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ARTESANATO: UMA ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA DA AGRICULTURA FAMILIAR? Andréia Terzariol Couto1 RESUMO : Hoje, o artesanato tradicional ainda sobrevive no campo, mas com características novas: ao mesmo tempo em que se tem procurado resgatar as tradições camponesas dos objetos manufaturados de determinadas regiões, difundidos principalmente pelo turismo, procura-se acelerar sua produção em uma escala cada vez maior para atender as demandas desse mesmo turismo. É o velho que ganha status de novo no mundo rural. Este trabalho procura mostrar, através de um estudo de caso, como uma região, tradicionalmente agrícola e com uma produção artesanal que sempre esteve ligada à sua sobrevivência, tem agora na confecção desses produtos, no bojo da exploração do turismo rural, uma nova e eficiente forma de amparar sua sobrevivência no campo, transformando-se em uma estratégia para a permanência das famílias no campo. T e rmos p ara indexação : artesanato rural; atividades rurais não agrícolas; agricultura familiar INTRODUÇÃO Atividades não agrícolas hoje tomam conta do meio rural, principalmente em algumas regiões brasileiras. Se essas atividades já não são novidade em países desenvolvidos, no Brasil começam a chamar a atenção dos pesquisadores com seu crescente avanço. No entanto, atividades não agrícolas no meio rural não são recentes: os camponeses, dada a precariedade e pobreza que sempre caracterizou sua existência, o distanciamento e mal conservação das estradas e meios de locomoção insuficientes que os separavam dos núcleos urbanos, eram forçados à produção de objetos e utensílios domésticos para sua própria utilização. O presente trabalho busca analisar, através de um estudo de caso, as atividades não agrícolas desenvolvidas pela agricultura familiar em uma pequena vila - Cachoeira do Brumado, município de Mariana, M.G. Trata-se de discutir essa agricultura tentando focalizá-la paralelamente ao desenvolvimento de outra atividade, o artesanato. Para a análise do trabalho, procurou-se observar a comunidade como um todo, ou seja, desde aspectos de vida comunitária, as atividades artesanais, até o cultivo da terra e as relações de trabalho. Para tanto, em um primeiro momento, é feita uma descrição da vila, salientando-se suas raízes agrícolas, bem como a atividade artesanal, praticada por grande parte da comunidade, aqui analisada como uma possível estratégia de sobrevivência da agricultura familiar local, que tem na produção de manufaturas uma fonte de renda que vem se tornando cada vez mais imprescindível para os pequenos agricultores da região. O DEBATE SOBRE O RURAL/URBANO FRENTE ÀS NOVAS PERSPECTIVAS DA PLURIATIVIDADE É nesse novo contexto que será colocada a discussão das novas estratégias de reprodução da agricultura familiar, onde a pluriatividade, representada aqui pelo artesanato e turismo praticados pelos agricultores de Cachoeira do Brumado, será focalizada. Tomamos aqui a noção de exploração familiar, desenvolvida por Lamarche (1987, p. 444), como sendo a unidade de produção onde propriedade e trabalho estão intimamente ligados à família. A interdependência desses três fatores no funcionamento da exploração engendra necessariamente a aparição de noções mais abstratas e complexas tais como patrimônio e reprodução da exploração. O objeto central do trabalho é apresentar as atividades tradicionais não agrícolas inseridas em uma nova realidade rural brasileira, de forma reestruturada, como sendo parte de estratégias da agricultura familiar, tomando o artesanato como atividade que melhor exemplifica essa situação. Muitas vezes, não encontrando soluções no âmbito da produção agrícola, muitos agricultores optam pela solução da pluriatividade. É essa combinação de atividades, de que fala Perret (1995, p. 78), que lhes permite sobreviver. A noção de pluriatividade adotada neste trabalho é aquela definida por Carneiro (1992): "atividades complementares ou suplementares à produção agrícola, exercidas por um ou mais membros de um grupo doméstico "(p. 1). Outro termo ligado a essa discussão, embora não tão _________________________ 1 Doutoranda da FEAGRI – Faculdade de Engenharia Agrícola – UNICAMP; E-mail: couto@turing.unicamp.br; beatrice.moellic@u-paris10.fr preciso quanto "pluriactivité" é "part-time farming". De acordo com Robert (1986, p. 6), há apenas alguns anos que se pensa seriamente na distinção entre rural e agrícola. Durante décadas, a sociologia rural foi uma sociologia de agricultores, e tanto empiristas quanto marxistas tinham esse mesmo ponto de vista. Mas a transformação do espaço rural e da ruralidade camponesa foram aos poucos mudando o enfoque das análises, mostrando que a essa transformação estavam ligadas algumas atividades que antes eram tidas como eminentemente urbanas. Assim, sem abandonar o estudo dos agricultores e da agricultura, a sociologia rural voltou-se também para atividades do rural não agrícola. Mas a delimitação da fronteira entre rural e urbano ainda permanece em discussão. Em uma revisão sobre a questão da ruralidade, Kayser (1990) apresenta as principais definições de mundo rural que ocuparam o debate acadêmico europeu e o norte americano ao longo de três décadas, desde Mendras (1965), passando por Lefebvre (1970), Maho (1974), Moss (1980), até Chamboredon (1985), ressaltando uma "perpétua oscilação" entre as definições do que é rural e urbano, que ora convergem para a dicotomia, ora para o continuum, tendo esta última raízes antigas, plantadas no referencial teórico antropológico. De acordo com esse autor, é preciso tomar a questão com cautela, apontando que "a ruralidade não é nem o contrário da urbanidade, nem seu prolongamento; nem a degradação de seu estado antigo, nem seu ressurgimento" (p. 95). Para ele, não se pode falar de mundo rural sem falar dos agricultores, reconhecendo seu lugar e papel nesse espaço, tomando cuidado, no entanto, para não reduzir a análise do campo de estudo à "sociedade camponesa" (p. 96). Sobre a discussão a respeito da pluriatividade, embora autores como Lamarche (1982;1984), Long (1986), Van der Ploeg (1986), Marsden (1990), entre tantos outros, já estejam trabalhando há algum tempo com noções de pluriatividade e o processo de "commoditização" na agricultura familiar, no Brasil somente recentemente o debate foi incorporado em setores restritos do nosso meio acadêmico, como por exemplo, em trabalhos de Graziano da Silva (1997), Schneider (1995), Sacco dos Anjos (1995) e Seyferth (1992). Surge para explicar um processo que vem sendo observado no meio rural, onde cada vez mais atividades então tidas como sendo estritamente urbanas, têm ocupado aquele espaço. Hoje a situação observada é de uma intensificação cada vez maior, na zona rural, seja entre a agricultura familiar, seja fora dela, das atividades não agrícolas2, e não estamos falando, mesmo na situação brasileira, de casos isolados. Podem ser percebidas desde o setor hoteleiro, através de hotéis-fazendas ou spas, até clubes ou chácaras de aluguel para fins de semana. Em setores não tão capitalizados, as atividades não agrícolas também existem, e há mais tempo do que se tem feito parecer, embora em um outro nível de capitalização. Se na antigüidade populações camponesas lançavam mão de atividades não agrícolas, não somente como "estratégias adaptativas", mas também como forma de sobrevivência do seu dia-a-dia (a construção de balaios para o transporte da colheita até o mercado, por exemplo), hoje as populações rurais, no mesmo intuito de elaborar estratégias de sobrevivência, continuam suas atividades não agrícolas, adaptando-as ao sabor dos novos tempos: se têm caixas de papelão para o transporte de sua carga, o balaio - se o considerarmos como fazendoparte de um processo cultural, do qual não deixará de ser fabricado - tem agora outro destino: o mercado, não mais como objeto de transporte, mas como artesanato. Passa a ser uma mercadoria, através do processo de mercantilização. No que se refere à complementaridade ou não dessas atividades à agricultura, atividades que não estavam necessariamente ligadas à complementaridade agrícola da vida camponesa, como as do ferreiro, carroceiro, ferrador, poderiam constituir parte da identidade social camponesa do passado. O termo pluriatividade, analisado à luz do campesinato do século passado, talvez não possa explicar certas atividades paralelas como parte de sua identidade social, pois talvez as atividades acima citadas fossem demasiado especializadas e recobrissem com certo status aqueles que as detinham (Carneiro, op. cit., p. 5). Por outro lado, se pensarmos nesses termos, a "identidade do camponês" estaria restrita a um campo de batatas. Levando- se em conta a estreita ligação entre o camponês e seus instrumentos de trabalho, restringi-lo a uma esfera onde somente pudesse manipulá-lo (sem poder confeccioná-lo ou consertá-lo), dadas as condições de isolamento em que viviam, seria restringir sua própria identidade. Vista dessa forma, a pluriatividade, não como a discutimos hoje, mas sob a ótica do camponês-artesão, poderia estar presente no seu cotidiano. No entanto, a discussão atual sobre o tema leva-nos para a análise da reelaboração de certas atividades que, embora já fizessem parte da identidade camponesa do passado, _______________________ 2 M. Mathieu, 1997. hoje, frente a um novo processo produtivo, passam por uma reestruturação. Se considerarmos determinadas atividades não-agrícolas, como por exemplo, o artesanato, a análise poderia partir de que, mais que um rendimento extra da unidade familiar, este fazia parte do seu cotidiano de trabalho, uma vez que muitos objetos eram confeccionados visando seu valor de uso (panelas, balaios, tapetes, colchas), e não seu valor de troca. Fabricá-los, mais do que dar continuidade a um legado dos antepassados, significava mais conforto, menos gasto, mais comodidade ou mesmo como única saída, dado o nível de isolamento de algumas populações rurais. Surge então o artesanato, revalorizado sob nova forma, abrangendo novos espaços de mercantilização. Ao deslocarmos a análise desse mesmo caso de pluriatividade como fenômeno recente, poderíamos dizer: a atual crise da agricultura, com todas as suas conseqüências, "forçou" certas camadas da população rural a definir-se por dar continuidade, como estratégia de sobrevivência e reprodução social, a uma atividade que sempre exerceu, para seu próprio uso, e reorientá-la, agora, para uma atividade econômica extra, ou, melhor dizendo, para uma nova atividade econômica, independente. Para poder driblar a crise decorrente da modernização, o camponês reinventa sua profissão, busca novas alternativas para poder permanecer no campo. Em seu trabalho As transformações recentes da agricultura familiar no R.S., Schneider (1995) fala das transformações do processo produtivo e da organização familiar do trabalho, em uma região onde a agricultura já não é mais a única e até mesmo a mais importante atividade, mostrando que, apesar de não se observar uma intensificação no uso tecnológico, os índices econômicos apontam para um expressivo desenvolvimento. A explicação para tal fato pode ser dada por dois fatores aparentemente antagônicos: as transformações no processo de produção agrícola e as formas de reprodução da agricultura familiar, quando surge um novo tipo de agricultura - a "agricultura em tempo parcial". De acordo com Graziano da Silva (1996, p. 3), "já não se pode falar de mundo rural identificando-o exclusivamente com a agricultura". O autor aponta que, a partir dos anos 80, atividades agropecuárias tradicionais não davam conta de explicar, sozinhas, a dinâmica do emprego e da população no Estado de São Paulo. Dever-se-ia levar em conta variáveis como atividades rurais não-agrícolas, decorrentes da crescente urbanização do campo, como moradia, lazer, turismo e outros serviços, além de atividades de preservação do meio ambiente, pequenos negócios ligados aos agropecuários intensivos (piscicultura, horticultura, floricultura, fruticultura de mesa, criação de pequenos animais, etc), todos em busca de "nichos de mercado" propícios à sua inserção econômica no mercado. Sua conclusão é de que o estado de São Paulo não pode mais ser avaliado somente pelo conjunto de atividades agropecuárias e industriais, pois vem ganhando "novas funções". Essa expansão de "novas atividades rurais", agrícolas e não agrícolas, vem propiciando novas oportunidades para pequenos produtores (Graziano da Silva, 1997, p. 3). Chamar de "novas" essas atividades significa dizer, também que, embora muitas delas sejam seculares, no entanto somente há pouco tempo vêm ganhando importância como atividades econômicas. Tidas anteriormente como "atividades de fundo de quintal", passaram a alternativas de emprego e renda no meio rural, muitas vezes envolvendo verdadeiras cadeias produtivas, serviços pessoais e produtivos relativamente complexos e sofisticados no ramo da distribuição, comunicação e embalagens (p. 18). Tendo em vista os novos rumos que vem tomando o meio rural, o presente trabalho insere as atividades tradicionais não agrícolas relacionadas à nova realidade rural brasileira, de forma reestruturada, como sendo parte de estratégias de reprodução da agricultura familiar. O artesanato talvez seja um dos melhores exemplos para trazer a discussão, visto que sempre esteve ligado, de uma forma ou de outra, à vida camponesa, seja do camponês clássico, seja do nosso "caipira" do interior. Como atividade não agrícola, faz parte do seu cotidiano como forma alternativa de aquisição de produtos que não pode adquirir no mercado; seja manifestação artística-cultural herdadas dos antepassados e que querem preservar. O fato é que sua presença é uma realidade presente entre muitas do meio rural. O que se pode salientar dessa atividade, hoje, é sua incorporação como valor de troca, inserida como atividade de renda e estratégica para sua reprodução social. Pretende-se aqui trazer para o debate o fato de que atividades tradicionais não agrícolas, como o artesanato, estão passando por um processo (lento, às vezes imperceptível) de reestruturação, que o coloca junto - e associado a outras atividades, como o turismo rural - à discussão rural-urbano. Nesse sentido, a atual discussão da pluriatividade como uma estratégia de sobrevivência da agricultura no campo é reforçada aqui. É nesse sentido que fazemos referência ao artesanato, que sempre existiu entre os agricultores familiares da região e que esporadicamente era vendido a algum visitante ocasional da comunidade. Com a incrementação do turismo rural, aumentou a demanda pelos produtos da terra, não somente o artesanato, mas as compotas de doce, queijos, pimentas curtidas, pão caseiro e mais uma sorte de produtos "da roça" avidamente cobiçados pelos turistas citadinos. ATIVIDADES RURAIS NÃO-AGRÍCOLAS EM CACHOEIRA DO BRUMADO O setor rural do município de Mariana está distribuído em 1198 km2. A população total do município é de 38.113 habitantes, sendo que 30.257 estão na região urbana e 7.856 na zona rural (censo 1991). O local escolhido para o estudo de caso, Cachoeira do Brumado, faz parte do município de Mariana, distante deste último 27 quilômetros e 112 quilômetros de Belo Horizonte. Segundo o Censo do IBGE de 1980, a população rural do distrito de Cachoeira do Brumado era de 1146 pessoascontra 976 do total que habitava o núcleo urbano, em comparação aos 934 (população rural) e 1103 (população urbana) do censo de 1991. Possui ao seu redor grupos de pequenas povoações, possuindo cada uma delas algumas propriedades rurais, cujo tamanho varia entre 0,5 a 50 hectares. A região de Cachoeira do Brumado, além da pequena vila, é formada por agrupamentos de propriedades rurais - ou bairros rurais - denominados pelas pessoas do local de ”cantão“, que antigamente faziam parte de grandes fazendas que se desmembraram. O que os moradores de Cachoeira do Brumado denominam para seus agrupamentos fora do núcleo central da vila - ”cantão“ - pode ser caracterizado por ”bairro rural“. De acordo com Fukui (1979), ”as unidades menores de vida social, no meio social brasileiro, são os grupos de localidade, as comunidades e os bairros rurais“ (p.81). A discussão em torno desses agrupamentos já possui certa tradição na bibliografia: Queiroz (1976) faz importante trabalho a respeito dos bai rros ru rais paul istas , cuja definição, segundo a autora, é dada ”pela sua forma específica de implantação no solo - um ‘habitat’ disperso centralizado por pequeno núcleo de habitações em torno da capela - e pelos vínculos sociais que unem seus membros“ (p.133), sendo ”a dinâmica interna dos bairros rurais diferente da urbana e da região a que pertencem“ (p. 141). O primeiro autor a mostrar interesse pela discussão sobre esses pequenos agrupamentos rurais, que não sendo uma vila tampouco eram somente grupos de sítios, pois possuíam características próprias, foi Cândido (1964). A denominação de bairro rural era encontrada nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, sendo a ”configuração social intermediária entre a família, de um lado, e de outro lado o arraial, ou a vila, ou a cidadezinha“. Situar o bairro rural nesse contexto explica-se por tentar buscar junto a essas formas específicas de solidariedade e ajuda mútua que caracterizam o bairro rural argumentos que ajudem a compreender os mecanismos que regem as estratégias de permanência da agricultura familiar, mesmo frente a fatores que aparentemente a desestimulariam, como baixa produtividade, abandono pela assistência técnica; concorrência de produtos agrícolas vendidos mais baratos em Mariana. Esses laços de solidariedade, esse associativismo informal, juntamente com a atividade artesanal, seriam as escoras que ainda permitiriam esses agricultores familiares a permanecerem em suas terras. Deve-se levar em conta ainda o assalariamento parcial das famílias, que buscam emprego em Mariana, uma outra estratégia de permanência, e não um abandono paulatino da terra, como sugerem alguns autores. Por fim, representa papel fundamental na tentativa de permanência a prática do autoconsumo. Além dos aspectos físicos e geográficos, as relações mantidas não somente dentro dos bairros mas entre eles, fortalece algumas práticas de solidariedade e a manutenção de certos costumes, reforçando laços de ajuda como compadrio, que se expressa tanto nas horas de ajuda mútua, como na troca de dias de serviço na lavoura, ou mutirões de construção. As transformações mais marcantes junto às atividades não-agrícolas no âmbito da agricultura familiar na região começam a ser observadas a partir da década de 80, na verdade oriundas de um processo anterior, iniciado na década de 70, como conseqüência da modernização da agricultura. Esta atingiu amplamente os agricultores familiares, cujo padrão tecnológico não foi alterado e, excluídos do processo modernizador, deixaram a região ou então buscaram o assalariamento de parte da família como uma possibilidade de permanência em suas terras. No entanto, as conseqüências da modernização já se faziam sentir na agricultura familiar de maneira a desestruturar suas formas organizativas de trabalho e somente o assalariamento parcial da família já não conseguia responder às suas necessidades. Assim, dessa alternativa, passaram também a exercer, agora com transformações no processo produtivo, o artesanato, impulsionado pelo aumento do fluxo do turismo rural na região no início dos anos 80. Dessa forma, agricultores que tradicionalmente já exerciam suas atividades junto à família, passaram a fazê-la, então, como uma nova estratégia de sobrevivência e permanência em suas terras. ATIVIDADES ECONÔMICAS: AGRICULTURA E ARTESANATO É a partir das especificidades que cercam a agricultura familiar que são colocadas, a seguir, alguns aspectos desse setor em Cachoeira do Brumado, salientando-se duas características essenciais dessa agricultura: a mão-de-obra familiar, ocupada tanto em tempo integral como parcial, e a posse da terra. A mão-de-obra familiar é utilizada em todas as propriedades pesquisadas e pode ser dividida em: ocupação total na lavoura; ocupação parcial lavoura/artesanato; ocupação parcial lavoura/outras atividades, sendo que essas últimas restringem-se a trabalhos assalariados em grandes propriedades locais ou serviços prestados na cidade de Mariana. Os pequenos agricultores de Cachoeira do Brumado cultivam produtos tradicionais, como milho, arroz, feijão, mandioca, cana-de-açúcar, café, banana e leite,o primeiro indispensável no seu dia-a-dia, tanto em relação à sua própria dieta quanto à comercialização. Sendo a mão-de-obra essencialmente familiar, não cultivam grandes lavouras, pois não podem contratar trabalho assalariado e têm na troca de serviço, a solução para esse problema. A maioria das propriedades rurais da região é formada por áreas que variam de 10 a 50 hectares, cujas condições de cultivo, adubação, combate às pragas e armazenagem se dão de forma bastante rústica. Os produtos são acondicionados em precários paióis ou então em balaios dentro das próprias casas. Alguns agricultores possuem moinho d’água para a produção do fubá que, separado o que será consumido pela família, comercializam o restante na vila ou nas feiras livres de Mariana. A maioria dos agricultores diz não comercializar seus produtos nos mercados da cidade e apresentam como justificativa a baixa produtividade nas colheitas, pouca terra para plantar, com pouca tecnologia e nenhum incentivo por parte do governo. O resultado é uma produção para a satisfação das necessidades do consumo familiar, quase não havendo excedentes para a comercialização. Vem agravar essa situação o parcelamento das terras por herança pois, longe de utilizarem um sistema semelhante ao dos agricultores do Sul, as terras da região são a cada geração fatiadas e distribuídas entre os filhos. De acordo com Seyferth (1985/1992), o sistema de herança praticado no local onde desenvolveu sua pesquisa, na região Sul, dá-se da seguinte forma: "Existem três tipos mais comuns de exclusão de herdeiros: a) as mulheres em geral nao herdam a terra (para os descendentes de italiano essa é uma regra rígida; entre os alemães há certa flexibilidade e às vezes o herdeiro da colônia pode ser uma mulher); b) o herdeiro pode ser o primogênito ou o filho caçula (mais freqüentemente este último); c) o herdeiro pode ser escolhido pelo pai". Além disso, são comuns os entendimentos entre os irmãos, que fazem arranjos os mais diversos, incluindo até a compra de parcelas por um deles. Com o tamanho do lote diminuindo cada vez mais, são obrigados a buscarem em outros locais e atividades, aquilo que não conseguem a partir de sua própria terra. Somados aos fatores acima citados, este é mais um que vem dificultar a permanência dos agricultores no campo. Como não é uma região industrializada e a distância de grandes centros urbanos é grande, recorrem ao assalariamento de parte da família, empregando-se as filhas muitas vezes como empregadas domésticas ou pequenos serviços na cidade mais próxima, Mariana, permanecendoos pais e os filhos mais novos no cultivo e artesanato. Nesse sentido, a produção agrícola passa a ter um valor exclusivo de autoconsumo, enquanto a renda vem de fora do lote, de outras atividades, sejam elas assalariadas ou autônomas. Cachoeira do Brumado, assim como a maioria dos distritos que fazem parte do município de Mariana, tem no artesanato uma de suas principais atividades, aliado à agricultura. O resultado final do artesanato vem sob a forma de renda monetária. Mas essa atividade não pode ser vista apenas como uma fonte complementar de renda. Ela é parte de uma estratégia de permanência dos agricultores em suas terras, ao lado do emprego de alguns membros da família como assalariados. Anteriormente integrada à vida camponesa para confecção de produtos utilizados cotidianamente, passa a ser aos poucos uma complementação da renda, ao lado da agricultura, até se transformar, hoje, em uma nova atividade, independente da agrícola, podendo ser considerada como parte de um novo sistema produtivo, fixado fora da agricultura. A exemplo de muitas regiões do nordeste brasileiro3 que aliam o _________________________ 3 As rendeiras de Cimes (PE), compartilham o artesanato com o trabalho nas roças de feijão, mandioca e milho. Globo Rural, junho de 1997. artesanato à agricultura, o setor artesanal no meio rural de Cachoeira do Brumado é tão antigo quanto suas roças de milho. A fabricação de panelas de pedra e tapetes se confunde com as primeiras formações de lavoura na região. Inicialmente manufaturadas para utilização própria, a confecção dos tapetes viu chegar as fibras sintéticas provenientes da Bahia, os retalhos de tecido oriundos das fábricas de Belo Horizonte, substituindo pouco a pouco as fibras naturais. Com as panelas de pedra não foi diferente: os tornos mecânicos movidos pelas quedas d'água deram lugar ao torno elétrico e os burricos, com as tradicionais cestas, foram substituídos pelos caminhões no transporte das pedras. O trabalho artesanal é desenvolvido por todo o distrito, sendo que cabe aos homens a confecção das panelas de pedra-sabão e às mulheres a dos tapetes de sisal (chamados de tapetes de pita). Tanto um como o outro são produtos que os habitantes do local aprendem a fazer ainda crianças, sob a orientação dos pais. Da pedra-sabão, além das panelas, são feitas várias peças decorativas, muito conhecidas na região, que alcançam preços elevados a partir do momento que deixam o distrito. O artesanato hoje está intimamente ligado a uma outra atividade não-agrícola que tem contribuído para impulsionar a economia local: o turismo. Os turistas são atraídos pelas cachoeiras, córregos, trilhas, montanhas, paisagem bucólica, comida típica e o artesanato. O distrito conta com certa infra-estrutura que começa a se desenvolver, voltada para esse público, como pousadas, restaurantes, bares, lojas de artesanato. Isso em um local que, até meados dos anos 80, era bem pouco visitado por pessoas de fora do município. Hoje é procurado por turistas do Brasil e do exterior que tomam conhecimento de Cachoeira do Brumado por intermédio dos guias turísticos de Ouro Preto e Mariana. Também pessoas vindas de Belo Horizonte procuram um refúgio para férias ou fins de semana, contribuindo para a mudança da paisagem através da construção de casas de veraneio. Do ponto de vista do emprego, essa mudança tem proporcionado alterações, ainda que modestas, nas atividades assalariadas, pois com a vinda desses novos personagens vem também a necessidade de novos serviços, como diaristas (arrumadeiras, cozinheiras, lavadeiras), além dos jardineiros, caseiros. São também esses "moradores de temporada" que consomem os produtos das roças e quintais dos pequenos agricultores, desde os produtos in natura até compotas de doces, massas de tomate caseiras, pimentas curtidas, queijos, licores e uma grande variedade da culinária mineira. O pequeno agricultor que basicamente planta para a subsistência da família, sempre dividiu seu trabalho e o de sua família com as atividades manufatureiras. Nesse sentido, pode-se dizer que mesmo mínima, a renda que conseguia do artesanato colocava essa atividade como fundamental para sua sobrevivência. Esse "part time farmer" sempre compartilhou seu trabalho agrícola com atividades não agrícolas, com a diferença de que hoje, ao invés de utilizar a produção não agrícola para gerar renda complementar, essa última vem se tornando cada vez mais importante na vida dos agricultores, podendo ser considerada como uma atividade totalmente desvinculada, independente, da agrícola. Hoje, ao invés de utilizar seus produtos como utensílios domésticos ou mesmo ficar à espera de um comprador ocasional que passe à sua porta, ou entregar seus produtos para serem vendidos por terceiros em lojas da cidade, o agricultor-artesão tem cada vez mais assumido o seu negócio, tomando consciência que essa pode ser uma atividade lucrativa. Os que têm a sorte de morar próximos ao núcleo do distrito, transformam as salas de suas casas em lojas, utilizando sua antiga produção não agrícola para gerar renda monetária. Em algumas localidades rurais, devido à sua proximidade com grandes centros urbano-industriais ou mesmo agroindustriais, o trabalho rural tem se tornado cada vez mais permeado pela transformação do processo produtivo. O que faz colocar determinadas atividades não agrícolas no rol de novas atividades realizadas no meio rural? As atividades não agrícolas que devem ser analisadas hoje são apenas aquelas permeadas por um processo produtivo que tem seu ponto máximo nos CAIs indo até os difundidos pesque-pague? O que permeia o novo? São as suas formas de organização? Outro aspecto importante diz respeito (e aqui entra a questão cultural) ao significado, antropologicamente falando,da realização do trabalho artesanal por esses agricultores-artesãos. A atividade, longe de representar um fardo a mais, faz com que eles aumentem a dimensão (percepção) de sua importância, ao incorporarem uma atividade manual, reconhecidamente artística (o artesanato) a uma outra atividade, também manual, mas que não é, por eles próprios, devidamente reconhecida (a agrícola). O artesanato, ao invés de arrastar o pequeno agricultor para fora de sua área rural, faz com que ele tenha uma forma de lá permanecer com níveis de renda bem melhores, melhorando seu padrão de vida. O tempo gasto nas duas atividades continua o mesmo, mudando as formas de produção, alguns instrumentos de trabalho, contratação de ajudantes, modificação nas formas de transportar a matéria-prima, as formas de comercialização e instalação de trabalho. Dada a extensão da família, a distribuição das tarefas permite o não abandono das atividades agrícolas devido ao aceleramento da produção artesanal. Além do mais, como o fluxo turístico recai sempre nos fins de semana, é comum ver alguns membros da família sentados diante das casas, em meio a panelas e tapetes, à espera dos compradores. Alguns filhos, que se empregavam como trabalhadores assalariados na cidade, fugindo da falta de emprego no campo, retornam ao distrito para se dedicarem, pelo menos em parte do tempo, a essa atividade. Vale lembrar que, aos poucos, o comércio das duas atividades básicas transforma-se, amplia-se para outros produtos: compotas, bordados, crochê, vindos também de outros distritos. Assim, nesse caso, o que muda no meio rural não são as atividades em si - a não ser o turismo - mas as formas de organizar essas atividades. No caso do artesanato, as matérias-primas são encontradas no local e com alguma abundância; a mão-de-obra é farta e barata. Em certos casos, são pessoas oriundas das cidades próximas que, atraídas por esses dois setores (artesanato/turismo) fincamseus negócios no local, dada a facilidade e disponibilidade dos recursos. O turismo, por sua vez, explora de forma cada vez mais intensiva os recursos naturais, contribuindo para uma transformação de certa forma acelerada da paisagem local. O principal ponto turístico, a cachoeira, sofreu uma mudança radical à sua volta, com a construção de um playground, duchas, iluminação. Nos fins de semana, dezenas de ônibus, das cidades vizinhas, estacionam no amplo espaço gramado em frente à cachoeira. CONCLUSÃO Apesar da atualidade da discussão sobre o novo rural, alguns aspectos devem ser analisados de forma cuidadosa, como, por exemplo, de que esse fenômeno tem se dado de maneira diferenciada, não só de região para região, mas mesmo dentro de uma mesma região. A pluriatividade insere-se nos diferentes rumos que vem tomando o meio rural e é nesse sentido que o artesanato está relacionado a uma outra realidade rural brasileira, reestruturando-se e solidificando-se como uma das estratégias de reprodução da agricultura familiar. O artesanato hoje está na base das atividades de certos grupos de agricultores, como no caso apresentado, não mais como uma atividade complementar, mas sim como uma nova atividade, independente do setor agrícola, fazendo parte de uma nova cadeia produtiva. Deixou seu antigo posto de "secundário", "complementar" para ganhar espaço como atividade econômica, envolvendo-se cada vez mais com outros setores, como o turístico, com serviços terceirizados, adquirindo um outro status. Como foi mostrado no decorrer do trabalho, o fato de Cachoeira do Brumado não estar em uma região industrializada, capaz de absorver parte da mão-de- obra local, faz com que alguns membros da família partam em busca de emprego fora do distrito, sendo esse assalariamento externo parcial uma das formas de sobrevivência da família em sua unidade de produção. Com pouca mão-de-obra familiar para dedicar-se ao cultivo das terras, a produção agrícola passa a ter um valor mais de autoconsumo, enquanto que a renda principal vem de fora da agricultura, seja através da contribuição dos salários dos filhos que saem, seja através de atividades autônomas, como o artesanato. Este foi aos poucos,impulsionado também pelo turismo local, principalmente a partir dos anos 80,transformando-se em um novo sistema produtivo, capaz de propiciar aos agricultores a ele ligados uma possibilidade de permanência, reestruturação e reprodução social. Assim, embora sempre tenha existido no mundo rural, o artesanato tem hoje suas formas de organização transformadas, o que faz com que seja analisado sob um outro ângulo. É nesse sentido que, ao passar por um processo de reestruturação, insere-se na atual discussão rural-urbano e, por conseguinte, no debate sobre a pluriatividade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANDIDO, A. Os Parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1964. CARNEIRO,M. J. "Pluriatividade: uma resposta à crise da agricultura familiar? " XVIº Encontro Anual da ANPOCS, 1992. CHAMBOREDON, J-CL. "Nouvelles formes de l'opposition ville-campagne", in DUBY, G. (ed.). Histoire de la France Urbaine V, Paris, Le Seuil, 1985. FUKUI, L. F. Sertão e Bairro Rural: Parentesco e Família entre Sitiantes Tradicionais. São Paulo, Ed. Ática, 1979. GLOBO RURAL, junho de 1997, p. 28. GRAZIANO DA SILVA, J. "O Novo Rural Brasileiro". Anais da SOBER, Aracaju, vol. I, 1996, pp. 71- 90. __________ et alii. 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