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ASSOCIAÇÃO DE ARTE E CULTURA PANORAMA DA MÚSICA NO ORIENTE Prof. Fernando Lewis de Mattos SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1 MÚSICA DA CHINA............................................................................................................................ 3 IMPERADORES LENDÁRIOS................................................................................................................. 3 Sistema Kin................................................................................................................................. 5 DINASTIA SHANG............................................................................................................................... 6 Sistema Lyu ................................................................................................................................ 6 DINASTIA CHOU................................................................................................................................. 8 Música Instrumental.................................................................................................................... 9 DINASTIA HAN E POSTERIORES......................................................................................................... 12 MÚSICAS DO SUDESTE ASIÁTICO ............................................................................................... 14 MÚSICA DA INDONÉSIA..................................................................................................................... 15 Gamelão ................................................................................................................................... 15 MÚSICA DA INDOCHINA .................................................................................................................... 19 Conjuntos instrumentais ........................................................................................................... 21 MÚSICA DA ÍNDIA ........................................................................................................................... 23 OS LIVROS DA SABEDORIA............................................................................................................... 23 SISTEMA DE TALAS.......................................................................................................................... 25 O SISTEMA DE RAGAS ..................................................................................................................... 28 COMENTÁRIOS DE ALAIN DANIÉLOU.................................................................................................. 32 1 INTRODUÇÃO Neste texto, serão apresentados aspectos da História da Música do Oriente, desde a formação do sistema musical mais antigo, conhecido atualmente, o Sistema Kin, da época dos Imperadores Lendários chineses, até o Sistema de Ragas da Índia, que pode ser considerado como o sistema mais elaborado de organização dos sons já elaborado. Serão estudados estes tópicos: 1. Música da China – onde se encontra o mais antigo sistema musical conhecido, assim como a mais antiga melodia preservada até a atualidade, um Hino para a Entrada do Imperador, datada de cerca de 3.000 anos; 2. Música no Sudeste Asiático – a música da Indonésia, especialmente o gamelão javanês e suas escalas pelog e slendro, possui características peculiares que ainda hoje fascina músicos e ouvintes de várias regiões do globo; 3. Música da Índia – desde a divulgação do tratado Nathya-Sastra, escrito no séc. II a.C. e atribuído a Bharata, os indianos vêm desenvolvendo um sistema musical altamente elaborado, com base em dois princípios fundamentais: os ragas, escalas que deram origem às mais variadas melodias, e os talas, ciclos de tempo que deram origem às sofisticadas combinações rítmicas da música indiana. 4. Música no Mundo Árabe – . As músicas produzidas pelas mais diversas culturas que deixaram registro histórico apresenta características comuns, que podem ser definidas com base em alguns princípios geradores. Algumas civilizações da Antigüidade iniciaram um processo de sistematização da organização dos sons seguindo preceitos cosmológicos, relações numéricas, naturais e míticas entre as notas que formam as escalas, ou simplesmente a partir da escuta atenta de sons do ambiente. Na Mesopotâmia e no Egito, existiram vários gêneros de música religiosa, cerimonial, lúdica e cortesã. Entretanto, não restou documentação que ateste qualquer aspecto sobre como estas músicas eram praticadas. Conhecem-se, 2 atualmente, apenas alguns instrumentos que permitem deduzir pouco sobre essas músicas. O sistema musical mais antigo que chegou aos dias de hoje, é o Sistema Kin chinês, o qual remonta à época dos Imperadores Lendários, há cerca de cinco mil anos. O Sistema de Ragas indiano, com vários tipos de escalas, que vão de cinco a dez sons, é o sistema musical oriental mais detalhadamente conhecido. Isso se deve, certamente, à grande quantidade de escritos preservados e à disseminação internacional da música indiana, na atualidade. Um gênero de música menos conhecido do que a música chinesa ou indiana, mas que influenciou profundamente algumas das transformações mais significativas da moderna música ocidental, é a Orquestra de Gamelão de Java e Bali. Uma dessas orquestras tocou na Exposição Internacional de Paris de 1889, causando grande impacto aos músicos franceses da época, como Erik Satie, Claude Debussy e Maurice Ravel. Esses músicos passaram a empregar as escalas balinesas que escutaram, assim como incorporaram as sonoridades e as combinações de sons do gamelão às suas próprias composições. A influência desses músicos sobre quase todas as produções musicais do século XX, terminou por disseminar indiretamente a música balinesa e javanesa. Entre os músicos que assumiram explicitamente a influência de Satie, Debussy ou Ravel, estão praticantes de vários estilos de jazz, compositores de bossa nova e músicos ligados às pesquisas da cultura autóctone de seus países, como Béla Bartók e Heitor Villa-Lobos, entre outros. Dada a importância da música francesa da belle époque para músicos como Villa-Lobos e Antônio Carlos Jobim, entre outros, pode-se dizer que aquilo que hoje entendemos por ‘música brasileira’ tem alguma referência, mesmo que por via indireta, na música do Extremo Oriente. 3 MÚSICA DA CHINA Imperadores Lendários Segundo a lenda, o Imperador Amarelo, Huang-Ti, criou a escrita dos ideogramas chineses e a música daquele país, a qual era organizada com base em princípios numéricos e a partir da ressonância de um som fundamental (denominado huang-kung). 1 Esses princípios e relações entre os sons estavam ligados às tradições cosmológicas, à compreensão da natureza e a valores religiosos. Para os chineses, o Universo é formado por cinco elementos que regem a Natureza. Cada um desses elementos está associado a vários aspectos da realidade. Segundo a tradição taoísta, os elementos são estes: • Madeira – rege a criatividade, a primavera, a nota lá, etc. • Fogo – rege a paixão, o verão, o sabor amargo, a nota dó, etc. • Terra – rege o equilíbrio, o sabor doce, o olfato, a nota fá, etc. • Metal – rege a força, o outono, o sabor picante, a nota sol, etc. • Água – rege a sensibilidade, o inverno, o salgado, a nota ré, etc. Todos os elementos relacionam-se entre si, sendo que a formação e o crescimento de certos elementos favorecem e são favorecidospor alguns, ao passo que inibem e são inibidos por outros. Por exemplo, o elemento fogo é criado pelo elemento madeira, sendo inibido pela água. A ação do fogo favorece a formação e o crescimento do elemento terra, porém inibe as características do elemento metal. Abaixo, estão as relações existentes entre os cinco elementos. 1 A nota huang-kung, isto é a nota fundamental que deu origem a todo o sistema pentatônico chinês, chama-se gōng e equivale à nossa nota fá. Sabe-se disso porque esta é a nota fundamental dos carrilhões (sistemas de sinos denominados bianzhong) encontrados em escavações arqueológicas. 4 Cada um dos elementos é responsável por determinados aspectos da natureza. Assim, entende-se que a realidade interior da alma humana, a realidade que se dá aos nossos sentidos, a natureza do planeta Terra e a totalidade do Cosmo são todos determinados pelas correlações existentes entre os elementos. O quadro abaixo apresenta algumas propriedades dos elementos. Elemento Estação Característica Direção Cor Nota Musical Madeira primavera criatividade criação crescimento leste verde chiao 角 (lá) Fogo verão paixão inteligência movimento sul vermelho chih 徵 (dó) Terra mudança de estação equilíbrio sustentáculo segurança centro amarelo kung 宮 (fá) Metal outono utilidade confiabilidade força oeste branco shang 商 (sol) Água inverno comunicação intuição sensibilidade norte azul yu 羽 (ré) A nota kung (fá) é a fundamental (hang-kung) e equivale ao elemento terra, que representa o equilíbrio, o centro e também as possibilidades de mudança. 5 Sistema Kin Há cerca de cinco mil anos, os chineses desenvolveram um sistema musical extremamente sofisticado, embasado nas inter-relações entre cinco sons (cada um deles regido por um elemento) e nas afinidades do intervalo de quinta justa. Daí, desenvolveu-se um sistema pentatônico (conjunto de cinco sons), amplamente empregado ainda hoje em vários países asiáticos2, em que todas as notas da escala são obtidas com base no número cinco: cinco sons distribuídos à distância de intervalos de quinta, entre si. Por exemplo, a partir da nota fá (kung), têm-se estas quintas justas: Fá Dó Sol Ré Lá 5ªJ 5ªJ 5ªJ 5ªJ Se essas notas forem re-ordenadas como graus de uma escala, isto é, na sua seqüência ‘natural’, obtém-se a escala pentatônica Kin. Assim, o ciclo de quintas apresentado acima, ao ser re-ordenado Fá Dó Sol Ré La aparece com as notas nesta seqüência: Fá (kung) Sol (chang) Lá (chiao) Dó (chih) Ré (yu) 2 Escalas pentatônicas servem de base para criação de melodias em várias regiões do globo terrestre. A música africana e suas derivações, como o blues, o jazz e o batuque, assim como a música de vários povos ameríndios estão embasadas em sistemas pentatônicos. 6 Dinastia Shang Com o passar do tempo, o sistema pentatônico original foi ampliado, chegando ao complexo Sistema Lyu do Período Shang (1.500-1.000 a.C.), onde cada um dos sons está associado a elementos cosmológicos e a música é entendida como um reflexo da realidade, tanto do Universo quanto da vida interior. A nota fundamental kung (fá), que dá origem à escala musical, representa a totalidade do Universo e as notas derivadas dessa fundamental (as outras notas da escala) representam as partes que formam esse todo. A música é, assim, compreendida como o reflexo da realidade exterior que se manifesta na vida interior da alma humana. Sistema Lyu A busca da compreensão das inter-relações entre a totalidade do cosmo e suas partes, levou os músicos chineses desse período a dividir e subdividir a oitava, aumentando o número de notas e multiplicando a quantidade de escalas do sistema. No auge desse processo, a oitava passou a ser dividida em doze partes iguais. Cada um dos intervalos resultantes dessa divisão chama-se lyu, que é a menor distância entre os sons do sistema musical chinês, sendo equivalente ao semitom da música ocidental. O Sistema Lyu consiste em tomar cada um dos cinco sons da escala pentatônica Kin como sendo a nota que dá origem a uma nova escala. Têm-se, assim, cinco escalas, cada uma delas formada por cinco sons, sendo todas as relações derivadas do intervalo de quinta justa. Como cada nota do sistema pode ser tomada como base para a formação de uma nova escala, tem-se um sistema que compreende todas as doze notas lyu, em um Círculo de Quintas completo, que inicia e termina em fá. 7 Fá Sib . ............... Dó Mib Sol Láb Ré Réb Lá Solb Mi Si Cada uma das escalas pentatônicas, assim obtidas, pode ser organizada com base em cinco padrões diferentes, isto é, a partir de cada escala, podem ser derivadas outras quatro através de nova ordenação das suas notas. Por exemplo, as notas que formam a escala Kin apresentada acima (fá-sol- lá-dó-ré) podem ser distribuídas de cinco modos distintos. Se começarmos com cada uma de suas notas, teremos: Fá Sol Lá Dó Ré Sol Lá Dó Ré Fá Lá Dó Ré Fá Sol Dó Ré Fá Sol Lá Ré Fá Sol Lá Dó Com isso, podem-se obter cinco escalas a partir de cada conjunto de notas do sistema. Como há doze notas derivadas da divisão da oitava em 12 lyu, chega- se a um total de 60 escalas diferentes (5 x 12 = 60). 8 O quadro a seguir demonstra as sessenta escalas do Sistema Lyu.3 Fá Sol Lá Dó Ré Fá Sol Lá Dó Ré Sol Lá Si Ré Mi Sol Lá Si Ré Mi Lá Si Dó# Mi Fá# Lá Si Dó# Mi Fá# Dó Ré Mi Sol Lá Dó Ré Mi Sol Lá Ré Mi Fá# Lá Si Ré Mi Fá# Lá Si Fá Sol Lá Dó Ré Fá Sol Lá Dó Ré Sol Lá Si Ré Mi Sol Lá Si Ré Mi Lá Si Dó# Mi Fá# Lá Si Dó# Mi Fá# Dó Ré Mi Sol Lá Dó Ré Mi Sol Lá Ré Mi Fá# Lá Si Ré Mi Fá# Lá Si Dinastia Chou No período da Dinastia Chou (1000a.C-256d.C.), a música passa a ser também compreendida por seus efeitos físicos sobre as pessoas. Certos sons e suas combinações podem ser benéficos ou prejudiciais, conforme vários fatores da vida individual ou social. A música assume caráter terapêutico e educativo, devido à sua forte influência sobre o corpo e sobre a alma, influenciando a formação do caráter dos indivíduos. Mudanças políticas determinam mudanças no sistema musical, na prática dos músicos e até mesmo no uso de instrumentos. Novos governantes acreditam que não podem manter a música de períodos anteriores porque não condiz mais com a nova realidade. 3 Para deduzir qualquer uma das escalas pentatônicas do Sistema Lyu, no quadro acima, basta iniciar em qualquer nota e contar cinco notas na mesma direção, tanto na vertical quanto na horizontal, até alcançar a repetição da nota inicial. Com isso, obtêm-se todas 60 as escalas do sistema. 9 Nesta época, cria-se um Ministério da Música, com propósitos educacionais. O Ministério também atua na formação dos músicos, que exercem atividades em vários setores da vida religiosa e social. Desta época, tem-se a mais antiga fonte histórica musical chinesa, o Livro dos Documentos, escrito entre os séculos IX-VII a.C. Confúcio, que viveu entre 551-478 a.C., foi o autor do Livro das Canções, com cerca de 300 canções, das quais sobreviveram os poemas e poucas melodias, e do Livro dos Ritos, que sistematiza as cerimônias religiosas e as práticas musicais a elas associadas. Em 213 a.C. houve uma troca violenta de poder que resultouna queima de livros, documentos de estado e instrumentos musicais. Nessa situação, foram perdidas valiosas informações que atestavam sobre a vida social e cultural chinesa anterior a essa época. Música Instrumental Sabe-se que a música chinesa desta época é preponderantemente instrumental. No Livro dos Ritos, há uma sistematização dos instrumentos musicais e seu uso. Aí aparece a mais antiga classificação dos instrumentos, que são organizados desta maneira: 1. Instrumentos de Seda – são instrumentos de cordas (acredita-se que o nome seja derivado do fato de as cordas serem feitas de seda, na época). Entre os instrumentos de seda, está o quin (de corda pinçada), que é um dos mais antigos instrumentos chineses, sendo considerado o mais importante; o ehru (de corda friccionada) e o zhu (de corda percutida). 2. Instrumentos de Bambu – são instrumentos de sopro de madeira (bambu). Dizi é uma flauta transversa de bambu, considerada como sendo o mais importante instrumento de sopro; o xiau é um instrumento que se toca em posição vertical (assemelha-se a um fagote, porém com embocadura livre); suona é um instrumento de palheta dupla (como o clarinete) e tem, na extremidade, uma campana de metal (como o trompete). 10 3. Instrumentos de Madeira – são instrumentos de percussão, fabricados com madeira. Esses instrumentos podem ser percutidos, como o zhu, ou raspados com uma vara de bambu, como o yu; o zhu e o yu são mencionados em textos anteriores à Dinastia Kin. 4. Instrumentos de Pedra – são instrumentos de percussão, em que as pedras podem ser golpeadas, uma contra a outra, ou podem ser percutidas com baquetas. Um instrumento característico dessa família é o bianquing, um carrilhão composto por um conjunto pedras afinadas, tocadas com baquetas. 5. Instrumentos de Metal – são instrumentos de percussão, que podem ter afinação precisa, como o bianzhong, uma espécie de carrilhão composto por um conjunto de sinos de bronze afinados (este é o instrumento que deu origem ao sistema pentatônico Kin), e também podem ter afinação indeterminada, como o chun, antigo instrumento ritualístico que tem a figura de um tigre na parte superior. 6. Instrumentos de Barro – podem ser instrumentos de sopro ou de percussão. O xun é uma espécie de ocarina, sendo um instrumento que já existia na fase pré-histórica; o fou é um grande instrumento ritualístico de percussão, tocado com baquetas. 7. Instrumentos de Cabaça – são vários tipos de instrumentos de sopro que têm a estrutura de órgãos de boca. Os mais importantes são o sheng, que remonta ao período da Dinastia Shang, quando era empregado nas orquestras que acompanhavam os passos do imperador, e o lusheng, instrumento folclórico muito comum em regiões rurais do Sudeste chinês, geralmente tocado por um grupo numeroso de músicos, sendo que cada um toca um instrumento de tamanho diferente. 8. Instrumentos de Pele – são instrumentos de percussão com afinação precisa ou indeterminada, como os tímpanos e tambores atuais. Entre os mais antigos, está o jiegu, feito de madeira, com as extremidades revestidas de pele animal e tocado com baquetas. A seguir, estão imagens de alguns desses instrumentos. 11 Quin Pipa Dizi Bianzhong 12 Por volta de 300 a.C., a formação das escalas foi ampliada para conjuntos de sete notas (escalas heptatônicas), em que foram acrescentadas mais duas quintas justas ao sistema anterior. Nessas escalas, foram incorporados os intervalos pien (pien chih e pien kung), que corresponde ao lyu (semitom) que existia apenas no sistema geral, mas não era utilizado para a composição de melodias. Abaixo, está a formação da nova escala com acréscimo de mais duas quintas justas, completando as sete notas, a partir da nota fá: Fá Dó Sol Ré Lá Mi Si 5ªJ 5ªJ 5ªJ 5ªJ 5ªJ 5ªJ Ao re-ordenar essas notas, na forma de escala, isto é, buscando a distância mais curta entre uma nota e outra, tem-se a escala heptatônica do período Chou: Fá (kung) Sol (chang) Lá (chiao) Si (pien chih) Dó (chih) Ré (yu) Mi (pien kung) Com isso, o sistema ampliou-se para um total de 84 de escalas, sendo que as melodias compostas com base nestas escalas eram consideradas como parte da “nova música”, própria da Dinastia Chou. Confúcio reagiu ao novo sistema, propondo o retorno às antigas tradições e seu caráter ético-religioso. Dinastia Han e posteriores A Dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.) caracteriza-se pela adoção do Confucionismo como religião oficial do Estado. Com isso, dá-se a restauração da música antiga, com base nos documentos que ainda restavam. Nesta época, há grande intercâmbio cultural com outros povos, que terminam por influenciar a música tradicional chinesa. Entre 220-560, há um período de dominação estrangeira, que é superado pela Dinastia Sui (560-618), que assimilou influências árabes. 13 No período da dinastia Tang (618-907 d.C.), os hinos que acompanhavam a entrada do imperador eram tocados por orquestras formadas por grande número de executantes, podendo chegar a mais de quinhentos músicos. Nesta época, voltou-se a cultivar a música tradicional chinesa de períodos anteriores, porém, agora, com as características estrangeiras que já haviam sido assimiladas. Desta época, é o poeta Li Tai-po (701-762). A música praticada na Dinastia Sung (960-1279) dá continuidade ao período anterior. Esta época caracteriza-se por intensa atividade cultural, com grandes produções de teatro e ballet, impressão de livros e a formação de grandes orquestras que tocavam na corte, nas festividades e no teatro. 14 MÚSICAS DO SUDESTE ASIÁTICO O Sudeste asiático é formado por duas regiões, a Indochina e a Insulíndia. Os países que fazem parte da Indochina são: Tailândia, Camboja, Birmânia, Malásia, Vietnã, Laos; os países da Insulíndia são estes: Indonésia, Malásia Oriental, Timor-Leste, Cingapura, Brunei e Filipinas. Apesar das diferenças culturais existentes entre os povos do Sudeste asiático, pode-se considerar que as músicas que praticam pertencem a um mesmo sistema musical geral. Isso se deve a alguns fatores: ⇒ em todos esses povos, a música instrumental tem grande importância, na vida religiosa, cortesã e social; ⇒ predominam instrumentos metálicos de percussão, com afinação precisa; ⇒ A música é, geralmente, praticada em conjunto, em que os instrumentos são agrupados em orquestras (p. ex.: gamelão javanês, pin-peat cambojano e khuarang-sai tailandês, etc.); ⇒ Instrumentos de sopro e de cordas, assim como a voz humana, podem fazer parte dessas orquestras, mas são dispensáveis; ⇒ há uma característica comum a esses povos, raramente encontrada em outras regiões: o uso de escalas isométricas pantonais, isto é, a oitava é dividida em partes iguais, produzindo escalas de cinco sons (pentatônicas) ou de sete sons (heptatônicas). O uso de escalas isométricas permite que haja modulações constantes de qualquer tonalidade para qualquer outra (princípio da pantonalidade).4 Pelas descobertas arqueológicas, deduz-se que essas práticas musicais podem ser bastante antigas. Um litofone (instrumento de percussão feito pedra) do período neolítico foi encontrado no maciço de Bac-Sion, em 1949. A análise das 4 Esta é a característica do Sudeste asiático que mais influenciou a música internacional, no século XX. A escala isométrica pantonal mais conhecida internacionalmente é aescala de tons inteiros, uma escala hexatônica que divide a oitava em seis partes iguais. Esta escala, assimilada por influência do gamelão javanês através de Debussy e outros franceses, tem sido usada na música de câmara e orquestral, no jazz e outras manifestações. No Brasil, Garoto (1915-1955) já empregava a escala de tons inteiros em seus choros e sambas, chegando, inclusive, a compor uma Debussyana. 15 lâminas que formam o instrumento levou o musicólogo Jaap Kunst a deduzir de que as notas deste instrumento já formariam a base para uma escala pelog, a mais importante da música Indonésia atual. Música da Indonésia Insulíndia Atualmente, a República da Indonésia é uma das regiões mais povoadas do mundo, sendo que a maior parte de sua população concentra-se na ilha de Java. O arquipélago indonésio constitui-se de milhares de ilhas, com cerca de 300 grupos étnicos que falam por volta de 250 dialetos. Essa diversidade étnico- cultural deve-se, entre outros fatores, às colonizações indianas, chinesas, árabes e européias. Acredita-se que o predomínio de instrumentos melódicos de metal, que formam o gamelão, deve-se ao alto nível alcançado na Idade do Bronze, por volta de 300 a.C. Gamelão Gamelão significa ‘orquestra’. O termo pode ser empregado tanto para designar instrumentos metálicos de percussão com sons determinados (gongos e metalofones), quanto o conjunto desses instrumentos (orquestra). Há várias formações de gamelão, que podem ser empregadas nas cortes, nos centros urbanos, em festividades rurais, em rituais religiosos e no teatro, para 16 acompanhar cenas (atores e marionetes) e dança. Um gamelão pode ser formado por alguns músicos e pode chegar a possuir perto de 80 instrumentos, sendo que a formação mais comum possui aproximadamente 25 instrumentos e cinco a seis cantores. Entre os instrumentos que formam o gamelão, estão: gongos (ketuk e kenong, discos de bronze afinados, com uma seção convexa no centro), gongos suspensos (gong ageng e kempul), carrilhões de gongos (bonang, jogo de pequenos gongos suspensos), metalofones (gender, teclado com lâminas metálicas e um ressonador tubular para cada tecla), xilofones (tchalung e gambang, teclados com lâminas de madeira e um ressonador tubular para cada tecla), vários tipos de tambores (kendang: gending, ketipung, batangan), além de flautas (suling, uma espécie de flauta obliqua), oboés (sarunai, instrumento de sopro de palheta dupla) e rabecas (rebab, instrumento de cordas friccionadas de origem árabe que também está na origem do violino europeu), além de cinco ou seis cantores. Um gamelão completo geralmente possui dois grupos de instrumentos, cada um afinado em uma das duas escalas tradicionais, pelog e slendro. Pelog é uma escala heptatônica (com sete notas), com intervalos variáveis, isto é, não se trata de uma escala isométrica. Atribui-se a essa escala um caráter feminino, doce e afável que representa os mistérios da natureza. As notas de pelog são estas: bem (mi), gulu (fá), dada (sol, baixo), pelog (lá, alto), lima (si), nem (dó), barang (ré, baixo). Slendro é uma escala pentatônica, porém completamente diferente da kin chinesa, principalmente por dividir a oitava em cinco intervalos iguais e por incorporar dissonâncias e semitons (piens). Suas notas são: barang (ré), gulu (mi, alto), dada (sol), lima (si), nem (dó, baixo). Segundo o musicólogo Alain Daniélou, o nome da escala viria de um dos epítetos de Shiva (shilendra, “senhor das virtudes”). Esta escala representa um temperamento masculino, sério e solene. Além dessas formações de base, as notas das escalas slendro e pelog podem ser reordenadas de vários modos, sendo que cada novo padrão (modo) chama-se patet. Esses patets são considerados apenas como diferentes 17 “maneiras de ser” das escalas originárias e acrescentam diversidade de expressão, caráter e disposição de alma a elas. Cada escala e seus diferentes modos são tocados em diferentes horas do dia, em várias situações da vida social e religiosa. A textura musical da música de gamelão é, geralmente, heterofônica, em que os diferentes músicos realizam improvisos em torno de padrões melódicos e rítmicos preestabelecidos. Há cerca de mil desses padrões melódicos, freqüentemente tocados, nos festivais e cerimônias. Os músicos costumam tocar as mesmas linhas melódicas em diferentes tempos, com base em um pulso geral determinado pelos grandes gongos, o que produz a impressão de uma renda sonora em constante transformação. Devido ao pulso geral e à natureza mais ou menor similar dos diferentes tipos de instrumentos de percussão melódica, a sonoridade geral do conjunto é bastante homogênea. Mesmo os instrumentos de sopro e cordas, de naturezas distintas, integram-se perfeitamente à sonoridade geral do conjunto. Muitas vezes, as melodias resultam da combinação de alguns instrumentos, em que uns completam seqüências melódicas iniciadas pelos outros. O efeito geral do encadeamento de melodias, ritmos e texturas resulta em peças musicais rápidas, sem exigir virtuosismo dos músicos. Em determinados trechos de algumas peças, pode ocorrer que um dos músicos se destaque para realizar um solo virtuosístico, mas isso não é regra geral. Os gamelões das ilhas de Java e Bali são bastante semelhantes, sendo que os instrumentos balineses têm uma forma particular de ressonância, em que pares de instrumentos são afinados com diferença mínima de altura, isto é, um instrumento é ligeiramente mais grave do que o outro. Isso produz uma sonoridade difusa, que se dispersa pelo ambiente sem definição de limites precisos entre as notas e os timbres dos instrumentos. Em Bali, há também um conjunto maior do que o gamelão, chamado gong. Abaixo, um quadro com os instrumentos do gamelão. 18 Gamelão balinês formado por produtores de arroz 19 Música da Indochina Indochina Segundo uma antiga lenda cambojana, há mais de 4.000 anos havia um imperador que encantava os animais ao tocar um litofone chamado khan-do (instrumento melódico, formado por lâminas de pedra suspensas). Este instrumento pode estar nas origens dos atuais instrumentos melódicos de percussão característicos da região. De acordo com anais chineses, havia um reino Funan, fundado por um brâmane lendário por volta do séc. I, que mantinha domínio militar e econômico sobre a região sul da Indochina. Segundo os registros, este reino teria forte influência indiana e predominou na região por cerca de cinco séculos, criando a escrita khmer a partir do sânscrito. Acredita-se que a forte influência indiana sobre as culturas do Sudeste asiático, especialmente sobre a Indochina, adveio desse reinado Funan. Em meados do séc. VI, o Kambujas dominaram o Funan e assimilaram sua cultura e escrita khmer, vindo a unificar o território no séc. VII, ao fundar numerosas cidades na região que hoje compreende países como Camboja e Laos. No séc. IX, foi instituída a Dinastia de Angkor, que dominou a região até o 20 séc. XV. Essa dinastia alcançou seu ápice nos séc. XII-XIII, quando foi construído o templo de Angkor Vat. Templo de Angkor Vat Este é um templo khmer dedicado ao deus hindu Vishnu, com galerias ornamentadas com baixo-relevos que narram a epopéia do deus. No séc. XV, o templo foi anexado pelos budistas. A rica iconografia do templo ilustra o uso de vários instrumentos melódicos de percussão e serve de referência ao conhecimento das práticas musicais de diferentes épocas, que, presumivelmente, não se modificaram profundamente até os dias atuais. As escalas mais comuns da tradição khmersão isométricas, em que a oitava é dividida em sete partes mais ou menos iguais. A escala padrão tem esta seqüência de notas: dó, ré baixo, mi muito baixo, fá alto, sol baixo, lá baixo, si muito baixo. Essa escala não tem um nome específico, nem existe qualquer registro teórico que possa atestar características humanas ou cósmicas a essas escalas ou a suas notas. Sabe-se que, devido à influência chinesa, no Laos e no Vietnã é comum que o quarto grau (fá alto) e o sétimo grau (si muito baixo) dessa escala básica sejam suprimidos para gerar uma escala pentatônica semelhante à escala kin (dó, ré baixo, mi muito baixo, sol baixo, lá baixo). 21 Com base nas fortes influências da cultura tradicional chinesa sobre a Indochina, o musicólogo Robert Lachmann acredita que a música atual da Indochina está mais próxima da antiga música chinesa do que a própria música da China atual. Conjuntos instrumentais Pin-peat são orquestras tradicionais cambojanas que acompanham cerimoniais religiosos, teatro e dança. Os instrumentos são bastante similares aos do gamelão, porém com nomes diferentes. A orquestra típica tem, geralmente, dois xilofones (roneat-ek e roneat-thung, grande com caixa de ressonância curva), dois carrilhões de gongos (kong-thom e kong-tuch, jogos de pequenos gongos em uma armação circular disposta em volta do músico), um ou dois sopros de palheta dupla (pi-nai e sra-lai), dois grandes tambores oblíquos, um pequeno tambor cilíndrico e um par de címbalos (ching). Grupos similares, chamados pi-phat, são comuns na Tailândia. Orquestras de cordas que atuam em rituais religiosos ou matrimoniais, são chamadas de phleng khmer5, no Camboja, e de khuarang sai, na Tailândia. Os instrumentos que constituem esses conjuntos podem ser bastante variados, dependendo da região ou da função que exerce. Uma formação comum é esta: um grande alaúde (tchapey), um monocórdio (sadev), duas rabecas (tro-khmer e tro-u), um oboé (pi-nai), uma flauta (khloy) e dois tambores. Há alguns anos, quase todas as aldeias cambojanas possuíam uma dessas orquestras. Uma orquestra típica da música de concerto indochinesa chama-se mahowri, a qual pode possuir dois ou três xilofones, instrumentos de cordas pinçadas (takhe e tchapey), instrumentos de cordas friccionadas (tro-khmer e tro- u), uma ou duas flautas (khloy) e vários instrumentos de percussão. Abaixo, alguns instrumentos cambojanos. 5 A expressão phleng khmer significa “música de casamento”. 22 Grupo musical cambojano do início do séc. XX Roneat Takhe Tro Kong-tuch Kong-thom 23 MÚSICA DA ÍNDIA Sabe-se pouco sobre os povos que habitaram a região da Índia, antes da chegada dos arianos por volta de 1.500 a.C. Supõe-se que havia alguma relação entre as culturas pré-arianas e as civilizações da Mesopotâmia e do Egito, devido a objetos similares encontrados em escavações arqueológicas. Ao chegarem, os arianos impuseram-se como casta dominante, ao longo de vários séculos. Sua cultura está fundamentada no culto védico, isto é, os Livros dos Vedas, que, em sânscrito, significa Livros da Sabedoria. Esses livros dedicam grande parte de seu texto à música religiosa. Os Livros da Sabedoria Ainda hoje, os vedas são as escrituras sagradas das principais religiões indianas, como o Hinduísmo. Considera-se que estejam entre os textos mais antigos, sendo que suas origens, transmitidas por tradição oral datam de antes de 3.000 a.C. Acredita-se que os textos começaram a se estabelecer em torno de 2.5000 a.C., tomando sua forma mais ou menos atual por volta de 1.000 a.C. Por volta de 200 a.C. foi escrito o último dos livros, que trata dos cultos aos deuses Brahma e Shiva. Foram escritos dezenas de livros, sendo que os cinco vedas principais são estes: 1. Rigveda (Sabedoria dos Hinos) – contém hinos em forma de recitativo, isto é, uma espécie de canto-falado em torno de três notas (dó, ré e mi) com predomínio de construção silábica, em que cada nota é cantada por uma sílaba; o principal tipo de canto é a pathya (recitação); 2. Sammaveda (Sabedoria dos Cânticos) – são cantos com vocalizações mais amplas, a partir de padrões rítmicos e melódicos predeterminados, sendo que pode conter alguns melismas de caráter solene; a forma musical predominante é a gita (canto ligeiramente melismático); 24 3. Atharvaveda (Sabedoria das Fórmulas Mágicas) – ??? 4. Yajurveda (Sabedoria das Fórmulas de Sacrifício) – ??? 5. Natyaveda (Sabedoria da Arte Dramática) – ??? Esses textos, repletos de hinos, cânticos, poemas, preceitos e narrativas, formam a base para a fundamentação das crenças, das fórmulas mágicas, dos rituais, das orações e dos princípios litúrgicos que determinam os princípios religiosos e a organização social dos hindus. Os quatro primeiros livros são dedicados à casta superior e o quinto livro refere-se às castas restantes. Neste livro, intitulado Nathya-Sastra e atribuído a Bharata no séc. II a.C., encontra-se o mais antigo texto teórico sobre a música indiana. Contém distinções entre a música vocal sacra, embasada nos quatro vedas tradicionais e dedicada ao deus ariano Brahma, e a música profana instrumental, dedicada a Shiva, deus autóctone cujo culto é anterior o período ariano. Livros posteriores, como Matanga e Dattila, ambos do séc. I a.C., também abordam as diferenças entre a música védica, consagrada a Brahma, e a música dedicada a Shiva, que pode ter caráter popular (chamada deshi e formada por danças, canções de amor e cantos eróticos) ou caráter cortesão. 25 Sistema de Talas O ritmo da música indiana é organizado em ciclos de tempo, denominados talas. Ao contrário da música ocidental – cuja rítmica é estruturada com base na divisão de uma duração em duas partes (divisão binária) ou em três partes (divisão ternária) –, o ritmo da música indiana é organizado por adição, em estruturas métricas que podem conter entre seis e dezesseis tempos. A seguir será realizada uma demonstração das diferenças entre o sistema de adição e o sistema de divisão. Sistema de divisão binária Abaixo, está representado o sistema ocidental de divisão binária. NÍVEL DIVISÃO 1 1º (semibreve) 1 2 2º (mímimas) 1 2 3 4 3º (semínimas) 1 2 3 4 5 6 7 8 4º (colcheias) No quadro acima, a nota do primeiro nível da estrutura (semibreve) divide- se em duas notas (mínimas), no segundo nível; cada uma das duas notas do segundo nível divide-se em duas, gerando quatro notas no terceiro nível (semínimas). Da mesma forma, cada nota do terceiro nível divide-se em duas, o que produz oito notas no quarto nível (colcheias). Esse processo poderia seguir, até gerar 32 notas (fusas) ou 64 notas (semifusas). Se a nota que compreende o total do tempo (a semibreve do primeiro nível) durasse oito segundos, haveria a seguinte relação de duração entre as notas: 26 NÍVEL DIVISÃO 1º 8” 2º 4” 4” 3º 2” 2” 2” 2” 4º 1” 1” 1” 1” 1” 1” 1” 1” Dito de outra forma: A semibreve dura 8 segundos; para saber a duração da mínima, deve-se dividir a semibreve por 2 → 8 : 2 = 4. Cada mínima dura 4 segundos; para saber a duração da semínima, deve-se dividir a mínimapor 2 → 4 : 2 = 2. Cada semínima dura 2 segundos; para saber a duração da colcheia, deve- se dividir a semínima por 2 → 2 : 2 = 1. No sistema de divisão tradicional do ocidente, combinações rítmicas mais complexas tornam-se impossíveis. O que levou músicos europeus, principalmente no século XIX e no século XX, a criar meios cada vez mais elaborados de quebrar essa quadratura rítmica imposta pelo sistema de divisão, através do uso de síncopes, contratempos, quiálteras, ritmos cruzados, compassos mistos, polirritmia, modulação métrica e incorporação de métodos aditivos oriundos da música oriental e da música africana. Sistema de adição Se o sistema ocidental tradicional limita as possibilidades rítmicas em valores que são divisíveis uns pelos outros, o sistema de adição da música indiana permite a criação estruturas rítmicas mais complexas já na sua origem, pois se pode adicionar qualquer valor a qualquer outro valor. Isso resulta em padrões rítmicos irregulares, com grupos de cinco, sete ou onze notas, por exemplo. 27 Conforme foi visto acima, no sistema de divisão, parte-se da nota mais longa (uma semibreve de 8”, nos exemplos anteriores) em direção às notas com duração mais curta. No sistema indiano, o processo é o oposto, parte-se da nota com menor duração e, por adição, chega-se às durações maiores. No exemplo utilizado acima, a totalidade de oito segundos da semibreve seria alcançada a partir da adição de grupos de colcheias, semínimas ou mínimas. O total resulta sempre em oito segundos: ⇒ 8 colcheias → 1” + 1” + 1” + 1” + 1” +1” + 1” + 1” = 8” ⇒ 4 semínimas → 2” + 2” + 2” + 2” = 8” ⇒ 2 mínimas → 4” + 4” = 8” ⇒ 1 semibreve → 8” As possibilidades rítmicas do que está demonstrado acima não são distintas do que foi demonstrado no sistema de divisão. A grande diferença está em que, no sistema de adição, é possível adicionar de forma irregular. Por exemplo, para alcançar um total de oito colcheias, pode-se adicioná-las destas maneiras, entre outras tantas possibilidades: ⇒ 1 + 2 + 2 + 1 + 2 = 8 ⇒ 2 + 1 + 3 + 2 = 8 ⇒ 3 + 4 + 1 = 8 ⇒ 3 + 3 + 2 = 8 6 A riqueza rítmica da música indiana reside ainda em outro aspecto: a sobreposição de diferentes métodos de organização das durações. Se um conjunto indiano toca com base em uma métrica (compasso) de oito tempos, cada um dos músicos pode realizar diferentes padrões de adição para alcançar os oito tempos resultantes. Isso produz ritmos cruzados e polirritmias eu tornam a rítmica da música indiana uma das mais elaboradas de todos os tempos. 6 Este ritmo (3+3+2) é bastante comum na música latino-americana, pela influência africana. Encontra-se, entre outros gêneros, na rumba de origem cubana, no baião de origem brasileira e na milonga de origem argentina. 28 Abaixo, estão alguns dos talas mais empregados atualmente: TALA Nº de Tempos Ordenação Tisra-jati triputa 7 3 + 2 + 2 Chaturasra triputa 8 4 + 2 + 2 Âdi-tala 8 4 + 2 + 2 Jhampa-tala 10 2 + 5 + 3 Jhap-tala 10 2 + 3 + 2 + 3 Chautala 12 4 + 4 + 2 + 2 Tisra-eka 12 4 + 4 + 4 Tritala 16 4 + 8 + 4 Deshadi 16 4 + 8 + 4 O Sistema de Ragas A base da tradição védica está na música vocal, que serve de modelo inclusive aos improvisos puramente instrumentais de outras tradições. Os nomes das sete notas da escala indiana são: sa, ri, ga, ma, pa, dha, ni. 7 Na tradição indiana, essas notas são associadas a cores, sons produzidos por animais e a elementos humanos (a alma, diferentes partes do corpo e os centros de energia denominados chakras), conforme está no quadro abaixo. 7 A distribuição dos intervalos da escala básica (sa-grama, isto é, escala de sa) assemelha-se ao Modo Dórico ocidental. Por isso, a maneira mais simples de transcrever os nomes das notas para a nossa nomenclatura seria iniciando pela nota ré: sa (ré), ri (mi), ga (fá), ma (sol), pa (lá), dha (si), ni (dó). Alguns autores preferem transcrever sa como dó e adicionar bemóis onde for necessário: dó- ré-mib-fá-sol-lá-sib. 29 NOTA COR ANIMAL HOMEM CHAKRA Sa Vermelho Pavão Alma Sahasrar Ri Laranja Búfalo Cabeça Agya Ga Amarelo Bode Braços Anahat Ma Verde Cegonha Peito Manipura Pa Turquesa Cuco Garganta Swasdhishthan Dha Azul Cavalo Ancas Muladhar Ni Lilás Elefante Pés Vishuddha Na música indiana atual, há duas grandes tradições: Sistema Carnático e Sistema Hindustani. Este, proveniente da Índia do Norte, sofreu várias influências devido às invasões estrangeiras e ao contato com chineses, persas, gregos, mongóis e árabes. Predominam escalas pentatônicas, relacionadas aos cinco elementos: água, terra, fogo, ar e éter8. Nas escalas pentatônicas, cada uma das notas tem a capacidade de evocar um desses elementos. O Sistema Carnático é considerado mais puro do que o Hindustani, pois segue de forma mais rigorosa os ensinamentos do Sammaveda, seguindo antiga tradição que remonta cerca de 3.000 anos. Há quem diga que, na Índia do Sul, são conhecidas milhões de escalas, cada uma com suas características próprias que se diferenciam das demais. Juntamente aos padrões rítmicos (talas), são empregados ragas 9 , padrões melódicos que servem de base para construção de melodias tradicionais e para a improvisação. Sobre esses modelos (talas e ragas), a música indiana é amplamente improvisada em ciclos de tempo, através do acréscimo de vários níveis de complexidade produzido pelo diálogo entre os músicos. Cada raga tem suas próprias características melódicas e deve ser tocado em certa estação do ano e em determinado momento do dia para produzir estados de alma específicos nos ouvintes. 8 Na China, os elementos também são cinco, porém dois deles são diferentes: em vez de éter e ar, estão madeira e metal. Nas tradições ocidentais, os elementos são quatro: água, terra, fogo e ar. 9 O vocábulo raga deriva da palavra ranja, que significa ‘cor’, em sânscrito. 30 Segundo a tradição, todo o sistema está embasado em seis escalas originárias (jatis), consideradas puras, que, em combinação com escalas ‘mistas’, formaram o complexo sistema de ragas que perdura até a atualidade. Considera- se que um total de 126 ragas foi utilizado para a composição das melodias tradicionais e atualmente servem de base para improvisações. Dependendo da forma como foram derivados das escalas originárias (reis), os ragas são considerados como raginis (rainhas) ou putras (príncipes). Segundo Yogananda 10 , os seis ragas básicos são estes: • Hindole-raga – deve ser tocado na primavera, à noite, para evocar sentimentos relativos ao amor universal; • Deepaka-raga – deve ser tocado no verão, ao anoitecer, para instigar os ouvintes à devoção religiosa e à piedade; • Megha-raga – deve ser tocado ao meio-dia, na época das monções, para incitar sentimentos de coragem e firmeza de espírito; • Bhairavi-raga – toca-se nas manhãs de agosto, para estimular a calma e a serenidade de espírito; • Sri-raga – deve ser tocado no outono, ao entardecer, e sua função é conduzir o ouvinte a estados de amor puro; • Malkounsa-raga – deve ser tocado no inverno, à meia-noite, para despertar senso de bravura e fazer os ouvintes valorosos. O sistema indiano foi constituído ao longo de séculos, através de acréscimos e supressões de notas às escalas básicas e por meio da criação de novos modelos melódicos. Existem vários tipos de escalas, com diferentes números de notas: pentatônicas (5 sons), hexatônicas (6 sons), heptatônicas (7 sons), octatônicas (8 sons),eneatônicas (9 sons) e decafônicas (10 sons). Se na teoria são consideradas apenas as escalas pentatônicas, hexatônicas e heptatônicas, na prática, a incorporação de notas ornamentais às escalas básicas tornou-se tão usual que são considerados parte essencial dos ragas. Isso, acrescido à divisão da oitava em vinte e dois sons (shrutis), faz com 10 YOGANANDA, Paramahansa. Autobiografia de um iogue. Rio de Janeiro: GMT, 2006, p. 173. 31 que o sistema musical indiano seja um dos mais ricos e complexos já elaborados por qualquer civilização, em qualquer época. Entre as características mais importantes dos ragas, estão: • tipo de escala – pentatônica (5 notas), hexatônica (6 notas), heptatônica (7 notas), octatônica (8 notas) etc.; • constituição intervalar – intervalo de cada grau da escala com relação aos demais; • nota inicial – som que dá início à melodia; • nota final – som que finaliza a melodia; • nota central – nota que dá movimento à melodia e serve para finalização, nas cadências interiores; • modelos melódicos – são padrões melódicos típicos de cada raga; • modelos de ornamentação – são notas ou padrões típicos de ornamentação, que identificam determinado raga. A textura da música indiana é, geralmente, organizada em três partes principais: melodia vocal, ritmo com instrumentos de percussão e acompanhamento instrumental de caráter melódico. No tipo mais comum de estrutura, a linha vocal e a parte rítmica desdobram-se sobre um bordão (nota fixa). A combinação desses elementos caracteriza uma textura preferencialmente heterofônica, com aspectos polifônicos. Do ponto de vista da estrutura, grande parte dos gêneros da música indiana inicia com uma introdução dos elementos mais característicos do raga. Esta introdução, denominada Alap, realiza-se sem acompanhamento nem precisão rítmica, sendo que a métrica torna-se progressivamente mais definida na segunda parte, chamada de Jor. Aos poucos, são adicionadas durações de ritmo mais breves, que tornam o tempo mais rápido e preparam a terceira parte, chamada Jhala. Nessa parte, ocorre o ápice da música, com ritmos agitados e escalas muito rápidas. Se os músicos sentirem necessidade, podem acrescentar uma pequena parte com função de finalização, denominada Gat. 32 As relações entre os diferentes graus das escalas indianas seguem um rigoroso princípio hierárquico em quatro categorias, que equivalem ao sistema social do Hinduísmo: • Vadi: é a fundamental do modo – na escala sa-grāma: nota sa, que corresponde ao Rei, na hierarquia social; • Samavadi: são as consonâncias de 9 shrutis (4ªJ) e 13 shrutis (5ªJ) – representadas, na escala sa-grāma, pelas notas ma e pa, que correspondem aos Ministros do Rei; • Anuvadi: são as assonâncias de 5 shrutis (3ªm) e 16 shrutis (6ªM) – na escala sa-grāma: notas ga e dha, que correspondem aos Súditos do Rei. • Vivadi: as dissonâncias de 2 shrutis (2ªM) e 20 shrutis (7ªm) – na escala sa-grāma: notas: ri e ni, que equivalem aos Inimigos do Rei; Comentários de Alain Daniélou A seguir, comentários do musicólogo Alain Daniélou11 sobre alguns dos ragas mais praticados no último século. Bhairavi “é geralmente tocado pela manhã; reflete sentimentos de plenitude, calma, satisfação e ternura”.12 Sindhi-Bhairavi “é um modo mais versátil, mais agitado e mais apaixonado que o Bhairavi, porém também mais leve”. Bhimpalashri “é um modo terno e gracioso, geralmente tocado próximo ao final da tarde”. Ahiri-lalita “é tocado ao nascer do sol. A expressão é de alegria e frescor”. Malkosh “é um modo pentatônico, geralmente tocado à noite e corresponde aos sentimentos de paz, devoção, calma alegria e representa as noites estreladas”. 11 DANIÉLOU, Alain. Anthologie de la musique classique de l’Inde. Paris: Audivis/Unesco. Encarte CD, p. 34-43. 12 As citações entre aspas são comentários de Daniélou sobre as características de cada raga. 33 Todi “é um modo cromático sutil que se toca de manhã e representa a sensualidade, o prazer, o amor”. Varali “é um modo com tendências pentatônicas, que pertence à família dos modos Todi do Norte”. Multani é “um modo sutil e suave, tocado à tarde. A escala é semelhante à do modo Todi, mas a organização das notas difere ligeiramente”. Dhanyasi “é um modo matinal que representa uma atmosfera de graça e ternura”. Kamavardhani, “também conhecido como Purvi, é um modo cromático delicado, que geralmente é tocado ao pôr do sol e representa os mistérios da noite”. Mauj-Khammaj “é uma variedade de modo Jônio, tocado ao anoitecer. É um modo límpido e sorridente, às vezes irônico, mas com um leve toque de nostalgia”. Suha-Kamode “toca-se geralmente à noite e representa um humor leve e sensual, a fantasia de uma corte civilizada”. Mecha-Kalyani “é um modo alegre, preferencialmente tocado à noitinha”. Kambhoji “é equivalente ao modo Jônio. É um modo tocado ao entardecer e à noite, sendo amplamente empregado na música religiosa”. Yadukula Kambhoji “é uma variação do Hari-Kambhoji. Todas as formas do modo Kambhoji são tocadas ao entardecer e exprimem louvor. Yadukula serve para exprimir tanto a forma humana quanto a forma mística do amor”. Khamas “é uma variante do modo Hari-kambhoji. Os sentimentos são o amor e a angústia da separação”. Râga-Mâlikâ “é uma composição na qual os modos mudam constantemente, fazendo uma ‘guirlanda de modos’ antes de retornar ao modo original”. 34 Purandara Dasa, fundador do Estilo Carnático no séc. XVI. Pandit Kamalesh Maitra Ravi Shankar
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