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P 059 O Regresso do Nada Kurt Mahr

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O REGRESSO DO NADA
Autor
 KURT MAHR
Tradução
 RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão 
ARLINDO_SAN �
Dois terranos penetram no Universo Invisível
— e conseguem regressar...
Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galático, o trabalho pelo poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.
Cinqüenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no ano de 1.984.
Uma nova geração de homens surgiu.
E, da mesma forma que em outros tempos a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.
No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terra-nos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.
Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar qualquer atacante...
Terra e Árcon voltam a aliar-se...
Surgiram acontecimentos estranhos que se tornam uma ameaça sem precedentes para todas as formas de vida da Via Láctea.
Em O Regresso do Nada se fazem presentes lances de pura magia... tecnológica!
= = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = =
Marcel Rous — Tenente. De gesto vivo, audaz.
Rosita Peres — Psicóloga cósmica. Cabelos longos.
Fellmer Lloyd — Mutante que também se revelou bom técnico.
Flaring — Comissário de Mirsal.
Perry Rhodan — Administrador do Império Solar.
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— Estou com medo!
Rosita encolheu-se no pequeno sofá; parecia estar com frio.
Rous olhou em sua direção e brindou-a com um sorriso encorajador.
Não disse nada. Para a sensibilidade de Rosita isso bastava para mostrar que, também ele, achava a situação um tanto perigosa.
Lloyd portava-se de outro modo. Todo o mundo estava acostumado a ver Lloyd assim: com os cotovelos apoiados sobre a mesa e a cabeça nas mãos. Estava com os olhos semicerrados, fitando um ponto imaginário.
Mantinha-se em silêncio.
— Não poderíamos acender mais luzes? — perguntou Rosita.
Rous fez que sim e levantou-se. A sala tinha duas portas, e perto de cada uma delas havia um fio que saía da parede, junto ao batente, e enlaçava um botão de madeira que ficava a meio metro de altura. Rous pegou o botão e puxou-o. Uma fileira de tubos de luz fluorescente acendeu-se no teto baixo.
Rosita piscou os olhos.
Rous dirigiu-se a uma das janelas e olhou para fora.
— O quê...? — perguntou Rosita, erguendo-se apressadamente.
Rous fez um gesto negativo.
— Não é nada. No período noturno, o tempo será bastante agitado.
— Por que temos de passar a noite justamente nesta cabana? — perguntou Rosita.
Rous bocejou. Fazia questão de que Rosita soubesse que já havia respondido a mesma pergunta mais de vinte vezes nesse dia.
— Podemos mudar para qualquer outra cabana — disse em tom de tédio. — Se é isso que deseja.
Rosita não respondeu. Rous olhou para a rua que passava junto à casa. Havia outras casas, espalhadas ao acaso pelos jardins. Nenhuma delas era maior ou menor que aquela em que se haviam abrigado. Ao que parecia, sua construção obedecera a um modelo único. Um pouco sujas, mas tinham aparência de novas. Todas elas eram hexagonais. Em cada recinto havia duas paredes com janelas, que faziam um ângulo de cento e vinte graus e lhes davam um aspecto estranho.
“Um aspecto estranho para terranos”, pensou Rous.
Nos momentos em que as nuvens de poeira, tangidas pelo vento, não eram muito densas, via-se do lado oposto da rua, na parte dianteira de um pequeno jardim, outra casa de cujas janelas saía uma luz abundante.
A luz irritava Rous, mesmo agora que já estivera lá e se convencera de que a casa estava vazia, tal qual as outras.
Quando o sol mergulhou atrás de uma parede de nuvens escuras, aquela luz estranha tornou-se mais nítida. Depois de algum tempo foi a única coisa que se enxergava para além das janelas.
Rous afastou-se da janela e saiu da sala. Entrou em outra, que tinha o mesmo formato da primeira. Mas suas instalações eram diferentes. Além disso, possuía três portas em vez de duas. Rous abriu a da estreita parede dos fundos e tentou pegar o fio. Segurou-o na mão, encontrou o botão de madeira e puxou-o firmemente. A luz acendeu-se.
O tenente perguntou a si mesmo por que voltara para cá. Já vira ao menos dez vezes naquele mesmo dia aquela mesa redonda com as seis bacias quase cheias e os bastões de madeira rachados, que deviam servir de talheres.
Sentou numa das cadeiras, apoiou a cabeça na mão esquerda e levantou um dos bastões. Estivera jogado junto à bacia como se alguém o tivesse largado ao acaso.
Uma porta bateu atrás dele. Rous não teve necessidade de virar a cabeça para ver quem estava entrando. Conhecia o passo.
— Está com fome? — perguntou Rosita. 
Parecia uma piada, mas Rous percebeu que aquela pergunta era apenas a manifestação de um humor negro.
— Procuro imaginar de que maneira essa gente esteve sentada aqui hoje de manhã, e o que aconteceu — respondeu.
Rosita procurou uma cadeira.
— Quer solucionar o problema por via intuitiva? — perguntou em tom de escárnio. — Acredita...
— É claro que acredito — interrompeu Rous. — Procure refletir. Pelas seis horas, tempo local, pousamos numa Gazela a aproximadamente sete quilômetros da localidade de Keyloghal, num terreno ondulado e de pouca visibilidade. Nossa missão consistia em descobrir que tipo de estrago o inimigo invisível está fazendo neste planeta. Recebemos ordens para agir discretamente. Teríamos de pegar um desses homenzinhos que habitam o planeta, e fazer-lhe uma análise estrutural para extrair todo o saber encerrado em seu cérebro. Depois submetê-lo a um condicionamento que o impedisse de lembrar-se do incidente, e soltá-lo.
“Assim, levamos uma hora para assimilar os conhecimentos adquiridos. Instalamos nosso equipamento de forma a não despertar muita atenção aos olhos das pessoas com que teríamos de lidar.
“Seguindo as instruções, deixamos a Gazela para trás e pusemo-nos a caminho para Keyloghal. Encontramos uma aldeia parecida com uma aldeia camponesa do planeta Terra, com exceção das casas hexagonais. Vimos uma porção de gente que lidava com veículos puxados a trator, dirigindo-se ao campo ou voltando de lá.
“Também nos viram e ficaram espantados com nossa presença, porque medimos uns quarenta centímetros mais que eles. Mesmo a cem metros perceberam isso; e não conseguimos aproximar-nos mais do que essa distância.
“De repente desapareceram. Dissolveram-se no ar. Os tratores e as carroças pararam nos lugares em que se encontravam, ou prosseguiam no seu movimento até baterem num obstáculo. Mas as pessoas que se encontravam por ali haviam desaparecido.”
Rous levantou-se e respirou profundamente.
— Quer saber por que repito tudo isto? 
Rosita sacudiu a cabeça.
— Para que a senhora compreenda que não é nenhuma fábula — disse Rous em tom enfático. — E nem estávamos bêbedos ou hipnotizados. Vimos com os olhos bem abertos toda a população de uma aldeia, de tamanho regular, desaparecer repentinamente. Não nos adiantará nada relegar o fenômeno ao terreno da metafísica. Isso deve ter acontecido de maneira natural. E se é assim deve haver um meio de encontrar a solução do mistério.
Rosita lançou-lhe um olhar pensativo.
— Que tal lhe parece a hipótese do transmissor fictício?
Rous ergueu a cabeça.
— O que quer dizer com isso? Acha que é uma explicação para o que aconteceu aqui?
Fez um gestode mão em direção à mesa posta.
— Exatamente.
— Já andei pensando nisso. Vamos partir do que já sabemos. Possuímos transmissores fictícios que, instalados em determinada parte, removem o objeto visado de outro lugar, atiram-no pelo hiperespaço e o fazem surgir num outro lugar. É nisso que consiste a ação de um transmissor fictício. Quer dizer que nós mesmos poderíamos fazer desaparecer todos os habitantes de Keyloghal, mas um por um, não todos de uma só vez. E há outro detalhe: se a pessoa contra a qual dirigirmos o transmissor fictício estiver segurando uma colher ou um garfo, estes objetos desaparecerão juntamente com a pessoa.
“Mas veja o que aconteceu aqui: esta gente estava almoçando quando o fato aconteceu. Foram arrancados de junto da mesa. Desapareceram. Seus talheres ficaram para trás, da mesma forma que os tratores e as carroças lá fora. Não; não acredito na possibilidade de um transmissor fictício.”
— Mas o que poderia ser, se não for isto?
Rous deu de ombros. Esteve a ponto de dizer alguma coisa. Mas, naquele instante, escutou uma porta bater. Da sala contígua ouviram-se passos surdos e vigorosos.
Fellmer Lloyd enfiou a cabeça pela porta.
— Alguém está chegando! — limitou-se a dizer.
Rous levantou-se de um salto.
— Apaguem a luz; rápido! — ordenou. — É uma única pessoa, Lloyd?
— Não, é uma porção. Calculo que sejam umas vinte. E vêm vindo bem depressa.
— De onde?
— Ao que parece vêm pela estrada que dá para Ferraneigh.
Era a mesma estrada pela qual os três haviam vindo na manhã daquele dia. Rous voltou à sala de cujas janelas podia ver a rua.
Uma estreita faixa de luz penetrava no recinto, vinda do outro lado da rua, onde alguns tubos luminosos estavam acesos atrás de duas janelas de uma casa.
Rous puxou a arma. Lloyd voltou para junto da mesa e segurou a cabeça com ambas as mãos. Rosita manteve-se junto à porta, com o botão de madeira da chave de luz na mão.
— Está ouvindo? — perguntou Lloyd de repente.
Rous aguçou o ouvido. Sentiu um ligeiro tremor no chão e ouviu um zumbido monótono vindo de longe. O ruído lhe parecia familiar. Não se tinha necessidade de ir ao centro da Via Láctea para ouvi-lo, pois esse tipo de ruído enchia todas as estradas da Terra.
— Acenda a luz — ordenou Rous. — Lloyd, fique aqui e cuide de Miss Peres. Irei lá fora.
— Pelo amor de Deus, Rous! — exclamou Rosita. — Não vá. Sabe o que é?
Rous já se encontrava junto à porta.
— Sei — respondeu em tom seco. — É um ônibus.
E era mesmo um ônibus.
Vinha com os faróis bem altos e deslocava-se pela estrada de Ferraneigh, desenvolvendo uma velocidade surpreendente. Rous viu as nuvens de poeira na frente dos faróis.
O pesado veículo entrou ruidosamente na aldeia, sem reduzir a velocidade. Ao que tudo indicava, o motorista não pretendia parar em Keyloghal.
Rous colocou-se no meio da rua e esperou até que fosse atingido pela luz dos faróis. Depois disso começou a agitar os braços.
Por alguns segundos não teve certeza sobre se não seria preferível saltar para o lado. Mas logo os freios começaram a ranger, o zumbido do motor assumiu um tom mais grave, o ônibus dobrou para a direita e parou a alguns metros de Rous.
A poeira levantada pelo veículo refletia bastante luz para que o tenente pudesse reconhecer o letreiro Resaz—Fillinan.
Uma porta foi aberta apressadamente. Um homenzinho saltou do veículo e caminhou em direção a Rous. Não tinha mais de metro e meio e teve de erguer a cabeça a fim de fitar o rosto de Rous. Mas ao que tudo indicava isso não o incomodava.
— O que houve? — perguntou em tom exaltado. — Por que não há mais ninguém em parte alguma? Para onde será que desapareceram?
Rous levantou a mão direita e curvou o dedo indicador, gesto que significava que não sabia.
— Não faço a menor idéia — disse na língua que aprendera naquela manhã durante a análise estrutural. — Não somos daqui. Chegamos hoje de manhã. Quando estávamos a uns duzentos metros da aldeia, todos os habitantes desapareceram. De onde vem o senhor?
— De Resaz — fungou o motorista. — Saímos hoje, às cinco da manhã. Entre as cinco e as oito paramos em Resaz-Gollan, Gortrup, Vineigh e Bostall. Até lá tudo estava em ordem. Às oito e meia chegamos a Millander, e não se via mais ninguém. E as coisas continuaram assim até agora.
Rous refletiu um pouco. Haviam chegado a Keyloghal entre as oito e as oito e meia. Ao que parecia, os homens haviam desaparecido ao mesmo tempo em todos os lugares.
— Não observou nada de extraordinário durante a viagem? — perguntou Rous.
— Não; nada. Quando estivemos em Millander, não tive tempo de olhar para nada. Os passageiros do ônibus tornaram-se histéricos. Uns queriam voltar, outros queriam que fôssemos logo para a frente, enquanto um terceiro grupo desejava levar-me a entrar em estradas secundárias, porque a estrada principal lhes parecia muito perigosa. Tive muito trabalho em acalmá-los e poder prosseguir viagem.
Rous tomou uma decisão rápida.
— Somos três — disse. — Quer levar-nos para Fillinan?
— Naturalmente; por que não? A passagem custa três unidades por pessoa.
Rous concordou. Achou que não era necessário avisar o motorista de que nem ele, nem Rosita e nem Lloyd possuíam dinheiro local. Em Fillinan encontrariam alguma coisa que poderia ser dada ao motorista em vez das nove unidades.
Foi buscar Lloyd e Rosita. Esta perguntou quais eram suas intenções.
— Pretendo ir a Fillinan — disse em tom lacônico. — Nunca mais teremos uma oportunidade como esta. O pessoal está tão nervoso que nem perceberá nosso tamanho.
Lloyd enfiou a bolsa com os microinstrumentos embaixo do braço. Rosita correu na frente.
Ao vê-la, o motorista arregalou os olhos, mas não disse nada.
Logo atrás do motorista havia um banco livre. Rosita sentou no mesmo, juntamente com Fellmer Lloyd e Rous. Este ocupou uma posição que lhe permitia examinar a estrada pelo pára-brisa.
As pessoas que se encontravam no ônibus conversavam exaltadamente. Mal notaram a presença dos novos passageiros. Apenas alguns lhes lançaram olhares esquivos e curiosos.
Era claro que todas as conversas giravam em torno dos acontecimentos estranhos daquele dia: o desaparecimento de todos os habitantes de certas aldeias. A única coisa que Rous conseguiu ouvir em meio à confusão de vozes foi aquilo que já sabia: que se tratava de um fenômeno inteiramente novo para aquela gente. Nunca haviam visto nada parecido.
Depois de poucos instantes, o ônibus saiu de Keyloghal. O motorista parecia querer vencer o medo e a insegurança, empurrando o acelerador até a tábua.
Realmente era um acelerador. Rous teve tempo de examinar o mecanismo de direção e de câmbio e compará-lo com aqueles que se usavam na Terra.
Não havia nenhuma diferença essencial. Rous achava que seria capaz de dirigir este ônibus sem receber um treinamento especial.
E o planeta Mirsal II ficava a quase quatorze mil e quinhentos anos-luz da Terra!
Dali a uma hora, o pesado veículo passou ruidosamente por outra localidade. Era Wimmanat. Não foi necessário parar para verificar que estava deserta, tal qual as outras que o veículo havia cruzado a partir das oito e meia da manhã.
Depois de Wimmanat a estrada tornou-se mais larga. Notavam-se sinais da proximidade da capital, Fillinan. Rous olhou para frente, para ver se conseguia enxergar o reflexo das luzes da cidade no céu; mas a distância devia ser muito grande, ou então a tempestade havia levantado muita poeira, pois o céu estava totalmente negro.
“Se os habitantes de Fillinan ainda não desapareceram”, pensou Lloyd, “com o tempo deverão surgir alguns veículos. Ou então as saídas da cidade em direção a Resaz haviam sido bloqueadas, e a respectiva área interditada.”
Olhou para Rosita. Esta estava com as pernas bem esticadas e a cabeça inclinada para trás, apoiando-a no encosto muito baixo. Estava com os olhos bem abertos e fitava o teto.
Rous esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas antes disso Lloyd subitamente se levantoude um salto.
— Cuidado! — gritou.
Rous encolheu-se. Lloyd olhou para além do motorista, mas não viu nada do lado de fora do veículo.
O motorista e os passageiros assustaram-se com o grito de Lloyd. O primeiro diminuiu um pouco a velocidade do ônibus e olhou para trás.
Foi então que Rous viu o feixe de luz... Atirou-se para a frente, a fim de segurar o homem que estava desaparecendo. Mas antes que completasse o movimento o motorista havia desaparecido. As mãos de Rous apenas atingiram o vazio.
— Olhe a direção! — gritou Rosita apavorada.
Rous inclinou-se por cima do assento vazio e esforçou-se para segurar o volante. Felizmente a estrada era reta e, uma vez que ninguém mais calcava o acelerador, o veículo não demorou a parar. Conseguiu mantê-lo no meio da estrada.
Assim que o perigo havia passado, ajeitou-se no assento estreito do motorista e puxou o freio de mão.
Depois levantou-se e olhou para trás. Os vinte passageiros que haviam feito a viagem de Resaz, Resaz-Gollan ou Gortrup até ali, haviam desaparecido juntamente com o motorista.
Só restavam Fellmer Lloyd e Rosita Peres.
Era um mutante, uma psicóloga e um tenente que se apresentara voluntariamente.
Lloyd voltou a sentar. Fazia como quem não tinha nada com aquilo.
— O que houve? — perguntou Rous. — O que foi que o senhor viu?
Lloyd sacudiu a cabeça, numa expressão contrariada.
— Não vi nada. Apenas senti. Senti uma porção de modelos cerebrais estranhos. Eram confusos e incompreensíveis. E, principalmente, duraram um ou dois segundos.
Lloyd já constatara a mesma coisa em outras oportunidades. Por exemplo, quando o foguete de Mirsal II desapareceu no espaço.
Rous soltou um gemido e deixou-se cair no assento. Tocou em Rosita e sentiu que a mesma estava tremendo.
— Não tenha medo, minha filha — disse em tom tranqüilizador. — A nós não fizeram nada. Desta vez só estão devorando os mirsalenses. Ao que parece, nós somos muito amargos para eles.
— Gostaria de saber por quê? — indagou assustada.
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2
A cerca de trinta milhões de quilômetros do local em que se desenrolavam essas aventuras, os receptores da Drusus, a mais gigantesca das naves da frota espacial terrana, registraram um ligeiro fading dos sinais transmitidos pelos emissores existentes nos corpos dos três agentes que haviam sido colocados em Mirsal II.
O comandante da nave, Perry Rhodan, recebeu um relato lacônico:
Às dezenove horas e trinta e quatro, tempo de bordo, houve uma redução temporária na potência da transmissão dos emissores corporais de Rous, Peres e Lloyd. A redução foi temporária e teve a mesma duração de 2,8 segundos. Correspondeu no mínimo a um centésimo da intensidade usual. A seguir, a recepção voltou a ser perfeita.
Rhodan repetiu várias vezes a leitura da mensagem.
Depois dos acontecimentos estranhos — para não dizer apavorantes — que se desenrolaram em Mirsal III, e que pareciam indicar que um inimigo desconhecido e perigoso estava disposto a entrar em luta contra o Império Solar e o Império Galáctico dos Arcônidas ao mesmo tempo, Rhodan chegou à conclusão de que por enquanto a tarefa mais urgente seria a coleta de informações sobre o inimigo.
O desaparecimento da nave antiquada, de propulsão química que, segundo se apurou, provinha de Mirsal II, constituía uma indicação do caminho a ser seguido. Até então, ninguém sabia qual era o papel de Mirsal II nesse drama e como os habitantes desse mundo conseguiram ocultar sua existência por tanto tempo, muito embora sua tecnologia estivesse alguns séculos à frente da de Mirsal III, cujos habitantes os arcônidas já conheciam.
Rhodan julgara conveniente realizar as investigações com a maior discrição. Depois dos acontecimentos desenrolados em Mirsal III, e do desaparecimento da nave espacial de Mirsal II, convencera-se de que nem mesmo as armas potentes da Drusus e da Arc-Koor, cujo comandante, em conformidade com as instruções do computador-regente de Árcon, devia obedecer a Rhodan, não estavam em condições de enfrentar o inimigo desconhecido. Portanto, não havia como obter as informações necessárias pela força. Não havia ninguém contra quem se pudesse empregar a força. O inimigo dispunha de recursos que lhe permitiam escapar aos efeitos de qualquer tipo de interferência energética.
Por isso a única salda constituía-se num comando suicida, recurso de que Rhodan já se valera em diversas oportunidades, com resultados excelentes.
Como membros do comando foram designadas as três pessoas que, no instante em que Rhodan recebeu a estranha mensagem, se encontravam a alguns milhões de quilômetros de distância, num ônibus da linha Resaz—Fillinan, e procuravam, espantados, os demais passageiros do veículo.
Fellmer Lloyd fora escolhido por ser um dos poucos mutantes cujos dons parapsicológicos lhe permitiam localizar o inimigo, desde que o mesmo se encontrasse nas proximidades; Rosita Peres, porque a missão teria de ser cumprida num mundo totalmente desconhecido; assim se fazia necessário um estudo cuidadoso da mentalidade de seus habitantes; por fim, o Tenente Marcel Rous que, durante sua atuação em Mirsal III, já tivera suas experiências com o inimigo desconhecido e ainda tinha algumas contas a ajustar com este.
Rhodan concluiu que os três haviam entrado em contato com o inimigo. A conclusão era bem plausível, porque durante o desaparecimento da nave de Mirsal II fora observado por várias vezes um fading idêntico. Havia uma diferença: os sinais emitidos pela nave acabaram desaparecendo por completo, enquanto os micro emissores implantados sob a pele de Lloyd, Rosita Peres e Rous voltaram a recuperar a potência primitiva, depois da redução temporária.
Por isso era de se supor que os três agentes haviam escapado ao perigo. Além dos microemissores, que emitiam sinais diferentes para cada um dos três, ainda traziam um microcomunicador, que era um instrumento que, tal qual o telecomunicador, podia transmitir hipermensagens a distâncias consideráveis. Rous entraria em contato com ele, assim que isso se tornasse possível.
A Gazela com que os três agentes haviam pousado em Mirsal II possuía também um transmissor individual. Se o inimigo desconhecido não dispusesse de uma superioridade infinita, que lhe permitisse não se interessar pelos recursos técnicos do inimigo, veria naquele veículo espacial, que por ordem de Rhodan ficara no local de pouso, um ótimo objeto de estudo. Levá-la-iam, e o transmissor individual da Gazela revelaria o lugar para onde fora carregada.
Isso representaria muito. Por enquanto, os ocupantes da Drusus e da Arc-Koor não sabiam sequer em que área desse setor galáctico poderiam encontrar os desconhecidos.
* * *
O choque passou.
— O que há por perto? — perguntou Rous.
Lloyd sacudiu a cabeça.
— Nada — respondeu lacônico. — Absolutamente nada.
Rous levantou-se e espremeu-se no assento do motorista.
— Neste caso tentaremos ir adiante com esta geringonça.
Experimentou cautelosamente alguns botões, pedais e alavancas que havia no painel, no chão e na chapa que separava o capuz do motor da cabine dos passageiros.
O motor começou a trabalhar ruidosamente. Sentiu-se um cheiro de gasolina... de verdadeira gasolina!
Rous soltou o freio e acelerou. O ônibus deu um tremendo salto para a frente e o motor morreu. Rous experimentou outra marcha e desta vez teve mais sorte. Com um zumbido alto o veículo saiu lentamente pela estrada. Não conseguindo encontrar as outras marchas na primeira tentativa, Rous teve muitas vezes que parar.
Finalmente conseguiu. O ônibus aproximou-se da cidade a uma velocidade de cerca de cinqüenta quilômetros por hora.
Marcel Rous teve tempo para pensar num plano. A estrada estava completamente deserta; não havia necessidade de prestar atenção ao tráfego. Fellmer Lloyd voltara à letargia habitual; procurava “ouvir” eventuais modelos de vibrações cerebrais.
“O que vamos fazer em Fillinan?”, indagou-se mentalmente Rous. “Queremos descobrir a pista do inimigo desconhecido.Temos motivo para acreditar que em Fillinan isso será mais fácil que em qualquer das aldeias que já atravessamos? Não temos. Até agora só conseguimos um ligeiro indício. Os desconhecidos que operam aqui evidentemente não são nossos inimigos, pois por enquanto não nos fizeram nada; talvez estivessem combatendo apenas os habitantes de Mirsal III e de Mirsal II, que pareciam ameaçados do mesmo destino. Os invisíveis devem ter seus agentes neste mundo. E quem quer encontrar um agente deve dirigir-se à capital.” 
Lloyd deu sinal de vida.
— Estou captando uma porção de modelos de vibrações cerebrais — resmungou. — Até parece um formigueiro humano.
— De onde vêm?
— Da frente.
Rous acenou com a cabeça.
— É lá que fica a cidade — disse. — Quer dizer que seus habitantes ainda não desapareceram.
Lloyd parecia não se interessar pelas palavras de Rous. Continuava a concentrar-se.
— Não existe nenhum modelo realmente desconhecido — disse depois de algum tempo.
— Qual é a porcentagem que o senhor consegue identificar? — perguntou Rous.
— Mais ou menos um entre mil — respondeu Lloyd. — Numa quantidade dessas, isto se torna difícil, especialmente quando a distância é grande.
Rous fez um gesto.
— Pelo que sabemos, Fillinan tem mais de três milhões de habitantes. Quer dizer que, se houvesse três mil desconhecidos, o senhor ainda os reconheceria. Não acredito que sejam tantos.
Lloyd resmungou:
— Neste caso teremos de esperar até chegarmos mais perto.
Voltou a inclinar-se para a frente e apoiar a cabeça nas mãos.
Dali a alguns minutos, Rous freou. Encostou o ônibus do lado direito da estrada.
— Vamos descer aqui — disse.
— Por quê? — perguntou Rosita.
— A cidade fica a cinco quilômetros no máximo. Daqui já se vêem as luzes. Não gostaria que alguém me perguntasse como me apoderei do ônibus e o que foi feito dos passageiros.
Desceram. Lloyd trazia uma pasta embaixo do braço.
A caminhada para Fillinan não foi nada agradável. Uma tempestade uivava em torno dos três andarilhos solitários, trazendo um frio cortante. A poeira cinzenta ardia na pele. Mantinham a cabeça abaixada, para melhor se protegerem.
Felizmente não se encontraram com ninguém. A estrada larga que, num ambiente terrano, estaria repleta de veículos de toda espécie, mostrava-se completamente deserta.
Quando as primeiras casas da cidade surgiram à sua frente, o dia estava amanhecendo. A tempestade amainara, mas o céu continuava encoberto. Mirsal, a estrela-mãe do sistema, não estava aparecendo.
As casas pareciam mortas. Eram hexagonais, como as que já haviam visto. Nas janelas não observaram nenhuma luminosidade.
Subitamente Lloyd estacou.
— Há três ou quatro homens à nossa frente — disse. — Estão perto, a aproximadamente duzentos metros de distância.
— Só quatro? — perguntou Rous em tom de espanto. — E nas casas?
— Não há ninguém; estão vazias. 
Rous refletiu um pouco.
“Não há dúvida de que a cidade está habitada. Apenas as primeiras casas estão vazias. Por quê? Porque evacuaram esta área a fim de vigiar melhor a saída, seu idiota. Os quatro homens cuja presença foi constatada por Lloyd pertencem a um destacamento militar!”
— Pegue a arma psíquica! — ordenou, dirigindo-se a Lloyd. — Não temos outra alternativa senão ir em frente.
Lloyd confirmou com um gesto, retirou a arma do bolso.
Prosseguiram na sua caminhada. Rosita ia na retaguarda.
A primeira coisa vista por Rous em meio ao crepúsculo foi o cano de dez centímetros de diâmetro de uma arma, montada num jardim, à esquerda da rua.
Rous sabia se tratar de um tipo de lança-chamas. Em Mirsal II, a técnica das armas de fogo estava menos desenvolvida do que estivera na Terra, num estágio equivalente da evolução. Um fuzil de Mirsal não merecia mais confiança do que uma arma de carregar pela boca do tipo usado na mais remota antigüidade terrena, e era tão difícil de manejar quanto esta. Em compensação, os lança-chamas mirsalenses eram verdadeiras maravilhas da técnica. Os modelos maiores tinham um alcance de até dez quilômetros, com uma abertura mínima do feixe de chamas e uma geração de calor que chegava a atingir mais de mil watts por centímetro quadrado.
Rous fez como se não tivesse visto o lança-chamas. Não se sentia muito à vontade, pois conhecia muito pouco a respeito da mentalidade dos mirsalenses. Não sabia se não achariam preferível atirar em vez de fazer perguntas, especialmente agora que deviam estar espantados com o desaparecimento dos habitantes.
Mas suas preocupações revelaram-se infundadas. Das moitas que havia no jardim, logo atrás do lança-chamas, saiu um homenzinho moreno que agitou os braços.
— Pare! — gritou o outro. 
Rous parou.
— Cuidado! — disse em voz baixa, dirigindo-se a Lloyd.
Lloyd confirmou com um gesto.
O homenzinho atravessou a rua. Rous viu que trazia na mão uma versão reduzida do lança-chamas. Esforçou-se para dar uma expressão de espanto ao rosto.
— O que houve? — perguntou. — Por que mandam a gente parar?
O homenzinho não disse nada até aproximar-se a cinco metros de Rous e de seus companheiros.
— De onde vêm? — perguntou em tom desconfiado.
Rous apontou com o polegar por cima do ombro.
— De lá.
— Não quero subterfúgios! Quero saber de onde vêm.
— De Wollaston — respondeu Rous.
Wollaston era uma ilha de tamanho regular, que ficava no oceano central. Seus habitantes, que formavam uma raça diferente e semicivilizada, tinham em média meio palmo mais que os outros mirsalenses.
— De Wollaston? — disse o guarda em tom de espanto. — Vieram a pé?
— Não. Viemos de avião até Resaz, e de lá viajamos de ônibus até Keyloghal. Depois disso viemos a pé.
— Os documentos!
Rous fez como se nem soubesse o que vem a ser um documento. O guarda virou a cabeça e gritou em direção às moitas do jardim:
— Ei! Venham cá. Peguei três pássaros muito interessantes.
Rous olhou para Lloyd, mas este sacudiu a cabeça. Ainda não havia acionado o projetor mental. O guarda agira por iniciativa própria ao chamar seus companheiros. Pequenos como ele e vestidos com roupas verde-escuras, que lhes serviam de uniforme, três homens saíram das moitas.
— Dizem que são de Wollaston — disse o primeiro dos guardas em tom de escárnio. — E não têm documentos.
— Eram estes que nós esperávamos! — exclamou um dos outros. — Se os revistarmos, deveremos encontrar uma porção de coisas interessantes.
Rous percebeu um movimento suave atrás de si. Era Lloyd que estava entrando em posição. A situação era favorável. Durante a ligeira palestra, as atenções do guarda mais próximo estavam desviadas de sua pessoa.
Rous ouviu o zumbido fino da arma psíquica. Viu o guarda virar-se apressadamente e fitar Lloyd com uma expressão de perplexidade. Lloyd saiu de trás de Rous. Segurava o projetor mental na direita.
— Larguem as armas! — ordenou com a voz tranqüila.
Os outros três guardas, que já se encontravam bem próximos, pararam e obedeceram. Tiraram os pequenos lança-chamas dos cintos e os deixaram cair. O guarda, que surgira primeiro, também não ofereceu a menor resistência.
— Coloquem-se em fila! — prosseguiu Lloyd.
Esta ordem também foi cumprida sem a menor resistência. Os quatro homens fitavam Lloyd como se este acabasse de descer dos céus num carro de fogo.
— Por que estão aqui? — perguntou Lloyd. — Vamos logo! Você aí: responda.
Apontou para um dos guardas.
— Coisas estranhas estão acontecendo — respondeu com a voz indiferente. — Os homens estão desaparecendo, regiões inteiras vêm sendo despovoadas. Um inimigo poderoso e invisível lançou um ataque contra nós. Precisamos encontrar-lhe a pista. Precisamos revistar todas as pessoas vindas das áreas despovoadas. Só assim poderemos descobrir o inimigo.
“A conclusão é bem plausível”, pensou Rous. “Quem viesse das áreas despovoadas só poderia ser um inimigo, a não ser que a situação se complicasse pela presença de três agentes de uma potência neutra.”
— Acreditam que somos inimigos?
— Acreditamos.— Acontece que não somos. Entendeu?
— Compreendemos: vocês não são inimigos.
— Muito bem — disse Lloyd. — Quanto em dinheiro você tem?
O soldado começou a revistar os bolsos.
— Dezesseis unidades e alguns trocados.
— Passe para cá.
O soldado aproximou-se e colocou o dinheiro na mão de Lloyd. Os outros receberam a mesma ordem e, uma vez cumprida esta, constatou-se que Lloyd havia recolhido perto de cem unidades.
— Vocês se esquecerão do que acaba de acontecer — concluiu. — Dez minutos depois que eu tiver saído daqui não se lembrarão de mais nada. Hoje de manhã não aconteceu coisa alguma. Entendido? Ninguém veio pela estrada que vai de Resaz para Fillinan.
Os quatro repetiram estas ordens.
— Voltem aos seus postos.
Também esta ordem foi cumprida. Lloyd desligou a arma psíquica e voltou a enfiá-la no bolso. Os efeitos pós-hipnóticos durariam o tempo indicado: dez minutos.
— Vamos embora! — cochichou Rous. — Dentro de dez minutos, deveremos estar fora do alcance de suas vistas.
Correram um pedaço. A estrada descrevia uma curva, que os escondia dos olhares dos guardas hipnotizados.
Dois quilômetros depois, surgiram outros guardas. Mas Rous e seus companheiros passaram, e nem sequer as sentinelas os mandaram parar.
Logo depois começou o torvelinho da metrópole.
— Vamos alojar-nos num hotel — decidiu Rous. — O dinheiro que temos dá para um dia. Depois teremos de arranjar mais.
— O que vamos fazer no hotel? — perguntou Rosita.
— Antes de mais nada, vamos dormir. Estou muito cansado.
— Hum — fez Rosita. — Já tem algum plano para depois de acordarmos?
Rous fez uma careta.
— Que menina curiosa! Para dizer a verdade, não tenho nenhum plano. Não tenho a menor idéia de como poderemos agir. Receio que tenhamos de aguardar os acontecimentos.
Perguntaram a um transeunte se havia um hotel nas proximidades. O homem deu a informação solicitada, mas não ocultou seu espanto. Rous ficou sabendo que há três dias fora promulgada uma proibição absoluta de viajar, válida para todo o continente. Só quem dispusesse de licença especial poderia viajar. O informante contentou-se com a explicação de que os três homens vinham da ilha de Wollaston.
O hotel que o mirsalense lhes havia indicado ficava bem perto. Foram a pé. Os transeuntes paravam e fitavam-nos. Rous não se sentia nem um pouco à vontade. Rosita mantinha os olhos abaixados; nem uma única vez levantou a cabeça.
Já Lloyd parecia não se impressionar nem um pouco com o que estava acontecendo. Murmurava constantemente, fazia gestos afirmativos ou negativos e, ao que tudo indicava, estava tão ocupado com a palestra que mantinha consigo mesmo que nem se deu conta da curiosidade dos mirsalenses.
Subitamente parou.
— Caramba! — disse.
— O que houve? — perguntou Rous.
— Qualquer pessoa precisa de licença especial para viajar — disse Lloyd em tom pensativo. — Quer dizer que os passageiros de nosso ônibus devem ter sido pessoas muito importantes, não é mesmo?
Rous acenou com a cabeça.
— E daí?
— Veja onde estão estacionados os automóveis.
Rous olhou em torno. Já constatara que em Mirsal II costumavam trafegar pelo lado esquerdo, motivo por que se estacionava do mesmo lado. Mas não deu maior importância ao fato.
— Estacionaram do lado esquerdo — respondeu. — E daí?
— Acontece que o senhor estacionou o ônibus do lado direito. Está lembrado?
— Sim; será que há algum inconveniente nisso?
— Não se esqueça de que venho de Nova Iorque, tenente; diretamente de Nova Iorque. Se lá um ônibus com gente importante se perde, e posteriormente a polícia encontra estacionado na contramão, tirarão disso algumas conclusões. É possível que a polícia daqui seja tão inteligente quanto a de Nova Iorque. Ainda acontece que há três dias se acha em estado de alarma. E, finalmente: mesmo que os policiais do primeiro posto pelo qual passamos não se lembrem de mais nada, os do segundo saberão dizer de que direção viemos.
Rous tornou-se pensativo.
— Talvez tenha razão, Lloyd — admitiu. — De qualquer maneira, a esta hora só nos resta esperar para vermos se a polícia de Fillinan realmente é inteligente.
Prosseguiram na sua caminhada.
O grande hall do hotel estava vazio. Não havia ninguém na recepção. Mas havia uma campainha. Depois que Rous comprimira o botão várias vezes, um velhinho surgiu e ficou bastante espantado quando Rous lhe disse que queria três quartos. O homenzinho pediu documentos e a licença especial, mas o projetor mental de Lloyd logo fez com que mudasse de idéia. Não houve maiores problemas; os três foram alojados no segundo pavimento do edifício em que funcionava o hotel.
Já que Lloyd teve de fazer uso do projetor mental, os aposentos foram escolhidos por Rous segundo um critério utilitário. Havia portas que os ligavam, de maneira que ninguém teria necessidade de sair para o corredor se quisesse falar com o vizinho.
Rous instalou-se no chão, depois de estender o colchão e os cobertores existentes na cama, que era muito pequena para ele.
Dali a alguns minutos adormeceu.
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3
Quando acordou já passava do meio-dia.
Alguém batia à porta.
— Entre! — gritou, usando por precaução a língua mirsalense.
Rosita entrou.
— Espero que tenha dormido bem — disse com uma leve ironia. — O senhor dorme enquanto acontecem as coisas mais Importantes.
— Ah, é? O que houve?
— O comando pós-hipnótico de Lloyd produziu os efeitos desejados. O homenzinho da recepção está convencido de ter recebido nossos passaportes e os ter perdido. A polícia veio aqui para interrogar-nos e nos fornecer novos documentos.
Rous levantou-se de um salto.
— Está bem; já vou.
Eram quatro policiais ao todo. Estavam esperando no hall. Quando Rous chegou, Lloyd e Rosita Peres já se encontravam presentes.
As declarações do velhinho que, segundo tudo indicava, era o gerente do hotel, foram registradas. Depois Rous e seus companheiros foram interrogados sobre suas procedências e a finalidade da viagem. Consideraram suas declarações satisfatórias, pois nesse meio tempo haviam colhido informações sobre sua pretensa cidade de origem, Wollaston. Rous disse que não sabia da necessidade de licença especial para viajar. Teria partido de Resaz há cinco dias, juntamente com seus amigos. Depois de várias paradas chegara a Keyloghal, onde constatou que a aldeia estava deserta. Dali em diante teria vindo a pé.
Um dos policiais era um velhinho grisalho que, a julgar pelo uniforme, devia ser de graduação superior aos demais. Apresentara-se como o comissário Flaring.
Ao concluir, indagou:
— Não estranhou o desaparecimento dos habitantes da aldeia?
Rous fez que sim.
— Naturalmente. Ficamos muito curiosos para saber aonde poderiam ter ido. Pensamos que se tratasse de uma evacuação realizada por um motivo de peso e apressamo-nos em prosseguir viagem para Fillinan.
— Por quê?
Rous balançou as mãos.
— Bem... poderia ser que naquela área tivesse sido descoberto um vulcão subterrâneo cuja irrupção fosse iminente, e que por isso a população tivesse sido evacuada.
Ao que parecia, Flaring ficou satisfeito com a explicação.
— Encontrou um ônibus pelo caminho, mais precisamente no trecho de Keyloghal para Fillinan?
Rous fez de conta que estava refletindo.
— Sim — disse depois de algum tempo. — Agora me lembro. A pouco menos de vinte quilômetros da cidade, vimos um ônibus vazio.
— Vazio? — perguntou Flaring em tom de espanto.
— Isso mesmo: vazio.
Flaring olhou para os companheiros e levantou-se.
— Está bem. Providenciaremos para que os novos passaportes lhes sejam enviados.
Saiu do hotel juntamente com os companheiros, sem despedir-se.
Rous, Lloyd e Rosita voltaram aos seus aposentos.
— Não gostei de Flaring — disse Rosita de repente.
— Por quê?
— Tive oportunidade de estudar a vítima que se encontrava na Gazela e fiquei conhecendo a mentalidade dos mirsalenses. Se por aqui alguém sai sem se despedir, isso tem uma importância muito maior que naTerra. Flaring tem alguma coisa contra nós, e quer que percebamos.
— Tomara que guarde suas suspeitas para si — respondeu Rous. — Enquanto for só ele, poderemos influenciá-lo com o projetor mental; mas se tornar públicas suas suspeitas, nossa situação ficará mais perigosa. De qualquer maneira, devemos evitar que sejamos identificados como estranhos, pois se isso acontecer, logicamente terão de acreditar que somos o inimigo que vai eliminando os mirsalenses de forma tão misteriosa.
Rosita fez que sim.
Lloyd interveio na conversa.
— Não adianta ficarmos escondidos nos quartos — disse. — Acho que devíamos dar um passeio.
— É verdade — disse Rous. — Mesmo que todo mundo nos olhe como se fôssemos bichos.
* * *
Era estranho que, de tarde, os mirsalenses pareciam estar menos curiosos que de manhã. Pouca gente virou a cabeça para olhá-los. Provavelmente a notícia da chegada de três pessoas vindas de Wollaston já correra pela cidade.
Rous e seus companheiros pegaram o metrô e foram ao centro da cidade.
A rua mais luxuosa de Fillinan era a Alameda dos Reis. Tinha cem metros de largura e cortava a cidade de norte a sul. Naquelas semanas, a título experimental e em certos trechos, geralmente de um quilômetro de extensão, haviam sido instalados os guias de microondas. Estes dispensavam o trabalho dos motoristas. Não era de admirar que, nos trechos experimentais, o público se comprimisse junto ao meio-fio, a fim de contemplar os veículos-teste da polícia, cujos motoristas mantinham as mãos ostensivamente entrelaçadas atrás da cabeça, provando que realmente não estavam interferindo na direção do veículo. Face ao interesse que os mirsalenses estavam dedicando ao espetáculo, quase ninguém deu atenção a Rous e seus companheiros.
As casas dessa rua eram grandes; ao que parecia, não se economizara em sua construção. Eram hexagonais como as outras casas de Mirsal II, e estavam rodeadas de jardins.
Havia edifícios tão altos como os velhos arranha-céus nova-iorquinos. Geralmente os pavimentos térreos estavam ocupados com lojas, e os andares de cima com escritórios e residências. Se não fossem as placas com letras estranhas, poder-se-ia pensar que se tratava de uma cidade do planeta Terra, construída por algum arquiteto dotado de maior criatividade.
Rous, Rosita e Lloyd passeavam tranqüilamente por essa rua. O mutante mantinha a pasta sob o braço, que nem um estudante que se esforça para não perder seu material de escola.
Falavam muito pouco. O perigo de que alguém os escutasse não poderia ser desprezado.
Depois de terem caminhado cerca de um quilômetro do lugar em que haviam saído, Lloyd estacou subitamente e olhou para trás.
— Um momento! — disse em voz baixa. — Alguma coisa está acontecendo.
Rous e Rosita também pararam. Lloyd olhou rua abaixo; não viu nada além do torvelinho normal do tráfego.
— O que houve? — perguntou Rous.
Lloyd fez um gesto impaciente.
— São os desconhecidos! — disse apressadamente. — Estão bem perto. Eu os sinto.
Rous sentiu um calafrio. Os mirsalenses continuavam amontoados junto ao meio-fio, contemplando o espetáculo dos carros-teste da polícia.
— É agora! — gritou Lloyd baixinho. — Estão chegando.
Contorceu o rosto, como se estivesse sentindo dores. Com um movimento automático, abriu a pasta e retirou um dos pequenos geradores de campo defensivo que costumavam ser instalados nos trajes especiais de procedência arcônida e, em versão bastante aumentada, nas naves espaciais.
Rous não sabia o que pretendia fazer com o aparelho. Rosita soltou um grito estridente e apontou para a frente.
— Olhe...!
Na direção em que Rosita estava apontando, Rous viu que mais adiante o ar parecia tremeluzir em toda a largura da rua. Notou que, atrás da cortina de ar tremeluzente, não havia mais gente nas calçadas. E os carros, que pouco antes ainda se deslocavam em boa ordem, passaram a correr em todas as direções, subiam nas calçadas, batiam nos edifícios e colidiam uns com os outros...
A cortina parecia aproximar-se cada vez mais. O panorama era enlouquecedor: os homens desapareciam das calçadas, e os veículos desgovernados pareciam empenhados num jogo maluco.
Amontoados junto à rua, os mirsalenses tiveram sua atenção despertada para o fenômeno. A ampla rua subia suavemente para o norte, oferecendo ampla visibilidade. Todos viram com os próprios olhos que uma cortina, que tornava invisíveis os homens e fazia os veículos comportarem-se loucamente, descia progressivamente pela avenida.
Dali a alguns segundos, começou o pânico. A multidão uivava, gritava, empurrava, enquanto se punha em movimento, procurando afastar-se do terrificante e do incompreensível que se aproximava deles.
Rous, Lloyd e Rosita afastaram-se. De um jardim, contemplaram a corrida dos fugitivos e fitaram a “parede” tremeluzente que descia pela rua.
Parecia deslocar-se cada vez mais depressa.
Subitamente Lloyd despertou de seu torpor.
— Segure um deles! — gritou para Rous.
Rous não sabia o que queria dizer. Lloyd apontou para os mirsalenses que fugiam.
— Segure um deles! — gritou. — Rápido; não temos tempo a perder!
Rous pegou ao acaso um dos fugitivos. O homem resistiu desesperadamente, mas o tenente era muito mais forte que ele.
A “parede” estava se aproximando.
O mirsalense pendia frouxamente na mão firme de Rous. Fitou os três terranos com os olhos arregalados, gemeu e não disse uma única palavra.
— Vamos colocá-lo no meio! — disse Lloyd.
Rous compreendeu o que o companheiro pretendia fazer. Havia ativado o gerador do campo defensivo.
E a “parede” chegou...
Rous sentiu um ligeiro formigamento e teve a impressão de que uma brisa passava por ele. Posteriormente, quando rememorasse o fenômeno, não saberia dizer se a sensação fora provocada pela parede ou por sua fantasia.
Por uma fração de segundo o barulho que enchia a rua cessou.
Rous, Lloyd e Rosita estavam de mãos dadas, formando um círculo em cujo centro fora colocado o mirsalense.
O barulho voltou. Rous olhou rua abaixo e viu que os fugitivos eram atingidos pelo fenômeno invisível, e desapareciam. Agora a velocidade da “parede” parecia ser dez vezes maior. Precipitava-se rua abaixo e a varria. Dali a alguns segundos, não se via mais nenhum mirsalense.
Nenhum indivíduo além daquele em torno do qual Rous e seus companheiros haviam formado um círculo protetor!
O homem tremia, arregalava os olhos e não foi capaz de dizer uma palavra. Olhava rua acima e rua abaixo, respirava violentamente e começou a soluçar quando compreendeu a extensão da catástrofe.
Rous examinou-o e perguntou-se mentalmente:
“Será que este indivíduo nos poderia ser útil?”
Fora um objeto de experiência muito útil. A esta hora já sabia que um mirsalense cercado por três terranos e protegido por um potente campo defensivo pode ser salvo do desaparecimento.
Rous colocou a mão no ombro do homem e lhe disse em tom amável.
— Vá para casa e dê-se por satisfeito por ainda estar vivo.
O homem obedeceu sem dizer uma única palavra. Saiu aos tropeções, sem olhar para trás.
Rous retomou o ritmo de sua atividade.
— Vamos embora! Precisamos descobrir se nesta cidade existe alguém que tenha escapado à desgraça.
Lloyd colocou o gerador na pasta e dirigiu-se à entrada de metrô mais próxima.
— Não se iluda! — gritou Rous atrás dele. — O metrô não está funcionando mais. Já imaginou o que deve ter acontecido com os trens quando de repente ficaram sem maquinistas?
Rosita teve uma idéia melhor. Alguns dos automóveis que se encontravam na rua no momento da catástrofe continuavam intactos. Escolheu o veículo mais potente.
— Venham! — gritou. — Acho que ele nos será bastante útil.
Pouco antes de chegar ao automóvel, Rous viu alguma coisa no chão. Era azul, emitia um brilho suave e tinha o formato aproximado de um pente sem dentes. Rous não sabia para que aquele objeto já poderia ter servido. Seguindo uma inspiração momentânea, colocou-o no bolso.
Rosita percebeu.
— Oque quer com isso? — perguntou. 
Rous deu de ombros.
— Analisar. Ficou bem embaixo da “parede”. Talvez apresente alguns vestígios...
Sentou-se à direção do carro. Depois de ter conduzido o ônibus, não tinha a menor dificuldade de movimentar o automóvel e manobrá-lo cuidadosamente por entre os numerosos obstáculos que havia na rua.
No primeiro cruzamento dobrou para a direita. A rua lateral era estreita em comparação com a Alameda dos Reis, muito embora tivesse seus quarenta metros de largura. Tal qual a outra, estava vazia.
Rous procurou lembrar-se do lugar em que ficava o hotel. Uma vez que havia vindo de metrô, não tivera oportunidade de rememorar o itinerário. Mas conhecia a direção e tinha certeza de encontrar o caminho pelas ruas totalmente vazias.
Quando Lloyd se sobressaltou, deviam ter viajado uns trinta minutos.
— Há gente pela frente — disse apressadamente. — São muitos. Ao que parece, o desastre não atingiu toda a cidade.
Rous estreitou os olhos.
— Nesse caso devemos ter cuidado. Pensarão que qualquer pessoa vinda da área central da cidade é um inimigo.
O hotel ficava na periferia da cidade, distando ao menos quinze quilômetros da Alameda dos Reis. Rous levou uma hora e meia para percorrer esses quinze quilômetros, uma vez que não conhecia a cidade.
Finalmente chegou a uma rua que lhe parecia conhecida. Rosita lembrou-se de uma espécie de joalheria diante da qual parara de tarde, e Lloyd já sabia que caminho tomar para chegar ao hotel.
Rous dobrou a esquina e por pouco não bate no veículo vermelho que estava atravessado na rua.
Lloyd já afirmara que os impulsos captados vinham de bem perto. No carro estavam sentados cerca de vinte policiais com as armas levantadas, e de cada lado da rua havia dois policiais.
Rous parou; não teve outra alternativa.
— Cuidado, Lloyd! — cochichou.
Três policiais saltaram do carro vermelho e aproximaram-se do automóvel. Rous baixou o vidro do lado direito.
— De onde vieram? — perguntou um dos policiais.
— Dos subúrbios do leste — respondeu Rous.
— Atravessaram a cidade?
— Atravessamos.
— Como estão as coisas por lá?
Rous fez um gesto de pavor; nem precisou esforçar-se muito.
— Tudo vazio; todo mundo desapareceu!
— Conseguiu ver para onde desapareceram?
— Não; não presenciamos o fenômeno. Viemos pela ponte de Finnestal. Do lado de lá estava tudo em ordem, mas do lado de cá...
— Está bem — disse o policial. — Pode prosseguir. Passe pela calçada.
Rous agradeceu, dobrou para a esquerda e contornou o veículo vermelho.
— Acaba de cometer um erro — disse Rosita em tom tranqüilo.
— Qual foi?
— Não se despediu.
— O quê?
— Agradeceu, mas não se despediu. Não se esqueça de que entre os mirsalenses os cumprimentos desempenham um papel muito importante.
— Caramba! — resmungou Rous. — Talvez não tenham notado.
— Ele notou — respondeu Rosita. — Vi pelo rosto. Acho que a permissão para prosseguir representa um simples estratagema. Acho que teremos problemas.
Rous não disse mais nada.
Dali a alguns minutos, parou à frente do hotel.
Por ali as ruas também estavam vazias. Pelo que dizia Lloyd, os impulsos que o mesmo vinha captando procediam do sudoeste. Provavelmente essa parte da cidade era a única que escapara à desgraça.
O hotel estava ainda mais vazio que antes. Até mesmo o velhinho havia desaparecido. Rous tocou a campainha algumas vezes e, como não aparecesse ninguém, ele mesmo foi pegar as chaves dos seus quartos.
O elevador não funcionava. A catástrofe fizera desaparecer também os operadores das usinas de energia. Não havia eletricidade.
Subiram pelas escadas. Não diziam; uma única palavra. Tinham muito em que pensar.
Não se separaram. Foram todos ao quarto de Rous. Antes que este abrisse ai porta, Lloyd lhe fez um sinal de advertência e apontou para a porta. Rous ergueu as sobrancelhas, refletiu por um instante e acenou com a cabeça. Apontou para a pasta de Lloyd. Este pegou o projetor mental.
Depois entraram.
Ao primeiro relance de olhos parecia que nada tinha mudado. Mas assim que Rosita fechou a porta atrás de si, surgiram rostos atrás das poltronas, das cadeiras e das mesas.
Eram rostos de policiais. Ergueram-se de vez e via-se que mantinham apontados os lança-chamas portáteis.
Rous reconheceu um dos policiais. Era Flaring.
O comissário saiu de seu esconderijo. Com uma expressão de escárnio no rosto, disse:
— Pensamos que os senhores pudessem contar-nos alguma coisa sobre a última catástrofe; foi por isso que viemos.
* * *
Na Drusus foi registrado outro fading dos sinais emitidos pelos transmissores embutidos no corpo dos três agentes. Tal qual o primeiro, não durou mais que três segundos. Depois os sinais voltaram a ser recebidos normalmente.
Já o emissor que se encontrava a bordo da Gazela não sofreu a menor perturbação.
Rhodan supôs que seus agentes tivessem entrado em contato com o inimigo pela segunda vez. O fato de que depois do primeiro contato Rous não transmitiu qualquer aviso levava à conclusão de que o incidente não se revestira de maior importância.
Restava saber se desta vez o caso seria o mesmo.
* * *
— Por que pensa assim? — perguntou Rous em tom tranqüilo.
Flaring fez um sinal em direção às poltronas e disse:
— Sentem. E não façam tolices. 
Rous, Lloyd e Rosita obedeceram.
— Os senhores afirmam que vêm de Wollaston — principiou Flaring sem o menor intróito. — Em Wollaston vivem grupos de pessoas não civilizadas. Não acredito que qualquer dos senhores saiba guiar um ônibus sem receber a necessária instrução. E se souber, conhece as regras de trânsito e estaciona o veículo do lado esquerdo, não do direito.
Rous olhou-o atentamente.
— Muito bem — respondeu. — São suas suposições. E como continua a história?
— Desde que houve a catástrofe no campo, todas as saídas da cidade foram guarnecidas por duas fileiras de guardas. Ao virem de Resaz, os senhores passaram sem incidentes pela segunda barreira, ou seja, a interior; acontece que, por estranho que possa parecer, a barreira externa não se lembra de tê-los visto passar.
Rous levantou a mão direita, em sinal de concordância.
— Se a memória dos seus guardas é tão fraca, a culpa não é nossa — disse.
Flaring sorriu.
— A memória deles não é fraca coisa alguma. Além disso, ainda não cheguei ao fim. Os senhores estiveram na cidade, hoje de tarde, quando aconteceu o desastre. E são os únicos que não foram atingidos. Pode dar alguma explicação desse fato?
Rous baixou a mão.
— Não posso — confessou. — Apenas nos sentimos gratos por termos escapado.
Flaring tornou-se mais sério.
— Quer dizer que não mantém a afirmativa de que por ocasião do desastre se encontrava na ponte de Finnestal?
Rous ficou perplexo.
— O quê? Já sabe disso?
— Sim, já sei disso, e também sei que, contrariando todas as regras de etiqueta observadas em Wollaston, os senhores não cumprimentaram o guarda que os tratou com tamanha amabilidade.
Rous olhou para o chão.
— Preste atenção — prosseguiu Flaring. — Já somos bastante evoluídos para perceber que os senhores não são deste mundo. Nossa raça encontra-se no estágio inicial da Astronáutica. Provavelmente a sua já ultrapassou esse estágio. Resolveram atacar Mirsal; não sabemos por quê. Até agora não fizemos mal a nenhuma raça estranha, pois nem dispúnhamos de meios para isso.
“Portanto, não sabemos o que têm contra nós. Se soubéssemos, talvez poderíamos aplacar a raiva que evidentemente sentem por nós, evitando que nosso povo desaparecesse aos milhões.
“Não há nada que desejemos tanto como estabelecer uma paz em bases razoáveis com os senhores. Faremos o que estiver ao nosso alcance; apenas, não queremos que desapareça mais gente.
“Mirsal tem cerca de três bilhões de habitantes. Nos últimos dias cerca de dois milhões desapareceram. Não queremos que dentro de cinco ou dez anos nosso mundo fique totalmente desabitado.”
Rous ouvira com toda atenção. Depois olhoupara cima, fitando Flaring, e perguntou:
— O senhor está autorizado a entabular negociações?
Flaring viu-se mais próximo ao objetivo.
— Sim, naturalmente. O senhor deseja...?
Rous fez um gesto negativo e levantou-se.
— Guarde isso! — disse em inglês, dirigindo-se a Lloyd.
Lloyd guardou o projetor mental na pasta.
Rous deu alguns passos. Subitamente parou e virou-se para Flaring.
— O senhor é um homem sincero, Flaring. Por isso usarei de toda franqueza. É bem verdade que terei que decepcioná-lo. Não somos quem o senhor acredita que sejamos. Somos estranhos, mas não somos responsáveis pelo desaparecimento de dois milhões de habitantes do planeta. Nem nós, nem qualquer membro de nossa raça.
Lançou um olhar penetrante para Flaring. Este retribuiu com uma expressão pensativa. Finalmente levantou a mão direita, em sinal de concordância.
— Logo vi que não confiariam em nós — disse em tom abatido.
Rous sacudiu a cabeça e nem se deu conta de que Flaring não compreendia o gesto, que era de origem terrana.
— O senhor está enganado, Flaring! — disse em tom enérgico.
Explicou-lhe tudo que o policial precisava saber para compreender a situação dos três terranos. Calou aquilo que não podia revelar, como por exemplo os dados sobre seu mundo de origem, o nome e a posição. Também não revelou o papel que o Império Solar desempenhava no jogo do poder galáctico. Era claro que não podia deixar de explicar que na Galáxia existiam vários blocos de potências e grupos de interesse.
A exposição de Rous durou cerca de quinze minutos. Ao concluir, disse:
— O pior erro que poderia cometer seria tratar-nos como inimigos. Dispomos de recursos face aos quais seu equipamento mais moderno equivale aos machados da Idade da Pedra. Se é que existe alguém que pode localizar o inimigo invisível, somos nós. E o senhor se privaria dessa chance, se nos causasse problemas.
Via-se que ainda faltava muito para convencer Flaring.
— Diga-me uma coisa — pediu. — Que interesse poderia ter sua raça nos acontecimentos que se desenrolam em Mirsal? O senhor confessa que por duas vezes se viu numa situação na qual meus patrícios desapareceram, enquanto nada aconteceu aos senhores. Por que demonstram tanto interesse por esses ataques, se os mesmos não são dirigidos contra os senhores?
Um sorriso surgiu no rosto de Rous.
— É uma boa pergunta — confessou. — Não acredite que estamos agindo apenas por amor ao próximo. Um dos fatores principais que consideramos ao agir desta maneira é o fato de que qualquer um que queira manter-se na Galáxia deve estar a par do que acontece no interior dela. Tem de conhecer seus inimigos em potencial. Quando se depara com um fenômeno que não o atinge diretamente, não pode fechar os olhos; deve procurar desvendar o mistério. Se não o fizer, poderá perfeitamente ser a próxima vítima do desconhecido. Quem não colhe em tempo as informações de que precisa, não terá elementos para defender-se. Compreendeu?
— Compreendi — limitou-se Flaring a responder.
— Muito bem. Ainda acontece que somos uma raça que gosta de ajudar os outros. Se pudermos fazer alguma coisa para impedir que esses desconhecidos exterminem sua raça, nós o faremos. Mas para isso torna-se necessário que os senhores não nos criem problemas.
Lançou um olhar indagador para Flaring. Este hesitou um instante e respondeu:
— Não estou autorizado a decidir sobre isso. Terei de expor a uma autoridade hierarquicamente superior o que acabo de ouvir, e ela decidirá. A única coisa que posso fazer para facilitá-los — disse com um ligeiro sorriso — é não os colocar sob guarda. Prometem não sair da cidade?
Rous levantou a mão direita.
— Garanto.
— Muito bem. Informá-lo-ei o mais cedo possível sobre a decisão que for tomada.
Despediu-se com a maior cortesia. E nenhum dos seus subordinados saiu sem despedir-se dos estranhos.
Lá fora a noite descia sobre a cidade. Escureceu. Não havia uma única luz acesa. A polícia tinha muita coisa para fazer; não iria mandar seus homens guarnecerem as usinas de eletricidade.
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4
Lloyd e Rosita já se haviam retirado para seus quartos. Rous redigiu um relatório codificado sobre o que vira em Mirsal, relato este que pretendia transmitir à Drusus. Aludia às negociações realizadas com Flaring. O tenente pediu também o consentimento de Rhodan para a ação que pretendia realizar.
Depois de pronto, o relatório, formado por cerca de três mil palavras, estava resumido a uma série de pequeninos buracos abertos numa placa de plástico que poderia ser escondida na mão de uma pessoa.
Rous saiu à procura de Lloyd, que trazia o microcomunicador na pasta.
Atravessou o quarto de Rosita, que estava de pé, olhando pela janela. Ela não se virou à entrada de Rous, mas este ouviu-a dizer:
— Há um silêncio terrível por aí!
Rous foi à janela e colocou-se a seu lado. Não se via nada, nem mesmo a fachada dos prédios que ficavam do lado oposto da rua.
Cerca de um milhão e meio de pessoas haviam sido vitimadas pelo segundo ataque do inimigo invisível. Este número fora indicado por Flaring.
“Um milhão e meio de pessoas desapareceram de uma hora para outra da superfície deste mundo. Por quê? Qual será a finalidade disso?”, pensou o tenente.
Rous fervia de raiva ao pensar na desgraça.
— Espere! — disse. — Nós os agarraremos.
Rosita não respondeu. Rous saiu da janela e dirigiu-se à porta do quarto de Lloyd.
Quando entrou, viu-se envolvido por uma luz forte. Rous viu-se ofuscado, mas logo constatou que a claridade iluminava o quarto de Lloyd quase por igual e parecia vir de todas as direções. Parecia que tinha vindo de um quarto às escuras e entrado num outro que recebia a luz do sol por um grande número de janelas.
Rosita também percebeu quando a luminosidade penetrou pela porta.
Lloyd trabalhava em meio à claridade; ao que parecia, estava muito ocupado.
— O que é isso? — exclamou Rous. — O que andou fazendo?
Lloyd parou.
— Por enquanto não sei — respondeu um tanto contrariado. — Andei mexendo um pouco nisto, e de repente apareceu a luz.
— Andou mexendo em quê?
— No gerador do campo defensivo. Rous sentiu-se perplexo. Na pasta de Lloyd havia uma porção de objetos capazes de produzir luz. A iluminação de emergência da qual Rous se valera para confeccionar a chapa de plástico com o relatório destinado à Drusus também provinha dessa pasta. Mas de todos os objetos que Lloyd carregava, o gerador de campo defensivo era aquele do qual menos se esperava que pudesse ser usado como fonte de luz.
Rous e Rosita entraram e fecharam a porta atrás de si. Rous sentou-se numa poltrona.
— Explique! — pediu a Lloyd.
Lloyd passou a mão pela testa, como se tivesse necessidade de refletir.
— Deve estar lembrado de como salvamos aquele mirsalense na Alameda dos Reis — principiou. — Bem, desmontei o gerador para verificar se o campo defensivo poderia ser reforçado; para isso talvez se pudesse ligar o aparelho a uma fonte externa de energia. Como sabe, em princípio isso é possível. Só resta saber que volume de energia o pequeno aparelho pode absorver e utilizar.
— E depois? — perguntou Rous. 
Lloyd deu de ombros.
— Depois não sei mais nada. Retirei algumas células e as liguei de forma diferente. Subitamente o quarto se iluminou. Não faço a menor idéia sobre a causa do fenômeno.
Rous levantou-se de um salto.
— Onde está?
Lloyd apontou para a mesa.
Rous aproximou-se cautelosamente do pequeno gerador. Não era maior que um maço de cigarros. Lloyd havia retirado a tampa e mexera no complicado mecanismo com uma pinça de soldar.
Lloyd era técnico. Além da sua extraordinária capacidade parapsicológica, possuía conhecimentos quase completos sobre todos os problemas eletrônicos e gravitomecânicos que devem ser considerados na construção de geradores de campos defensivos e numa série de outros aparelhos.
Neste ponto o tenente não ficava nada a dever a Lloyd. Na Academia realizara cursos de Eletrônica e Gravitomecânica.
Era versadono assunto e, ao primeiro relance de olhos, percebeu quais haviam sido as modificações que o mutante introduzira no pequenino mecanismo.
Examinou as soldas novas e repassou em sua mente os circuitos modificados. Repetiu a experiência e chegou ao mesmo resultado.
Lloyd estava parado atrás dele, olhando por cima de seu ombro.
— O senhor sabe o que acaba de fazer? — perguntou Rous.
Lloyd fez que sim.
— Ao que parece, apenas modifiquei o formato do campo defensivo.
— Exatamente. O gerador produz um campo defensivo esférico, de raio variável e limitado. E agora...
— Agora é apenas um campo anular — completou Lloyd.
— Isso mesmo. Um campo anular, cuja situação ainda não conhecemos.
Prosseguiu na experiência. Ao que parecia, estava encontrando o que procurava. Pediu a pinça de soldar, fez algumas modificações, regulou o botão que havia na parte da frente do aparelho e olhou várias vezes em torno.
— Procuro localizar o campo — explicou. — Agora tem a forma de anel, não de esfera; acontece que não sabemos onde fica esse anel.
Continuou a trabalhar. De repente, Rosita, que também se encontrava no quarto, soltou um grito de surpresa.
— Olhem! Ali, na janela... 
Rous levantou a cabeça.
Junto à janela surgira uma mancha circular de luminosidade branco-azulada. Para além do círculo reinava uma escuridão completa. A luz que penetrava no quarto provinha exclusivamente dali.
— É estranho — murmurou Rous.
— Pensei que fosse um campo anular — disse Lloyd. — Acontece que isso não é um anel, mas um círculo.
Rous sacudiu a cabeça.
— Tolice. O que o senhor está vendo não é o campo, mas uma luz pura e simples. O campo é invisível. Estende-se em torno desse círculo de luz.
Rosita estava curiosa.
— De onde vem a luz?
— Bem que eu gostaria de saber — respondeu o mutante.
Por alguns minutos Rous fitou atentamente a mancha circular de luz. Subitamente estremeceu, como se acabasse de lembrar-se de algo importante, e pôs-se a trabalhar que nem um louco.
Lloyd e Rosita viram a mancha de luz diminuir; enquanto isso, a luz aumentava de intensidade e a iluminação já não era tão uniforme em todos os cantos do aposento.
Depois de algum tempo, o círculo, que de início medira uns setenta centímetros de diâmetro, se transformou num ponto de luminosidade muito concentrado.
Enquanto Rous continuava a trabalhar, o ponto voltou a estender-se. Rous percebeu a alteração e continuou a girar botões, fazer ligações e soldar peças até que o ponto voltasse a surgir sobre a vidraça.
Depois disso levantou-se.
— Aí está! — disse. — Sabe o que é isso?
Apontou para o ponto luminoso. 
Lloyd sacudiu a cabeça.
— É claro que eu também não sei — confessou Rous. — Mas tenho uma hipótese. Suponho que nosso campo circular desempenha por assim dizer as funções de lente. Concentra em seu foco os raios de luz emitidos por um objeto muito distante.
Lloyd olhou-o sem compreender nada.
— Que luz é esta? De onde vem? 
Rous cocou a cabeça.
— Aí que está o grande mistério. No momento em que desligo o gerador, a luz desaparece. Logo, não está em nosso espaço.
— Essa conversa é muito metafísica — resmungou Lloyd em tom irreverente. — Em que espaço poderia estar?
Entusiasmado com sua descoberta, Rous deu-lhe uma pancadinha amistosa.
— Não se esqueça de que nunca conseguimos ver os desconhecidos quando os mesmos se lançaram ao ataque! — exclamou. — Eram invisíveis. Se o senhor acha que a explicação baseada nos dois espaços diferentes, em que nós e os estranhos existimos, é complicada demais, basta imaginar que descobrimos um meio de destruir a invisibilidade desses seres.
“A realidade é a seguinte: o campo anular, com suas funções de lente, produz uma instabilidade na estrutura de nosso espaço. Essa instabilidade estabelece uma ponte entre dois contínuos: a luz pode passar de um ao outro.”
Lloyd fez um gesto afirmativo.
— Muito bem. Acho que estou compreendendo. E daí?
Rous apontou para o ponto luminoso.
— O que estamos vendo é uma imagem. Uma imagem de qualquer objeto que se encontra naquele outro espaço. Se pegarmos uma lupa para ampliá-la, poderemos ver o objeto.
— Pois bem; vamos pegar uma lupa. 
Rous fez um gesto negativo.
— Uma lupa seria apenas outra lente. Se a primeira lente é formada por um campo defensivo anular, a outra deverá ter as mesmas características. Tudo que temos de fazer é dissociar o círculo produzido pelo gerador em duas partes, a fim de que o mesmo produza dois campos anulares. Um deles servirá de objetiva, outro como projetor.
Olhou para trás.
— Ali temos uma grande parede branca. Se tivermos sorte, poderemos projetar-lhe a imagem.
Lloyd compreendera. Os dois começaram a trabalhar febrilmente no gerador. Rosita contemplava-os com os olhos curiosos, mas sem o menor conhecimento da matéria. Não sabia o que dizer de tudo isso.
— Sempre pensei — começou — que uma lente fosse feita de vidro. Será que não é?
Rous soltou uma risada.
— Geralmente são — disse. — Mas há cem anos os microscópios eletrônicos já tinham lentes feitas de campos elétricos ou magnéticos. Por isso um campo defensivo pode perfeitamente servir de lente.
— Está bem — disse Rosita. — Não entendo nada disso. Estou curiosa para ver o feitiço que sairá daí.
Face à atividade extraordinária de Lloyd e Rous só demorou meia hora até que um segundo círculo surgisse no meio do quarto. Mal se destacava da claridade ali reinante, e era maior do que o primeiro fora em qualquer momento. Rosita chamou a atenção dos dois homens sobre o fato.
— Muito bem! — exclamou Rous. — Esta é a ocular. Agora vamos girar até que...
Interrompeu-se em meio à frase, refletiu um pouco e bateu com a mão contra a testa.
— Que idiota que eu sou. Com uma ocular não se pode produzir uma imagem real. Para projetar precisamos de uma terceira lente. E o gerador não conseguirá formá-la. Portanto, devemos partir para a observação direta.
Colocou-se de tal maneira que o círculo que pairava no meio do quarto ficava entre ele e a janela.
— Apenas vejo claridade — disse um tanto decepcionado. — Gire o potenciômetro, Lloyd.
Lloyd começou a girar o pequeno botão. Rous olhava intensamente para o círculo luminoso.
— Pare! — gritou de repente. — Marque a posição, Lloyd!
Lloyd fez um pequeno arranhão na placa fronteiriça do aparelho, a fim de marcar a posição do potenciômetro. Rous fez mais alguns pedidos:
— Rosita, traga alguns panos e pendure-os sobre minha cabeça. A luz espalhada pelo quarto atrapalha minhas observações.
Rosita trouxe os panos.
Com a cabeça envolta nos mesmos, de tal maneira que apenas o círculo luminoso ficava à vista, Rous olhava fixamente para a frente, sem dizer uma palavra.
Só dali a uns dez ou quinze minutos, recuou e os deixou cair.
— Dê uma olhada — disse, dirigindo-se a Lloyd. — Não há dúvida de que é uma imagem; mas não faço a menor idéia do que seja.
Rosita não conseguiu dominar mais a curiosidade e perguntou:
— O que é que a gente vê? 
Lloyd descreveu o quadro:
— Vê-se uma superfície ampla e plana. Nessa superfície estão espalhados ao acaso vários objetos escuros. A imagem é colorida. Mas, ao que parece, as cores não são muito numerosas. Os objetos escuros... bem, talvez sejam máquinas; não sei.
— Alguma coisa se move? — perguntou Rosita.
— Não. Está tudo parado. A imagem dá a impressão de fotografia. Não vejo nenhum... um momento, o que é isso? — calou-se por um instante e prosseguiu em tom exaltado: — Agora houve um movimento. A imagem se moveu em conjunto. Parece que alguém a aumentou. Os objetos escuros tornaram-se maiores; realmente são máquinas.
Nesse instante, as observações do mutante foram interrompidas sem a menor contemplação. Rosita não conseguiu dominar a curiosidade: arrancou os panos que também lhe envolviam a cabeça, empurrou-o para o lado e colocou-se à frente do círculo.
Rous e Lloyd deixaram-na à vontade. Por alguns minutos Rosita manteve-se imóvel e em silêncio, contemplandoa imagem. Depois recuou e disse:
— Vejo que é uma planície que parece ter sido pavimentada de ladrilhos. Há ainda sombras que talvez sejam máquinas. As imagens não estão nítidas. Não vejo nisso nada de extraordinário.
— Ah, é? — disse Rous com uma risada. — Não acha nada de extraordinário? Sabe o que acaba de ver?
— Não — respondeu Rosita.
— Pois eu vou explicar. A senhora viu um mirsalense ser salvo pela influência de nosso gerador de campo defensivo. Por isso há de concordar em que esse campo exerce certos efeitos sobre o inimigo, seja ele quem for. Ainda não sabemos que efeito é esse. Esse mesmo campo defensivo, uma vez reduzido a uma forma adequada, cria certa instabilidade na estrutura espacial, e com isso uma ponte pela qual a luz pode passar do contínuo temporal do inimigo para o nosso.
Rosita começou a compreender. Fitou Rous com os olhos muito arregalados.
— Não venha me dizer que...
Rous acenou tranqüilamente com a cabeça.
— É isso mesmo que eu quero dizer. O mundo do inimigo é diferente do nosso. Encontra-se num outro contínuo, do qual vem lançando seus ataques. O que estamos vendo neste círculo não passa de um recorte pouco nítido do invisível.
* * *
Haviam dado o primeiro relance de olhos. Depois de longas semanas de luta contra o inimigo, conseguiram pela primeira vez lançar um olhar para o outro espaço, em que vivia esse inimigo.
Isso apenas serviu para fortalecer-lhes a confiança. Mesmo os fenômenos complicados e desenrolados durante a reprodução da imagem por meio do gerador de campo defensivo não faziam com que se tornasse possível saber onde poderia ser encontrado o objeto que viam reproduzido no círculo luminoso. Não havia como localizá-lo, e não se sabia se valeria a pena localizar alguma coisa que, por assim dizer, se achava em outro universo.
Nem sequer havia a menor indicação que permitisse uma conclusão sobre se aquilo que haviam observado realmente era um quadro estático, algo imóvel, ou se no outro espaço o fenômeno tempo sofria uma modificação que não lhes permitia notar os movimentos.
Rous acreditou que os súbitos deslocamentos do quadro, observados por várias vezes depois da primeira constatação de Lloyd — inclusive em sentido inverso, ou seja, no afastamento — não fossem um fenômeno real. Em sua opinião, tratava-se apenas de oscilações no gerador de campo defensivo.
Rous tentou transportar através do círculo luminoso um objeto para o espaço inimigo — um maço de cigarros, por exemplo. A tentativa foi um fracasso total. O maço de cigarros caiu ao solo do outro lado do círculo. Os dois campos anulares formavam um sistema de lentes de certa potência, mas não constituíam nenhum meio de transporte.
Além disso, Rous não ficou satisfeito com o grau de nitidez da imagem. Calculava que as máquinas vistas através do círculo luminoso, como produtos de uma tecnologia estranha que eram, talvez fossem objetos indecifráveis. Se conseguisse uma imagem mais nítida, talvez poderia reconhecer certas funções das máquinas. Talvez estas fossem as armas que o inimigo usava para lançar seus ataques cruéis contra Mirsal.
Todas as tentativas de obter uma imagem mais nítida resultaram em fracasso. Deviam dar-se por satisfeitos de terem obtido uma imagem, qualquer que fosse ela, por um meio tão estranho.
Depois de ter prosseguido nas observações por algumas horas, Rous desligou o gerador. Dali a meia hora, voltou a ligá-lo e sentiu-se aliviado. Ficou satisfeito ao constatar que o ponto e o círculo luminoso voltaram a surgir no mesmo lugar, e que através do círculo observado o quadro outra vez fazia-se presente.
A imagem podia ser reproduzida; era o que importava.
— Daqui por diante teremos que dispensar o campo defensivo — disse Rous. — Precisamos do gerador para outro fim, mais importante.
* * *
Na manhã do dia seguinte, bem cedo, apareceu Flaring. Trouxe boas notícias.
— Expus o assunto aos meus superiores — disse, depois de ter cumprimentado os três terranos um por um. — Fico satisfeito em poder anunciar que confiam plenamente nos senhores. Sentimo-nos gratos pela colaboração que nos oferecem e estamos dispostos a facilitar-lhes o trabalho na medida do possível. É bem verdade que gostaríamos de saber se têm algum plano bem objetivo.
— Queremos agarrar esses caras invisíveis — disse Rous com o rosto zangado.
Flaring sorriu.
— As intenções são boas — disse. — Mas será que já estão próximos disto?
— Não — suspirou Rous. — Um momento.
Tirou do bolso o estranho objeto de plástico que no dia anterior havia encontrado na Alameda dos Reis e estendeu-o em direção a Flaring. Explicou onde havia encontrado o objeto e disse:
— Gostaria que isto fosse analisado. Seus químicos devem saber de que é feito, ou melhor, de que deveria ser feito. O que desejo saber é se esta peça de plástico sofreu alguma modificação após o ataque do inimigo.
Flaring segurou cautelosamente o objeto.
— Providenciarei quanto antes. Tem mais alguma ordem?
Rous franziu a testa.
— Não temos nenhuma ordem. Ficaremos muito satisfeitos se pudermos formular alguns pedidos.
Flaring sentiu-se bastante lisonjeado.
— É isso mesmo — prosseguiu Rous antes que Flaring tivesse tempo de dizer qualquer coisa. — Gostaríamos de examinar num mapa as áreas atacadas pelo inimigo. Queremos saber onde ficam.
Flaring levantou a mão direita.
— Muito bem. Arranjarei imediatamente os mapas.
Despediu-se e saiu.
Rous aproveitou o tempo para completar o relatório que deixara de enviar na noite anterior, face às novidades importantes que haviam surgido. Apenas alguns furos a mais foram feitos na chapa de plástico. Depois introduziu-a no microcomunicador. Praticamente no mesmo instante os aparelhos da Drusus, que se encontrava a trinta milhões de quilômetros, captaram o interessante relato.
Mal Rous havia terminado o trabalho, Flaring voltou a aparecer.
— A análise ainda não foi concluída — disse, depois de ter cumprimentado os terranos. — Trouxe os mapas.
Espalhou-os sobre a mesa. O primeiro mostrava toda a província que se estendia de Resaz para Fillinan, e mais algumas centenas de quilômetros de ambos os lados. A área despovoada pelo ataque do inimigo invisível havia sido uma parte assinalada de vermelho e outra em negro.
Rous estacou ao constatar o estranho formato da parte circulada de negro.
— Tem certeza de que as informações desta anotação são corretas?
Flaring levantou a mão.
— Tenho certeza absoluta. Por certo pode imaginar que fazemos tudo para obter informações fidedignas.
— Está certo. O que acha desse formato?
O círculo vermelho descrevia aproximadamente o formato de uma calçadeira que tivesse sido aquecida e esticada o mais possível. Os contornos estranhos apresentavam duas “orelhas” ovais bem abertas no leste e no oeste, e entre as mesmas havia uma parte irregular e mais fina. Na “orelha” oriental havia uma falha elíptica, correspondente a uma área que não fora atingida pela desgraça.
Flaring dobrou o dedo, em sinal de que não tinha nada a dizer.
— Já quebramos a cabeça sobre isso — disse. — De início pensamos que o inimigo estivesse interessado em fazer desaparecer o maior número possível de pessoas. Acontece que justamente neste local — apontou para a falha da parte oriental — fica Kelleyhan, uma cidade de cerca de trezentos mil habitantes. A população de toda a área restante é setenta por cento menor que à de Kelleyhan.
— Quer dizer que a área não é das mais densamente povoadas?
— De forma alguma. A área industrial de Russom, situada ao norte, tem duzentos e cinqüenta habitantes por quilômetro quadrado. E aqui, entre Resaz e Fillinan, existem apenas vinte habitantes por quilômetro quadrado.
Rous passou a examinar o segundo mapa, que mostrava em escala maior os arredores de Fillinan, numa extensão de duzentos quilômetros. Soube então que a desgraça ocorrida no dia anterior não ficara restrita à área urbana de Fillinan, mas se estendia para o norte e o leste, numa extensão de cento

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