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P 194 A Invasão Secreta Kurt Mahr

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A INVASÃO SECRETA
Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
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Mais uma vez, a Segurança Galáctica tenta derrubar o terrível Iratio Hondro...
Depois de vagarem durante meses a fio pelo cosmos, Perry Rhodan e seus companheiros finalmente conseguiram regressar à Terra, embora sua situação muitas vezes tivesse sido tão desesperadora que ninguém lhes teria dado uma chance.
Os calendários do planeta Terra registram os últimos dias do mês de março do ano de 2.329. Os planos do grupo terrorista Estrela Negra, cujos agentes fanatizados por pouco não destruíram os mundos principais do Sistema Solar, puderam ser frustrados. A posição de Perry Rhodan como Administrador Geral do Império Solar não é contestada por mais ninguém, e a grande maioria dos administradores dos mundos colonizados por terranos reconheceu que nas atuais condições políticas da Galáxia é mais seguro permanecer sob a proteção do Império Solar que perseguir seus próprios objetivos.
Iratio Hondro, chefe supremo de Plofos, já não pensa assim. Este homem edificou seu poder sobre a operação e o terror e não está disposto a abandonar seus desígnios, embora já tenha sofrido um grave revés. Julga-se bastante poderoso para desafiar o poder do Império Solar.
Derrubá-lo do poder — é este o objetivo dos homens e mulheres pertencentes à Segurança Galáctica, que estão dispostos a levar avante A Invasão Secreta.
= = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = =
Guri Tetrona — Um “patriarca” que tem 61 homens e mulheres sob sua guarda — além de 50 cadáveres.
Terry Simmons — Uma mulher que possui uma memória artificial.
Porro Mallin — Chefe da segunda onda da invasão secreta.
Kazmer Tureck — A placa numérica em sua espaço-nave provoca suspeitas num policial.
Isit Huran — Chefe do serviço secreto plofosense.
Kelso Jasper — Um médico desconfiado, que acredita que os “saltadores” não são verdadeiros.
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Seus rostos estão um tanto pálidos, pensou Guri, mas apesar disso até se poderia ter a impressão de que ainda estão vivos.
Tremendo de frio, puxou a manta parecida com uma toga por cima do pescoço e cobriu as mãos, que com a temperatura desagradável reinante no interior do frigorífico estavam assumindo uma coloração azulada. À sua frente os cadáveres de cinqüenta homens e mulheres estavam enfileirados sobre o chão liso, iluminados pela luz branco-azulada dos tubos de gás. Tratava-se de pessoas tombadas nos combates mais recentes da frota espacial do Império Solar. De início a idéia de realizar uma viagem prolongada com cinqüenta cadáveres a bordo provocara repugnância em Guri Tetrona. Mas os argumentos que falavam a favor do acompanhamento de corpos sem vida eram bastante convincentes, e como Guri inspecionava o frigorífico de duas em duas horas, o que representava um total de trinta vezes, a visão daqueles cadáveres passara a ser somente mais um dado do seu dia-a-dia bastante agitado.
Passou junto à fileira de pés enrijecidos e examinou a trava da escotilha de proa. Agiu com o maior cuidado, pois precisaria dos mortos quando chegasse ao destino e não poderia dar-se ao luxo de perdê-los por negligência durante as horas confusas que ainda teria pela frente.
Um tanto pensativo, voltou para junto da escotilha da popa. Absorto em seus próprios pensamentos, passou a mão endurecida pela barba arrumada em forma de trança, que caía sobre seu peito. Com o congelamento da umidade do ar, a mesma transformara-se em dois galhos rígidos. Guri levantou os olhos, espantado, quando os fios da barba trançada começaram a crepitar sob seus movimentos. Numa súbita decisão abriu a escotilha e, sem olhar para trás, entrou no corredor principal.
O cronômetro existente na outra extremidade do corredor indicava 20:45 horas, tempo de bordo.
* * *
Guri esperou pacientemente que a escotilha de meio metro de espessura, feita de aço submetido a um processo de condensação molecular, se fechasse atrás dele. Observou a peça e ficou satisfeito ao constatar que a mesma funcionava perfeitamente. Era tão pesada que um homem normal não conseguiria movimentá-la, mas ajustou-se tão bem na abertura que quase não se via a fresta.
Era um detalhe importante para os acontecimentos que se verificariam num futuro próximo.
Guri virou a cabeça e lançou um ligeiro olhar pela peça na qual acabara de entrar. Nunca dirigira uma nave de um posto de comando tão estranho como este, e mesmo agora, depois de 60 horas de vôo, tinha a impressão de que este não era seu lugar. Era uma sala estreita e comprida, parecida com a sala de comando de um submarino. As paredes de ambos os lados eram ocupadas pelas mesas dos oficiais de astronavegação, do operador de rádio e do oficial de artilharia. Numa das extremidades, junto à escotilha de popa, a mesa do comandante erguia-se sobre um estrado comprimido no canto. A escotilha da popa levava aos alojamentos dos guardas, à sala dos tripulantes e aos depósitos de mantimentos.
Guri passou entre as mesas. Um homem alto e barbudo que usava uma pesada toga em vez do uniforme da frota espacial, virou a cabeça em sua direção e deu uma piscada.
— Tudo em ordem, excelso Maltzo! — disse com uma risada.
Guri fez um gesto distraído. O segundo astronavegador girou a poltrona e esticou as pernas. Por pouco Guri não tropeça sobre as mesmas. Aliás, era um par de pernas muito bem feitas e a toga, que as cobria até os joelhos, era de um colorido tão vivo que Guri recuou instintivamente.
— Quanto tempo falta para o toque de recolher, excelso Maltzo? — perguntou uma voz aguda.
— Vá para o inferno — resmungou Guri e passou por cima do par de pernas. — O relógio fica ali.
A mulher deu uma estrondosa gargalhada e voltou a olhar para o painel de instrumentos.
— Hoje ele não está nada bom — disse, dirigindo-se ao oficial que se encontrava a seu lado.
— Hum... — respondeu este. — Isso acontece toda vez que ele vai lá para a frente.
Alguém deu uma risada. Guri chegou à sua poltrona e gemeu enquanto se deixava cair na mesma. Mesmo sentado era mais alto que muita gente em pé, e seus ombros pareciam tão grandes e robustos sob a toga que até se tinha a impressão de que era capaz de derrubar uma parede de pedra com os mesmos. Sua pele tinha a coloração vermelha provocada pela falta de pigmentação conjugada com uma prolongada exposição ao sol e a longa cabeleira, reunida em pontas de trança, descia sobre a nuca, e encontrava seu equivalente na barba, também arrumada em trancas e dividida em duas partes, que neste meio-tempo descongelara.
— Prestem atenção! — rugiu a voz de Guri através da sala alongada e as cabeças de seus oficiais — cinco homens e três mulheres — viraram-se abruptamente.
Guri olhou para o relógio.
Eram 20:54 horas, tempo de bordo.
* * *
— Não há necessidade de repetir as instruções — principiou Guri. — O pessoal que ficou lá em casa preparou-nos de tal maneira que nem temos outra possibilidade senão reagir corretamente às mais variadas situações. O que eu quero pedir é outra coisa. — Pigarreou e passou a mão duas vezes pela boca, o que era um gesto típico de nervosismo no patriarca Maltzo. — Fiquem sempre com a cabeça erguida, meus filhos. As coisas só podem dar certo, por mais difícil que pareça a situação. Aqui estamos seguros. A cela interior foi feita de aço altamente condensado e além disso possui um campo defensivo adicional. Podem bater à vontade, que nada nos acontecerá aqui dentro. Por isso peço-lhes que não percam a calma. É só o que importa, pois um nervosismo excessivo pode derrubar os bloqueios psicológicos aplicados em vocês. Acho que não preciso explicar o que acontecerá a quem perder seu arsenal de comportamento.
Enquanto falava, as indicações projetadas sobre as grandes telas que se encontravam em cima das mesas dos astronavegadores haviam mudado silenciosamente. Antes consistiam numa espécie de névoa fina em meio à qual só se destacavam os pontinhos luminosos que representavamumas poucas estrelas, mas agora brilhava nelas o oceano de estrelas do centro da Via Láctea. A névoa tinha desaparecido.
A Maltzo-XXI concluiu o vôo linear e saiu do semi-espaço kalupiano para retornar ao universo einsteiniano. Os astronavegadores procuraram determinar a posição da nave cilíndrica. Guri já conhecia o resultado. A Maltzo-XXI encontrava-se a onze horas-luz de Eugaul, uma estrela do tipo F-8, cujo oitavo planeta era o verdadeiro destino da estranha viagem.
— Identificamos Eugaul! — exclamou Terry Simmons, a astronavegadora que há pouco colocara as pernas no caminho de Guri. As luzes de controle do pequeno computador que se encontrava sobre sua mesa começaram a piscar. Ouviram-se alguns estalos enquanto o resultado era registrado numa fita de plástico. — Distância... um-vírgula-um-nove...
Terry não pôde prosseguir. O chiado agudo do alarme parecia arrancar-lhe as palavras da boca. Dali a alguns segundos, quando o rastreador encontrou a chave correta, o alarme silenciou.
— Localizamos alguma coisa, chefe! São três unidades no...
Guri não prestou atenção ao que o homem disse. A Maltzo-XXI estava no horário. As três unidades formavam a patrulha de Eugaul, constituída de cruzadores da frota terrana.
Pela terceira vez alguma coisa o levou a olhar para o cronômetro. 21:09.
Faltavam vinte e um minutos para o ponto zero. Guri levantou os olhos.
— Comando de artilharia... preparar! — ordenou laconicamente.
* * *
Às 21:17 a nave-capitânia da patrulha de Eugaul expediu uma mensagem de hiper-rádio destinada à Maltzo-XXI, dando ordem para reduzir a velocidade e mudar de rumo por motivos de segurança.
— O governo de Eugaul impôs uma proibição geral de entrada em sua área de influência — justificou a nave-capitânia. — Não queremos que se exponham desnecessariamente a um perigo.
O cruzador de patrulhamento já devia ter observado a Maltzo-XXI há bastante tempo, pois a hipermensagem incluía indicações precisas sobre o grau de desaceleração e as coordenadas do ponto de encontro. Tratava-se de dados que só podiam ser estabelecidos com base na determinação exata da rota da Maltzo-XXI.
Diante de tamanha precisão, Guri Tetrona só exibiu um débil sorriso.
— Diga-lhes que eu quero que eles vão para o inferno — disse a Curd Djanikadze, o pequeno operador de rádio.
Curd fitou-o com uma expressão de espanto.
— Quer mesmo que eu transmita isso? — perguntou em tom de perplexidade.
Guri fez um gesto de pouco caso.
Às 21:20 chegou a segunda mensagem, um pouco mais enérgica que a primeira. A distância entre a Maltzo-XXI e a patrulha ainda era de dois milhões de quilômetros. A nave cilíndrica ainda não dera mostras de que tinha a intenção de reduzir a velocidade. Prosseguia na mesma velocidade relativa em direção a Eugaul.
Guri também deixou sem resposta a segunda mensagem. Aumentou a velocidade de sua nave, que passou a deslocar-se em velocidade próxima à da luz em direção à estrela branco-amarelada.
A reação da patrulha consistiu numa terceira mensagem expedida pelo rádio, lacônica e precisa:
— Se não mudarem imediatamente de rumo, abriremos fogo!
Guri empurrou-se com o pé direito, girando levemente a poltrona.
— Também podemos fazer isso — resmungou, zangado. — Comando de artilharia... Preparar todas as peças!
Eram 21:22 horas, tempo de bordo. A última batalha da Maltzo-XXI teve início.
* * *
A cerca de uma unidade astronômica do palco dos acontecimentos o oficial que trabalhava no setor de rastreamento de uma nave-vanguarda plofosense observou coisas estranhas, projetadas na tela de seu rastreador. Os aparelhos registravam a liberação de grande quantidade de energia, ocorrida a intervalos regulares, e que nos pontos culminantes chegavam a milhões de megawats-hora. Pelo volume da energia liberada e pela série estatística dos impulsos era fácil concluir que uma batalha estava sendo travada lá fora. O oficial deu o alarme.
A estação de rádio recebera e decifrara três hiper-mensagens muito breves. Uma patrulha de cruzadores do Império Solar estava intimando uma nave ainda não identificável a parar e mudar de rumo. Na terceira mensagem havia a ameaça clara de que a patrulha abriria fogo se a ordem não fosse cumprida.
Até ali estava tudo claro. Alguns segundos depois da última mensagem foi aberto o fogo. Só havia uma dúvida que afligia o comandante da nave-vanguarda plofosense. Os primeiros impulsos energéticos foram pouco intensos; seu nível máximo não chegou a um milhão de megawatts-hora. Um cruzador de patrulhamento terrano não costumava usar armas de potência tão reduzida. E realmente segundos depois foram registrados impulsos bem mais fortes, que correspondiam melhor ao desempenho energético que se esperava encontrar numa nave de guerra do Império.
Só havia uma solução: quem abriu fogo em primeiro lugar não foram os cruzadores-patrulha, mas a nave desconhecida.
— Alguém está com fogo embaixo do traseiro! — observou Erik Layette, comandante da nave-vanguarda e membro da Guarda Azul de Plofos. — Vamos dar o alarme no quartel-general.
Às 21:43, tempo de bordo da Maltzo, o quartel-general da frota plofosense, teve conhecimento dos acontecimentos que se desenrolavam na periferia do sistema e colocou em prontidão todas as unidades estacionadas além do sexto planeta.
* * *
Dez minutos antes disso o primeiro impacto pesado sacudiu o corpo alongado da Maltzo-XXI. O bombardeio ininterrupto com as armas pesadas dos três cruzadores rompeu o campo defensivo externo e causou seu desmoronamento completo. Naquela altura a nave já tinha passado pelos cruzadores que, confiantes no alcance de suas armas, não demonstravam muita pressa em segui-la, e afastava-se numa velocidade inacreditável.
Às 21:38 um retumbante impacto direto arrancou Guri Tetrona da poltrona juntamente com os cintos de segurança e atirou-o de frente contra os quadros de comando. Guri ficou praguejando enquanto escorregava junto aos mesmos e levou três minutos para pôr-se de pé.
O sistema de suprimento de energia entrou em pane. A nave passou a viver à custa dos geradores de emergência. O dispositivo antigravitacional já não conseguia neutralizar completamente a energia dos impactos. Toda vez que os canhões energéticos pesados dos cruzadores atingiam a Maltzo-XXI, esta executava uma dança louca. Os detectores revelaram a existência de oito rombos de grande extensão no casco da nave. Os dispositivos de mira tinham sido colocados fora de ação, mas isso não impedia o oficial de artilharia a atirar furiosamente para o espaço com todas as peças de artilharia que lhe restavam.
As 21:47 cinco dos oito oficiais que se encontravam na sala de comando tinham sido feridos e estavam inconscientes. Guri, que ainda estava um tanto atordoado e apresentava um grande hematoma no crânio, mandou que o oficial de artilharia abandonasse seu lugar e cuidasse da direção da nave. Dali em diante os canhões da Maltzo-XXI silenciaram.
Dali a dez minutos as naves de patrulhamento também dispararam seu último tiro. A Maltzo-XXI estava reduzida a destroços, e o comandante da patrulha podia ter certeza que os artigos bélicos que porventura se encontrassem a bordo da nave cilíndrica não serviriam para mais nada quando caíssem nas mãos dos plofosenses. Era só o que importava. Nem ele, nem o governo do Império tinha interesse em liquidar a tripulação da nave estranha.
O incêndio atômico lavrara no casco da Maltzo-XXI. Assim que o fogo inimigo foi suspenso, a equipe que estava de prontidão entrou em atividade. Entre as cinqüenta e quatro pessoas havia oito médicos.. Estes puseram-se a trabalhar com a segurança e o método que se adquire num longo treinamento. Os cinco oficiais que tinham perdido os sentidos logo foram colocados em forma. Só Curd Djanikadze precisava de descanso, já que tinha fraturado o braço esquerdo na queda.
Guri Tetrona sempre estava nos lugares em que a confusão era pior. Parecia o deus da vingança em pessoa quando com a voz trovejante e as trancas dabarba ondulantes incentivava sua equipe, formada por homens e mulheres. Dentro de meia hora os danos sofridos pelos propulsores puderam ser removidos a tal ponto que a Maltzo-XXI poderia ao menos tentar um pouso de emergência num planeta cuja gravitação não fosse muito elevada. Os médicos colocaram os pesados trajes à prova de radiações e abandonaram o núcleo blindado da nave, para prosseguir seu trabalho lã fora, onde rugia o incêndio nuclear. Voltaram dentro de quinze minutos. Seus rostos suados apareciam atrás dos capacetes protetores. Um deles abriu caminho entre a multidão que cercava Guri e depois de chegar ao comandante gritou:
— Tudo pronto. Até parece que ficaram expostos a um fogo pesado durante dez dias.
Guri concordou com um sorriso. O médico virou-se e saiu cambaleando. Ninguém percebeu que se sentia muito mal.
O oficial de rastreamento, que era o único que não abandonara seu posto por um instante que fosse, observava cuidadosamente nas duas telas que ainda estavam intactas a movimentação de naves em torno da Maltzo-XXI. Um total de duzentas naves da frota plofosense movimentava-se num círculo amplo em torno de Eugaul, à procura de intrusos indesejáveis. Às 22:00 horas a Maltzo-XXI atravessou a fileira de naves de vanguarda. O hipertransmissor mostrou que tentavam entrar em contato com a nave, mas o conversor de impulsos não estava funcionando mais. Por isso não havia como decifrar a mensagem. Os plofosenses tentaram mais duas vezes e desistiram. As naves de vanguarda abandonaram suas posições e seguiram lentamente a Maltzo-XXI.
Guri Tetrona respirou aliviado. A incerteza sobre se as unidades de vanguarda dos plofosenses destruiriam de vez a nave gravemente avariada fora um dos principais fatores de insegurança em seu plano.
A Maltzo-XXI atravessou a segunda fileira de naves plofosenses sem que tentassem impedi-la. Fora dó núcleo blindado da nave o incêndio nuclear que lavrara no casco já tinha ultrapassado o teor de dez mil rontgen por hora. Qualquer pessoa que se arriscasse a sair por uma das escotilhas blindadas sem o traje à prova de radiações estaria irremediavelmente condenada à morte numa questão de minutos.
As vinte e duas horas e quinze minutos os propulsores da nave entraram em funcionamento pela última vez. Tossindo e provocando solavancos, reduziram a tremenda velocidade da nave. Sicos, que era o sexto planeta do sistema de Eugaul, ainda ficava a duas unidades astronômicas. A incerteza sobre se os propulsores ainda estariam em condições de num trecho relativamente curto como este frear, a Maltzo-XXI o suficiente para permitir o pouso era outro fator de insegurança do plano de Guri. Por alguns minutos o silêncio reinou no interior da nave. Sessenta e duas pessoas muito tensas, comprimidas num espaço extremamente reduzido, acompanhavam os dados que o oficial de astronavegação lia em voz alta. Sempre que dos dados se deduzia que a velocidade tinha ido reduzida, ouvia-se um murmúrio. Quando os propulsores falhavam temporariamente, um silêncio deprimente espalhava-se pela pequena sala.
Quando a nave se encontrava a cinqüenta mil quilômetros de Sicos, sua velocidade ainda era superior a cem quilômetros por segundo. Guri Tetrona, que passara o tempo procurando animar sua tripulação, teve de reconhecer que a situação era crítica.
— Afastem-se! — gritou. — Quem não tem nada a fazer por aqui deve ir ao alojamento.
A energia reduzida do gerador de emergência só conseguiu mover lentamente a pesada escotilha. Quando Guri finalmente podia dispor do lugar de que precisava, Sicos encontrava-se a apenas vinte mil quilômetros de distância.
O crepitar pouco intenso provocado pelo casco da nave que estava sendo vaporizado penetrou no silêncio da sala de comando.
— Quero que os propulsores sejam totalmente paralisados por trinta segundos — ordenou Guri com a voz trovejante. — Todos os aceleradores devem ser colocados na posição zero.
As chaves produziram um estalo ao entrar na posição de repouso.
— Não faça isso, Guri! — gritou Terry Simmons. — Se houver uma pausa de um segundo que seja, você nunca mais movimentará o propulsor.
— Cale a boca! — gritou Guri, furioso, sem olhar para trás.
O zumbido surdo e entrecortado dos propulsores cessou. A Maltzo-XXI precipitava-se sobre Sicos em queda livre. Até certo ponto Terry tinha razão. Em virtude das avarias sofridas pelos maquinismos era possível que, uma vez desligados, os propulsores não pegassem mais. Guri estava disposto a assumir este risco. Se prosseguisse nas tentativas de reduzir a velocidade da Maltzo-XXI o suficiente para permitir o pouso, usando os propulsores que pifavam constantemente, o resultado seria o mesmo. A manobra não seria bem sucedida e a nave se espatifaria de encontro à superfície gelada de Sicos.
Só lhes restava uma chance: deter a queda da nave destroçada com um forte empuxo de frenagem junto à superfície do planeta. Quanto menor a altitude em que isso fosse feito, maiores seriam as possibilidades de sobrevivência. O casco externo da nave se esfacelaria até mesmo numa queda de cem metros de altura, mas no interior da cela o dispositivo antigravitacional ainda estava funcionando e amorteceria parcialmente o impacto da queda.
Os trinta segundos chegaram ao fim. No interior da sala de comando o nervosismo generalizado e o silêncio eram tamanhos que até se tinha a impressão de que o ar começaria a crepitar.
— Ligar os propulsores com a potência mínima! — ordenou Guri.
Ouviu-se o estalo das chaves. Um aparelho começou a zumbir.
— Conseguimos! — exultou Terry. — Está fun...
— Fique quieta! — gritou Guri. — São os instrumentos.
— Os maquinismos dos propulsores não reagem. — informou o primeiro astronavegador.
Guri inclinou a cabeça enorme para o lado e pôs-se a escutar. Não se ouvia o menor ruído saído das salas dos propulsores. Os gigantescos conversores de fusão, os longos tubos dos jatopropulsores estavam mortos e apagados.
— Desligue e volte a ligar! — disse Guri com a voz rouca.
Em meio ao silêncio o ruído das chaves de comando chegou a ser parecido com tiros de fuzil.
— Qual é a indicação...?
— Negativo... não! — A voz do oficial atropelou-se. — Estão reagindo, senhor, estão pegando!
Levantou-se de um salto. Guri fez um gesto de pouco caso. O homem acalmou-se de repente e Guri ouviu o zumbido a que estava tão acostumado. Ainda era entrecortado, mas bem nítido.
Acenou lentamente com a cabeça.
— Está bem — resmungou. — Alguém que vá dizer às pessoas que se encontram lá fora que devem fechar seus trajes protetores.
O intercomunicador não estava funcionando. Terry abriu a escotilha que ficava do lado da popa e gritou a ordem para os que estavam do lado de fora. Por um instante ouviu-se no interior da sala de comando o ruído de vozes nervosas vindo de fora.
Guri parecia pensativa enquanto contemplava em uma das telas que continuavam intactas a esfera luminosa branco-amarelada do planeta Sicos, que crescia rapidamente e começou a sair para além das margens da tela. Praticamente não se viam contornos de acidentes do terreno. Sicos era um mundo gelado. A atmosfera que o planeta possuíra em tempos antigos passara a cobrir sua superfície em estado congelado. Não havia montanhas elevadas. Cordilheiras baixas destacavam-se como linhas ligeiramente escurecidas contra o fundo reflexivo uniforme formada pela superfície gelada.
Embaixo da superfície congelada havia camadas de cem metros de hidrocarbonetos altamente polimerizados que existiam em grande abundância em Sicos. Essa matéria orgânica também tinha de ser considerada como uma espécie de gelo, embora suas propriedades fossem diferentes das que possuíam as camadas de hidrogênio, hélio e metano congelado formadas pelos remanescentes da antiga atmosfera, que cobriam essa matéria. A camada espessa de gelo orgânico ocupava um lugar importante nos planos de Guri.
Este despertou das suas meditações e leu a indicação do altímetro. A Maltzo-XXI encontrava-se oito mil quilômetros acima dasuperfície do planeta e ainda continuava a deslocar-se a uma velocidade dez vezes superior à velocidade relativa de Sicos. O primeiro astronavegador olhou fixamente para Guri, à espera de suas ordens.
— Ligar propulsores à potência máxima! — disse Guri com a voz seca. — Deixe-me cuidar disso.
O oficial abriu caminho. Guri enfiou-se na poltrona do mesmo. O zumbido dos propulsores tornou-se mais forte. Uma mão invisível agarrou Guri e comprimiu-o no assento com tamanha força que até se tinha a impressão de que queria perfurar o chão embaixo do mesmo. Alguém caiu ruidosamente ao chão. Ouviu-se um grito de mulher.
Segurando a alavanca do acelerador com ambas as mãos e usando os dedos robustos para resistir à pressão da desaceleração, Guri estava observando os instrumentos. O dispositivo antigravitacional já não neutralizava totalmente a pressão enorme produzida pela frenagem. Véus coloridos pareciam dançar diante dos olhos de Guri. Teve de superar um peso três vezes superior ao normal para sair da poltrona, a fim de aproximar-se dos instrumentos e fazer uma leitura mais exata.
A velocidade da nave reduzida rapidamente, mas a distância que os separava da superfície do planeta diminuía quase na mesma proporção. Guri virou apressadamente a cabeça e por uma fração de segundo viu na tela traseira o quadro apavorante da superfície gelada que parecia precipitar-se sobre a nave, ameaçando engoli-la. Já conhecia o quadro e sabia que a superfície de qualquer planeta causa nas pessoas que se encontram a bordo de uma espaçonave que desce rapidamente. A impressão é que se trata de um precipício infernal que procura sugar a nave. Sabia tudo isso e sabia que era errado deixar-se dominar por essa impressão. Mas assustou-se até o fundo da alma ao ver o quadro projetado na tela.
Não demorou em olhar novamente para os instrumentos. A velocidade da nave tinha caído quase para zero e a altura era de somente três quilômetros. Guri moveu a chave-mestra de forma quase imperceptível, reduzindo ligeiramente a potência dos propulsores. A velocidade da queda aumentou durante alguns segundos, e a distância que os separava da superfície do planeta baixou para um quilômetro. Bastaria neutralizar a velocidade de descida de oitenta metros por segundo, e a Maltzo-XXI estaria salva.
O sangue martelava na cabeça de Guri. A pressão diminuíra, já que a potência dos propulsores fora reduzida. Guri dispunha de alguns segundos para lançar os olhos pela sala de comando. Terry estava cuidando de dois oficiais que, segundo parecia, estavam inconscientes. Os outros estavam recostados em suas poltronas, com os olhos arregalados. A cor branco-amarelada do gelo de Sicos, projetada nas telas, refletia-se em seus rostos.
Pela última vez Guri estendeu a mão em direção aos comandos. A nave tinha sido imobilizada. A distância que a separava do solo era pouco superior a cem metros. Pela última vez Guri quis reduzir a potência dos propulsores, para levar a Maltzo-XXI sã e salva à superfície.
Bateu de leve com o dedo indicador na chave do acelerador, que se afastou para o lado.
De repente o silêncio reinou na nave.
Os propulsores deixaram de funcionar.
— Segurem-se! — gritou Guri.
Sua voz retumbante era tão forte que ao menos a expressão de advertência contida na mesma foi percebida pelas pessoas que se encontravam nos alojamentos, fora da sala de comando.
Guri afundou na poltrona e levantou os pés alguns centímetros do chão.
O último pensamento que lhe passou pela cabeça foi que não deveria ficar inconsciente por muito tempo.
Depois o mundo parecia desmanchar-se numa série de estrondos.
* * *
A luz ofuscante de uma lanterninha e as chispas disparadas pelas partículas de pó que dançavam no feixe de luz atravessavam a escuridão. A luz atingiu os olhos de Guri, que se sentiu ofuscado e fechou os olhos.
— Desligue isso, seu pateta — resmungou Guri. — Como vai o pessoal? Quem é você?
— Sou eu — respondeu uma voz atrevida e aguda.
— Sempre você — suspirou Guri. — Uma pessoa como você não morre mesmo.
— Será que isso adiantaria alguma coisa? Se eu tivesse morrido, você seria a única pessoa a bordo da nave que não está inconsciente.
Surpreso, Guri procurou levantar de um salto, mas bateu com a cabeça numa quina que não deveria estar nesse lugar. A dor lancinante por pouco não o atirava novamente para trás, mas Guri cerrou os dentes e conseguiu superar a mesma.
— O quê? — berrou. — Todos os outros ainda estão...
— Estão frios que nem uma sopa depois da terceira ronda — completou Terry em tom cínico.
— Ligue a luz! — ordenou Guri.
Terry dirigiu o feixe de luz contra o teto. Uma claridade difusa envolveu a confusão terrível que se espalhara na sala de comando. Os instrumentos tinham sido arrancados das paredes e estavam espalhados pelo chão. Quatro consoles formavam um montão grotesco de revestimentos de plástico rasgados, chaves soltas e uma verdadeira selva de fios coloridos.
Os oficiais de Guri estavam jogados no meio da confusão. Em cinco deles via-se perfeitamente que ainda estavam respirando, mas em um deles Guri não tinha tanta certeza.
Levantou o braço e olhou para o relógio. Tratava-se de um cronômetro à prova de choque, que continuava a funcionar perfeitamente. 23:02 leu Guri. A Maltzo-XXI atingira o solo mais ou menos às 22:45. Dezessete minutos tinham sido perdidos.
Terry, que prendera a lanterninha entre os destroços para não precisar segurá-la, pôs-se a examinar um quadro de comando situado nos fundos da sala.
— Alguns conjuntos de emergência ainda funcionam — exclamou em tom de triunfo. — Isto naturalmente se os instrumentos não nos pregarem uma peça.
Guri despertou do estado de torpor em que se encontrava.
— A iluminação de emergência... ?
— Um instante, chefe! Aí... pronto!
Uma série de lâmpadas fracas acendeu-se, espalhando uma claridade difusa. Guri respirou aliviado. Num ambiente iluminado as chances de transformar a operação num sucesso eram bem maiores.
Guri recuperou a energia.
— Cuide deste pessoal — gritou para Terry. — Vou dar uma olhada lá fora.
Fechou o pesado traje protetor e atirou-se contra a escotilha de popa. Quando finalmente a mesma começou a abrir-se lentamente sob a ação dos conjuntos energéticos muito fracos, viu que lá fora, nos alojamentos, também havia algumas lâmpadas acesas.
* * *
Às 23:12, tempo de bordo, mais de metade da tripulação se recuperara a tal ponto que a execução do programa estabelecido para os momentos que se seguissem ao pouso pôde ser iniciada. Guri Tetrona, cujo crânio parecia estourar por causa da dor latejante, comportou-se como o chefe de serviço mais entusiasmado que a história da frota espacial já tinha visto. Tropeçando e praguejando, os homens dirigiam-se apressadamente para os pavimentos do núcleo blindado da nave que ficavam mais próximos ao solo.
Enquanto isso Terry Simmons informava às pessoas que iam acordando sobre a situação e lhes indicava suas tarefas. Os mortos tinham de ser tirados de bordo. Era necessário levantar quanto antes uma barraca pressurizada no vácuo da superfície do mundo de gelo, para abrigar os cadáveres. Atordoados, os tripulantes cambaleavam sob o peso dos trajes à prova de radiações e puseram-se a trabalhar.
No depósito principal, situado na parte inferior da nave, os homens pertencentes ao comando da base abriram o revestimento de cinqüenta centímetros de espessura que envolvia o núcleo da nave a maçarico. Um projetor de campo energético portátil criou um campo defensivo em forma de bolha, que evitou que o ar contido na nave escapasse pela abertura. A Maltzo-XXI caíra por assim dizer de barriga. O envoltório externo, esfacelado por causa do incêndio nuclear, espalhara-se em todas as direções. A camada superior do revestimento de gelo do planeta ficava logo embaixo do buraco aberto a maçarico. A abertura tinha dez metros de diâmetro em média, e de propósito fora recortado de maneira a dar a impressão de que se formara em virtude do impacto.Guri ficou satisfeito ao examinar o mesmo. — Para trás todo mundo! — disse sua voz retumbante saída dos alto-falantes dos capacetes. — Tragam a freza! Quero ver um trabalho bem feito, rapazes.
Dois homens empurraram para junto do buraco um aparelho cilíndrico parecido com um holofote, que podia ser girado num suporte formado por dois braços. Sem esperar novas ordens, dirigiram a face do holofote para a superfície gelada. Um dos dois homens examinou a posição do cabo vindo dos fundos da sala, que ia até a parte traseira do aparelho, e mexeu numa chave. Um feixe estreito de raios esverdeados paralelos saiu do holofote e atingiu o gelo.
Nos lugares em que atingia a camada branca, a matéria que formava a mesma era gaseificada. Névoas finas levantaram-se, enquanto embaixo da abertura feita a maçarico uma galeria ampla penetrava em velocidade alucinante verticalmente no gelo. Dentro de alguns segundos essa galeria atingiu vinte metros de profundidade, e seu fundo cada vez mais distante ficou fora do alcance das lâmpadas fracas. Outro aparelho foi levado para junto da abertura. Um projetor encheu o poço com um campo cilíndrico de gravitação artificial regulável. Um dos subordinados de Guri saltou para dentro do poço e foi descendo lentamente. O feixe de luz de sua lâmpada descia à sua frente. As pessoas que se encontravam junto à borda do poço viam que o fundo do mesmo descia à mesma velocidade do homem que segurava a lâmpada. O campo defensivo finíssimo criado por um minúsculo gerador embutido em seu traje protegia-o contra os efeitos devastadores da freza desintegradora.
Guri aproximou-se do poço. Viu a freza fazer avançar rapidamente o fundo do poço, mas teve a impressão de que os segundos se transformavam numa eternidade. Todos o ouviram respirar aliviado quando finalmente a voz do homem que segurava a lâmpada soou em seu alto-falante de capacete.
— Atingimos a rocha, Chefe. A descida continua, ao que parece com a mesma velocidade.
— Está bem, Porro — gritou Guri aliviado. — Quando chegarmos vinte metros abaixo da superfície da rocha, vamos parar por enquanto.
Dali a alguns segundos veio a informação de que a marca dos vinte metros fora atingida. A freza foi rolada para trás. Os homens começaram a levar os aparelhos empilhados no depósito para junto da abertura. Cinco desses aparelhos foram empurrados para dentro do poço e desceram lentamente sob a ação suave do campo de gravitação artificial. Porro confirmou a chegada.
— Já pode mandar Tureck com sua turma, chefe — acrescentou. — Temos lugar que chega para continuar aqui.
Guri olhou para o relógio. Eram 23:31. Suas chances tinham melhorado. Se as coisas continuassem a correr sem incidentes, talvez conseguissem derrotar os plofosenses por meio corpo de diferença.
* * *
Pela meia-noite, tempo de bordo, os trabalhos estavam praticamente concluídos. O começo de uma base fora criado bem embaixo do lugar em que a Maltzo-XXI tinha tocado o solo. Grandes galerias atravessavam a rocha planetária em todas as direções. Os sistemas de conversão química exploravam o gelo contido na rocha e nas camadas de gelo que cobriam a mesma, criando uma atmosfera respirável no interior das galerias e tornando-as independentes da nave.
Mas, o que era mais importante, sete mil toneladas de equipamentos haviam sido retiradas da nave destroçada para desaparecer nas galerias da base recém-criada. O depósito principal estava vazio. Uma vez recolhido o material, quinhentas toneladas de material, constituído principalmente de provisões para os ocupantes da base, foram colocadas às pressas nas galerias. Foi só graças aos excelentes equipamentos, ao elevado desempenho dos aparelhos, que uma série de tarefas tão extensas pôde ser cumprida num tempo incrivelmente curto. Mas os aparelhos haviam sido operados por seres humanos, e estes, uma vez concluída a tarefa, encontravam-se à beira da exaustão.
Guri e Porro, futuro comandante da base, estavam parados junto ao poço, enquanto as pessoas exaustas se precipitavam para dentro do campo gravitacional artificial, que a esta hora estava sendo criado no fundo do poço, e desciam lentamente. Guri estendeu lentamente a mão para o homem baixo de ombros largos, que no interior do pesado traje protetor parecia antes um robô de brinquedo muito grande. As juntas de sensores das luvas não transmitiam toda a força do aperto de mão, mas assim mesmo Guri sentiu que numa oportunidade como esta o gesto era uma verdadeira necessidade.
— Boa sorte — disse. — Ânimo, rapaz. — Logo envergonhou-se por ter revelado suas emoções e resmungou: — Ou melhor, procure controlar-se!
Porro fez continência, encostando a mão ao capacete, e saltou para dentro do poço. Guri seguiu-o com os olhos enquanto descia lentamente.
Dali a alguns segundos chamou do fundo do poço.
— Tudo bem — disse. — Podem começar. O campo foi ativado.
Dois dos tripulantes que continuavam no interior da nave ajudaram Guri a colocar o aparelho de solda novamente em posição. O gelo das paredes do poço derreteu rapidamente sob a ação do raio ofuscante e barulhento, descendo em cascatas. Mas Porro havia criado um campo energético em cima da superfície rochosa, e o líquido resultante da fusão do gelo acumulou-se sobre o mesmo. Em cima do campo energético o poço transformou-se, sob a ação do maçarico, num grande funil. Pela última vez a Maltzo-XXI mudou de posição, ao perder grande parte de sua massa de apoio, mas foi um movimento insignificante. Guri e seus auxiliares nem sequer chegaram a perder o equilíbrio.
Quando desligaram o maçarico, o líquido resultante da fusão do gelo atingia a borda da abertura feita na parede da nave. O pequeno campo defensivo em forma de bolha, que protegia a nave, foi deslocado para dentro. O líquido endureceu imediatamente sob o frio tremendo reinante na superfície do planeta. Uma rolha de gelo fechava o poço, tornando-o irreconhecível em meio à área gelada.
Guri virou a cabeça.
— Já está na hora de darmos uma olhada lá em cima — disse.
Subiram à torre de comando. Terry Simmons e Curd Djanikadze já estavam lá. Alguém conseguira pôr em funcionamento parte dos rastreadores, por meio das unidades energéticas de emergência. Os aparelhos em funcionamento trabalhavam na base de microondas, e seu alcance não era superior a dois mil quilômetros. Apesar disso Curd estava inclinado sobre a tela fracamente iluminada em que eram projetados os reflexos, dando a impressão de que tinha de vigiar toda a Via Láctea.
Contrariando seus hábitos, Terry ficou radiante ao ver Guri.
— Pronto?
Guri confirmou com um gesto cansado.
— Como estão as coisas aqui em cima?
Terry fez um gesto amplo com os braços.
— Tudo em ordem. A barraca pressurizada está lá fora e foi ligada à eclusa interior por meio de um corredor-mangueira. Os estatísticos, ou melhor, aquilo que sobrou deles, encontram-se na barraca. O resto da tripulação já está em forma de novo. Além do braço quebrado de Curd temos mais três fraturas a registrar, além de algumas contusões e escoriações.
— Muito bem — disse Guri a título de elogio. — Quer dizer que conseguimos. — O cansaço parecia abandoná-lo. — Nossa maior vantagem é o fato de que dificilmente alguém imaginará que a tripulação de uma nave derrubada possa ser capaz de fazer tanto em tão pouco tempo. Os plofosenses encontrarão a nave praticamente vazia e não terão por que deixar de acreditar no que lhes dissermos. Quer dizer que vencemos o primeiro obstáculo.
Seus olhos chamejaram. Nos seus trajes exóticos e com os cabelos desgrenhados grudados de suor realmente parecia o velho Maltzo, patriarca dos saltadores.
Não se esqueceu de olhar para o relógio, no que seguia um hábito adquirido nas últimas horas. Eram 00:23, e a Maltzo-XXI estava preparada para receber a visita das espaçonaves plofosenses.
“Conseguimos, voltou a pensar Guri”, e quanto mais refletia sobre isso, mais inacreditável lhe parecia que tudo tivesse corrido tão bem.
De repente Djanikadze sobressaltou-se. 
— Estão chegando!— exclamou — Duas naves acabam de aparecer sobre a linha do horizonte.
Guri respirou aliviado. Se tivessem chegado dez minutos antes...
* * *
Na verdade, tudo começou no dia 27 de março de 2.329.
Neste dia o Administrador Geral Perry Rhodan declarou dissolvido o Império Unido e a Aliança Galáctica e denunciou todos os pactos de ajuda entre o Império Solar da Humanidade e as outras nações.
Na mesma oportunidade o arcônida Atlan declarou que a United Stars Organization tinha deixado de existir em sua forma anterior. Como nunca se tivesse cogitado da contribuição material ou financeira das outras nações, os fundos e as forças da USO foram colocados imediatamente a serviço da Humanidade.
No mesmo dia teve início o treinamento dos participantes da operação subterrânea. Um total sessenta e dois homens e mulheres pertenciam ao projeto, que gozava de elevada prioridade nas listas da divisão de planejamento. Além do processo de adaptação ao ambiente que seria encontrado na execução da tarefa, levado avante por meio de métodos mecano-hipnóticos, o treinamento incluía complicadas operações cerebrais.
A recuperação dos efeitos da intervenção demorava em média cinco dias. O restante do treinamento era realizado em três dias, por meio dos métodos modernos do serviço secreto solar. Ao anoitecer do dia 5 de abril os homens e mulheres pertencentes ao comando especial iniciaram sua viagem.
O meio de transporte utilizado era uma espaçonave cilíndrica, na qual pouco antes um patriarca dos saltadores chamado Maltzo fora preso com seu pequeno clã, por ter contrabandeado armas. Maltzo e seus homens estavam guardados em lugar seguro. Doze membros do comando e cinqüenta cadáveres cuidadosamente preparados passaram a desempenhar o papel dos membros do clã dos saltadores, quando a Maltzo-XXI saiu da Terra.
A operação subterrânea era uma das mais cuidadosamente preparadas de que os arquivos do serviço secreto davam notícia. Havia bons motivos para isso. A operação era dirigida contra o inimigo mais perigoso que a humanidade solar já tinha enfrentado.
Era dirigida contra seres humanos.
O destino da viagem era Plofos, o planeta colonial mais antigo do Sistema Solar e centro de um movimento cujo objetivo consistia na separação do Império.
* * *
Uma luz ofuscante produzida por dois conjuntos de emergência descarregados às pressas encheu o interior da barraca. A pressão do ar bombeado para seu interior fez com que a mesma inchasse, transformando-se numa semi-esfera de oito metros de altura. Os conjuntos ainda alimentavam um conversor, que purificava e aquecia a mistura gasosa. Não havia nenhuma subdivisão no interior da barraca. O grande recinto circular parecia um salão.
Os mortos tinham sido colocados junto à parede e estavam cobertos por lâminas opacas. Cinco homens e duas mulheres estavam paradas perto do corredor-mangueira. Estavam com os capacetes abertos e conversavam em voz baixa. Guri lançou um olhar ligeiro em sua direção e notou que se encontravam no lugar mais afastado dos cadáveres.
A mentalidade do ser humano sempre vem à tona, pensou.
— Chega! — gritou coma voz retumbante. — Prestem atenção!
Todos obedeceram, aproximando-se de Guri. Terry, Curd e os dois homens que lhe tinham prestado auxílio no interior do depósito formaram uma frente circular juntamente com eles. Todos os olhares estavam fixados em Guri. Este não se apressou; examinou calmamente os rostos marcados pela agitação das últimas horas. Nas semanas e meses que tinha pela frente seria obrigado a trabalhar com as onze pessoas que o fitavam. Dependeria dele, dos oito homens e das três mulheres que o Império desse ou não desse um passo decisivo para a frente na luta contra os planetas coloniais insatisfeitos.
Às vezes tinha a impressão que a carga da responsabilidade que havia sido colocada sobre seus ombros era grande demais. Mas enquanto estava examinando os homens com os quais iria trabalhar, chegou à conclusão de que suas dúvidas eram mesquinhas. As onze pessoas que se encontravam à sua frente tinham certeza de que com um chefe como ele a operação seria bem sucedida. Se ele mesmo não acreditasse nisso, teria fracassado.
A tensão generalizada foi diminuindo. Apesar das dores que sentia, Curd Djanikadze sorriu. Via-se que Terry Simmons tinha uma observação mordaz na ponta da língua. Faun Perrigan, um homem alto que trabalhava como operador de rádio, coçou a cabeça, o que era uma prova de que o silêncio prolongado começava a deixá-lo nervoso.
— Vamos! desembuche logo — resmungou Terry.
Mona Kimble, uma moça com rosto de anjo, deu uma risadinha. “Se a falta de disciplina é um mau sinal”, pensou Guri, zangado, “então podemos empacotar logo.”
Quis começar a falar, mas antes que tivesse tempo para isso, um solavanco forte, de pouca duração, sacudiu o chão da barraca, o que trouxe uma redução considerável na extensão de seu discurso.
— Os plofosenses acabam de chegar! — foi a única coisa que conseguiu dizer.
* * *
Quando Guri já tinha aberto a escotilha interna da eclusa da barraca, houve um segundo solavanco. Entrou apressadamente na pequena câmara pressurizada e saiu da barraca. As áreas geladas infindáveis da superfície de Sicos estendiam-se numa luminosidade ofuscante. Atrás dele, mais à esquerda, os destroços da Maltzo-XXI estavam meio enterrados na neve. O que restava do casco externo emitia um brilho azulado ao fogo do incêndio nuclear. Mais adiante, a uns dois quilômetros de distância, as duas naves plofosenses estavam paradas no solo. Os impulsos energéticos de seus jatopropulsores tinham cavado profundas crateras negras na superfície brilhante. Os dois veículos esféricos, de cerca de cem metros de diâmetro, estavam pousados tão perto um do outro que Guri não pôde deixar de admirar a competência de seus pilotos. Naquele momento uma pequena nave elíptica estava saindo de cada uma das astronaves. As duas naves desenvolveram velocidade considerável ao desprender-se das eclusas. Precipitaram-se em direção ao objetivo e desceram à superfície a vinte metros do lugar em que estava Guri.
Este pôs-se a esperar. Sabia que os ocupantes das naves estavam fazendo naquele momento. Estavam medindo os raios de inércia do transmissor embutido em seu capacete, para determinar a faixa em que o mesmo funcionava. Guri teve de reconhecer que possuíam muita habilidade. Menos de um minuto depois de as naves terem pousado ouviu uma voz áspera em seu receptor.
— Aqui fala o comandante da frota de vigilância do setor norte, porto de matrícula Plofos. Identifique sua nave. Precisa de auxílio?
Falava em intercosmo. Certamente achava perfeitamente natural que seu interlocutor também dominasse a língua geral Galáctica.
— Esta nave é a Maltzo-XXI — respondeu Guri. — Aqui fala Maltzo, proprietário da nave. Se puder explicar como poderemos conseguir um médico e uma nave em boas condições sem ajuda de ninguém, não precisaremos de auxílio.
— Deixe de brincadeiras, cara! — respondeu a voz áspera em tom contrariado. — O senhor não tem que achar graça de coisa alguma, pois penetrou no sistema sem permissão.
A gargalhada que Maltzo soltou foi tão estrondosa como era de esperar de um saltador.
— Sinto muito ter violado suas regras. Da próxima vez que minha nave estiver caindo aos pedaços perguntarei primeiro se poderei introduzir os destroços em seu sistema.
Ao que parecia, o oficial plofosense não fazia questão de continuar a conversa. Sem dar a menor atenção à última observação de Maltzo, disse que ele e outros quatro homens examinariam os destroços e a tripulação. O que aconteceria depois dependeria do resultado do exame. Maltzo respondeu que não tinha como defender-se contra este exame, mas protestou contra o mesmo, já que o procedimento representava uma transgressão das normas que regiam a navegação interestelar. O comandante respondeu que nem queria saber da navegação interestelar, e que seguiria as normas plofosenses que lhe tinham sido fornecidas. Maltzo achou que qualquer outraobservação seria supérflua, e observou tranqüilamente o comandante e seu comando de busca, que saíram da eclusa e se aproximaram. O comandante era um homem alto — quase chegava a ser do tamanho de Maltzo — bastante jovem e de rosto enérgico. Um par de olhos desconfiados examinou através do visor do capacete o homem que alegava ser um patriarca dos saltadores. 
— Len Pelharh — disse a título de apresentação. — Uma coisa eu tenho de reconhecer, Maltzo. O senhor travou uma bela luta com os cruzadores que bloqueiam a área.
De homem para homem ele parecia ser muito mais afável. É bem verdade, concluiu Maltzo, que isso faz parte de sua tática. Procede assim para descontrair o ambiente, a fim de que seu interlocutor se descuidasse e revelasse o que havia de tão extraordinário em sua nave para que preferisse ser derrubado a permitir que a patrulha revistasse a mesma.
— Estávamos em grande desvantagem — respondeu Maltzo laconicamente.
— Nem me diga — disse Pelham e deu uma risada.
— No fundo acho que o senhor é um idiota, mas admiro sua coragem.
— Obrigado pelo elogio — resmungou o saltador.
— Gostaria que começasse logo com os exames que pretende realizar. A maior parte da tripulação está morta. Alguns dos sobreviventes estão feridos. Estamos interessados em chegar logo a um lugar civilizado. Quem sabe se não poderia andar um pouco mais depressa?
Os olhos de Len Pelham estreitaram-se.
— Preste atenção — disse a voz perigosamente tranqüila saída do alto-falante do capacete de Maltzo. — Poderemos ser bons amigos, desde que você observe uma regra. Nunca tente dar-me ordens. Entendido?
* * *
Len Pelham já se movimentara em ambientes menos perigosos que o interior do casco de uma nave que estava sendo consumida por um incêndio nuclear. Apesar disso fez seu trabalho com a maior calma e com a atenção que o mesmo exigia. Enquanto três homens comandados pelo capitão Pohlas examinavam os compartimentos exteriores da nave, ou ao menos o que restava dos mesmos, ele mesmo e outro oficial, chamado Walter Horve, cuidaram do núcleo blindado. Tivera seus motivos para escolher Walter Horve. Walter era desconfiado por natureza. Para ele nada era natural. Precisava ver, sentir, cheirar ou ouvir antes de acreditar. Era um homem pequeno e robusto de pouco menos de quarenta anos. Seu gênio excessivamente reservado arruinara sua carreira. Para Len Pelham era o mais antipático dos seus subordinados. Mas naquele momento estava precisando dele.
— Nunca vi uma nave cuja cela possuísse uma blindagem tão forte, senhor — observou em tom contrariado, enquanto examinava a escotilha da sala de comando. — Aliás, a blindagem foi montada depois de concluída a construção da nave. Basta olhar as marcas de solda.
Len examinou o interior da sala de comando, mas não encontrou nada de suspeito, além do formato estranho da mesma.
— O que significa isso? — perguntou, dirigindo-se a Walter.
— A nave estava sendo utilizada numa finalidade especial. Até parece que esperavam que alguém atirasse contra eles.
— Neste caso todos teriam estado aqui. Cinqüenta homens encontravam-se nos recintos exteriores e foram mortos.
— Talvez o ataque tenha vindo de surpresa — observou Walter. — Quem sabe? Talvez a blindagem tenha sido colocada para proteger a carga da nave, e não sua tripulação.
— Olhamos tudo — objetou Len. — A nave está vazia.
Walter bateu com a luva contra a escotilha.
— O que o senhor acha que pode ser escondido dentro de uma blindagem de meio metro?
Len pôs-se a refletir. Levou apenas meio minuto para tomar uma decisão.
— Vamos interrogar Maltzo — disse. — Além disso informaremos Plofos. Os especialistas de Isit Huran podem divertir-se com esta nave.
* * *
A resposta de Maltzo foi muito clara.
— Não tive como evitar que os senhores revistassem a nave — disse. — Mas tenho certeza de que não sou obrigado a responder a perguntas. Acho que seu procedimento viola as normas interestelares e volto a formular meu protesto. A natureza da carga transportada por minha nave não é da conta de ninguém.
Len fitou-o com uma expressão pensativa. Estavam parados no interior do círculo amplo da barraca pressurizada. Um médico pertencente ao grupo de Len Pelham acabara de examinar os cadáveres, estudara as queimaduras que os mesmos apresentavam e chegara à conclusão de que essas pessoas tinham sido mortas durante a luta.
— O senhor pode protestar à vontade — disse Len com a maior calma. — Mas é bom que se lembre de uma coisa. No âmbito estelar as leis interestelares não têm validade. O senhor está em nossas mãos. Depende exclusivamente de nós que um dia o senhor saia de Sicos ou não. Além disso temos métodos de obrigá-lo a dar as informações que queremos. Portanto, é bom que não continue a agir como um idiota. Procure ver as coisas como elas são, e não como o senhor gostaria que fossem. Maltzo acenou com a cabeça. — Obrigado pela franqueza, comandante — respondeu em tom sério. — Oportunamente o público galáctico saberá como se costuma tratar os náufragos em Plofos.
Em Plofos Isit Huran, chefe do serviço secreto e homem de confiança do onipotente chefe supremo Iratio Hondro foi informado sobre o pouso de emergência da nave dos saltadores. Chegou à conclusão de que o assunto era tão importante que seria preferível que cuidasse pessoalmente das coisas em Sicos. Fez seus preparativos às pressas. Ao sair de Plofos, sua nave levava a bordo todos os aparelhos, drogas e mecanismos necessários para desvendar os segredos dos saltadores que tinham realizado o pouso de emergência.
Isit Huran era um homem de estatura mediana, de pouco menos de cinqüenta anos. Iniciara sua carreira como policial de ronda e despertara pela primeira vez a atenção de seus superiores ao descobrir um complô dos constitucionalistas contra o governo cada vez mais autocrático do chefe supremo, prendendo pessoalmente os elementos mais perigosos. Fizera carreira rapidamente e não demorara cair nas boas graças do chefe supremo. Mesmo naquela altura Isit Huran seria incapaz de dizer se isso representava uma vantagem para ele. Era o homem mais poderoso de Plofos depois de Iratio Hondro, mas em compensação sua vida ficava suspensa por um fio de seda. Para garantir sua fidelidade, o chefe supremo mandara aplicar-lhe uma droga que desde a primeira dose criava uma dependência tão intensa que havia necessidade de doses suplementares a intervalos regulares.
Se não recebesse as doses suplementares, a droga deixaria de fazer efeito. Isit Huran e os demais homens de confiança de Iratio Hondro estaria condenado à morte no momento em que Iratio Hondro resolvesse suspender a aplicação da droga.
Era verdade, que isso acontecia poucas vezes, motivo por que Isit não tinha motivo para preocupar-se. Geralmente só pensava na melhor maneira de servir Plofos, ou melhor, o regime ditatorial de Iratio Hondro. Isit era um dos políticos apaixonados que fazem do fanatismo e da inteligência uma mistura mortífera de intolerância e eficiência. O chefe supremo não poderia ter encontrado um chefe de serviço secreto melhor que este.
Diante da situação, Isit tinha certeza absoluta de que o pouso de emergência da Maltzo-XXI não passava de uma tentativa do governo do Império Solar de introduzir agentes em Plofos. Há muito era esperada uma operação deste tipo. Na Terra sabia-se perfeitamente que as tentativas de separar os mundos coloniais do Império concentravam-se em Plofos. A organização terrorista Estrela Negra acabara de apresentar uma encenação sensacional no palco da política imperial. O papel desempenhado por ela poderia ter sido tudo, menos brilhante, mas na Terra ninguém acreditava que o mesmo tivesse chegado ao fim. Além disso Iratio Hondro fora o homem que mantivera presos par várias semanas Perry Rhodan e seus principais colaboradores. A droga maldita também tinha sido aplicada aos prisioneiros, e o que mais preocupava o chefe supremo no momento era saber como conseguiram escapar apesar do tratamento e continuar vivos sem o antídoto,cuja composição era mantida em segredo.
Uma coisa era certa. A Terra não tinha outra alternativa senão ao menos tentar influenciar a política plofosense de dentro do sistema. E, pelo que Isit conhecia de seus colegas terranos, o velho truque de uma nave dos saltadores aparentemente danificada por suas próprias naves de guerra e obrigada a realizar um pouso de emergência seria o meio usado de dar início à operação.
Isit Huran, um homem de aspecto insignificante que antes parecia um funcionário burocrático subalterno, sorriu enquanto acompanhava na tela de sua cabine particular a aproximação da nave ao planeta de gelo Sicos. Tinha certeza de que dentro em breve descobriria toda a trama. Os homens do Império teriam de conceber um plano mais inteligente, se quisessem enganar o serviço secreto plofosense.
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Maltzo, o patriarca, desde o início teve antipatia por aquele homem.
Conhecia esse tipo. Atrás de uma aparência pequeno-burguesa o mesmo escondia a dureza, o fanatismo e a falta de escrúpulos. Tinha certeza de que este homem faria fracassar a operação, se a mesma não tivesse sido tão bem preparada. Isit Huran desceu de sua nave esférica de trezentos metros de altura, pousada logo atrás dos dois cruzadores da força de vanguarda, e foi diretamente à barraca abobadada, onde Len Pelham, seguindo as instruções recebidas pelo rádio, tinha reunido os que haviam sobrevivido ao pouso de emergência. Parecia um tanto apressado ao entrar pela eclusa, recebeu com certa impaciência os cumprimentos de Len Pelham e dirigiu-se a Maltzo, o robusto patriarca.
— Vamos logo — principiou enquanto estava abrindo o capacete. — Qual é a última de Allan D. Mercant?
Maltzo enfrentou seu olhar com uma calma inabalável.
— Já começo a compreender o esquema — respondeu em tom tranqüilo. — Plofos está sofrendo de mania de perseguição; não é mesmo? Foi esta a causa da operação de busca e de toda essa desconfiança. — Deu uma gargalhada. — Se soubesse quanto o tal do Mercant daria para pôr as mãos em mim, o senhor provavelmente me trataria melhor.
Isit logo pegou a isca.
— Por quê? — gritou.
— Por que... o quê? — respondeu Maltzo em tom simplório.
— Por que está sendo procurado por Mercant? 
Um sorriso matreiro apareceu no rosto de Maltzo.
— Somos velhos inimigos — respondeu.
— Poderia fazer o favor de explicar melhor?
— Poderia. Mas não sei o que o senhor tem com isso.
Isit ficou furioso.
— Quem decide se eu tenho alguma coisa com isso ou não sou eu! — gritou. — Quer responder às minhas perguntas ou não?
— Ou não — respondeu Maltzo em tom seco.
Isit deu-lhe as costas. Três homens armados tinham vindo com ele. Estavam parados junto à eclusa da barraca.
— Levem essa gente ao interrogatório — disse. — Tirem tudo deles.
Os três homens saíram andando que nem marionetes. Um deles aproximou-se de Maltzo.
— Venha comigo! — ordenou.
— Nem penso nisso — respondeu Maltzo. — Seu procedimento é ilegal. Não tenho por que responder às suas perguntas.
Atrás dele uma voz de mulher gritava apavorada:
— Ele está pondo as mãos em mim, excelso Maltzo. Era Terry, que naquela altura estava usando o nome de Malita. O lacaio de Isit Huran escolhera-a para ser a primeira vítima. Como ela se recusasse a acompanhá-lo, tentou colocar o braço em torno de sua cintura para carregá-la para fora da barraca. Malita debatia-se desesperadamente e Maltzo virou a cabeça. Sem dar a menor atenção ao homem que o vigiava, procurou ajudar Malita. Com uma rapidez que ninguém esperaria encontrar em seu corpo grosseiro, fez avançar o braço direito e aplicou um soco no queixo do subordinado de Isit. O homem soltou um grito e deixou cair a moça. Recuou cambaleante e fez um esforço para controlar suas reações. Maltzo viu-o movimentar a mão em direção à arma energética que trazia no cinto. Deu dois passos rápidos, em direção ao adversário. Seu punho voltou a avançar. Desta vez atingiu a vítima na testa, pouco acima dos olhos. O homem soltou um gemido e caiu ruidosamente ao chão. Maltzo passou a mão pelas juntas dos dedos e voltou ao seu lugar sem demonstrar a menor emoção. Isit Huran acompanhara atentamente os acontecimentos.
— Em seu próprio interesse faço votos de que o interrogatório revele que não é suspeito — disse com a voz dura.
Maltzo fitou-o.
— Não se pode exigir de nenhum indivíduo de meu povo que seja genericamente insuspeito — respondeu. — Mas posso garantir uma coisa. Não sou quem o senhor acha.
Isit acenou calmamente com a cabeça.
— Logo saberemos — disse.
* * *
— Quem é você?
Névoas coloridas ondulavam à frente dos olhos de Guri. Fora levado para a nave grande. Estava deitado numa sala cheia de instrumentos reluzentes. Em torno dele homens trajados de branco desenvolviam uma atividade febril. Não viu esses homens nem os instrumentos; apenas as névoas. Sua cabeça zunia e quando tentava colocar os olhos numa posição em que pudesse distinguir os contornos dos objetos que o cercavam, sentia náuseas. Tinha medo de dar uma resposta errada. Receava que pudesse ser levado a dizer a verdade àqueles homens. Fechou os olhos e abandonou-se ao sentimento de fraqueza produzido pela droga usada no interrogatório.
— Sou Maltzo, patriarca do clã de Maltat — respondeu com a língua pesada.
Mesmo que quisesse, não poderia ter dito outra coisa. Teve uma noção vaga desse fato.
— Onde nasceu?
— Na espaçonave Maltzo XXXVI, pertencente a meu pai.
— Quando nasceu?
— No décimo quarto dia da seção Kalaru, no ano da meia Nova.
— Sei lá quando foi isso — disse uma voz vinda de longe, que Maltzo ouviu perfeitamente, embora não entendesse o sentido das palavras.
O interrogatório prosseguiu. Maltzo foi extraindo os dados armazenados em sua sinto-memória superposta. A droga hipnotizante não produzia efeito sobre ele. Era um dos indivíduos submetidos a certa operação. Determinado feixe nervoso, de cuja existência só os médicos terranos sabiam, e que transmitia as influências mecano-hipnóticas, não existia mais. Um bloco psicofísico tinha sido colocado em seu lugar, bloco este que tornava Maltzo capaz de, fosse qual fosse o interrogatório, dar somente as respostas que quisesse dar espontaneamente.
Não chegou a perceber quando concluíram o interrogatório e o carregaram para fora e o levaram a um alojamento da tripulação com camas-beliche. Só sabia que por enquanto o projeto estava sendo executado segundo se planejara.
Isit Huran foi de opinião que a mulher que Maltzo tanto se apressara em ajudar devia ser interrogada logo depois dele. Injetaram-lhe a droga, amarraram-na sobre a mesa de interrogatórios e aplicaram os contatos dos instrumentos. Formularam as costumeiras perguntas-teste e, depois que ela respondeu às mesmas, indagaram:
— Quem é Maltzo?
— Meu patriarca.
— Desde quando você pertence ao seu clã?
— Pertenço ao clã de Maltzo e fui transferida para ele quando seu pai morreu.
— Quando foi isso?
— No ano da presa abundante. Não me lembro da data exata.
— Você se lembra da data exata do nascimento de seu patriarca?
— Lembro — respondeu Terry prontamente. — Foi no décimo sexto dia da seção Kalaru, no ano da meia Nova.
— Como soube?
— Na época minha mãe pertencia a outro clã. Encontrava-se a bordo da nave Kallam, cuja posição não era muito distante da Maltzo-XXXVI. Maltzo avisou por todas as faixas que sua mulher lhe tinha dado um filho, e as tripulações das naves mais próximas foram convidadas para uma festa. Minha mãe lembrava-se perfeitamente dessa festa e gostava de falar na mesma.
— De que mais sua mãe se lembrava?
— De Jakik, meu pai. Naquela festa encontrou-se pela primeira vez com ele. Pertencia à tripulação de Maltzo. Ela o amou à primeira vista. Seu amor foi retribuído. Ele lhe propôs casamento. Ela aceitou. Passou a ser sua mulher e transferiu-se para a Maltzo.
— Houve alguma ocorrência importante a bordo da Maltzo entre o casamento de sua mãe e a data de seu nascimento?
— Houve, sim. Verificou-se, por exemplo,um encontro com um couraçado arcônida. Nossa nave quase foi destruída, porque não conseguiu afastar-se em tempo da rota do couraçado. Além disso houve o pouso de emergência em Kamarzo, quando os propulsores falharam e a nave passou a deslocar-se em queda livre em direção ao planeta.
— Foi só isso?
— Mais ou menos. Maltzo não gostava de muita agitação. Cuidava de seus negócios e evitava os problemas. Dentro de vinte anos náuticos minha mãe deu à luz onze filhos. Sou a filha mais jovem. Quando vim ao mundo, Maltzo já tinha mais de vinte anos.
Neste ponto o interrogatório foi encerrado. Malita foi levada ao mesmo alojamento em que estava Maltzo. Dali em diante a droga faria o efeito de um poderoso soporífero, Demorava dez horas em média até que cessassem os efeitos da droga e a pessoa submetida ao interrogatório despertasse, sem guardar a menor lembrança das perguntas que lhe tinham sido feitas. Era ao menos o que normalmente acontecia.
Enquanto isso o interrogatório prosseguia no laboratório médico da nave. Isit Huran acompanhou-o com uma curiosidade extrema, mas esta diminuiu à medida que as horas iam passando, dando lugar à decepção e à raiva.
Os náufragos realmente eram saltadores. Nenhum cérebro seria capaz de resistir à droga dos interrogatórios. Qualquer pessoa submetida à sua influência só poderia dizer a verdade. Logo, as declarações dos interrogados eram verdadeiras. Eram saltadores conforme tinham alegado.
Para Isit Huran só havia duas réstias de luz. Primeiro, já se havia descoberto por que a Maltzo-XXI possuía cela interior blindada. A nave transportava uma carga de quarenta e quatro toneladas de molkex bruto. Tratava-se de uma substância milagrosa que, uma vez processada e condensada, transformava-se num material que praticamente não podia ser destruído por nenhuma arma. A carga era tão preciosa que Maltzo não recuou diante de nenhuma despesa para protegê-lo contra as influências do espaço cósmico e a descoberta por pessoas estranhas. O molkex estava guardado em espaços ocos praticamente inacessíveis no interior da blindagem. Para plofos a presa representava uma vantagem inesperada e um lucro inestimável.
Em segundo lugar, uma discrepância insignificante se verificara nas respostas dos saltadores, discrepância esta que levou Isit a fazer algumas especulações. Mencionou esta discrepância no momento em que Kelso Jasper, o médico, e Len Pelham lhe apresentavam um extenso relatório sobre o resultado das investigações. Mas antes disso quis ouvir o que os dois oficiais tinham a dizer.
— Desde que a droga produza no cérebro de um saltador o mesmo efeito que produz no cérebro humano, — principiou Kelso Jasper — só podemos concluir que as declarações dos prisioneiros durante o Interrogatório coincidem com as informações fornecidas antes do mesmo. Em outras palavras, não mentiram; realmente são quem alegam ser.
— O senhor tem alguma desconfiança de que a droga não produza os mesmos efeitos no cérebro de um saltador? — interrompeu Isit.
— Tenho, sim senhor — respondeu Kelso um tanto constrangido. — Não sei o que me leva a pensar assim. A única diferença, observada também nos doze prisioneiros, é um ligeiro aumento do teor de carbono-quatorze em sua substância orgânica, aumento este que costuma ocorrer em todos os seres depois duma permanência prolongada no espaço. E se não existe nenhuma diferença entre o organismo humano e o de um saltador, seria ridículo supor que a droga pudesse deixar de produzir os efeitos normais. Todavia...
— Suspeita de alguma coisa? — perguntou Isit apressadamente. — Trata-se de alguma coisa ligada às declarações dos prisioneiros?
Kelso fez um gesto afirmativo.
— Vamos esperar mais um pouco — recomendou Isit, enquanto se aborrecia porque alguém parecia ter tido a mesma idéia que ele. — Gostaria que o senhor me informasse sobre o resultado do exame dos cadáveres.
— São saltadores, senhor — respondeu Kelso. — Quanto a isso não existe nenhuma dúvida. Em virtude das horríveis mutilações, não conseguimos apurar o tempo da morte. Só posso afirmar uma coisa: faz menos de três dias que morreram.
— Já basta — constatou Isit. — Fale, comandante. 
A palestra estava sendo realizada no camarote de Isit. Isit e Kelso estavam sentados em torno de uma pequena mesa redonda, que ficava no centro do confortável recinto. Len Pelham estava de pé junto à parede, perto da escotilha da entrada.
— O computador positrônico foi posto a funcionar e interrogado — principiou. — Os dados sobre a rota foram comparados com as informações do patriarca. O resultado foi negativo. Também neste ponto o saltador disse a verdade. A Maltzo-XXI realmente veio do setor leste da Galáxia, onde recebeu um carregamento de molkex, e estava a caminho de Lázaro, onde seria entregue o material.
Isit Huran franziu a testa; parecia pensativo.
— Mais alguma coisa? — perguntou.
— Não senhor; é só.
Isit virou-se para o jovem médico. Havia um sorriso irônico em seus lábios.
— Suas duvidas relacionam-se com as declarações sobre a data de nascimento do patriarca, Jasper?
Kelso fitou-o com uma expressão de surpresa.
— Sim senhor; realmente...
— Também notei. Maltzo diz ter nascido no décimo quarto dia da seção sei lá de que, enquanto a moça declara que ele nasceu no décimo sexto dia.
— Exatamente — confirmou Kelso em tom exaltado. — A discrepância faz supor que apesar do uso da droga as pessoas interrogadas ainda estavam em condições de mentir.
Isit Huran fez um gesto resoluto.
— Isso mesmo. E se concluirmos que a droga falhou neste ponto, também temos razão de supor que o interrogatório não serviu para nada. A pessoa é influenciável ou não é. Quer dizer que os doze sobreviventes, seja lá quem são eles, nos ofereceram um drama.
— Mas senhor... — gaguejou Kelso, confuso. — Isso é praticamente impossível.
— Que nada — disse Isit Huran, aborrecido. — O que quer dizer com praticamente? Não entendo nada de sua ciência, Jasper, mas sei que existe uma brecha que o inimigo aproveitou. Quero que...
— Antes que os senhores se entusiasmem demais, tentarei explicar a discrepância — disse Len Pelham.
Isit olhou-o. Estava furioso. Não gostava que o interrompessem.
— Poucos astronautas sabem — prosseguiu Len, inabalável — que em sua maioria os clãs dos saltadores continuam a usar a chamada contagem absoluta do tempo. Dentro de cada setor da Galáxia determinam o tempo em relação a determinado ponto fixo. Suponhamos que neste ponto fixo seja o dia primeiro da seção tal. Numa nave que se encontre a três dias-luz desse ponto fixo será o quarto dia da mesma seção. Eles conhecem a origem dessa forma de computar o tempo. A velocidade da luz é a mais elevada que ocorre no universo normal. Um acontecimento verificado no ponto A não pode produzir seus efeitos no ponto B antes de decorrido o tempo que leva um raio de luz para percorrer a distância que separa A de B.
Isit Huran levantou-se. Parecia nervoso.
— O que quer dizer com isso? — resmungou.
— O senhor deve estar lembrado que na época a mãe da moça não se encontrava a bordo da nave Maltzo, na qual nasceu o patriarca Maltzo. Estava em outra nave. A discrepância de dois dias na data do nascimento só pode significar que, quando chegou o convite de Maltzo, as duas naves se encontravam a dois dias-luz uma da outra.
Isit fitou Pelham como se este tivesse previsto o momento de sua morte.
— O senhor quer que eu acredite nisso? — perguntou em tom zangado.
— Não senhor. Basta procurar a programação desta forma de computar o tempo no computador positrônico da nave. Achei que não valia a pena mencionar isso porque não tinha conhecimento da discrepância nas declarações dos prisioneiros.
Isit afastou-se com um suspiro decepcionado.
— Então é isso — disse em tom resignado, sem olhar para Len. — Quer dizer que os prisioneiros realmente são saltadores, não são?
— Pelos dados de que disponho, sim — respondeu Len.
Isit voltou a sentar. Por alguns segundos a paixão da caça levara a melhor sobrea razão. Mas a essa hora já recuperara o autocontrole.
— Tudo bem — disse, concluindo a palestra. — Jasper, providencie para que os saltadores recebam o tratamento de que precisam ao despertarem. Não temos motivo para considerá-los inimigos. Iremos para Plofos assim que o molkex tenha sido transferido para uma das nossas naves. Os saltadores virão conosco.
* * *
Esta decisão deixou Kelso Jasper pouco à vontade perante sua consciência. De forma alguma estava convencido de que tudo estava em ordem com os prisioneiros. Havia alguma coisa que o deixara desconfiado desde o início. Acontece que ainda não estava em condições de formular claramente sua suspeita. Por isso, e ainda porque pertencia à classe das pessoas que gostam de granjear fama com uma realização completa em vez de discutir em público cada um dos seus passos, ele não mencionara suas suspeitas perante Isit.
Mas agora que este tinha decidido levar os prisioneiros o mais depressa possível a Plofos e dar-lhes um tratamento adequado, o alarme começou a soar na cabeça de Kelso. Precisava agir depressa. Teria de interrogar novamente pelo menos um dos saltadores. Não podia esperar até que o efeito da droga passasse. Tinha de agir imediatamente. Dois interrogatórios com um intervalo tão pequeno representavam certo risco. O cérebro da pessoa interrogada poderia não suportar a carga e mergulhar na confusão mental permanente. Mas Kelso tinha certeza de que bastaria estender o relatório por alguns minutos para alcançar seu objetivo. Sentia-se cada vez mais seguro do êxito à medida que refletia sobre sua dúvida. Caso suas suspeitas se confirmassem, Isit Huran não se importaria nem um pouco que um dos prisioneiros tivesse sido afetado pelo interrogatório.
Foram estas as reflexões que passaram pela cabeça de Kelso. Voltou ao laboratório médico e pôs-se imediatamente a concretizar seu plano. Dois guardas do laboratório receberam ordem para trazer a moça Malita, que estava descansando num alojamento. Kelso não procurou ocultar o fato de que pretendia interrogá-la de novo. Esperava que os dois guardas não tivessem oportunidade de falar com um dos oficiais antes que o interrogatório fosse concluído. Controlou pessoalmente o transporte da prisioneira inconsciente. Quando um dos guardas lhe perguntou, confessou que Isit acreditava que não havia por que suspeitar dos saltadores e mandara levá-los a Plofos. Não mencionou sua própria opinião a este respeito.
Malita foi preparada para o interrogatório. Depois disso Kelso dispensou os guardas. Preferia estar a sós durante a experiência. Um tanto impaciente, acompanhou as indicações dos instrumentos, até que a moça abrisse os olhos e começasse a mexer-se. Seu olhar vazio estava dirigido para o teto. A droga ainda estava agindo praticamente com a mesma força. Kelso sentiu-se aliviado ao notar que não haveria problemas.
Iniciou o interrogatório formulando perguntas corriqueiras sobre o local e a data de nascimento da prisioneira. Enquanto as respostas eram dadas prontamente, acompanhava com atenção os registros da gravação automática. Os aparelhos de registro tinham sido construídos com base nos mesmos princípios dos velhos detectores de mentiras, mas suas funções e seu potencial tinham sido consideravelmente ampliados em comparação com a aparelhagem existente nos primórdios da psicofísica. O que mais interessava Kelso neste momento era a chamada linha de identificação de memória. Tratava-se de um fluxo cerebral que indicava a profundidade de determinada lembrança, indicando se o respectivo dado da memória era recente ou persistente.
O aparelho reagiu às primeiras perguntas, produzindo elevações acentuadas na linha de identificação. O nome e a data do nascimento costumavam ser os dados mais profundamente gravados em qualquer cérebro. A seguir Kelso formulou algumas perguntas sobre assuntos sem importância, destinadas a testar a memória da moça quanto às suas próprias experiências.
Depois mudou de tática. Fez perguntas sobre as recordações relativas a dados e acontecimentos que a moça não conhecia por experiência própria. Ao contrário das recordações primitivas, que constituíam objeto das primeiras perguntas, passou a indagar sobre recordações secundárias, ou seja, sobre fatos de que a moça tivera conhecimento de segunda mão e que estavam guardados em sua memória.
Quase não conseguiu controlar a tensão quando o indicador da linha de identificação entrou em funcionamento. Formulou cinco perguntas e encerrou o interrogatório. Por pouco não soltou um grito de triunfo. Pouco importava quem fossem estes saltadores, o fato era que havia algo de anormal com eles.
Kelso dispôs-se a reunir os registros da linha de identificação num feixe facilmente inteligível. Isit Huran tinha de ser informado quanto antes.
* * *
Para Guri Tetrona e seus companheiros a espera no alojamento representava uma carga nervosa de primeiro grau. Em virtude da operação no cérebro à qual tiveram de submeter-se antes da operação não eram suscetíveis aos efeitos da droga usada no interrogatório. Graças ao excelente treinamento que tinham recebido estavam em condições de desempenhar tão bem o papel de pessoas semi-inconscientes durante o interrogatório e de indivíduos totalmente inconscientes após o mesmo que nenhum dos subordinados de Isit Huran teve a menor suspeita. Na verdade, a droga produzia neles apenas o efeito de um calmante suave. Ficavam sonolentos, mas a excitação mantinha-os acordados.
Guri, ou melhor, Maltzo, fez questão de que apesar de tudo se fingissem de inconscientes no interior do alojamento. Ninguém sabia se não havia aparelhos de escuta escondidos. Tinham de agüentar as horas de silêncio no recinto escurecido, por mais difícil que isso fosse para cada um deles.
Ao menos era este o plano de Maltzo. Mas esse plano sofreu uma modificação profunda quando o médico apareceu em companhia de dois guardas e levou Terry Simmons para ser submetida a outro interrogatório. Guri ouviu-o dizer que Isit Huran estava convencido de que os prisioneiros realmente eram saltadores, e que pretendia levá-los a Plofos a bordo de sua nave. Acontece que havia um nervosismo indisfarçável na voz do médico. Além disso suas informações sobre a opinião de Isit Huran entravam em contradição sobre o procedimento que estava adotando. Se a prisioneira era insuspeita, não haveria necessidade de um segundo interrogatório. Maltzo sabia dos perigos da droga para pessoas normais. Conhecia os riscos que um segundo interrogatório logo depois do primeiro representava. O médico estava disposto a assumir este risco, contrariando a opinião de Isit Huran. Estaria desconfiando de alguma coisa?
Maltzo sabia perfeitamente que o plano da operação subterrânea incluía vários pontos fracos, e que precisariam de bastante sorte se quisessem chegar ao destino sãos e salvos. Era possível que o médico tivesse encontrado um desses pontos fracos. Nesse caso seria necessário silenciá-lo antes que Isit Huran voltasse a desconfiar de alguma coisa.
Maltzo levantou-se.
— Preciso verificar o que está acontecendo por lá — cochichou. — Estejam preparados. Curd e Faun, vocês ficarão de guarda junto à porta. O laboratório não fica longe daqui. Se precisar de vocês, chamarei.
Um murmúrio no meio da escuridão confirmou as palavras de Maltzo. Este rastejou para perto da escotilha e abriu-a. Era bem possível que houvesse guardas no corredor. Como haviam tirado as armas deles, seria obrigado a aproveitar o fator surpresa, atacando os guardas com as mãos. Mas ao contrário do que esperava, o corredor estava vazio, o que era mais uma prova de que ao menos por enquanto o comando da nave acreditava que os doze prisioneiros não eram perigosos.
Maltzo passou apressadamente pelo corredor. Estava somente de short. Tivera de tirar as outras peças de roupa, inclusive os sapatos, por ocasião do interrogatório. Com alguns passos grandes atingiu a escotilha da ante-sala do laboratório. Abriu-a imediatamente, preparado para encontrar resistência. Mas apesar

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