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P 198 O Último Reduto H. G. Ewers

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O ÚLTIMO REDUTO
Autor
H. G. EWERS
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
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Finalmente Iratio Hondro consegue encontrar-se com Rhodan, mesmo sendo pela última vez...
Depois de terem vagado durante vários meses pelo espaço, Perry Rhodan e seus amigos finalmente conseguiram voltar à Terra, embora muitas vezes sua situação fosse tão desesperada que ninguém mais lhes teria dado uma chance.
No planeta Terra registram-se os últimos dias do mês de julho do ano de 2.329. Os planos do grupo terrorista Estrela Negra, cujos agentes fanatizados por pouco não destruíram os principais mundos do Sistema Solar, puderam ser frustrados. Ninguém contesta a posição de Perry Rhodan como Administrador Geral do Império Solar, e a maior parte dos administradores dos mundos coloniais terranos reconheceram que nas atuais condições políticas é preferível permanecer sob a proteção do Império Solar a empenhar-se por seus próprios objetivos egoísticos.
Mas Iratio Hondro, chefe supremo de Plofos, um dos mais antigos e poderosos mundos coloniais do Império Solar, não desiste nem mesmo depois que seu regime apoiado no terror e na opressão é derrubado pela atividade dos agentes de Allan D. Mercant.
Mesmo depois de ter sido expulso do planeta da Última Esperança, o chefe supremo prossegue na luta. Voa para Opposite, que para ele é O Ultimo Reduto...
= = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = =
Iratio Hondro — O chefe supremo que reuniu seus últimos seguidores.
Major Ragna — Ele e os homens de seu comando ficam risonhos enquanto voam para a morte.
Merk Nateby — Um oficial da Guarda Azul que perdeu o direito de viver.
Tenente Nasaro — Chefe de um comando de caça.
Nome Tschato e Dan Picot — Dois homens da Lion.
Perry Rhodan — O Administrador que enfrenta seu pior inimigo.
Atlan — Um arcônida cuja nave-capitânia descobre o último reduto.
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Os dois cientistas estavam uniformizados. Usavam o conjunto azul que distinguia os membros da chamada Guarda Azul, uma tropa de elite do antigo chefe supremo de Plofos.
O que mais chamava a atenção no uniforme discreto era um grande e luminoso V vermelho, pregado do lado esquerdo do peito. Tratava-se de um sinal correspondente a uma velha tradição terrana, que significava o V da vitória.
Durante certo tempo o símbolo acompanhara a Guarda Azul e Iratio Hondro, o antigo chefe supremo de Plofos, de uma vitória para outra — e depois por uma sucessão de derrotas.
Mas aqui, no laboratório de molkex da base, dirigido pelos dois cientistas, trabalhava-se para que o V voltasse a ser o símbolo da vitória — da vitória final.
Os homens conversavam aos cochiches, enquanto observavam o trabalho quase completamente silencioso do centro de computação positrônica do laboratório. Conheciam a importância de seu trabalho e sabiam o que os esperava se dentro em breve não pudessem apresentar resultados definitivos ao chefe supremo.
Era bem verdade que o laboratório tinha sido instalado numa base escondida nas montanhas de certo planeta, bem longe das rotas astronáuticas, mas assim mesmo as naves terranas poderiam aparecer a qualquer momento.
O motivo disso era o comportamento do chefe da defesa espacial, que tinha fugido, e que, sem desconfiar de nada, mandara bombardear a nave terrana solitária que se aproximara de um planeta vizinho com foguetes de fusão. No momento a nave estava voltando pelo espaço, em velocidade inferior à da luz. Ninguém sabia interpretar a manobra.
— O resultado deveria sair agora — disse Korda Trahub, um dos cientistas.
Mink Kohol acenou melancolicamente com a cabeça.
— Tomara que desta vez tenhamos sorte, senão...
Interrompeu-se, mas Trahub sabia o que queria dizer.
Kohol esmagou o cigarro e aproximou-se do painel de controle do centro de computação positrônica. Bateu nervosamente com os dedos no setor de saída. Estremeceu quando s00u o sinal estridente que indicava a conclusão da fase de processamento. Arrancou apressadamente a folha de plástico da fenda de saída e passou os olhos pelos símbolos gravados em baixo relevo.
O coronel Trahub estava de pé atrás dele.
— Então? — perguntou em tom impaciente. Não sabia decifrar os sinais sem o aparelho decodificador, mas o Major Kohol sabia.
O major virou a cabeça. Seus olhos brilhavam.
— Desta vez o sucesso está garantido. Os cálculos realizados pelo centro de computação positrônica indicam uma probabilidade positiva de noventa e um por cento. O último resultado...
— ...foi de vinte e três por cento; já sei — disse o coronel em tom contrariado. — Infelizmente noventa e um por cento não é a mesma coisa que cem por cento.
— Acontece... — o Major Kohol respirava com dificuldade — ...acontece que o centro de computação positrônica nem conhece uma probabilidade de cem por cento. Nem mesmo que eu introduza um mais um no mesmo.
— Procure explicar isso ao chefe supremo — respondeu Trahub. Ele nos obrigará a garantir o êxito da nova arma — e ai de nós se houver uma falha que seja!
— Mas falar não resolve. Ligue para a observação pela câmara e ative a carga.
O Major Kohol moveu uma chave. Uma tela iluminou-se na parede de controle do centro de computação positrônica. Nela apareceu uma câmara quadrada, cujas paredes eram feitas de metal plastificado reflexivo. Exatamente no centro da câmara estava suspensa, como que segura por mãos de fantasma, uma esfera metálica de nove metros de diâmetro. A mesma ocupava aproximadamente a milésima parte do volume da câmara.
O Major Kohol examinou a esfera com um olhar desconfiado.
— Receio que a massa seja muito grande. Acho que deveríamos duplicar a quantidade de molkex.
— Tolice! Zero vírgula três miligramas é quanto basta. Não queremos explodir toda a base.
O Major Kohol soltou uma risada histérica.
— Cuide do seu trabalho! — advertiu o coronel. — A memória detonadora está com plena carga?
— Está, sim senhor — respondeu Kohol. — Pronta para detonar.
— Detonar! — ordenou o coronel Trahub.
A testa de Kohol cobriu-se de pinguinhos de suor. Estendeu a mão em direção a um quadro de comando vermelho, respirou profundamente e baixou rapidamente a mão.
Em algum lugar, nos setores invisíveis do laboratório de molkex, um fluxo de impulsos foi liberado. Numa velocidade incomparavelmente superior à da luz, de uma forma que antes poderia ser comparada ao tempo zero de uma transição, o fluxo de impulsos atingiu no mesmo instante em que foi liberado a câmara experimental situada a meio quilômetro de distância.
Imediatamente Trahub e Kohol sentiram-se ofuscados e fecharam os olhos. Mas não foi a explosão de molkex que produziu a luminosidade ofuscante, mas antes o impulso detonador.
A reação provocada no molkex pelo impulso hiperenergético era completamente silenciosa, pois sua ação se desenvolvia na quinta dimensão, que nem a de uma bomba gravitacional.
O molkex desapareceu no hiperespaço, arrastando uma massa correspondente à energia contida no mesmo.
No lugar em que pouco antes se vira uma esfera de aço só restava o vácuo da câmara experimental. E, mais do que isso, o Major Kohol e o Coronel Trahub ficaram apavorados ao notar que as primeiras duas camadas de metal plastificado da parede da câmara estavam faltando. O molkex as tinha levado.
Os oficiais cientistas levaram alguns minutos para recuperar-se da surpresa.
— Zero vírgula três miligramas! — gemeu Kohol. — Jamais alguém se atreverá a usar esta arma contra um planeta. Quantas toneladas de molkex cabem nos novos foguetes?
— Vinte e sete toneladas! — exclamou Trahub numa expressão de frio triunfo. — Com esta arma o chefe supremo conquistará a Galáxia — mas a Terra terá de morrer.
Naquele momento o Coronel Trahub nem se lembrava de que seus antepassados também tinham vindo da Terra...
* * *
Dez minutos depois do momento em que Trahub comunicou ao chefe supremo que a última experiência fora coroada de êxito, anunciou-se que Iratio Hondrofalaria ao povo.
O discurso começaria às 6:10 horas, tempo local.
Era muito cedo. Mas convinha saber que em virtude da rotação rápida do planeta a hora de Opposite só tinha trinta e seis minutos. Só assim se compreendia que o dia de trabalho começasse tão cedo. Opposite, que era o terceiro planeta do sol verde Whilor, levava 14:4 horas para descrever um movimento de rotação completo em torno de seu eixo polar. Assim, para dividir o dia em vinte e quatro horas, tornava-se necessário reduzir o número de minutos de cada hora para trinta e seis. Foi o que fez a guarnição plofosense da base.
No momento todo mundo estava de folga, com exceção das sentinelas. Mas ninguém abandonou seu local de trabalho, pois em toda parte os receptores do intercomunicador estavam colocados no chão ou pendurados no teto, e dentro de alguns minutos o rosto de Iratio Hondro apareceria nos mesmos.
No laboratório também reinava silêncio. Trahub e Kohol tinham-se acomodado nas banquetas e olhavam fixamente para o desenho colorido intermitente da faixa comunitária. Seus rostos pareciam congelados, e instintivamente entesaram o corpo.
Às 6:10 em ponto, tempo local, o desenho colorido apagou-se.
O rosto do chefe supremo apareceu nas telas. Os traços do rosto de Iratio Hondro pareciam tranqüilos. O cabelo crespo e curto realçava os contornos angulosos do rosto e formava um contraste marcante com o brilho indômito de seus olhos. Era uma personalidade fascinante. Nenhum dos quatro mil plofosenses que trabalhavam na base conseguia escapar ao seu encanto.
Iratio Hondro sabia enfatizar sua fala e dar um realce emociona ao conteúdo frio de suas palavras, elevando e baixando a voz. As reações dos subordinados lhe eram transmitidas por via acústica, através de um receptor coletivo. Geralmente este receptor não transmitia nenhum ruído. Só de vez em quando o prenuncio das tempestades de aplausos era dado por meio da respiração apressada de milhares de bocas.
De início do chefe supremo ofereceu um apanhado geral da situação. Naturalmente preferiu não dizer a verdade sobre os acontecimentos que se tinham desenrolado em Plofos, ou pelo menos sobre o que havia atrás dos mesmos. Disse que os revolucionários de seu povo eram rebeldes, comandados por um grupo de usurpadores que pretendiam submeter Plofos a um regime de força dirigido pelos terranos. Como os quatro mil plofosenses que se encontravam na base de Opposite tinham sido educados desde a juventude na ideologia do estado ditatorial, ninguém duvidou das palavras de Iratio Hondro. Primeiro surgiram vozes isoladas, e depois verdadeiros coros que exigiam a reconquista de Plofos e a guerra total contra o Império Unido de Perry Rhodan.
Iratio Hondro deixou que a manifestação prosseguisse por algum tempo, mas finalmente interrompeu o berreiro com um gesto autoritário. No mesmo instante todo mundo ficou em silêncio.
— Obrigado pela confiança que depositam em mim, membros da Guarda Azul! — disse Iratio Hondro numa voz baixa, à qual deu um tom emocionado. Mas logo prosseguiu em voz alta e num tom duro.
— Por enquanto os terranos ainda são mais fortes que nós. Mas isso não lhes adiantará nada se não nos deixarmos provocar. Sei que todos vocês só conseguirão atravessar o período de espera com os dentes cerrados e os corações sangrando. A mesma coisa acontece comigo. Meu coração também se contrai diante das atrocidades cometidas pelos terranos, de que a cada dia e a cada hora se tem notícia em Plofos.
— Mas Rhodan, que costuma chamar-se de Administrador Geral, está muito errado se pensa que pode aproveitar nossa fraqueza.
— Há de chegar o dia — e este dia está bem mais próximo do que vocês pensam — em que a tempestade da nossa vingança o varrerá da Galáxia. A nova arma criada pelos cientistas da Guarda Azul é irresistível. Vamos usá-la quando julgarmos conveniente. Até lá só posso pedir-lhes que tenham paciência.
Iratio Hondro fez uma pausa, durante a qual soaram novas tempestades de aplausos. Atrás de seu rosto confiante o cérebro estava trabalhando. Sabia que os quatro mil seguidores que continuavam leais a ele tinham sido informados de sua queda por meio de mensagens de rádio. Mas isso não o deixava preocupado. O que realmente o incomodava era o fato de que os cientistas de Rhodan tinham descoberto um remédio capaz de curar certo vírus.
Tratava-se de um vírus submetido a um processo de mutação artificial, e que fora usado por Iratio Hondro para contaminar todos os subordinados que ocupavam posições importantes. A infecção provocava a morte dentro de trinta dias. Mas ninguém precisava morrer — pelo menos ninguém que se conservasse leal ao chefe supremo. Este possuía uma droga que neutralizava a ação do vírus, e mandava injetar a mesma antes de decorrido o prazo de trinta dias. Desta forma podia contar com a dedicação irrestrita de seus subordinados — até o dia em que foi descoberto o remédio que curava a doença não somente por algumas semanas, mas para toda a vida.
Fora realmente muito simples. A invenção terrana acarretava problemas difíceis para Iratio Hondro. Os subordinados que só se haviam mantido fiéis a ele de medo o abandonaram no momento em que os terranos lhes ofereceram a cura completa. Não havia motivo para recear que isso acontecesse com os quatro mil membros da Guarda Azul que se encontravam em Opposite, mas Iratio Hondro foi bastante inteligente para também lhes prometer a cura completa assim que Plofos tivesse sido libertado.
Um furacão de aplausos irrompeu entre os ouvintes. O chefe supremo sorriu para a objetiva. Sabia que as últimas pessoas que se mantinham fiéis a ele o seguiriam, para onde quer que o destino o levasse. Quase chegou a acreditar que realmente ainda existia uma possibilidade de modificar a situação. Levantou o braço.
No mesmo instante a tempestade de aplausos cessou. Iratio Hondro iria dar início ao ponto culminante de seu discurso. 
Eram 6:34 horas, tempo local.
No mesmo instante o chefe supremo baixou a mão, enquanto os aparelhos de transmissão foram desligados. O final do discurso nunca chegou a ser pronunciado.
O motivo foi uma lâmpada vermelha — que os espectadores não podiam ver — que se acendeu em cima da objetiva. Era o centro de comando da base que desejava entrar em contato com Iratio Hondro.
* * *
Os oficiais que se encontravam presentes fizeram continência quando Iratio Hondro entrou no amplo recinto oval em que funcionava a sala de comando.
A sala era muito parecida com a sala de comando de uma grande espaçonave.
O chefe supremo respondeu às continências com um simples aceno de cabeça. Dirigiu-se apressadamente às telas e escalas do sistema de rastreamento que funcionava a velocidade superior à da luz. Não teve necessidade de perguntar quais eram as indicações mais importantes. Só se interessou por uma das telas, na qual brilhava um pontinho verde, que deveria estar em movimento.
Mas não estava.
O rosto do chefe supremo assumiu uma expressão sombria. Examinou a escala. Sabia perfeitamente que antes do início de seu discurso os números que apareciam na mesma tinham mudado constantemente, o que era a melhor prova de que o couraçado terrano continuava a afastar-se do sistema de Whilor a uma velocidade inferior à da luz.
E isso numa distância de apenas três dias-luz.
Iratio Hondro virou a cabeça com uma lentidão incrível. Quando estava encarando o oficial de plantão na sala de comando, a expressão de angústia que havia em seus olhos tinha desaparecido, dando lugar a uma máscara que revelava um interesse puramente intelectual.
— Major Ragna, o senhor tem certeza de que se trata do mesmo couraçado que fez uma escala em Pulsa?
— Sim, chefe supremo. Não perdemos esta nave de vista por um instante que fosse. Parou no espaço e ficou em posição de espera. Seguindo as ordens que me foram dadas, dei o sinal. Se bem que tenho a impressão... — o major hesitou, pois parecia um tanto inseguro — ...se bem que tenho a impressão de que essa nave está avariada. Talvez seja por issoque...
— Faça o favor de deixar as conclusões por minha conta, Major Ragna! — disse Iratio Hondro com a voz gelada. — Pouco importa que este couraçado esteja avariado ou não, o fato é que parou justamente no lugar mais indicado para a penetração de uma nave linear.
— O senhor acredita que está à espera de reforços? 
Iratio Hondro acenou com a cabeça.
— Mas não captamos nenhuma hipermensagem, chefe supremo.
— Tenha a bondade de usar sua cabeça para pensar, major! Qualquer couraçado traz naves auxiliares a bordo, e a julgar pelo comportamento que o comandante desta nave adotou em Pulsa, ele enviou no devido tempo uma nave auxiliar para trazer socorro.
O Major Ragna estremeceu. Soube avaliar corretamente a repreensão que Iratio Hondro acabara de formular. Teria de esforçar-se muito para não cair em desgraça e perder todas as honrarias. Apesar disso não conseguiu reprimir a pergunta seguinte.
— Será que não deveríamos destruir este couraçado...?
Iratio Hondro exibiu um sorriso jovial. O Major Ragna compreendeu que acabara de perder de vez o jogo.
— A sugestão até que não é má, major. Mas o senhor esqueceu um detalhe. A frota terrana não descansaria enquanto não ficasse esclarecido o que aconteceu com o couraçado. Major, sua sugestão quase chega a ser uma traição à nossa base...
O Major Ragna recuou, pálido e apavorado.
— Saberei perdoá-lo se cumprir satisfatoriamente a tarefa que vou lhe atribuir.
O Major Ragna ficou muito vermelho no rosto. Seu corpo entesou-se e sua voz soava estranhamente aguda quando respondeu:
— Fico-lhe muito grato, chefe supremo! Disponha de mim.
— O senhor nem me perguntou qual é a tarefa, major. Pois eu lhe direi. O senhor e mais dezenove voluntários, que o senhor arranjará dentro de dez minutos, atacarão o couraçado terrano.
— Nós o transformaremos em pó! — exclamou o Major Ragna.
— Não seja idiota! — chiou Iratio Hondro. — Vocês não transformarão o couraçado em pó, mas serão transformados por ele. Entendeu?
— Perfeitamente, chefe supremo! — respondeu o Major Ragna com a voz firme. Começava a compreender que ele e os outros voluntários nunca regressariam da missão que teriam de cumprir.
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2
A figura fantasmagórica que há pouco estivera de pé no topo da duna, imóvel, foi atirada para baixo pela primeira rajada de vento.
Ficou deitada até que a areia fina e avermelhada a cobrisse quase completamente.
Só então o Major Merk Nateby levantou a cabeça e prestou atenção aos uivos intermitentes da areia e ao farfalhar da areia semelhante ao ruído das ondas que tocam a praia. Teve de esperar bastante para ouvir em meio à melodia noturna do deserto o único som que lhe interessava: o chiado agudo que um gerador antigravitacional costuma emitir quando tem de usar sua energia pára enfrentar uma tempestade de areia.
Quer dizer que continuavam em seus calcanhares. Quem estava em seus calcanhares era o comando de caça da base do chefe supremo, e ele, Merk Nateby, há ainda pouco fora o chefe da defesa espacial do mesmo chefe supremo. Infelizmente cometera um erro imperdoável: agira precipitadamente, sem aguardar ordens. Merk Nateby procurou não se lembrar do que tinha acontecido há doze dias. Mas não conseguiu afastar as imagens que surgiam em sua memória.
Na oportunidade era o oficial encarregado do centro de comando da base. Notara o súbito aparecimento de um couraçado terrano e imediatamente mobilizara toda a seção de rastreamento, que funcionava a velocidade superior à da luz, para observar a unidade. Mas o couraçado não se aproximara de Opposite; entrara numa órbita em torno de Pulsa, o gigante de metano em que ficava o reservatório de molkex.
De repente surpreendeu os observadores, descendo em Pulsa sob a ação de estranhos efeitos hiperfísicos.
Merk Nateby conhecia as condições reinantes em Pulsa. Sabia que o comandante da nave terrana enfrentaria dificuldades. Por isso julgou chegado o momento de intervir para dar cabo do couraçado. Tentara pedir instruções a Iratio Hondro, mas quando fez a medição das emanações hiperenergéticas ocorridas nas proximidades do lugar em que o couraçado estava pousando, resolveu não esperar mais. Afinal, não tinha a menor dúvida de que as ordens do chefe supremo corresponderiam exatamente ao que ele pretendia fazer. Deu ordem ao centro de comando de tiro para que atacasse a nave terrana pousada em Pulsa com foguetes atômicos e destruísse a mesma.
Mas logo veio a ducha de água fria.
Os seres hiperdimensionais de Pulsa não prosseguiram em seus ataques ao couraçado, mas desapareceram no hiperespaço ou passaram a agrupar-se em torno dos locais de impacto dos foguetes atômicos. A nave, que não foi atingida pelos foguetes, decolou. Certamente seu comandante tinha reconhecido o perigo. Desta forma Merk Nateby não pôde dar ordem para prosseguir no bombardeio. A nave escapou.
Mais tarde ficaria sabendo que seu procedimento de forma alguma correspondia às intenções do chefe supremo. Em hipótese alguma queria atrair as atenções dos terranos para Opposite. Não demonstrou a menor compreensão pelo engano que o major tinha cometido. Quando Iratio Hondro se pôs a esbravejar pelo intercomunicador, Merk Nateby sabia o que o esperava. Não esperou pelo comando de captura: preferiu fugir.
O Major Merk Nateby sempre fora um oficial cumpridor de seu dever, que mantinha fidelidade absoluta à linha política da Guarda Azul. O castigo que lhe seria imposto não modificava isso. Mas para ele a honra era mais importante que qualquer outra coisa.
Só fugira para salvar a honra. Agia assim em conformidade com uma lei muito antiga da Guarda Azul de Opposite. Se alguém conseguia fugir e escapar ao castigo imediato, ele tinha a possibilidade de ficar impune e ter restaurada sua honra.
Merk Nateby conseguira fugir. Mas os comandos de caça ainda estavam à sua procura, e se conseguissem encontrá-lo antes que atingisse determinado ponto situado além do deserto, estaria praticamente perdido.
E ainda se encontrava a uns cem quilômetros desse ponto.
O lugar ao qual se dirigia era a aguada chamada Muddy Water, que ficava do outro lado da faixa desértica que se estendia entre a base oculta na serra da Corcova e a pradaria de Badgers. Só poderia considerar-se salvo quando atingisse Muddy Water. Depois que isso acontecesse, os comandos de caça seriam obrigados a levá-lo de volta à base e ele continuaria a exercer as funções de oficial do chefe supremo.
Um riso martirizado saiu da boca de Merk Nateby, quando ele se lembrou disso. As chances de um fugitivo eram de um contra cem mil. Quem não era capturado pelos comandos de caça morreria tostado pelo sol ou seria sepultado por uma tempestade de areia. A rajada que atirara o major para baixo da duna fora somente uma lufada normal do vento que costumava soprar de noite. A uma tempestade de areia ninguém conseguia resistir. Merk Nateby fazia votos de que a tempestade não aparecesse antes que ele conseguisse chegar ao seu destino.
Os ruídos ocasionais do gerador antigravitacional foram-se tornando menos intensos. Merk Nateby foi-se levantando. Imediatamente foi atingido pelo vento, que puxava furiosamente em seu uniforme.
Mas o vento estava do lado de Merk. Enquanto os comandos de caça tinham de lutar contra o mesmo, Merk podia deixar-se tanger. Seu caminho era o mesmo do vento — o caminho que levava para a serra da Corcova.
* * *
O sargento Holgan praguejou enquanto fazia seu planador descrever uma curva fechada.
Conseguiu escapar à violência de uma rajada de vento, mas em compensação a rajada seguinte atingiu em cheio o pequeno veículo e virou a proa em sentido contrário, enquanto uma nuvem de areia fina se derramava em seu interior.
O jovem tenente que chefiava o comando de caça número 1 cuspia e tossia. Um rangido desagradável se fez ouvir quando limpou os óculos protetores de pó com a manga do uniforme. A areia estava em toda parte, nos ouvidos, no nariz, na boca e até nos olhos. Os óculos não ofereciam proteção suficiente contraas finíssimas partículas de pó.
Olhou por cima da borda do veículo aberto. Notou que a tempestade vinha de trás.
— Ei, sargento! — berrou. — Aonde pensa que vai?
A rajada seguinte quase lhe tirou o fôlego. Desta vez voltou a soprar da frente, o que era o único sinal de que o sargento havia retificado a rota.
No seu íntimo o sargento praguejou contra a tarefa que lhe fora confiada. Mas isso não o impedia de levar avante a perseguição.
O Major Nateby tivera azar. Por coincidência era chefe da defesa espacial, e justamente quando estivera de serviço na sala de comando, acontecera. Se a ordem tivesse partido de outra pessoa, o centro de comando de tiro não teria disparado contra o couraçado terrano. O chefe da defesa espacial era a única pessoa autorizada a transmitir diretamente as ordens do chefe supremo, sem apresentar o sinal de confirmação. Infelizmente, conforme se verificaria depois, o chefe supremo não tinha dado a ordem. Diante disso os comandos de caça mais uma vez tiveram de entrar em ação.
O Tenente Nasaro sabia que as chances de descobrir um fugitivo de noite, em pleno deserto, eram reduzidíssimas. Nateby poderia estar deitado atrás da duna mais próxima. Só o encontrariam se passassem bem perto, pelo topo de uma duna, para que o visor infravermelho reagisse ao calor emitido por seu corpo.
Era bem verdade que o visor infravermelho já tinha reagido mais de uma vez. Mas sempre se verificara que as emanações de calor provinham de um texugo venenoso, um animal de um metro de comprimento que existia as centenas no deserto.
Depois do raiar do sol as coisas seriam bem diferentes. Até o meio-dia não costumava haver vento, e dessa forma teriam tempo suficiente para procurar a pista do fugitivo.
O Tenente Nasaro soprou no microfone do rádio-capacete. Depois ligou a faixa dos comandos, os números dois, três e quatro. 
— Favor responder.
Os chefes dos outros comandos foram respondendo ao chamado. Tal qual Nasaro, não tinham conseguido nada. O tenente, que fora encarregado da c00rdenação da operação de caça, mandou que os outros prosseguissem mais dez quilômetros para o oeste, em direção a Muddy Water, para entrar numa posição de interceptação.
— Gostaria de manifestar minhas dúvidas — disse a voz do sargento Hito, que saía do receptor juntamente com um forte ruído de interferência. — Nateby ainda não pode ter avançado tanto no meio da tempestade. Deveríamos ficar onde estamos e procurar ao amanhecer na direção leste.
— Sugestão recusada! — disse Nasaro em tom áspero. Nateby só pode seguir para o oeste. É possível que no momento a tempestade o atrapalhe, mas depois que raiar o dia procurará avançar o mais depressa possível.
— Sim senhor! — disse o sargento Hito. — Mas com sua licença, se eu tivesse de fugir procuraria ficar escondido até que meus perseguidores se cansassem.
— Acontece que o senhor não está fugindo. Ou será que está com vontade.
O Tenente Nasaro ainda ouviu alguém praguejar baixinho. Em seguida Hito desligou. Deu uma risada áspera, e as vozes dos chefes dos outros dois comandos o acompanharam.
— Faça o favor de desligar! — resmungou Nasaro em tom mordaz. — Se eu estou rindo, nem por isso os senhores precisam rir também. Entendido?
Não esperou resposta. Desligou. Só então notou que a tempestade tinha diminuído. Olhou para trás e viu em meio à escuridão que se espalhava pelo horizonte leste alguma coisa parecida com tinta luminosa que alguém tivesse espalhado pelo céu. O sol estava derramando sua luz verde sobre os cumes mais elevados da serra da Corcova.
— Pois então! — suspirou, aliviado. — Logo poremos as mãos nele.
O sol foi subindo rapidamente sobre as montanhas, em virtude do rápido movimento de rotação de Opposite. Os cumes foram-se iluminando, e finalmente a torrente de luz inundou o próprio deserto. Só os flancos ocidentais das montanhas continuavam mergulhados nas sombras, formando uma parede sombria e ameaçadora, entrecortada e rachada pela alternância ininterrupta do sol abrasante e do frio da noite.
Naquele lugar o deserto propriamente dito era uma área ondulada, onde as subidas e as descidas das dunas de areia ficavam num movimento quase ininterrupto. A areia vinha da rocha basáltica da serra da Corcova. Desprendia-se da rocha, acumulava-se ao pé das montanhas em forma de montes de pedra e dali o vento a tangia para o deserto. O vento acabara de silenciar; as marcas que iam sendo traçadas nas dunas eram o único sinal de que continuava em atividade.
Aos olhos de Nasaro as encostas suaves das dunas situadas a barlavento eram como que folhas de papel expostas, nas quais o rastro de um ser humano não poderia deixar de ser notado. Já as encostas situadas a sota-vento eram esconderijos sombrios, difíceis de reconhecer, que só poderiam ser examinados bem de perto. Nasaro acreditava que Merk Nateby deveria estar escondido atrás de uma encosta de sotavento, onde fatalmente acabaria por trair-se por um movimento ou pelos rastros deixados durante um salto apressado que desse sobre o topo desguarnecido de uma duna.
— Assumimos a posição de interceptação! — informou o sargento Holgan.
O Tenente Nasaro descansou o binóculo.
— Faça uma pausa para o lanche, sargento. Ficarei vigiando.
Nos cinco minutos que se seguiram os outros comandos também anunciaram o cumprimento da ordem que tinham recebido.
— Fiquem de olho! — advertiu Nasaro para acrescentar em tom cínico! — Aquele por cujo setor Nateby conseguir passar também pode fugir.
O Tenente Nasaro era um lutador bem treinado; mais nada. Fora tirado dos pais aos seis anos e educado na escola de cadetes da Guarda Azul. Cedo lhe ensinaram a ver em qualquer paisano um parasita decadente, se não fosse pelo menos um reservista. Se alguém lhe perguntasse qual era o objetivo pelo qual lutavam os membros da Guarda Azul, ele se teria espantado. Não sabia que existiam ideais de verdade. Todavia, num outro ambiente as qualidades de seu caráter poderiam ter feito dele um grande homem.
Dali a quinze minutos o sargento Holgan revezou o tenente, e este precipitou-se sobre sua ração, que era escassa sob todos os aspectos. A caça de um fugitivo ocupava a posição mais baixa na escala das prioridades. O pão torrado nem sequer tinha sido embalado à prova de poeira e Nasaro ficou satisfeito quando finalmente conseguiu fazer descer o último bocado juntamente com um gole de água. A única coisa que lhe deu um verdadeiro prazer foi o cigarro. Fitava os círculos de fumaça com uma expressão melancólica.
O sinal estridente do telecomunicador arrancou-o de seu enlevo. Inclinou-se apressadamente sobre o painel do planador, pois o sinal fora emitido pelo aparelho embutido.
— Tenente Nasaro, do comando de busca — disse, respondendo ao chamado.
— Só poderia ser mesmo o senhor — disse uma voz irônica. 
Um rosto sorridente apareceu na pequena tela.
Nasaro respirou aliviado. Pensara que fosse um superior, mas era o Tenente Kuriuh, do serviço de vigilância espacial, que não mandava nele.
— O que houve? — resmungou Nasaro, contrariado.
O rosto de Kuriuh assumiu uma expressão séria.
— Para começar, estou chamando por ordem do chefe supremo. Quer saber se já pegaram Nateby. 
Nasaro ficou perplexo e assustado.
— O chefe supremo interessa-se por isso? Por que será?
— Não faço a menor idéia. Então, já pegaram Nateby?
— Acredito... — respondeu Nasaro em tom cauteloso, pois não sabia se mais alguém estava ouvindo a palestra — ...acredito que dentro de uma hora cairá em nossas mãos. Nossas posições de interceptação são muito favoráveis. Infelizmente escapou-nos durante a noite.
Kuriuh acenou com a cabeça.
— Posso imaginar. Mas se eu fosse você, procuraria andar depressa. Tenho a impressão de que o chefe supremo os quer de volta até o meio-dia.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não que eu saiba. Ou melhor, houve uma coisa, meu chapa. O Major Ragna andou à procura de voluntários para um comando suicida.
— E daí...? — perguntou Nasaro com a voz tensa. — Precisa de maisalguém?
— Só queria vinte homens — respondeu Kuriuh, um tanto decepcionado. — Pôde escolher entre quatro mil. Infelizmente não gosta muito de mim. Quer dizer que posso servir-lhe de consolo. Também sou obrigado a ficar.
Nasaro praguejou fortemente.
— Isso tinha de acontecer logo quando eu estava no deserto. Quem sabe se Ragna não me teria levado?
— Bem, a única coisa que podemos fazer é conformar-nos. De qualquer maneira acho bom que você se apresse.
— Não se preocupe. Descobrirei Nateby e voltarei imediatamente.
O Tenente Nasaro desligou o telecomunicador e voltou a ativar o rádio-capacete, pelo qual se comunicava com os outros comandos. Deu ordem para abandonar a posição de interceptação e vasculhar os topos das dunas na direção oeste.
O fato de pouco antes ter ameaçado com uma punição o chefe de outro comando que sugerira a mesma coisa não o abalava nem um pouco.
* * *
Quando o vento da noite amainou, Merk Nateby saiu rastejando de trás de uma duna e passou o xale de ceda sobre a cabeça.
Resolveu esperar o nascer do sol.
Da mesma forma que os homens que o caçavam, não tinha olhos para a beleza selvagem do deserto. Se outros se sentiam embriagados pelo jogo de cores nos cumes das montanhas e na torrente de luzes verdes, para ele só existiam sombras refrescantes, esconderijos e áreas expostos — e naturalmente ruídos suspeitos. Sobre o deserto reinava um silêncio que quase chegava a ser fantasmagórico. Só de vez em quando ouvia-se o ruído dos grãos de areia que deslizavam duna abaixo. Apesar da atmosfera rarefeita de Opposite, o ruído de um gerador antigravitacional seria ouvido a vários quilômetros de distância.
Permaneceu imóvel durante duas horas e não ouviu sinal dos perseguidores. Respirou aliviado. Tudo indicava que seu estratagema fora bem sucedido. Suas provisões de água e mantimentos eram muito escassas, e era claro que os homens que o perseguiam sabiam disso. Por isso naturalmente seriam levados a supor que se dirigiria para Muddy Water pelo caminho mais curto. Nateby sabia perfeitamente que a astúcia que estava praticando o expunha ao perigo de morrer de sede. Mas justamente porque estava adotando um procedimento suicida esperava ter mais chances.
Merk Nateby ficou agachado e passou o cachecol sobre o boné, para proteger a nuca. Rastejou de quatro para o topo da duna.
Sentia-se relativamente seguro, e isso mesmo seria sua perdição.
Só depois de ter saído do esconderijo ouviu o zumbido monótono que enchia o ar. Imediatamente escorregou de volta para o esconderijo. Com o coração palpitante prestava atenção ao ruído do gerador antigravitacional. Ainda havia uma possibilidade de não ter sido descoberto. Afinal, não ficara exposto por mais de um segundo.
Mas a esperança não se concretizou.
O zumbido tranqüilo transformou-se num chiado agudo, que se aproximava inexoravelmente. Dali a pouco misturou-se com um som parecido, apenas um pouco mais agudo.
Merk Nateby compreendeu que perdera o jogo. O segundo planador só vinha porque o objetivo da caçada estava próximo.
Com a certeza recuperou a calma.
Foi-se levantando, com um sorriso orgulhoso nos lábios. Limpou cuidadosamente a areia do uniforme, endireitou o boné, fez o nó regulamentar no cachecol e voltou a subir ao topo da duna. Quando chegou lá, o primeiro planador vinha a cerca de cem metros de distância. O único sinal do segundo planador era uma nuvem de poeira. Mais duas nuvens de poeira aproximavam-se, vindas da direita e da esquerda.
Rígido que nem uma estátua, Merk Nateby ficou à espera dos seus perseguidores. Seus olhos pareciam passar por cima deles, como se estivessem à procura do ponto no deserto que nunca mais atingiria.
Os quatro planadores foram parando a cerca de dez metros do lugar em que ele se encontrava. Seus ocupantes desceram e aproximaram-se com as armas apontadas. Quando estavam a três metros da vítima, pararam e fizeram continência. Um jovem tenente aproximou-se. Com os olhos baixos mexeu no cinto de Nateby, tirou o reduzido equipamento, a sacola com os mantimentos e o cantil de água. Só deixou a pesada arma energética.
O Major Merk Nateby sabia perfeitamente o que viria a seguir. Ficou com os lábios cerrados. Quando foi disparado o tiro, teve uma sensação de triunfo. Não mostrara a dor.
Merk Nateby não precisou olhar para saber o que tinham feito com ele, pois tratava-se de um ritual que vinha sendo praticado em Opposite há algumas décadas. Segundo esse ritual, qualquer malfeitor que conseguisse fugir da base tinha de ser deixado vivo. O único castigo consistia em tirar-lhe a água e os mantimentos e em disparar um raio energético finíssimo através da parte superior da cocha.
Anéis vermelhos dançaram diante dos olhos de Nateby. Este não pensava em outra coisa senão permanecer em posição de sentido. Mas a dor lancinante fez aflorar lágrimas em seus olhos.
Ouviu o estalo dos calcanhares das botas de seus perseguidores, que se despediram com uma continência, como se o mesmo viesse através de uma parede de algodão. Finalmente os geradores antigravitacionais voltaram a zumbir e os planadores regressaram à base em fila compacta.
Merk Nateby virou lentamente a cabeça e seguiu os veículos com os olhos. Os ocupantes dos mesmos viraram a cabeça para ele.
Merk Nateby juntou os calcanhares. Fez o V da Guarda Azul com os dedos indicador e médio da mão direita encostados ao boné.
— Viva o chefe supremo! — exclamou com a voz rouca. 
Só parou de gritar quando as nuvens de poeira levantadas pelos planadores se perderam de vista.
A dor começou a fustigá-lo com uma fúria redobrada. Merk Nateby gemeu. Tentou os primeiros passos. Ficou espantado ao notar que conseguia caminhar razoavelmente bem, desde que arrastasse o pé direito. Mas dificilmente chegaria a Muddy Water. Acariciou a coronha da arma energética. Tratava-se de um modelo pesado, que normalmente só era usado em combate. A arma o protegeria dos animais selvagens — e, se não houvesse outra possibilidade, poderia proporcionar-lhe uma morte mais suave.
Ninguém desconfiava de que em breve Merk Nateby escreveria de forma macabra uma página da história galáctica com esta arma...
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3
Enquanto o Major Merk Nateby avançava aos tropeções pela areia escaldante do deserto, uns vinte quilômetros ao leste desenvolvia-se uma atividade febril.
Na verdade, a pequena nave em forma de disco não deveria estar na base do chefe supremo — e muito menos seu lugar era a plataforma-catapulta de um campo de decolagem secreto.
Isso porque se tratava de uma espaçonave dos blues!
Os blues, que tinham recebido este nome por causa dos corpos cobertos de pêlos azuis, já tinham sido os inimigos mais perigosos de todas as raças humanóides da Galáxia. Só quando o espírito criativo dos terranos criou uma nova arma, tornou-se possível romper a blindagem inexpugnável de molkex das naves dos blues. Depois disso o império dos blues entrou em rápida decadência. Mas as naves dessa raça continuavam a vagar entre as estrelas, transformando-se em presas fáceis dos clãs dos saltadores e de outras espécies.
A nave dos blues que se encontrava no poço de decolagem secreto de Iratio Hondro fora apressada há poucos meses. Até então permanecera ociosa num hangar afastado da base, e os vinte e quatro tripulantes dá nave viviam caminhando entre as celas gradeadas e a sala de interrogatórios.
De repente parecia que ambos tinham recuperado a dignidade: a nave e sua tripulação.
Mas por enquanto não se via o menor sinal dos blues. Os homens que trabalhavam intensamente na nave em forma de disco pertenciam à Guarda Azul. Não levantavam os olhos do trabalho, pois os oficiais que estavam atrás deles cuidavam para que cada um empenhasse todas as forças. Com alguns minutos de intervalo, tinham de prestar contas do serviço pelos rádios de pulso. Estavam nervosos, berravam uns para os outros e corriam pela nave que nem um bando de galinhas espantadas. Transpiravam cada vez mais, à medida que o término do prazo fixadose aproximava. O chefe supremo em pessoa comandava a ação — e todos sabiam o que isso significava caso fosse cometido qualquer erro, por menor que fosse.
Iratio Hondro estava reunido na sala dos oficiais com os vinte voluntários que se haviam oferecido para um comando de suicida que ainda não conheciam. O Major Ragna, que já tinha sido informado a este respeito, estava sentado ao lado do chefe supremo, com o rosto pálido, mas tranqüilo, e fumava em tragadas apressadas.
Os olhos do chefe supremo pareciam frios e decididos.
— Os senhores se apresentaram espontaneamente — principiou em sua maneira lacônica, mas entusiasmante. — Fico-lhes muito grato. Não há necessidade de ressaltar que me sinto muito constrangido em enviar meus melhores elementos para uma missão da qual nunca regressarão.
Examinou atentamente os rostos dos homens. Ninguém deixaria de notar que naquele instante os mesmos compreendiam que estavam todos condenados à morte. Os rostos pareciam manchas de tinta branca em meio à iluminação branco-azulada, mas os traços dos mesmos exprimiam orgulho, e havia um brilho de triunfo nos olhos.
Iratio Hondro pigarreou.
— Exatamente às onze horas e trinta minutos, tempo local, — disse, olhando para o relógio — os senhores ocuparão a nave apresada dos blues, que já foi reformada. A tripulação primitiva também estará presente. Ainda não compreendemos muito bem certas funções das naves dos blues, e não podemos perder tempo com ninharias desse tipo. Além disso pelo menos um dos cabeças de prato terá de cair nas mãos dos terranos em estado mais ou menos razoável. Façam com que a nave-disco ataque a nave terrana que se mantém em posição de espera a três dias-luz daqui. Devem dar a impressão de que se trata de um ato de desespero do comandante dos blues. O resto ficará por conta do Major Ragna. 
Iratio Hondro fitou Ragna.
— É bem verdade que o senhor estará com as mãos parcialmente amarradas, já que uma eventual fuga não poderá levá-lo ao sistema de Whilor. Além disso os terranos não deverão encontrar nenhum membro da tripulação humana — vivo ou morto. Conforme as circunstâncias, terá de sacrificar a nave e a tripulação. Será que fui bem claro?
O Major Ragna entesou o corpo.
— Prometo-lhe que ninguém fraquejará. Preferimos morrer.
Um murmúrio de aprovação se fez ouvir entre os voluntários. Um tenente magro, de cabelos negros, levantou-se com os olhos chamejantes e as faces afogueadas.
— Por que perder tantas palavras? Sentimo-nos orgulhosos por termos uma oportunidade de servir ao chefe supremo. Viva Iratio Hondro! Morte aos terranos!
No mesmo instante a sala dos oficiais parecia transformar-se num hospício. Os voluntários berravam vivas para exorcizar o medo que os afligia e embriagavam-se com o próprio entusiasmo.
Iratio Hondro deixou-os à vontade por alguns minutos. Sabia que devia alguma coisa àqueles homens condenados à morte. Mas nem por um instante deixou que a embriaguês o contagiasse. Continuou a ser o mesmo homem frio e calculista de sempre. Para ele os vinte homens condenados à morte não passavam de peões no jogo de xadrez, que tinham de ser sacrificados para salvar o rei. Nem chegou a pensar nos vinte e quatro blues que também seriam trucidados.
Finalmente Iratio Hondro levantou-se e todos ficaram em silêncio. Um sorriso frio apareceu no rosto do chefe supremo.
— Se vocês morrerem, seus nomes serão inscritos no livro dos heróis. — Levantou a mão e formou um V com os dedos. Segundo uma velha tradição terrana, esse gesto era o sinal da vitória. — Morte aos terranos!
— Morte aos terranos! — respondeu o coro de vozes.
O chefe supremo virou-se e foi saindo tranqüilamente. Atrás dele ouviram-se os comandos de Ragna. O major estava transmitindo instruções detalhadas.
Iratio Hondro não as ouviu mais. Uma vez fora do alcance da vista de seus homens, a calma e a segurança o abandonaram. As mesmas tinham sido apenas uma máscara, destinada a servir a um interesse bem definido, como acontecia com tudo que esse homem fazia. Saltou para a esteira transportadora mais próxima, que o levou rapidamente ao elevador principal. Uma vez lá, correu para o centro de comando da base. No momento estava interessado apenas na posição do couraçado terrano — e evidentemente também queria saber se não tinha aparecido outras naves terranas.
Podia ficar despreocupado.
A situação ainda era a mesma. Iratio Hondro foi criando novas esperanças. Juntamente com as outras medidas, o comando suicida devia ser suficiente para enganar os terranos.
* * *
Às 11:30 em ponto, tempo local, o comando suicida chefiado pelo Major Ragna ocupou a pequena nave dos blues.
Os prisioneiros blues já estavam em seus lugares. Até então vinham sendo vigiados por membros da Guarda Azul. Os guardas retiraram-se da nave, sendo substituídos pelos vinte voluntários.
O Major Ragna deu ordem em voz calma para que os homens ocupassem os lugares previamente determinados. Sua tarefa não consistia somente em vigiar os blues. Muitas posições importantes foram guarnecidas por eles, entre elas o controle de tiro.
Ragna olhou para o relógio. 
Eram 12:15 horas. Decolariam dentro de cinco minutos.
O Major Ragna ocupou o lugar do comandante.
Atou cuidadosamente os cintos de segurança e contemplou com uma expressão desconfiada o estranho aparelho que serviria para comunicar-se com os blues. Fez algumas perguntas ao antigo comandante desse povo. Este respondeu a contragosto, falando muito devagar. Ragna fazia votos de que as suas respostas pelo menos correspondessem à verdade.
O telecomunicador adicional, especialmente montado, chamou.
— Major Ragna!
— Decolaremos dentro de trinta segundos! — disse a voz indiferente do oficial que estava no controle. — O tempo está correndo.
— Obrigado. Tudo preparado a bordo — respondeu Ragna, enquanto o polegar descia sobre a tecla de alarme.
Por uma única vez o alarme s00u ligeiramente pela nave, a fim de prevenir a tripulação. O Major Ragna prestou atenção ao tiquetaquear estereotipado do mecanismo de contagem regressiva. Quando o mesmo atingiu a marca zero, respirou profundamente. Mas não houve a pressão que esperara. O mecanismo de catapulta do poço de decolagem e os neutralizadores da nave estavam muito bem c00rdenados. A mudança súbita das imagens projetadas na tela era o único sinal de que a nave tinha decolado.
As montanhas nuas e entrecortadas da serra da Corcova foram-se afastando com uma velocidade assustadora. Não se via o menor sinal da estação. Iratio Hondro mandara instalá-la cuidadosamente sob as formações naturais da paisagem.
O Major Ragna só ligou o propulsor quando a nave já tinha saído da atmosfera. Até então a mesma se deslocara sob os efeitos do impulso gravoenergético produzido pela catapulta. No mesmo instante a tripulação humana passou a desenvolver uma atividade febril. Cada voluntário conhecia perfeitamente a tarefa que teria que desempenhar. Tratava-se de um grupo de homens extremamente inteligentes e muito bem treinados. Afinal, toda ditadura costuma dedicar recursos quase inesgotáveis para treinar seus soldados.
Em conformidade com o plano do chefe supremo, Ragna de início seguiu uma rota em direção ao planeta número quatro, que os terranos tinham batizado com o nome Pulsa. Sabia-se disso por causa das mensagens de telecomunicação que tinham sido captadas. Os terranos se tinham mostrado bastante despreocupados com suas comunicações audiovisuais, até o momento em que Merk Nateby ordenou o bombardeio de sua nave.
Quando a nave sobrev00u o quarto planeta e o Major Ragna pôde contemplar de mais perto o inferno do mundo de metano, ele teve um calafrio. Realmente, os terranos só poderiam ter escapado de lá por milagre. Depois de contornar Pulsa, Ragna passou a seguir a rota mais curta para o couraçado dos terranos. Queria dar a impressão de que a nave dos blues tinha permanecido o tempo todo nas proximidades de Pulsa, e só naquele momento voltara a descobrir a nave que fugira. Se os rastreadores danave terrana continuavam intactos, já deveriam ter detectado a presença da nave-disco.
Pouco antes que a nave atingisse a velocidade da luz, Ragna controlou com mais seis voluntários o trabalho dos blues. Os humanos precisariam de um treinamento especial para lidar com os propulsores lineares dos blues. Por isso a programação dos mecanismos de direção tinha ficado a cargo da tripulação primitiva.
O Major Ragna ficou satisfeito com os resultados da verificação. Os blues tinham feito um bom trabalho. A nave-disco estaria a apenas um minuto-luz do couraçado ao passar do espaço linear para o universo einsteiniano. No entanto, ao contrário da tripulação humana, os blues não tinham conhecimento da presença da nave terrana. Nem desconfiavam de que estavam voando para a morte.
Os voluntários só sabiam debochar dos cabeças de prato, nome que costumava ser dado aos blues por causa do formato estranho de seu crânio. Numa espécie de humor fúnebre iam-se excedendo em relatos cada vez mais dramáticos da surpresa que aguardava os prisioneiros — até que o Major Ragna chamou sua atenção para o fato de que a máquina tradutora ficara ligada o tempo todo. Diante disso os voluntários calaram-se, perplexos e um tanto envergonhados. De repente tiveram de reconhecer que os humanos não eram os únicos seres capazes de encarar a morte com a maior tranqüilidade — e isto sem assumir um comportamento neurótico como eles estavam fazendo.
Pouco antes que a nave saísse do espaço linear, o Major Ragna fez um gesto discreto para dois homens que se mantinham de prontidão. Estes seguraram um dos blues pelos braços cobertos de pêlos azuis e o arrastaram, apesar da resistência desesperada que estava oferecendo. Ragna fechou os olhos. Imaginou como seus homens enfiariam o blue em seu próprio traje espacial, bloqueariam o fecho de seu capacete e o colocariam perto da eclusa de emergência. No momento em que o couraçado respondesse ao fogo da nave-disco, o blue seria empurrado para fora da eclusa, para que os terranos, caso saíssem à procura, encontrassem um cadáver de blue que pudesse servir-lhes de prova.
Mas Ragna tinha suas dúvidas de que os terranos fossem responder ao fogo. O que aconteceria se tentassem capturar a nave-disco com um raio de tração? Não despertariam a desconfiança dos terranos se num caso como este fizessem explodir a nave?
Afastou o pensamento. Teria de conduzir a nave-disco de maneira a não deixar outra alternativa aos terranos senão responder ao fogo.
Uma luz vermelha acendeu-se.
O Major Ragna pegou o microfone do sistema de intercomunicação de bordo.
— Atenção! Comandante chamando todos os tripulantes. Entrada no espaço normal dentro de trinta segundos. Mantenham todas as armas preparadas. Assim que tenham o alvo na mira, abram fogo rápido sem aguardar novas ordens.
Assim que o recebimento da ordem foi confirmado, a nave penetrou no espaço normal. De repente as estrelas voltaram a aparecer no seu esplendor frio e a silhueta do couraçado, projetada nas telas pela ação c00rdenada dos rastreadores, parecia estar perdida nas profundezas do espaço.
Quando a escuridão foi cortada por trilhas energéticas fulgurantes, o Major Ragna abaixou-se instintivamente. Mas as trilhas eram somente aquelas lançadas por suas próprias armas.
Lá adiante viu-se um lampejo. Uma bolha cintilante surgiu no espaço, e as línguas de fogo resvalavam constantemente pela mesma. O couraçado acabara de ativar seus campos defensivos — e os mesmos resistiam com a maior facilidade ao bombardeio.
Uma idéia louca surgiu na cabeça de Ragna. O que aconteceria se seguisse obstinadamente em direção ao couraçado? Será que a explosão da nave dos blues não romperia os campos defensivos, arrastando a nave terrana para a destruição? Logo abandonou a idéia. A destruição do couraçado não ajudaria a base. Iratio Hondro sabia perfeitamente por que queria que o couraçado escapasse são e salvo. Além disso, se a nave inimiga fosse destruída, os voluntários morreriam em vão. Não! Somente eles tinham de morrer.
Apesar de tudo Ragna continuou a seguir em direção ao couraçado. Era o único meio de atrair o comandante do mesmo para fora da reserva. O mesmo certamente não ignorava que o impacto da nave dos blues seria fatal para sua unidade.
A nave-disco estava a apenas vinte segundos-luz do objetivo. Foi quando os terranos reagiram. Da nave dos blues não se viam os disparos, já que as trilhas energéticas se deslocavam à velocidade da luz. Só eram percebidas quando já tinham atingido a nave.
Um rangido ensurdecedor encheu a pequena nave. Até parecia que a mesma tinha abalroado um planeta.
O Major Ragna não viu mais nada. Mas exibiu um sorriso de triunfo.
E assim foi para a morte — e com ele dezenove idiotas fanáticos, submissos a um ditador...
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4
O relógio de bordo indicava o dia 30 de julho de 2329 do calendário terrano e 23:05:31 horas.
Há cinco minutos e trinta e um segundos soara o toque de recolher para aqueles que não estavam montando guarda, e desde então o silêncio reinava nos alojamentos. As luzes tinham sido apagadas.
O primeiro Tenente Nome Tschato, comandante da Lion, fazia questão de que em sua nave fosse mantida a disciplina. Havia uma separação rigorosa entre as horas de serviço, as de lazer e as reservadas ao repouso noturno, muito embora numa nave que se mantinha imóvel no espaço evidentemente não existisse dia e noite assinalado pelo nascer e pôr-do-sol.
Adotara-se o tempo de um planeta que naquele momento se encontrava a cerca de 48.333 anos-luz da Lion. O nome deste planeta era Terra.
48.333 anos-luz!
Este dado frio escapa à capacidade de imaginação da mente humana. Até mesmo um segundo-luz ultrapassa o quadro de um planeta. Num segundo, um tempo pouco superior ao de uma batida de coração do ser humano adulto, a luz percorre cerca de 300.000 quilômetros. Se tivermos em mente que cada minuto tem sessenta segundos, cada hora 3.600 e cada dia 86.400, chegaremos à conclusão de que num só dia a luz percorre uma distância de 25.920.000.000 quilômetros, ou seja, cerca de trinta bilhões de quilômetros. E é só pensar em 48.333 anos-luz...!
Quando o ser humano ainda não sabia que a chamada barreira da luz só se aplica no universo einsteiniano de quatro dimensões, e que existe a possibilidade de usar outros contínuos espácio-temporais para voar a velocidades superiores à da luz, uma viagem de 48.333 anos-luz só podia ser considerada impraticável.
Mas esta concepção há muito pertencia ao passado.
Assim mesmo, porém, no momento o abismo que se abria entre o sistema solar de origem e a posição atual do couraçado Lion era insuperável para os tripulantes da nave.
Depois dos acidentes fatais ocorridos em Pulsa, a Lion se tornara imprestável para o vôo pelo hiperespaço. Era impossível reparar as avarias com os recursos da própria nave. A única esperança do comandante e da tripulação de oitocentas pessoas era uma nave auxiliar do tipo girino, de sessenta metros de diâmetro. Aceitando os ensinamentos resultantes de experiências desagradáveis, Nome Tschato enviara a mesma de volta antes de entrar em órbita em torno de Pulsa. A nave-girino era comandada pelo Capitão Walt Heintman, que em outra oportunidade já trouxera socorro no último instante.
No momento o poder de comando era exercido por Dan Picot, imediato da Lion. Nome Tschato estava dormindo. Ao menos dissera que queria deitar um pouco.
Picot não acreditava nisso. A idéia de que o comandante poderia estar elaborando mais um de seus temíveis planos vivia perseguindo-o que nem um pesadelo.
O imediato estava sentado com o rosto tenso atrás da mesa de mapas da sala de comando e prestava atenção ao ruído tranqüilizador dos aparelhos. Nos últimos nove dias os rastreadores só exibiam sinais verdes, mas apesar disso estava nervoso e irritadiço. Pegou mais um cigarro, embora ultimamente tivesse fumado tanto que isso chegava a causar-lhe certa repugnância.
— Dá licença, Dan? — perguntou uma voz sonora, cujo timbre transmitiaa sensação tranqüilizadora da segurança.
Picot levantou os olhos. Um homem calvo e corpulento que devia ter seus cinqüenta anos sentou à sua frente. Usava uniforme de campanha de coronel da frota do Império, mas a insígnia que trazia no braço identificava-o como conselheiro psicológico de um comandante de nave. Aquele homem era três vezes professor de universidade e doutor em psicologia. Seu nome era Einar Holgsen.
Um sorriso triste apareceu no rosto de Picot.
— Pois não, Einar! — Ofereceu-lhe cigarros. — Sirva-se.
— Muito obrigado, Dan.
Einar Holgsen acomodou-se na poltrona giratória que ficava do outro lado da mesa de mapas.
— Estamos desfrutando um silêncio celestial, não é mesmo?
— Depende de como a gente interpreta a situação, Einar! — resmungou Picot. — Quanto a mim, preferiria um pouco de trabalho. Isso pelo menos evitaria que alguém tivesse idéias tolas.
O psicólogo sorriu numa atitude compreensiva.
— Está se referindo ao nosso comandante, Dan?
— O “leão” recolheu-se à toca — disse Picot, amassando os dedos. — Disse que queria descansar. Mas eu o conheço e sei que logo descobrirá um meio de dar-nos trabalho.
— Pois acho que isso é uma intenção altamente elogiável — disse Holgsen.
Picot fitou o psicólogo com uma expressão desconfiada.
— Pois foi por causa deste tipo de “trabalho” — disse, esticando as palavras — que tivemos de fazer explodir a primeira Lion no setor de Simban. Sua sucessora, que tem o mesmo nome, está parada que nem um pato que levou um tiro na asa. Fico me perguntando se valerá a pena a gente engajar-se na terceira Lion...
Einar Holgsen soltou uma estrondosa gargalhada. Suas faces, que já eram rosadas, tremeram e enrubesceram. Até mesmo a calva cercada por uma coroa de cabelos grisalhos ficou vermelha.
Dan Picot fitou o psicólogo com uma expressão de perplexidade, mas depois de algum tempo ficou contrariado. Como Holgsen continuasse a sacudir-se de tanto rir, Picot acompanhou-o de forma hesitante. Não demorou, e os dois estavam rindo tão alto que os outros oficiais que se encontravam na sala de comando viraram a cabeça, espantados.
Holgsen parou abruptamente. Enxugou as lágrimas do rosto, piscou com os olhos e voltou a ficar sério.
— Por que está rindo, Dan? — perguntou em tom ingênuo.
Picot deteve-se. Parecia estupefato.
— Por quê...? — perguntou, batendo com o punho fechado na mesa.
— O senhor é um...! — Respirou profundamente, recostou-se na poltrona e sacudiu a cabeça.
— Perdão! O que eu quis dizer é que o senhor é um psicólogo muito esperto, Einar. Receio que meu comportamento não tenha sido nada recomendável.
— Deixe para lá! — disse ao ver que Holgsen se dispunha a responder. — Não tenho a consciência tranqüila perante meu chefe. Naturalmente seria uma tolice afirmar que Nome Tschato é culpado do azar que parece perseguir todos os couraçados que usam o nome Lion. Na verdade... — de repente seus olhos pareciam fitar um ponto situado além de Holgsen — ...na verdade a perda da primeira Lion no setor de Simban parece tê-lo abalado mais que qualquer outra pessoa. Para ele uma espaçonave não é apenas uma maravilha técnica; chega a ser uma espécie de lar. Ele se agarra às suas naves, inclusive esta, que é a segunda Lion. Mas será que tem plena consciência de que não deve colocar a nave acima de seu dever?
Einar Holgsen levantou-se.
— O senhor esqueceu um detalhe, Dan. Não é somente Nome Tschato que pensa assim; o senhor e muitos outros tripulantes também, Infelizmente tenho que deixá-lo. Ainda estão precisando de mim em outra parte! Dan Picot acenou com a cabeça. Parecia completamente transformado.
— Muito obrigado por seu “tratamento”, Einar. Acredito que com os outros pacientes consiga resultados tão rápidos como comigo.
Estendeu a mão para Holgsen, e o psicólogo apertou-a cordialmente.
— O senhor sempre tem sido um paciente agradável, Dan. Infelizmente existem pessoas com as quais minha arte não dá resultado. — Deu um suspiro. — Com os arcônidas meu trabalho seria mais fácil, mas paciência! Os terranos não suportam a inatividade. So long, Dan,
— So long, Einar.
Dan Picot sorriu enquanto seguia o psicólogo com os olhos. Finalmente atirou o boné para trás e caminhou resolutamente em direção ao pedestal em que ficavam os instrumentos.
Antes que percorresse metade do caminho, os rastreadores emitiram os alertas óticos e acústicos.
* * *
O primeiro Tenente Nome Tschato não estava tramando os planos “sombrios” que o imediato suspeitara. Na verdade, estava escriturando seu diário particular. Depois disso atirara-se na cama, exausto, e adormecera imediatamente.
Isso aconteceu às 23:50 horas.
Às 23:45 foi despertado pelo som estridente do intercomunicador.
Nome Tschato só acordou de vez quando já estava perto do aparelho. Comprimiu apressadamente o botão de ligação. O rosto de Dan Picot apareceu na tela.
— O que houve? — perguntou Nome Tschato, bocejando.
— Os rastreadores deram o alarme, senhor. Um veículo espacial desconhecido aproxima-se do setor de Pulsa e vem acelerando na direção da Lion.
No mesmo instante os olhos de Nome Tschato clarearam.
— Tente a identificação, Dan — e coloque a nave de prontidão. Já vou à sala de comando.
Desligou sem aguardar resposta e saiu correndo. Enquanto corria, abotoava o uniforme. Quando estava saltando no poço do elevador antigravitacional, as sereias de alarme começaram a uivar em todos os pontos da nave.
A Lion parecia despertar para a vida. Escotilhas eram abertas e fechadas ruidosamente, as pisadas das botas retumbavam pelos corredores, e as paredes refletiam os ecos das vozes de comando.
Quando Nome Tschato tinha saído da sala de comando, a mesma estivera silenciosa que nem um cinema vazio. Quando voltou, estava transformada num inferno barulhento. Oficiais falavam para dentro de pelo menos uma dezena de microfones, todos os computadores de console zumbiam e matraqueavam e as telas dos rastreadores estavam cercadas por lâmpadas que se acendiam e apagavam alternadamente. Um ruído sobrepunha-se a tudo. Era o zumbido surdo dos reatores energéticos que funcionavam à potência mínima.
Nome Tschato sentia uma leve vibração do chão enquanto caminhava em direção à sua poltrona.
Dan Picot levantou-se e apresentou seu relato conforme mandava o regulamento.
— Obrigado — respondeu Nome Tschato laconicamente. — Conseguiu identificar a nave?
— Consegui, senhor — respondeu Picot. Sua voz parecia embaraçada. — Sem dúvida trata-se de uma nave ligeira dos blues. Incrível, senhor.
— Incrível por quê? — Nome Tschato fitou o oficial com uma expressão penetrante.
— A nave dos blues não pode tornar-se perigosa à Lion. O comandante deve ter enlouquecido ou então...
— Ou então tramaram uma coisa infernal — completou Nome Tschato.
Exibiu o sorriso frio que lhe era peculiar, e que sempre provocava calafrios em Picot. Seus dentes muito brancos formavam um estranho contraste com a pele negra. Fez um gesto para Picot e acomodou o corpo de dois metros de comprimento agilmente na poltrona anatômica. Picot sentou a seu lado, na poltrona do imediato. Nem estava sentado direito, e Nome Tschato já tinha feito a interpretação dos resultados mais recentes dos rastreadores.
— Parece que pretendem entrar no espaço linear. Teremos de estar preparados para dar-lhes as boas vindas.
Pegou o microfone do intercomunicador e ligou para a faixa geral. Todas as pessoas que se encontravam na nave ouviriam suas palavras.
— Comandante chamando todos — disse Nome Tschato com a voz calma. — Entrar em prontidão total para o combate, fazer sair as torres de canhões, colocar os trajes espaciais. Atenção, oficial de artilharia. Apontar a terça parte dos canhões energéticos para o provável local de reentrada da nave dos blues. Dois terços do poder de fogo deverão ficar livremente disponíveis. Não podemos excluir a possibilidade de que a nave dos blues só esteja realizando uma manobra desviacionista. Os especialistas de computação positrônicafornecerão os dados. Casa de máquinas: preparar a manobra de esquivamento com curso vertical no vermelho. Central energética. Pôr em funcionamento os projetores de campos defensivos, mas não criar o campo energético por enquanto. Preparem-se para, se necessário, ativar os campos num décimo de segundo. Confirmem o recebimento.
O zumbido dos reatores energéticos transformou-se num rugido retumbante. As confirmações foram chegando uma após outra. A Lion estava preparada para entrar em combate. No entanto, não podia alcançar velocidade superior à da luz. Nome Tschato sabia o que isso significava caso sofressem um ataque de forças superiores. Não poderiam desviar-se para o hiperespaço. Só lhes restaria uma luta de vida e morte.
Nome Tschato olhou para o primeiro oficial de artilharia, que ainda estava tateando o teclado de artilharia com as pontas dos dedos. Luzes verdes iam se acendendo. A energia concentrada do couraçado seria suficiente para destruir um planeta. O comandante da nave dos blues certamente sabia disso. Se assim mesmo prosseguia na rota de ataque...
— A nave acaba de entrar no espaço linear, senhor — informou Dan Picot.
Nome Tschato virou abruptamente a cabeça. O reflexo verde que representava a nave dos blues tinha desaparecido da tela como se nunca tivesse existido. Mas Nome Tschato sabia que a nave se encontrava no semi-espaço, onde estava fora do alcance do rastreamento, e se aproximava a uma velocidade várias vezes superior à da luz.
— Atenção, oficial de artilharia. Fazer sair torres de canhões. Ao comando, abrir fogo com metade de uma bateria de costado. Central de energia. Fazer o acoplamento dos projetores de campo defensivo com o sistema de rastreamento ultra-luz. Confirmem.
A última confirmação mal tinha sido recebida, quando as sereias de alarme da nave voltaram a uivar. Em meio ao ruído das sereias a informação do centro de rastreamento se fez ouvir com o volume máximo.
— A nave dos blues está saindo do espaço linear a um minuto-luz de distância.
Tschato não precisaria dessa informação. Os dados colhidos pelos rastreadores eram conduzidos automaticamente ao seu console, onde apareciam sob a forma de diagramas de massa e energia e de quadros de contorno e de movimento óticos projetados em pelo menos uma dezena de telas. O diagrama energético permitia a leitura fácil da espécie e quantidade de energia que o inimigo estava utilizando para um bombardeio energético imediato.
Nome Tschato sabia que o fogo da nave dos blues não representaria nenhum perigo para a Lion. Os campos defensivos já tinham sido ativados e refletiriam com a maior facilidade a energia que incidisse neles.
Mas havia outra coisa que poderia representar um perigo para a Lion. Era a rota da nave dos blues.
Os cálculos que os especialistas que trabalhavam nos grandes computadores realizavam numa fração de segundo, eram projetados constantemente sobre a estreita tela de interpretação embutida no console de comando de Nome Tschato. O tenente percebeu imediatamente que, se a rota fosse conservada, a colisão seria inevitável. Certamente o campo defensivo da Lion absorveria o impacto da nave dos blues, mas era bastante duvidoso que resistisse à explosão dos reatores e dos bancos energéticos.
Para evitar que a Lion mais uma vez sofresse graves avarias, a nave teria que desviar-se ou destruir o veículo espacial dos blues antes que se verificasse a colisão.
Nome Tschato optou pela última alternativa. Ainda receava que se tratasse de um golpe de astúcia, e era possível que o inimigo quisesse exatamente desviá-lo de sua rota.
— Abrir fogo com metade da bateria de costado sobre o objetivo já identificado — ordenou com a voz dura.
Por alguns segundos, os reatores de fusão e os condutores de energia bramiram no interior da nave, enquanto voltavam a abastecer os bancos energéticos dos canhões. A Lion sacudiu-se ligeiramente — e um sol branco-azulado nasceu a um quarto de minuto-luz de distância.
O veículo espacial dos blues arrebentou que nem uma bolha de sabão. Produziu uma cintilância e deixou apenas uma porção de gases muito rarefeitos que se expandiam rapidamente.
Nome Tschato enxugou o suor da testa.
— Idiotas! — disse para si. — Malditos idiotas. O que será que queriam conseguir com este fim absurdo?
— Não sei — disse Dan Picot com um suspiro. — Se estivesse na situação deles — desprezados, perseguidos e sem lar — talvez também me suicidasse dessa forma.
Nome Tschato acenou com a cabeça.
— Devem ter sofrido uma grande perseguição quando não conseguiram destruir-nos em Pulsa, onde estávamos relativamente indefesos.
— O senhor tem certeza de que os foguetes atômicos foram disparados pela nave dos blues?
— É claro que não temos nenhuma prova... — Nome Tschato lançou um olhar pensativo para as telas, que mostravam o sistema de Whilor. — ...mas parece que não há ninguém por aqui além deles e de nós, isto se deixarmos de fora os dançarinos de Pulsa. Uma nave maior dificilmente poderia esconder-se atrás do sol ou de algum planeta. Teríamos notado sua presença pelo menos quando mudasse de posição. Numa nave pequena como a dos blues isso seria praticamente impossível.
Virou-se abruptamente quando um sinal se acendeu em cima de seu retrato.
Rastreamento chamando comandante! — lia-se em grandes letras vermelhas na lâmina amarelo-clara.
Nome Tschato ligou o canal de intercomunicação para o setor de rastreamento.
— Aqui fala o comandante. O que houve?
— Rastreamento, Tenente Kurela. Nossos rastreadores óticos localizaram um corpo num traje espacial. A distância é de trinta segundos-luz e o corpo desloca-se em direção à Lion.
A reação de Nome Tschato foi imediata. Deu ordem de recolher o corpo por meio de um raio de tração e mandou que um médico se dirigisse imediatamente à eclusa de recepção. Depois levantou-se.
— Assuma na minha ausência, Dan. Vou dar uma olhada na presa. Talvez isso nos forneça uma indicação.
Nome Tschato saiu andando a passos compridos.
Esperava lançar alguma luz na escuridão que cercava a nave dos blues. Acontece que o cadáver do blue que envergava traje espacial só tinha sido lançado no espaço para enganá-lo ainda mais sobre a verdadeira situação.
A cabeça do blue ficara desprotegida diante das radiações produzidas pela explosão da nave-disco. No entanto, conservara o suficiente de suas formas características para poder ser identificado sem sombra de dúvida como um blue.
Nome Tschato mandou examinar o traje espacial do cadáver, que estava bem conservado. Não foi encontrado nada que pudesse fornecer alguma indicação sobre a presença no sistema de Whilor. Por isso Nome Tschato mandou que o blue fosse sepultado no espaço. Enquanto o corpo desaparecia num poço de ar comprimido, o tenente fez continência. Aquele ser tinha sido um inimigo, mas merecia o respeito que deve ser tributado a um soldado valente.
Quando Nome Tschato voltou à sala de comando, uma surpresa o esperava. Em sua ausência Dan Picot fizera a interpretação dos dados sobre a rota percorrida pelo cadáver do blue.
O imediato parecia muito sério.
— Há uma coisa que eu acho estranha, senhor. Quer saber o que é? — Não aguardou resposta. — Segundo a interpretação da rota, o blue deve ter saído da nave depois que abrimos fogo, mas antes que a salva atingisse sua nave.
— É mesmo?
A falta de interesse demonstrada por Tschato levou Dan Picot a fazer uma careta.
— Isso significa que observou a abertura do fogo por meio de rastreadores ultra-luz, senhor. Acho isso muito esquisito. Se a nave já tivesse sido atingida ele teria um motivo para sair, mas assim...
Tschato interrompeu-o com um gesto.
— O senhor está fazendo drama de novo, Dan. Afinal, ele poderia imaginar perfeitamente que a primeira salva disparada por nossa nave destruiria seu veículo espacial. Dessa forma não teria motivo para esperar o impacto. Quanto aos rastreadores ultra-luz, tenho a impressão de que o senhor complica desnecessariamente as coisas. O blue deve ter saído quandoacreditava que a Lion estava prestes a abrir fogo. Os rastreadores ultra-luz geralmente só são instalados na sala de comando. Se ele tivesse ficado na sala de comando até o momento em que abrimos fogo, não conseguiria sair. E seria completamente ilógico que alguém que se encontrava na sala de comando lhe tivesse dado sinal para sair. Certamente preferiu a morte no vácuo à outra alternativa. É o que prova o capacete espacial aberto.
Picot esteve a ponto de dar uma resposta. Mas preferiu não fazê-lo. Era incapaz de refutar os argumentos de Nome Tschato. Além disso as leis da probabilidade apoiavam a interpretação do mesmo. Afinal, o que poderiam ter em mente os blues se soltassem um homem com o capacete pressurizado aberto?
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5
O robô escorregou pelo monte de pedras e foi parar no lugar em que a serra da Corcova se limitava com as areias do deserto.
Por um instante teve-se a impressão de que iria ficar deitado nesse lugar.
Mas seus membros dianteiros, que terminavam em forma de pá, começaram a revolver febrilmente o solo, e dentro de alguns segundos não se via mais nenhum sinal do estranho robô.
Os dois homens que usavam o uniforme da Guarda Azul tinham colocado seus aparelhos em cima do monte de pedras. Estavam sentados em pequenas, cadeiras dobráveis e conversavam em voz baixa.
O Tenente Jarin acompanhava atentamente as indicações do rastreador de matéria. Ainda há pouco o mesmo detectara a massa de metal plastificado do robô. Mas agora não mostrava mais nada além dos elementos típicos do deserto.
Dirigiu-se ao companheiro.
— O que diz o rastreamento energético, sargento?
— As indicações são iguais a zero. — O sargento Lubow bateu no mostrador do detector de energia. — Não se nota o menor movimento. Absolutamente nada.
— Bem, neste caso já podemos suspender as experiências com a variante Mole.
Ofereceu um cigarro ao sargento. Os dois fumavam, enquanto lançavam os olhos para o deserto sobre o qual o ar parecia tremer de calor.
— Muito bem — disse o Tenente Jarin depois de terminar seu cigarro. — Nossa toupeira já deve ter chegado ao destino. Vamos ver se a aranha está dando conta de sua tarefa.
Colocou o pequeno telecomunicador de bolso junto aos lábios.
— Tenente Jarin chamando interpretação de teste de robô! Experiências com a variante Mole foram satisfatórias. Faça o favor de enviar um exemplar da variante aranha, para que possamos dar início ao teste de sobrevivência.
Vão mandar a aranha, disse, dirigindo-se a Lubow. — Estou curioso para ver quem sairá vencedor. Na minha opinião a variante Mole tem as maiores chances. 
Jarin sacudiu a cabeça.
— Tem pouca mobilidade. Quer apostar como a variante aranha vai ganhar?
Lubow sorriu.
— Vamos apostar uma ração semanal de uísque?
— Combinado.
Ficaram calados quando ouviram uma escotilha fechar-se ruidosamente atrás deles. Mas não olharam para trás, pois sabiam que a escotilha estava tão bem camuflada que alguém poderia pisar na mesma sem notar sua presença.
Em compensação a figura em forma de aranha era bem visível. Deslocava-se agilmente com suas pernas finas e compridas sobre um paredão de rocha íngreme, deixou-se cair nos últimos oito metros que a separavam do chão e saiu correndo pelo deserto com a velocidade de um cavalo galopando.
Ao ver este quadro, Jarin sacudiu instintivamente o corpo. Era só no aspecto exterior que o robô da variante aranha tinha certa semelhança com este animal. Distinguia-se dos aracnídeos conhecidos pelo tamanho. Além disso havia outras diferenças. O robô era fabricado de metal plastificado endurecido. Um desintegrador, por exemplo, não lhe podia fazer nenhum mal enquanto a unidade geradora de fusão instalada no ventre da aranha, que tinha três metros de comprimento, fornecesse energia suficiente para reforçar a estrutura Cristalina do material em nível superior ao da energia de um desintegrador de potência média. A proteção contra a energia térmica de uma arma de impulsos era garantida por um novo campo de absorção, que sugava avidamente a energia térmica e a conduzia a um conversor, que a transmitia ao dispositivo de reforço da estrutura cristalina.
Ao que parecia, a aranha não possuía armas ofensivas.
Um disco voador apareceu em cima da aranha. Ficou suspensa no ar a cerca de cem metros de altura e sua finalidade consistia em transmitir e projetar nas telas dos dois membros da Guarda Azul e nas do sistema de interpretação do teste de robôs, instalado no interior da base as imagens da luta que seria travada dentro em breve.
De repente a aranha ficou parada.
O deserto abriu-se à sua frente. Um esguicho de areia subiu ao ar, e atrás dele veio um raio de fogo quase transparente.
— A toupeira está atacando! — cochichou Lubow em tom nervoso.
Mais um raio de fogo saiu do chão. Parecia a erupção da cratera de um vulcão. Desta vez atingiu o solo bem embaixo da aranha. Mas esta havia dado um salto de dez metros. Levantou uma nuvem de poeira. Quando a poeira assentou, a aranha permaneceu imóvel. Não fez o menor movimento, nem mesmo quando os raios fulgurantes foram chegando cada vez mais perto. De repente foi atingida por um raio de fogo que a atirou para o alto. Voltou a cair ao chão com as pernas arrancadas e o revestimento externo incandescente.
O deserto voltou a abrir-se. Mas desta vez não apareceu nenhum raio de fogo, mas a figura cilíndrica do robô de dois metros de comprimento, parecido com uma toupeira.
— Ganhei a aposta! — regozijou-se Lubow.
— Nada disso! — respondeu Jarin.
Lubow virou abruptamente a cabeça. Viu a toupeira parar de repente, pouco antes de chegar ao lugar em que estava a aranha. Atirou para trás o canhão articulado, em forma de tromba. Um raio incandescente saiu ruidosamente do cano e subiu ao céu.
As telas estalaram e apagaram-se.
— O que aconteceu? — perguntou a voz de Jarin, saída do telecomunicador.
Um sorriso malicioso apareceu no rosto do tenente, que não dependia das telas para acompanhar os acontecimentos.
— A toupeira de vocês derrubou por engano o disco voador. Parece que está sendo molestado por um bando de insetos. Tenta coçar as costas com as garras. Até chega a rebolar-se na areia. Ei, o que é isso?
A toupeira virou-se abruptamente e correu, não menos depressa que a aranha, em direção aos dois observadores.
— Alô! Alô! — disse a voz de Jarin, saída do telecomunicador.
O tenente estremeceu.
— O que houve?
— A toupeira está correndo em sua direção, tenente?
— Está. E bem depressa. O que é isso?
O tenente Jarin lançou um olhar estupefato para o telecomunicador que segurava na mão. Do outro lado tinham cortado a ligação. De repente outro disco voador aproximou-se com um zumbido leve e ficou suspenso no ar.
Jarin começou a transpirar. Imaginava que alguém tinha feito uma peraltice.
Mas só percebeu o que realmente estava acontecendo quando a toupeira abriu fogo a cento e cinqüenta metros de distância.
— Vamos deitar! — gritou.
— Droga! — chiou Lubow, depois que se tinham abrigado atrás de uma grande pedra. — Já começo a desconfiar o que houve com a toupeira. “Ela” deve ter dado à luz alguns filhos, e estes entraram na toupeira e reprogramaram seu computador positrônico. A mesma acha que somos terranos.
Jarin empalideceu. Mas logo voltou a sorrir.
— Ela não nos fará nada. Afinal, temos nossas marcas de identificação.
Levantou-se, pegou uma pequena placa de metal pendurada ao seu pescoço, que irradiava impulsos de identificação codificados e balançou-a em cima da rocha atrás da qual estavam abrigados.
O fogo foi suspenso imediatamente. Estava mesmo na hora, pois a rocha já começava a ficar incandescente. Mais alguns segundos, e Jarin e Lubow teriam de fugir — para a morte.
A toupeira aproximou-se em atitude pacata. O ventre da aranha, que ficara sem pernas, flutuava em cima das dunas.
— Por pouco não saía tudo errado — disse Lubow com a voz apagada.
— É isso mesmo — disse uma voz vinda de trás. Viraram-se, assustados. No mesmo

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