque inclui não apenas os Estados, mas outros atores. Para Bull, a ordem mundial é preservada por interesses em comum (a percepção desses interesses limita o cálculo egoísta), regras (direito internacional) e instituições (garantindo a obediência às regras). Bull (2002) defende que a ordem é assegurada mesmo em um contexto de anarquia, pois os Estados constituem uma sociedade internacional, dentro da qual os Estados respeitam os imperativos morais e ideias compartilhadas entre eles. Outra distinção central proposta por Bull é entre justiça internacional e justiça mundial. A justiça internacional representa a justiça entre os Estados, a partir da qual os Estados criam regras morais que definem direitos e obrigações, como a soberania e a autodeterminação das nações. Entretanto, a justiça mundial é equivalente à determinação de regras morais dos indivíduos em geral e não as que os Estados estão comprometidos, pois existem temáticas que são universais e devem estar acima dos interesses e valores dos Estados, como a questão dos direitos humanos. Para Bull, a ordem internacional é uma prioridade para os Estados em relação à justiça humana (Pereira, 2016). TEMA 5 – VISÃO DA ESCOLA INGLESA SOBRE A ONU E AS DEMAIS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS Uma visão importante da Escola Inglesa é a perspectiva sobre as Nações Unidas, que recebe bastante atenção de Bull em sua obra. Para o autor, uma instituição que representa a concretização de valores universais dentro de uma sociedade internacional global é a ONU, a qual se sustenta na lógica da manutenção da paz e da segurança, vinculada à soberania e à restrição do monopólio da força pelo princípio da guerra justa. Contudo, conforme Bull, no pós-Segunda Guerra Mundial, passou-se a sobrevalorizar o papel de organizações internacionais como a ONU e a excluir um aspecto central da dinâmica internacional, que é o equilíbrio de poder. Bull investiga se a política internacional do momento em que ele escreve a obra deve ser considerada como um sistema de Estados em vez de uma sociedade internacional em que se compartilham valores. Ele (2002) defende 7 que o sistema internacional moderno possui elementos vinculados à visão hobbesiana, da luta por poder, à visão kantiana, da transcendência do sistema de Estados devido à limitação de suas ações pela moralidade, e à visão gramsciana na qual as regras jurídicas, as instituições e os valores morais intervêm nas atuações dos Estados, promovendo uma cooperação regulada pelas OIGs. Bull (2002) comprova em seu estudo a existência de uma sociedade internacional no sistema internacional moderno, mesmo em um cenário de anarquia internacional, que está assegurada pelas organizações internacionais, como a ONU. Entretanto, destaca as restrições da sociedade internacional anárquica. Ele (2002) argumenta que a sociedade internacional compete na política internacional moderna com outros elementos, como o estado de guerra. Portanto, a sociedade internacional não é o elemento exclusivo do sistema internacional, que explica todos os fenômenos internacionais, pois embora os elementos da sociedade internacional sejam uma realidade, também existe a possibilidade de guerra e de lealdades internacionais. Alguns temas se tornam mais presentes no estudo da Escola Inglesa, como a questão da governança global, dos direitos humanos, do meio ambiente e a necessidade de legitimidade e aprofundamento das instituições internacionais, como a ONU. Sobre o desenvolvimento da sociedade internacional, Bull aponta que ele depende de como as potências ocidentais se posicionarão em relação às revoltas do Oriente (Maione, 2009, p. 146). Ao conferir relevância às normas e ao direito, a Escola Inglesa estabelece que as relações internacionais são uma arena em que os Estados não disputam apenas poder e riqueza, mas cooperam entre si e definem direitos, autoridade soberana e também deveres e obrigações de modo conjunto, administrados por eles dentro das instituições internacionais, como a ONU, que seria a mais relevante de todas, a OMC e o Mercosul. No que tange ao futuro da sociedade internacional, Bull analisa as seguintes alternativas: i) um mundo desarmado, possível por meio de uma autoridade mundial que assegurasse o desarmamento; ii) a solidariedade entre os Estados, que significa uma nova fase de organização internacional, que tem respeito efetivo pelos artigos da Carta da ONU; iii) um mundo com muitas potências nucleares, em que o acesso às armas deveria ser possibilitado a maior parte dos países, para que houvesse um equilíbrio de poder; e iv) a 8 homogeneidade ideológica, em um contexto em que prevalecesse uma das correntes ideológicas, o capitalismo ou o comunismo (Silva; Culpi, 2017). NA PRÁTICA Um exemplo concreto de instituição promotora da sociedade internacional é a criação da União Europeia, pois os Estados-membros desse processo de integração regional não equilibram poder, mas cooperam e baseiam suas ações em valores morais comuns. Leia o texto “O dilema europeu: a crise migratória à luz da Escola Inglesa” aplicando a concepção de Escola Inglesa à questão da crise migratória na Europa e identifique os elementos desse pensamento no texto. Leitura complementar Leia o artigo “O Dilema Europeu: a crise migratória à luz da Escola Inglesa”. Disponível em: <http://www.tensoesmundiais.net/index.php/tm/article/ viewFile/463/527>. FINALIZANDO Nesta aula, foi possível entender os elementos centrais da concepção teórica da Escola Inglesa. Em um primeiro momento, situamos a Escola Inglesano debate das RI, mostrando a origem da escola. Pode-se verificar que esta representa um meio termo entre o liberalismo e o realismo, por acreditar na relevância das normas, mas não ignorar a possibilidade dos conflitos e do equilíbrio de poder. Na sequência, pudemos conhecer conceitos centrais da Escola, como o conceito de sistema de Estados, sociedade internacional e sociedade mundial, sendo a concepção de sociedade internacional a mais importante para a Escola. Depois, conhecemos a ideia da garantia da ordem mesmo em um contexto de anarquia, a partir da distinção entre ordem mundial e ordem internacional e de justiça internacional e justiça mundial. Posteriormente, pudemos aprofundar a ideia da relevância das regras e das instituições para a garantia da ordem no cenário internacional, sendo as mais importantes o direito internacional e os próprios Estados. Por fim, apresentamos a visão da Escola Inglesa sobre as organizações internacionais e, sobretudo, sobre a ONU e as previsões de Bull sobre o futuro da sociedade internacional. 9 REFERÊNCIAS BULL, H. A sociedade anárquica. Brasília: Editora da UnB, 2002. MAIONE, E. Ordem e justiça na sociedade internacional pós-11 de setembro. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 52, p. 133-148, 2009. PEREIRA, A. E. Teoria das Relações Internacionais. Curitiba: InterSaberes, 2016. SARFATI, G. Teorias de Relações Internacionais. São Paulo: Saraiva, 2005. SILVA, C. C. V.; CULPI, L. A. Teoria de Relações Internacionais: origens e desenvolvimento. Curitiba: InterSaberes, 2017.
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