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P 188 Os Mortos Vivos K. H. Scheer

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OS MORTOS-VIVOS
Autor
K. H. SCHEER
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
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Chegaram ao mundo mais estranho que
seus olhos haviam visto... o mundo dos
pretos de Roost.
Desde o dia 2 de novembro de 2.328 circula na Galáxia a morte de Perry Rhodan, Atlan e Reginald Bell. Os desconhecidos que espalham essa notícia podem apresentar fotografias da Crest, a orgulhosa nave-capitânia da Frota Solar, totalmente destruída. Em Terrânia sabe-se que, no momento crítico, os três personagens mais importantes do Império Unido realmente se encontravam a bordo da Crest. Não há como desmentir a notícia da morte, porque os desaparecidos não podem transmitir qualquer sinal de vida. E não podem impedir o processo de dissolução lenta mas inexorável da Aliança Galáctica, cujos membros passam a dedicar-se em extensão cada vez maior aos seus próprios interesses.
Os desaparecidos imaginam o que deve estar acontecendo na Galáxia, mas não estão em condições de intervir ativamente nos acontecimentos, pois não têm meios de entrar em contato com a Frota Solar ou a USO. Desde o dia em que Perry Rhodan, Atlan, Reginald Bell, André Noir e Melbar Kasom caíram nas mãos do Chefe Supremo de Plofos, os homens mais importantes da Via Láctea vêem-se praticamente indefesos diante de um estranho destino, que os arrasta de um planeta para outro.
Esse destino levou-os de Greendoor, o mundo selvático, para Badun, o mundo dos rebeldes, para Lovely, um mundo paradisíaco onde as fúrias do inferno estavam à sua espera, e finalmente para o estranho mundo dos bigheads, que fizeram com que lutassem por eles.
Mas agora os desaparecidos têm um novo encontro pela frente: o encontro com Os Mortos-Vivos!...
= = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = =
Atlan — O homem mais idoso da Via Láctea, que se interessa por uma jovem.
Perry Rhodan — Um soberano sem poder.
Reginald Bell — O vice-administrador que precisa de repouso.
Mory Abro — Uma mulher que se julga capaz de governar um reino estelar.
Melhor Kasom — Um especialista da USO.
André Noir — Um hipnomutante.
Otrin, Travera e Gognul — Descendentes de saltadores que esqueceram a herança dos antepassados.
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Bem que ele deveria saber que os bigheads de Kahalo eram muito degenerados. Inclusive Perk, o guardião de seis criaturas desesperadas, criaturas que admitiam de forma mais ou menos franca que tinham atingido um elevado grau de desmoralização, não formava nenhuma exceção.
Rhodan realmente deveria ter sabido que não se podia confiar num bighead, em tudo que dissesse respeito a assuntos técnicos ou problemas que exigissem reflexões lógicas.
Por isso a atitude emocional de Rhodan não tinha razão de ser. Sem dúvida seria insensato acreditar que a estranha nave cilíndrica nos levasse diretamente para a Terra. Os homenzinhos de Kahalo eram incapazes de fazer a determinação da rota e realizar a respectiva programação. Deixaram que saíssemos na nave deles, na crença ingênua de que tinham cumprido a obrigação assumida conosco.
— É a quinta manobra de penetração! — disse o terrano de estatura alta. 
Estava de pé junto às telas iluminadas, concentrando-se ao extremo.
O que as telas mostravam não era muito interessante, a não ser que quiséssemos ver na escassez de estrelas nesse setor da Galáxia algo de extraordinário.
Fiz um esforço para ignorar a dor da transição do universo linear para o espaço einsteiniano. Era o que todos faziam.
Os neutralizadores de compensação da espaçonave em cujo interior nos encontrávamos certamente não tinham sido adaptados às nossas condições físicas, ou então nosso organismo se desgastara demais durante os últimos acontecimentos, fazendo com que os fenômenos de distensão, que normalmente eram quase imperceptíveis, já não pudessem ser desprezados.
Concluída a quinta manobra, que sem dúvida se tornara necessária para a orientação do dispositivo robótico totalmente automatizado, percebi claramente que meu organismo se rebelava contra o esforço ininterrupto.
O ativador celular que carregava no peito batia violentamente. O formigamento da pele, que era um efeito colateral do processo de regeneração celular, era mais forte que de costume.
Perry Rhodan virou a cabeça. Havia um traço obstinado em seu rosto. Lançou um olhar contrariado por cima de nós. Não fiz o menor movimento. Estava num leito confortável. Do lugar em que me encontrava via a sala de comando através da escotilha aberta. Não havia ninguém em seu interior. Os quadros de comando e outras unidades de controle ocultas atrás dos revestimentos não me diziam absolutamente nada. Eram tão estranhas que não havia como interpretá-las corretamente.
A meu lado estava deitada Mory Abro, filha do chefe neutralista Lorde Kostich Abro. Sua bela cabeleira ruiva encobria parte do rosto estreito.
A jaqueta do uniforme que Rhodan lhe entregara depois que ela fora raptada por uma raça não-humanóide — Os flooths — estava jogada sobre a cama em que ela estava deitada. Mory usava um uniforme de fibra sintética fabricado em Kahalo, segundo o modelo das vestes que costumava usar. Era um material colorido, um tanto áspero nas costuras. De vez em quando Mory se coçava.
Nestes momentos sua beleza ruiva já não parecia fria e arrogante. Tive de reprimir o riso toda vez que um acesso de comichão fazia com que a moça crispasse os lábios e seu rosto adquirisse traços de obstinação. Mory Abro também era apenas um ser humano — evidentemente! Era bem verdade que se tratava de uma criatura que chamava a atenção, até mesmo no interior da espaçonave em que nos encontrávamos.
Reginald Bell, representante de Rhodan e fleumático por natureza, estava dormindo de boca aberta. Por ocasião da última manobra, deixara perfeitamente claro que só voltaria a interessar-se pelo “caso viagem de regresso” quando tivéssemos pousado em algum lugar.
O mutante André Noir e Melbar Kasom, especialistas da USO, estavam sentados em suas camas. Lançavam olhares mudos para Rhodan, que parecia lutar para não perder o autocontrole.
Estávamos com os nervos arrasados. A carga psicológica resultante da injeção de veneno, que só depois de trinta dias se revelara inofensiva — muito embora eu ainda não estivesse convencido de que realmente não iria produzir nenhuma conseqüência — consumira nosso ânimo de resistir. Tínhamos sido levados de um mundo a outro, até que finalmente chegamos ao planeta mais estranho que meus olhos já viram.
O comportamento senil dos bigheads deixara-me mais abalado que as tentativas de invasão dos seres em forma de inseto, os terríveis flooths, que graças à nossa intervenção não conseguiram conquistar Kahalo, um mundo inteiramente mecanizado.
Foi apenas mais um episódio de nossa via crucis. A principal descoberta que fizemos em Kahalo foi o grande Kahal. Tratava-se de uma grande instalação técnica em forma de seis pirâmides, cujas funções não conseguimos desvendar inteiramente.
Melbar Kasom pigarreou. Olhou em torno, embaraçado. O especialista da USO, que era um dos oficiais mais leais de minha tropa, ultimamente parecia sentir-se responsável pelo nosso destino. Sabia que ele se detinha em auto-recriminações.
Um homem forte como ele parecia menos capaz de superar as derrotas dos últimos meses que nós, que éramos muito mais fracos. Kasom procurava convencer-se de que certas coisas que ele fizera deveriam ter sido mais bem-feitas. Sua última teoria era a mais arrojada de todas. Afirmava que já poderíamos estar em segurança, se durante nossa permanência no mundo selvático Greendoor e logo após nosso seqüestro tivesse agido com mais inteligência.
Até era possível que tivesse razão, mas no momento isso não importava mais.
Rhodan bateu com o dedo contra o revestimento de plástico do comando central. Entrara na sala pequena depois que nenhum de nós rompera o silêncio constrangedor. O pigarro de Kasom não contribuíra para aliviar a tensão. Além do mais, fora ruidoso demais. Ogigante de 2,51 metros de altura tinha de fazer um esforço extremo de autocontrole para moderar a voz.
Deitei de lado e olhei para Mory, que estava com as pernas longas encolhidas e os dedos das mãos enlaçados sobre os joelhos. “Deve ser por causa do comichão que nunca a abandona”, disse a mim mesmo.
Quando notou meu olhar, Mory soprou uma mecha de cabelo que lhe tinha caído na testa, fitou-me dos pés à cabeça e deu-me as costas.
Levantei com um suspiro. Melbar Kasom levantou-se imediatamente. De repente seu corpo preencheu o recinto circular que os bigheads haviam guarnecido com algumas peças de móveis.
— Fique sentado, Melbar — pedi. — Se não estou muito enganado, dentro de pouco precisaremos de suas forças.
O ertruso baixou os olhos para o peito enorme e voltou a sentar. Parecia desolado.
Espreguicei-me. O mutante percebeu que meu bocejo de tédio era fingido. André Noir, o hipno do serviço secreto terrano, sorriu para mim. André era um homem corpulento, que irradiava um fluido de cordialidade. De certo tempo para cá desenvolvera mais uma capacidade, que costumava designar como rastreamento de emoções. No fundo não era uma forma de telepatia, mas antes uma absorção de emanações emocionais das quais, mediante um treinamento assíduo, chegou a deduzir dados preciosos. Se em certa ocasião não tivesse estado conosco, a vida de Mory Abro teria terminado sob o escalpelo de um cirurgião estranho e apavorante. Imaginei que a filha de Lorde Kostich Abro estivesse à procura de um meio de demonstrar sua gratidão ao mutante, isso naturalmente numa forma que não ferisse seu orgulho nem conflitasse com sua tendência invariável de manter distância.
— O grande arcônida passa à ação. A quem pertence o Universo? — disse sua voz grave.
Kasom sentiu que de certa forma estas palavras tinham sido dirigidas a ele. Tinha uma maneira estranha de venerar essa moça, e essa forma de veneração traduziu-se nas seguintes palavras:
— Cuidado que eu lhe esquento o traseiro, gatinha!
Mory contemplou o gigante com um vivo interesse.
— Ora veja! O único homem a bordo acaba de falar. Será que antes de fazer o que acaba de dizer não deveria aparar minhas unhas?
Bateu no cabo de sua arma energética, com a qual sabia lidar muito bem. 
Kasom sorriu. Antes que tivesse tempo de responder, senti uma tontura repentina. Deixei-me cair novamente sobre a cama e encolhi as pernas o mais que pude. Isso ajudou um pouco a diminuir as dores no estômago.
Mais uma vez a espaçonave acabara de penetrar no espaço linear. As telas do rastreamento comum empalideceram. A melodia suave do propulsor ultraluz soava nos meus amigos como se fosse o repicar de sinos enormes. Desta vez a dor demorou mais para passar.
Quando descontraí os músculos, Rhodan entrou cambaleando. Respirando com dificuldade, deixou-se cair na cama.
— Olá — gritei. — Ainda estamos em forma, Administrador Geral?
Mory deu uma risadinha.
— Administrador Geral? De quê? Desta nave? Abandone logo o sonho do poder, Rhodan. O senhor também, Atlan. Até agora os senhores da criação nunca quiseram saber o que eu acho da situação.
Rhodan massageou o estômago.
— Ah, é? Desde quando é capaz de pensar logicamente? — perguntou, proferindo as palavras com dificuldade.
Mory ergueu-se que nem uma gata furiosa. Estava mais bela que nunca.
Rhodan sorriu. Depois gemeu e deitou de lado.
— Não desperdice suas energias, Mory. Então, o que acha mesmo da situação?
Mory atirou a densa cabeleira para trás, coçou instintivamente a perna e soltou uma observação tão acertada sobre a estupidez dos bigheads que André Noir assobiou de reconhecimento.
— É uma expressão nova — constatou.
— Não diga tolices — esbravejou Mory. — Querem saber o que acho da situação? Muito bem. Ouvirão uma exposição franca.
— Se pretende dizer que não sou um político galáctico, mas uma marionete, pode poupar seu fôlego. Já sabemos disso — interveio Rhodan.
Um sorriso malicioso apareceu no rosto de Mory.
— Como se lembra disso, homem sem poder? É o que o senhor é. Ou será que não? Cerca de três meses já se passaram desde o dia em que foi seqüestrado pelo Chefe Supremo de Plofos. O que acha que aconteceu neste tempo no interior da Galáxia? Para mim o que houve foi morte e destruição.
— Se os descendentes de colonos residentes em Plofos usarem sua inteligência e capacidade de ação para criar confusão, isso poderá vir a acontecer — admiti. — Mas acho que está subestimando os terranos. Afinal, entre eles existem homens como o Marechal Solar Julian Tifflor e o Chefe da Segurança Galáctica, Allan D. Mercant. Meu representante, o Almirante Tere Astrur, também não deve estar dormindo. A senhora não conhece a USO, minha cara! Provocar morte e destruição não é tão fácil como a senhora pensa. Se os homens que dirigem o Império Solar foram inteligentes, retiraram as unidades da Frota espalhadas pela Galáxia e criaram um cinturão defensivo em torno da área de interesses do Império Solar. Se eu fosse o Chefe Supremo de Plofos, não me tornaria mais imprudente do que ele já foi.
— Não tenho nada com Iratio Hondro; ele não é meu chefe! — gritou Mory, vermelha de raiva. — O senhor sabe perfeitamente que combatemos este monstro com todos os meios que estavam ao nosso alcance. Um dia os neutralistas alcançarão o poder em Plofos, e eu mesma entrarei em New Taylor à frente de um grupo de combatentes da resistência.
— A senhora não disse há algumas horas que nunca mais voltaríamos para casa? Está se contradizendo.
Mory fez um gesto de pouco-caso e voltou a coçar a perna.
— Será que a senhora está com pulgas? — perguntou Melbar numa linguagem franca, mas pouco gentil. 
Havia uma expressão de desconfiança em seu rosto largo.
Rhodan deu uma risadinha. Quanto a mim, cobri a mão com a boca. Realmente estavam fazendo das suas com a coitada da Mory.
— Cale a boca, seu moleque — gritou a moça para Kasom. — Mesmo que estivesse com pulgas, a decência lhe proíbe dirigir uma pergunta como esta a uma dama.
— Não me venha com os maus costumes terranos — resmungou o gigante. Foi um verdadeiro trovejar. Era como se uma trovoada estivesse subindo no céu. — Em meu mundo, chamado Ertrus, costumamos chamar as coisas por seu verdadeiro nome.
— Não vamos nos desviar do assunto — ponderei. — Não sei se escaparemos desta armadilha voadora. Conforme o resultado desta aventura, a senhora poderá um dia fortalecer o poder dos neutralistas e assumir o governo do sistema de Eugaul.
— Será que o senhor duvida de minha capacidade?
Nossos olhares se cruzaram. Havia em seus olhos um brilho verde, como o de um lago profundo. De repente pareciam irradiar frieza.
— Não duvido nem um pouco — confessei. — Julgo-a perfeitamente capaz de governar o sistema. Se até lá conseguir controlar um pouco seu gênio explosivo, até poderá vir a ser uma boa aliada.
Sorri.
— Não procure atrair um homem de dez mil anos como eu para fora da toca. Não conseguirá.
Os lábios de Mory tremeram. Finalmente a moça riu. Seu rosto descontraiu-se. A frieza desapareceu de seus olhos.
— Quer dizer que passaria a ser aliada de Rhodan — prosseguiu. — Poderemos falar sobre isso. Naturalmente exigirei regalias especiais.
— Está regateando de novo a pele do urso antes que ele tenha sido morto — disse Reginald Bell bastante sonolento. — Façam o favor de não falar tão alto. Preciso descansar.
— Não compreendo como um dorminhoco como o senhor pôde tornar-se marechal de estado e comandante da frota arcônida — disse Mory, dirigindo-se ao baixote ruivo.
Bell sorriu.
— Além disso sou vice-administrador — constatou e logo voltou a roncar.
— É um segredo que a senhora nunca desvendará — afirmou Rhodan, mais bem-humorado. 
Respirei aliviado. O terrano parecia ter recuperado o autocontrole.
— Não vamos sair do assunto — adverti. — Que acha da situação? A senhora se perde em discussões estéreis.
De repente a moça passou a falar de forma objetiva e por isso mesmo convincente. Era uma jovem muitointeligente. Sabíamos que tinha sido ela quem conduzira as forças dos rebeldes plofosenses.
— A última manobra de penetração da nave prova que nos afastamos cada vez mais do centro da Galáxia. Aproximamo-nos dos braços da espiral de Eastside, uma região pobre em estrelas. Provavelmente a esta hora já estamos a sessenta ou setenta mil anos-luz da área de influência humana ou arcônida.
— E uma coisa que nós já percebemos. 
Mory acenou com a cabeça em minha direção.
— Isso me alegra bastante, Senhor Lorde-Almirante! Nunca duvidei de seus conhecimentos galatonáuticos.
— Sua besta! — disse Kasom em voz baixa.
— Deitado, cão! E bem quietinho — respondeu Mory, exibindo seu sorriso delicado.
Melbar Kasom, um especialista afamado da USO e mestre de todas as categorias em Ertrus, fitou-a com a boca escancarada. Logo a seguir ouviu-se um estouro. Era Kasom que acabara de fechar a boca. Olhou em torno perplexo.
Fitei-o com uma expressão preocupada.
— Acho que o senhor deveria latir pelo menos uma vez, tenente.
— Silêncio — ordenou Mory. 
Estava com as faces vermelhas. Eu já sabia que esse terrano formidável, inteligente e comedido entregara seu coração a Mory. Era claro que, como sempre, procurava ocultar seus sentimentos atrás da máscara da indiferença e da ironia. Mas neste caso seu espírito mordaz estava fora de lugar. Não tive a menor dúvida de que Mory sentia instintivamente o que estava acontecendo com Perry Rhodan.
— “Quando dois se amam, eles se provocam” — disse o setor lógico de minha mente num impulso súbito que me deixou assustado. Pigarreei, contrariado.
— Temos uma pequenina chance — disse a filha do chefe dos neutralistas. — A maior parte do chamado setor leste da Galáxia é dominada pelos povos pertencentes à raça dos blues. Sabemos que desde o momento em que perderam a supremacia na Galáxia os cabeças-de-prato andam se agarrando pelos cabelos.
— Eles nem têm cabelos — disse Bell. Mory fez como se não tivesse ouvido. — Além disso uma verdadeira dama nunca usaria uma comparação como esta — prosseguiu o gordo.
— Estou acostumada a passar por cima do grasnado de uma gralha gorda — disse Mory. 
Bell esticou o corpo como se tivesse levado um tiro energético. Não disse mais nada. Mory voltou a atirar a cabeleira rebelde para a nuca. Era um gesto cheio de encanto feminino e paixão contida.
— Se as frotas dos blues lutam entre si, deve haver naves-patrulha terranas por perto.
— Ah!
Rhodan ergueu-se sobre os cotovelos. O rosto com a barba por fazer parecia tenso.
— Até que enfim a idéia com que venho me ocupando desde que a nave decolou entrou em sua cabeça. Lembro-me perfeitamente de uma das últimas ordens que dei. Mandei que as operações das frotas dos blues fossem observadas atentamente. Faça o favor de prosseguir.
Mory contemplou o terrano como se fosse uma das maravilhas do mundo. Ficou estupefata.
— Ah, então já contava com isso? Pode ser que isso o surpreenda, mas o fato é que desta vez acredito no senhor.
— Nesse caso também deveria acreditar no papel histórico do Sistema Solar — disse André Noir com a voz tranqüila. — Mory, por que a senhora e os outros neutralistas não querem reconhecer que a Terra desempenha um papel preponderante? Já foram coagidos de qualquer forma?
— O Administrador Geral obriga os antigos mundos coloniais a não seguir uma política externa independente! — disse a moça em tom exaltado.
— O Administrador Geral continuará a fazer isso — disse Rhodan com um sorriso irônico. — Aonde chegaríamos se o presidente de qualquer país pequeno, ao qual concedo ampla autonomia em matéria de política interna, também quisesse fazer sua própria política externa?
— Mais tarde falaremos sobre isso — prometeu Mory com uma ligeira ameaça na voz. — Não tenha a menor dúvida de que haveremos de falar, Administrador Geral! Os plofosenses, povo ao qual pertenço, são o povo mais poderoso na área de influência terrana. E exigimos liberdade completa.
— A política externa será conduzida pela Terra, e basta. Mas deixemos isso de lado. Tem mais alguma coisa a dizer sobre a situação atual?
— “São que nem cão e gato” — disse meu setor lógico com uma risadinha. — “É claro que ela sabe que ele tem razão. Ou será que não sabe?”
Meu cérebro suplementar devia saber. Preferi não responder.
— Bem, quanto aos cruzadores que patrulham o setor leste da Galáxia, neste ponto não quero contestar a posição preponderante dos terranos.
— Muito obrigado.
— Deixe que termine, Rhodan — gritou a moça. — E o senhor, Melbar, faça o favor de acabar com esses olhares desavergonhados. Sei perfeitamente que o conjunto fabricado pelos bigheads que estou vestindo é muito apertado.
— O quê? — perguntou o gigante em tom estupefato. Raras vezes o haviam visto tão perplexo. — Preste atenção. Não estava pensando nas formas de seu corpo, mas num quartinho de boi bem tostado. Também pode ser de vaca.
— O senhor quer insinuar o quê? — perguntou Mory com uma perigosa calma.
Consegui acalmar Mory. Para a moça era completamente indiferente o que Kasom pensasse a seu respeito. O que a assustara era apenas o fato de o ertruso não a ter contemplado com um compreensível sentimento masculino. Era isso que a deixava furiosa.
O mutante soltou uma estrondosa gargalhada. Rhodan exibiu um sorriso de molecão. Kasom continuava perplexo.
Mory fez um gesto de pouco-caso. Percebeu que seus verdadeiros sentimentos tinham sido descobertos.
— Então só nos resta esperar — concluiu — que sejamos descobertos por uma nave terrana assim que a viagem termine. Tenho certeza de que a nave em que nos encontramos pousará em algum lugar. Naturalmente este lugar não será a Terra. Acho que neste ponto estamos de acordo. Seria insensato contarmos com a possibilidade de que os cabeças-duras de Kahalo tivessem sido capazes de calcular a respectiva rota.
Ficou calada. Ninguém respondeu, e isso a fez empalidecer, dando um tom de mármore branco à sua pele.
— Mory, a senhora é uma mulher maravilhosa — observei. — Permita que aquele que provavelmente é o homem mais idoso da Galáxia lhe diga isso e não veja nisso uma ofensa ou uma tentativa de aproximação.
— “Pela grande estrela de Árcon, o terrano está com ciúmes” — transmitiu meu cérebro suplementar. Pigarreei.
— O que é isso? — perguntou Rhodan.
— Apenas uma constatação. Mory, a senhora não nos comunicou nenhuma novidade. A avaliação que acaba de fazer está superada. Para mim a questão mais importante é onde pousará esta nave robotizada. Desde que foi realizada a última manobra de penetração, tenho uma suspeita bem definida. Acredito que a pilotagem automática se oriente por um radiofarol tão velho quanto o planeta Kahalo. Pelos meus cálculos deveremos pousar num mundo em que os construtores desta maravilha voadora instalaram uma base há tempos imemoriais. Não se pode saber o que nos espera por lá.
— Será que é outro grupo de bigheads? — perguntou Bell. 
Só agora percebi que ele nos ouvia com muito mais atenção que sua atitude fleumática faria supor. Este homem robusto e de estatura baixa quase sempre era subestimado. Reginald Bell era um lutador duro, que sabia usar a cabeça. Talvez usasse uma linguagem direta demais para ser um bom diplomata, mas como comandante da frota e substituto de Rhodan era o homem certo no lugar certo.
— Não, não são bigheads — respondeu Rhodan em meu lugar. — É bem verdade que a suposição pode parecer lógica. Realmente devemos supor que o sistema de pilotagem automática seja conduzido por impulsos de rádio. Só receio que no lugar ao qual iremos não exista mais nenhum cruzador terrano. Estamos viajando em direção à periferia da Via Láctea. Entre nós e a Terra interpõe-se o centro da Galáxia com um diâmetro de dez mil anos-luz e com cem bilhões de sóis, dos quais só uns poucos são conhecidos. Não se iludam, meus caros.
— Se há blues por perto, também há naves terranas — afirmou Mory com a voz trêmula. 
De repente não conseguiu dissimular mais o desespero que se apossara dela.Éramos um grupo de maus atores, que ainda padeciam da infelicidade de se conhecerem muito bem. Mory chorou.
Kasom levantou-se e sentou desajeitadamente ao lado da moça.
— Calma, menina, calma — pediu o gigante. Sua voz tremia. — Droga! Não posso ver chorar uma menina pequena como a senhora. Lá em casa as meninas de nove anos são do seu tamanho. Fico todo bobo quando vejo uma criança.
— O senhor fica é desajeitado, Melbar Kasom — disse Mory, sorrindo entre as lágrimas.
— Por que diz isso? O que fiz de errado desta vez?
— Esqueça, Melbar — disse Rhodan. — O senhor está na rota certa, mesmo que não saiba. Atlan, vamos dar mais uma olhada na pilotagem automática. Quem sabe se desta vez não descobrimos alguma coisa?
Levantei e acompanhei o terrano. Não havia nada a descobrir — ao menos a bordo de uma espaçonave cujas instalações eram o produto de uma tecnologia cujo avanço excedia a nossa em cinco vezes.
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Pela sexta vez retornamos ao espaço normal. Nossos corpos contorceram-se com as dores de estômago. Praguejei contra os bigheads, que só nos tinham levado ao seu planeta porque não sabiam enfrentar uma invasão inofensiva praticada por bárbaros técnicos. Os flooths nem sequer conheciam a energia atômica.
Em compensação os bigheads tinham a seu dispor o legado de inteligência aos quais tínhamos que tributar uma grande veneração. Apesar disso os neutralizadores de transição da antiqüíssima espaçonave em cujo interior nos encontrávamos não se prestavam a um vôo prolongado. Durante o vôo que nos levou do planeta Lovely para Kahalo não tínhamos sentido nada disso.
Os estoques de mantimentos também se esgotavam rapidamente. Em parte isso era devido ao apetite de Melbar.
Rhodan saiu cambaleante em direção à sala de comando. Fui atrás dele. Mory choramingava, Bell proferiu alguns palavrões e André Noir tentou em vão reprimir um gemido. Só o ertruso foi capaz de fazer pouco-caso do que estava acontecendo.
— Era só o que faltava! — disse Rhodan.
Segurei-me na moldura da escotilha e segui seu olhar. Também me assustei.
Já não se via a profusão luminosa de estrelas do centro galáctico. Só as telas de popa ainda mostravam uma elipse luminosa, que revelava a existência de um núcleo galáctico concentrado.
O sistema visual dianteiro mostrava o início da solidão do espaço intergaláctico. De vez em quando via-se o cintilar de um sol isolado. Bem ao longe desenhava-se uma esfera azul-marinho.
Mas não era isso que prendia nossa atenção. Os sistemas de rastreamento e de transmissão de imagem que, como sabíamos, funcionavam muito bem, estavam transmitindo acontecimentos que representavam um verdadeiro pesadelo.
Milhares de espaçonaves, que pelo formato deviam ter sido produzidas pelos blues, combatiam-se com todas as armas que esse povo gigantesco já tinha criado.
Normalmente o feixe projetado por um canhão energético não é visível no espaço, por falta do meio de fixação. Mas o sistema de transmissão de imagem exterior da nave parecia ter sido acoplado aos rastreadores energéticos. As linhas de tiro eram localizadas pelos rastreadores, que as transmitiam ao computador positrônico, para a interpretação, e este, por sua vez as projetava nas telas de imagem sob a forma de impulsos visíveis. Dessa forma surgia um quadro coordenado que causava uma expressão extraordinária.
O negrume vazio do espaço interestelar era cortado por inúmeras vigas luminosas. A filigrana de raios verdes, vermelhos, brancos e ultra-azuis dava notícia de uma luta assassina, em cujo centro tínhamos penetrado com uma precisão bastante indesejável. Perto de nós, menos de cinco milhões de quilômetros à nossa frente, uma nave dos blues explodiu. De repente o gigantesco veículo em forma de disco inchou, transformando-se numa luminosa bolha metálica vermelha, que numa fração de milésimo de segundo assumiu a forma de uma esfera gasosa em erupção que brilhava em um azul intenso.
Voamos exatamente na direção do palco da desgraça. Soltei um grito. Kasom cometeu o absurdo de proteger-se e me jogou no chão, como se não fosse indiferente em que posição éramos surpreendentes pela escaldante morte atômica.
Mas não aconteceu nada. Ou melhor, aconteceu uma coisa com a qual eu não contara.
O vôo que até então fora tão tranqüilo, marcado somente pelo chiado de um propulsor linear de primeira classe, foi perturbado pelo rugido súbito de gigantescas unidades energéticas.
Já conhecia esse ruído! Já o ouvira há dez mil anos do calendário terrano, quando o comandante supremo da frota arcônida dera ordem para dirigir-me com uma esquadrilha de elite ao Sistema Solar, a fim de pôr ordem na área.
Era o estrondo produzido pelos reatores repentinamente solicitados ao máximo pela fome energética dos campos protetores.
O chiado vindo do casco da nave também pertencia ao elenco das minhas experiências acústicas. Era o ruído que se ouvia quando a nave atravessava, numa manobra de emergência, a esfera gasosa de um sol artificial. Isso acontecia quando a gente não conseguia desviar-se em tempo, porque a pontaria do inimigo fora muito precisa.
A nave de Kahalo com seus duzentos metros de comprimento e quarenta de diâmetro sacudiu-se. Estava suportando uma carga tremenda.
O chiado terminou. Acabávamos de passar. Kasom colocou-me de pé e bateu a poeira de meu uniforme rasgado.
— Ai! — berrei. — Santo Deus, sou um indivíduo mais ou menos normal com ossos e músculos.
— Perdão, senhor — disse o gigante em voz tão alta que sacudi a cabeça, atordoado.
Corri para onde estava Rhodan, que não tirava os olhos da galeria de telas de imagem. Dois tiros energéticos atingiram nosso campo defensivo. A nave cilíndrica voltou a balançar, mas parecia não ter sofrido avarias.
De repente Mory Abro, Bell e Noir também estavam contemplando as telas.
— Fogo de efeito concentrado — constatou Reginald em tom indiferente. — O ritmo de salvas está sendo preparado. Nossa velocidade deve ser inferior a trinta por cento da luz, senão os cabeças-de-prato nunca nos acertariam. Suas armas ainda são tão miseráveis como as tenho na lembrança. Se houvesse um único couraçado terrano com ultradesintegradores ou até canhões conversores por lá, já teríamos sido liquidados. Nem mesmo uma nave kahalense agüentaria o fogo dessas armas.
— Assim mesmo isso já começa a incomodar — constatou Rhodan. — A pilotagem automática não realiza uma única manobra de escape. Qualquer principiante é capaz de calcular a dianteira e comprimir os botões. E os seres que estão nessas naves não são principiantes.
Uma salva de trilhas energéticas que só vimos no momento do impacto através do conversor de energia em imagem, atingiu nosso campo defensivo. Desta vez fomos atirados ao chão e arrastados pelo revestimento liso.
— O sistema de absorção de energia de impacto não presta — gemeu Bell, que não perdia oportunidade para exibir seus extensos conhecimentos sobre operações bélicas de todos os tipos. — Pelo menos um milhão de metros-quilograma passou. Em comparação com a massa da nave não é nenhuma catástrofe, mas para mim chega. Que diabo! Como poderemos orientar a pilotagem automática a levar-nos para fora da confusão?
Já não se distinguiam as diversas naves nas telas. Estavam concentradas aos milhares no setor que atravessaríamos dentro de alguns minutos se a rota continuasse inalterada. Isso significava que a cada minuto que passava nos aproximaríamos do alcance dos tiros nucleares. E isso significava por sua vez que receberíamos um impacto após o outro. E estes impactos fatalmente haveriam de romper nosso campo defensivo, por mais fraco que fosse o desempenho energético das armas dos blues.
— Vamos dar o fora daqui — gritou Rhodan. — Vamos à popa. Kasom, feche as escotilhas blindadas.
O terrano levantou-se de um salto, arrastou consigo Mory, que estava trêmula sobre as pernas, e correu para a sala de estar. Só conhecíamos parte das salas e cabinas da nave. Mas tínhamos passado muitas vezes pelo caminho que levava à sala de máquinas.Voltei a lembrar-me das maravilhosas máquinas da nave, que apesar de suas dimensões delicadas pareciam gerar mais energia que os grandes e modernos conversores kalup usados em nossas espaçonaves.
Lancei mais um olhar para as telas e soltei um gemido. A falange de uma frota crescia à nossa frente.
— Formação em cunha como ponta de ataque. Grupos laterais com disposição em foice sobreposta — exclamou Bell em tom exaltado. — Esse pessoal aprendeu conosco. É uma boa linha ofensiva com uma disposição tática de retirada para o caso de malogro.
— O senhor recebeu ordem para correr, não para fazer conferências estratégicas — gritei.
Kasom deixou que a escotilha da sala de comando se fechasse atrás dele. Mais adiante Rhodan e Mory estavam passando pela eclusa blindada que levava ao convés central.
Antes de atingi-la, voltei a ser arremessado ao chão. As conhecidas dores de estômago começaram a manifestar-se. Compreendi que a impenetrável pilotagem automática reagira no último instante. A nave voltara a penetrar no espaço linear situado entre os universos de quarta e quinta dimensões.
Desta vez demoramos ainda mais para recuperar-nos do choque. Arrastei-me até minha cama e Kasom foi buscar Mory e Rhodan. Carregou-os embaixo dos braços como se fossem embrulhos não muito pesados.
O rugido dos reatores nucleares cessou tão de repente como tinha começado. Voltamos a ouvir o zumbido monótono do propulsor linear por cujos planos de construção estaria disposto a sacrificar a renda de alguns anos da USO — se houvesse a menor possibilidade de obtê-los.
Esperamos que as dores passassem. Neste meio tempo Rhodan disse entre os dentes:
— Tivemos sorte! Não foi por causa do perigo iminente que a pilotagem automática nos levou ao espaço intermediário, mas somente porque recebeu e processou justamente neste instante o respectivo raio goniométrico. Que significa isso? Já estamos na periferia da Via Láctea. Será que pretendem levar-nos a outra galáxia?
— Será que por lá também existem naves-patrulha terranas?
Mory não quis perder a oportunidade de mais uma vez ressaltar perante Rhodan que o poder do Império era limitado.
Prestei atenção ao zumbido do propulsor e esforcei-me para fazer algumas reflexões.
Se excluíssemos a manobra de orientação, só teríamos levado um tempo reduzidíssimo para percorrer a distância entre o centro galáctico e o setor leste. Se o propulsor continuava a funcionar a plena potência, só levaríamos mais alguns minutos para abandonar a Galáxia e penetrar nas regiões desérticas situadas entre as ilhas estelares.
Rhodan parecia entretido em reflexões semelhantes. Notei o brilho desesperado que se formou em seus olhos cinzentos. Bell também compreendera a situação. Melbar Kasom cuidava da moça e André Noir estava ocupado com seus exercícios auto-sugestivos, que o ajudavam a superar rapidamente a rebelião dos nervos.
Nem Rhodan nem eu tivemos oportunidade de exprimir nossos pensamentos secretos. Uma campainha estridente rompeu o silêncio. Estremeci de susto.
Dali a um segundo as dores voltaram a percorrer meu corpo. Desta vez o sofrimento provocado pela manobra de penetração foi tão cruel que preferimos não ir imediatamente à sala de comando.
Contorcemo-nos em nossas camas. A escotilha de segurança que Kasom acabara de fechar não permitia a visão para as telas. No momento nem estava interessado em saber onde estávamos. Dois fatos representavam um estímulo para a reflexão.
O som da campainha pouco antes da manobra de penetração era uma coisa fora do comum. Até então nunca o tínhamos ouvido. Será que o fato de o termos ouvido agora significava que finalmente estávamos chegando ao destino? De qualquer maneira, tínhamos retornado ao espaço normal poucos instantes após o último período de velocidade ultraluz. Isso me levou à conclusão de que ainda nos encontrávamos no setor leste da Via Láctea.
Além disso as máquinas destinadas ao deslocamento no espaço normal tinham entrado em funcionamento. Estes propulsores, que permitiam o deslocamento à velocidade da luz, só se distinguiam dos nossos pela construção compacta.
O zumbido profundo parecia uma música estelar, pois revelava que realmente tínhamos chegado ao destino. Até então o propulsor linear nunca fora desligado. A nave mergulhava no espaço normal, fazia o rastreamento e retornava imediatamente ao semi-espaço.
Devíamos ter chegado!
— Kasom — gemi. — Leve-me à sala de comando. Consegue andar?
O gigante veio em minha direção e levantou-me.
— Também me leve — pediu Rhodan. 
Segurar dois homens adultos embaixo do braço esquerdo e abrir a escotilha com a mão direita não tinha nada de extraordinário para o ertruso.
Uma vez chegado à sala de comando, colocou-nos cuidadosamente no chão. Apoiamo-nos na parede e olhamos para as telas iluminadas.
Avistei um sol amarelo do tipo normal. As estrelas desta espécie geralmente possuíam uma família planetária. Não se via nada além desse sol. Penetrou no quadro, vindo do lado do vermelho, e dali a pouco preencheu ambas as telas frontais.
Outros controles reagiram. Um registrador de dados traçou linhas irregulares numa faixa interminável. Para nós a curva não significava nada. Ninguém sabia qual era o princípio de funcionamento do aparelho.
A incerteza continuou até que mais uma tela se iluminasse.
— Ah! — disse Rhodan. — Isso esclarece tudo. Trata-se de um goniômetro de sistema ou um rastreador de massa ultraveloz. O sol que temos pela frente possui três planetas. No momento estamos atravessando a órbita do planeta exterior.
Notei a mesma coisa. A única coisa que aparecia na tela era a bola de fogo do sol estranho e três pontos de cores diferentes e tamanho variável.
Ao que parecia, o planeta número três pertencia à classe dos gigantes gasosos que são encontrados nas regiões frias da órbita exterior de quase todos os sistemas. Rhodan apontou para ele.
— Tem aproximadamente o tamanho da Terra e fica a uma distância média do sol. O número um deve ser um astro pequeno semelhante a Mercúrio. Provavelmente descreve um movimento de rotação unilateral e possui uma superfície incandescente. Se realmente pousarmos, será no número dois.
Não duvidava disso. Qualquer cosmonauta experiente teria chegado à mesma conclusão.
A tela especial do goniômetro de sistemas não mostrou outras estrelas. Só as telas de popa mostravam a faixa distante do centro da Via Láctea. Pelos meus cálculos a distância devia ser de pelo menos quarenta mil anos-luz.
— “Talvez seja mais!” — transmitiu o setor lógico de minha mente. — “Você se esquece de um fato importante. A nave só está desenvolvendo a velocidade da luz. É tempo para descansar. Prepare-se para aquilo que está pela frente.”
Meu cérebro suplementar tinha razão. Estávamos exaustos e as dores de estômago cada vez mais intensas nos tinham levado à beira do colapso.
Levantei. Kasom imediatamente estendeu a mão para segurar-me. Falei com a voz áspera e entrecortada.
— Se eu mandasse nesta nave, daria ordem para que ninguém levantasse. Com a velocidade que a nave está desenvolvendo o pouso demorará pelo menos três ou quatro horas. Talvez até sejam cinco ou seis horas. Descansem e coloquem-se em forma na medida do possível. Acho que antes do período de descanso deveríamos comer alguma coisa. Ficar de olho na tela não adianta nada.
— É a melhor sugestão que ouço nas últimas semanas — disse Rhodan. — Pode levar-me de volta, Kasom?
O especialista da USO limitou-se a dar uma risada. Serviu a refeição que consistia num mingau nutritivo. Quando finalmente descontraí o corpo e fechei os olhos, Mory, Bell e Noir já estavam dormindo. As dores de estômago demoraram algum tempo para passar.
São apenas cinco horas de descanso, pensei. Cinco horas, e depois poderemos avaliar melhor a situação.
Ainda ouvi os passos retumbantes de Kasom. Depois também adormeci.
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3
Só descansamos pouco mais de quatro horas, mas apesar disso o sono profundo produziu um verdadeiro milagre.
Senti-me dispostoe na plena posse das minhas forças.
A imagem setorial da superfície de um planeta brilhava na tela frontal. Era um grande mundo verde-azulado com extensas áreas nubladas e, segundo parecia, massas de ar turbulentas.
O verde denso parecia indicar que o mundo era uma selva. Só podíamos fazer uma avaliação aproximada, baseada em nosso arsenal de experiências, sobre o tipo de astro ao qual nos dirigíamos. Parecia haver oxigênio e vapor de água.
Consumimos apressadamente as últimas reservas de mantimentos. Kasom devorou quantidades enormes do mingau vermelho que, segundo afirmava, pesava em seu estômago que nem concreto. Mas o fator de saturação desse alimento parecia ser muito elevado.
O rugido do propulsor comum diminuiu, transformando-se num chiado. Os preparativos do pouso tiveram início.
Agarramo-nos às bordas das camas e procuramos enxergar o mais possível da superfície do planeta. Grandes mares destacavam-se. Os continentes desse mundo pareciam cobertos de matas densas.
— Lá embaixo faz muito calor — disse Rhodan. — As montanhas são extremamente altas e sem vegetação e nas terras baixas a selva é muito densa. Será que por ali já se desenvolveu alguma forma de vida inteligente?
Olhou para André Noir. O mutante nem estava olhando para as telas. Jazia sobre o leito, totalmente descontraído e com os braços abertos, pois estava na escuta com seus sentidos paranormais. Não deu nenhuma resposta.
Ouviu-se um chiado vindo do outro lado do casco. As chamas vermelhas eram um sinal de que a nave robotizada penetrava na atmosfera em velocidade muito elevada.
Os reatores de energia entraram em funcionamento, reforçando minha suposição. O campo de repulsão da popa acabara de solicitar maiores quantidades de energia. O chamejar tornou-se mais intenso.
Estávamos tão acostumados aos acontecimentos que acompanhavam um pouso rápido que quase não lhes demos atenção.
Mergulhamos na escuridão da face noturna. Dentro de alguns minutos um mar de chamas parecia surgir na linha do horizonte. A bola de fogo do sol amarelo subiu tão depressa que até se poderia ter a impressão de que um gigante a atirara para o alto.
Do lado de fora as massas de ar deslocadas bramiam e uivavam. Um último rugido dos jatos invertidos para a operação de frenagem reduziu tão depressa a velocidade elevada que desenvolvíamos que a nave quase chegou a imobilizar-se dentro de trinta segundos. Os neutralizadores de pressão funcionaram perfeitamente. A torça da inércia não se manifestou no interior da nave.
Sentirmo-nos ofuscados pela luz do sol que estava no zênite. Apesar disso reconhecemos um grande oceano com inúmeras baías e braços de mar profundos.
O nariz achatado da nave robotizada apontava para um enorme planalto. Tratava-se de uma área plana e desértica, sem vegetação. O planalto rochoso ficava a uns mil metros de altitude e descia em forma de terraço em direção à planície. A vegetação subia bastante pelas encostas.
Noir e Kasom soltaram um grito quase ao mesmo tempo. Não havia necessidade de indagar sobre o motivo da repentina exaltação, pois no mesmo instante também avistei a cidade.
Não era bem isso. Na verdade, tratava-se de dois núcleos grandes e extensos, separados por um braço do mar que penetrava profundamente terra a dentro. Esse braço não era muito largo. Sua largura devia chegar a uns duzentos ou trezentos quilômetros. Ainda estávamos voando a cerca de dez mil metros de altura, mas a nave cilíndrica descia rapidamente.
Não havia dúvida de que se dirigia ao planalto.
Dali a alguns segundos vi os contornos de três pirâmides! Rhodan não disse absolutamente nada, Bell usou um palavrão e alguma coisa rugiu no peito de Kasom, como se ele se preparasse para o ataque.
— Pirâmides de novo! — disse Mory, tentando fingir certo desinteresse. — Até parece um Kahal em estilo menor, não é mesmo? Se por aqui também encontrarmos bigheads degenerados, mudarei de profissão.
— A senhora tem uma? — perguntou Rhodan. 
Nenhum detalhe escapava a seus olhos.
— Sou política galáctica! — respondeu Mory em tom sarcástico. — Meus parabéns, Atlan. Sua suposição é absolutamente correta. Isto aqui realmente parece ser uma base-pirâmide do povo desaparecido ao qual no fundo devemos nossa longa viagem.
Preferi não responder. Desde o início a teoria tivera um alto fator de probabilidade. A nave robotizada certamente se orientara pelos impulsos emitidos pelas três pirâmides.
As pirâmides também tinham quinhentos metros de altura e sua base era quadrada. A única diferença era que nesse mundo só tinham sido levantadas três construções dessa espécie. Em virtude disso o círculo da morte, perfeitamente demarcado, também era menor. As pirâmides formavam um triângulo com dois lados iguais. A disposição simétrica era inconfundível.
Rhodan estava examinando sua arma energética, quando o mutante disse:
— Estou notando impulsos mentais superpostos. Recebo numerosas impressões sensoriais. Nas duas cidades devem viver milhões de criaturas pensantes.
— São bigheads? — apressei-me a perguntar.
— Em hipótese alguma, senhor. Conheço o modelo de ondas deles. As inteligências deste planeta têm um pensamento mais intenso e mais fortemente ligado à vida. Não há nenhum sinal de degenerescência.
— Poderia tirar alguma conclusão sobre o acervo mental desses seres?
— Não senhor. Não sou telepata. Apenas capto numerosos componentes emocionais, que só poderei decifrar quando conhecer a mentalidade e o estágio de desenvolvimento cultural dessa gente.
— Preparem-se para desembarcar — ordenou Rhodan. Uma energia renovada parecia animá-lo. — Cuidado! A inversão vai ter início.
A nave robotizada levantou a proa e desceu em direção ao planalto com a popa chamejante.
Batemos apressadamente em retirada. Um elevador mecânico levou-nos à eclusa de ar que ficava duzentos e cinqüenta metros abaixo do lugar em que estávamos. As duas escotilhas já estavam abertas.
Aspirei cautelosamente o ar que penetrava na eclusa. Era rico em oxigênio, cheirava a água salgada e restos de plantas apodrecidos — e era surpreendentemente seco! Nunca imaginara que isso fosse possível num ambiente em que a vegetação era tão densa.
— Não morreremos sufocados — disse Kasom de si para si.
— De frio também não morreremos — disse Mory com um sorriso triste. 
Os pingos de suor já começavam a formar-se em sua testa alta.
A esta temperatura eu me sentia melhor que os terranos. Os três mundos de Árcon recebiam em média uma quantidade de calor bem maior que a Terra. Kasom também não se sentiu muito incomodado pelo calor que penetrava na eclusa. O sol do planeta Ertrus era uma estrela muito quente.
À medida que a nave ia descendo, as pirâmides tomavam-se mais nítidas. Também eram feitas de um metal brilhante vermelho.
— Bem que eu gostaria de saber quem construiu isso...! — disse Rhodan de si para si. 
Ninguém respondeu. Perguntas como esta já tinham sido formuladas muitas vezes.
Os ocupantes da nave quase não sentiram o pouso. A nave descansou no solo com uma suavidade que só poderia ser proporcionada por um dispositivo automático altamente aperfeiçoado com rastreadores de solo e um excelente comando sincronizado dos propulsores e projetores antigravitacionais.
A campainha voltou a soar. Entreolhamo-nos com uma expressão de perplexidade. A segurança no interior da nave era bastante duvidosa, mas o que nos esperava no planeta poderia ser bem mais perigoso. Apesar disso minha decisão tinha sido tomada.
— Descerei de qualquer maneira. Segui com os olhos a escada rolante que ia sendo escamoteada, e que era utilizada no lugar do elevador antigravitacional.
— Caso queiram voltar a Kahalo, fiquem à vontade. Tenho certeza de que a nave não demorará a voltar pela mesma rota. E os constantes vôos lineares dificilmente contribuirão para tornar mais suportáveis as dores de estômago.
O ruído da campainha tornou-se mais forte. Rhodan levantou a cabeça e pôs-se a escutar. Outros sistemas de alarma fizeram-se ouvir e osreatores energéticos entraram em funcionamento embaixo de nossos pés. Sem dizer uma palavra, Rhodan empurrou Mory e André Noir para a escada rolante, embora a extremidade da mesma ainda não tivesse atingido o solo.
— Há algo de errado por aqui! Vamos! Corram! — gritou.
A moça e os mutantes saltaram pelos degraus largos, seguidos por Bell. Recuei alguns passos e procurei descobrir a causa do súbito ruído de máquinas. Rhodan também desapareceu na escada.
O ritmo irregular da partida transformou-se num ribombar. A nave tremia tanto que quase perdi o equilíbrio.
— São os preparativos da decolagem, senhor — gritou Kasom. — O que houve? Será que querem matar-nos no fogo dos jatos? Ou querem que fiquemos a bordo?
Passei correndo por ele. A escada acabara de atingir o solo e começou a rolar. Meu instinto me dizia que estava em cima da hora para abandonar esse local pouco acolhedor.
Um corpo gigantesco caiu a meu lado. Era o ertruso que percorrera os últimos vinte e cinco metros num enorme salto. Quando tocou o solo, o abalo me fez perder o equilíbrio. Caí pelos degraus rolantes e cheguei a acreditar que meu fim estava próximo. Mas mais uma vez Kasom foi mais ligeiro que qualquer outro ser humano.
Agarrou-me, atirou-me por cima do ombro e saiu correndo comigo. Ao que parecia, tinha desligado o microgravitador que lhe conferia nos mundos mais leves a gravitação do mundo ao qual estava habituado, e que era de 3,4 gravos. Dava saltos de cerca de quinze metros.
Levamos apenas alguns segundos para alcançar Rhodan. Kasom pôs o braço em torno dos quadris de Mory e atirou-a sobre o outro ombro. Rhodan, Bell e Noir seguiam-nos o mais depressa que podiam.
O chão tremeu. Conhecíamos o rugido e por isso não nos entregamos a quaisquer ilusões.
A nave robotizada estava iniciando uma manobra que normalmente poderia ser designada como decolagem de emergência. Fui atingido por uma onda de ar comprimido e aquecido. Kasom gritou alguma coisa que não entendi. Com mais um salto fomos colocados sob a proteção de uma depressão estreita. O gigante deixou-nos cair ao chão e voltou a saltar.
Mas Rhodan e os outros dois homens já estavam chegando. Uma segunda onda de ar comprimido literalmente varreu-os para dentro da depressão, onde Kasom os segurou. As reações do ertruso adaptado ao ambiente eram mais rápidas que os pensamentos de um terrano.
Comprimimos nossos corpos contra o solo. Melbar deitou ao lado de Mory e protegeu-a com seu corpo.
Não poderíamos ter demorado nem mais um segundo para pôr-nos a salvo. Ouviu-se um forte estrondo. O bramido dos jatos-propulsores quase me privou dos sentidos. Um furacão de fogo passou por cima da depressão, arrastando enormes blocos de pedra.
A proa achatada da nave automática entrou em nosso campo de visão. Seguiu-se o corpo, depois as aletas pouco pronunciadas da popa e finalmente as goelas atômicas dos jatos-propulsores energéticos.
Só então percebi que a nave automática estava funcionando com o menor empuxo que podia ser utilizado numa decolagem. Apesar disso o furacão era tão intenso e as vibrações do solo tão violentas que quase chegamos a ser arrastados para fora de nosso abrigo.
Lentamente, oferecendo um panorama majestoso, a nave cilíndrica ia subindo em direção ao seu elemento. Quando quase tinha desaparecido das nossas vistas, o propulsor principal adquiriu vida.
Uma bomba atômica parecia explodir a dez quilômetros de altura. A bola de fogo dos conversores subitamente ativados ao máximo fez empalidecer o sol do mundo em que nos encontrávamos.
A nave desapareceu juntamente com a explosão. O som levou alguns segundos para chegar a nós. Depois disso fomos atingidos por uma onda de pressão. Mais uma vez tive a impressão de que, apesar de ser considerado imortal, tivesse de perecer no inferno das energias liberadas.
Não demorou que as massas de ar revoltas se acalmassem e o último trovejar desaparecesse ao longe.
Estávamos estendidos na depressão. Ninguém disse uma palavra. Seria inútil tentar comunicar-nos. Meus ouvidos continuavam incapazes de absorver e processar as ondas sonoras pouco intensas da comunicação acústica — depois do inferno das energias liberadas.
Esperávamos impacientemente. O ertruso foi o primeiro a levantar. Colocou Mory sentada e encostou-a à parede rochosa íngreme. Deu um salto de três metros de altura e deitou na borda da depressão. Suas pernas, que antes pareciam colunas de um edifício, pendiam para baixo. Finalmente ouvimos sua voz. A voz de Kasom sempre era perfeitamente compreensível — até mesmo para um surdo.
— Caramba! Se quiserem ver uma cratera de lava incandescente, subam. Que nave infernal! O que será que deu nessa pilotagem automática? Por que não deixou que desembarcássemos calmamente e ganhássemos distância, já que fez questão de deixar-nos neste mundo? Qual terá sido o motivo da decolagem de emergência? Se bem que a nave partiu com uma aceleração quase igual a zero. Foi apenas o suficiente para levantar a nave do solo. Se a pilotagem automática tivesse regulado os propulsores para a potência máxima, todo o planalto se teria evaporado. Será que a pilotagem automática quis evitar que as pirâmides fossem danificadas? É possível, até é bem provável. Mas mesmo assim poderia ter permitido que desembarcássemos calmamente. Meia hora mais ou menos não faria diferença. Ou será que faria? Por que a nave decolou como se estivesse entrado em pânico?
Kasom puxou as pernas para cima e virou o corpo. Seu rosto apareceu em cima de nossas cabeças. O ertruso estava sorrindo.
— Olá! Como está o ar aí embaixo? Ouviram minha avaliação da situação?
— Este sujeito não tem nervos — constatou Rhodan, tossindo. Seu rosto estava coberto por uma camada de pó marrom-avermelhada. O nariz de André Noir estava sangrando. Bell soltou as rédeas de seu temperamento e pôs-se a praguejar.
— Lá adiante a subida é mais suave — informou Kasom. — É bem confortável. Aqui em cima o terreno é bem plano, ao menos na área em que nos encontramos. As ondas de pressão varreram as pedras. Pelo grande Ertrus — por pouco não sou assado. Assado...!
Melbar calou-se e uma expressão ansiosa modificou as feições de seu rosto.
— Já está na hora de calar a boca — gritou Bell. — Não vê que precisamos concentrar-nos? A que distância ficam as pirâmides?
— Neste ar quente é difícil avaliar as distâncias. Em toda parte há reflexos. Um vento quente sopra da planície. Devem ficar a uns três quilômetros.
— Não é muita coisa — observou Rhodan. — Mory, a senhorita está bem? Não tem nada quebrado ou destroncado?
Mory apalpou os quadris e um sorriso martirizado apareceu em seu rosto, que antes parecia uma máscara de pó.
— Com exceção da mancha azul, sinto-me muito bem. Kasom segurou-me com certa violência.
Noir deu uma risada. Passou a mão pelo nariz ensangüentado, borrando o rosto.
— Deixe isso para lá, André — reclamou Rhodan. — Deixe o sangue correr à vontade. Por aqui não há ninguém que dirá que as manchas de sangue em seu uniforme representam uma infração ao regulamento. Vamos andando?
Olhou em torno. Confirmei com um gesto. Dali a cinco minutos chegamos ao planalto. Era realmente plano, conforme dissera Kasom. A apenas quatrocentos metros do lugar em que nos encontrávamos a rocha estava fervendo. Tratava-se de uma cratera relativamente pequena, que se formara no lugar em que os fluxos expelidos pelos jatos-propulsores, que se deslocavam à velocidade da luz, tinham atingido o solo.
A oeste, norte e leste o planalto desértico e rochoso era cercado por grandes cadeias de montanhas. Antes havíamos notado que o planalto tinha forma aproximadamente quadrada, e que media uns cinqüenta ou sessenta quilômetros de lado.
Tínhamos desembarcado junto ao flanco aberto do lado sul. O primeiro degrau da descida em forma de terraço começava cerca de dez quilômetros ao sul do lugar em que nos encontrávamos. Por ali certamente era possível descer para a planície.
Voltei a olhar em torno. As três pirâmides não me impressionaram.O grande Kahal do planeta dos bigheads oferecera um quadro bem mais sensacional. E ainda estava funcionando! As construções que via à minha frente pareciam não ter vida.
Lancei um olhar atento para lá. Meus ouvidos continuavam a zumbir. As fortes ondas de pressão e frentes acústicas não tinham feito bem aos meus órgãos auditivos. Rhodan enfiava o dedo nos ouvidos. Bell fazia movimentos rítmicos de deglutição para eliminar a tensão.
Mory tapou o nariz e encheu-o de ar. Disse que isso sempre lhe fizera bem em ocasiões como esta.
Notei que alguma coisa estava faltando nas gigantescas construções. O que seria?
— “É a luminosidade energética no ponto de interseção das linhas, seu idiota” — comunicou meu cérebro suplementar numa linguagem pouco gentil.
Mas era isso mesmo. A estranha luminosidade cintilante, que conferia o fluido misterioso ao grande Kahal, estava ausente. Apesar disso a nave robotizada tinha se dirigido a este planeta. De onde teriam vindo os impulsos goniométricos, se as máquinas que sem dúvida estavam montadas no interior das pirâmides não estavam funcionando mais?
— Você está estreitando os olhos, meu caro! — constatou Rhodan, mal ouviu suas palavras. — O que houve? Algum problema?
— Não sei — respondi em tom pensativo. — Notei a falta da energia flutuante no centro das linhas. Será que foi este o motivo da partida apressada da nave robotizada? Será que há algo de errado nesta base? Talvez seja uma coisa que a pilotagem automática registrou muito tarde e que foi considerada tão perigosa que deu origem a uma decolagem de emergência. Procure refletir sobre isso, terrano.
— Há um tique no ar! — afirmou Kasom. Pôs-se a farejar o ar quente, bastante desconfiado. Senti perfeitamente a sucção vinda da planície. Lá embaixo pareciam reinar temperaturas de estufa.
— Como? — perguntou Mory em tom agressivo. Voltou a coçar o lugar onde havia uma costura em seu conjunto. — Que tique é esse? Acho que está na sua cabeça.
Melbar não se abalou. Pôs-se a escutar com a cabeça inclinada. Logo depois soltou um palavrão tipicamente ertruso. Fitou intensamente o aparelho de múltipla utilidade fornecido pela USO que trazia no pulso.
O pulso era da grossura da coxa de um terrano alto e robusto. Por isso o aparelho era do tamanho de um prato de tamanho médio.
— Radioatividade gama, cento e oitenta e sete ciclos por minuto. Um momento.
Estendeu o braço, deixou que o contador de raios gama saltasse do aparelho de múltipla utilidade e vasculhou a área. Dirigiu o aparelho para a cratera que estava endurecendo aos poucos.
— Nada! — disse em tom de perplexidade. — O fluxo de partículas não deixou para trás nenhuma radioatividade.
— Verifique as pirâmides — pedi. 
Rhodan parecia concentrar-se.
Dali a alguns segundos ficamos sabendo que as radiações realmente provinham das construções.
— Cento e oitenta e sete ciclos a uma distância de três quilômetros, para mim é demais! — disse Bell. — Já não se trata da radiação normal das altitudes. Ainda estaria disposto a admitir até vinte ciclos. Acho que devemos afastar-nos desta vizinhança incômoda.
— Por quê? Isto aqui é tão bonito — disse Mory em voz baixa. Deu alguns passos titubeantes, mas logo caminhou resolutamente em direção às pirâmides.
— Este mundo é lindo. Não está vendo a queda d'água? É uma beleza. Água... sim, bem que precisamos de água. Venham comigo.
O mutante deu um grito de alerta e também senti os impulsos compulsivos sugestivos. Vinham das pirâmides.
Instalei imediatamente um bloqueio em minha mente por meio do cérebro suplementar ativado há dez mil anos.
Rhodan também agiu prontamente. Possuía uma capacidade paranormal pouco acentuada, e por isso sabia defender-se muito bem contra influências estranhas que tentassem penetrar em sua vontade.
Bell e Kasom eram homens treinados, que tinham sido instruídos pelos mutantes terranos sobre a maneira de defender-se contra ataques parapsíquicos.
As ondas sugestivas eram muito fracas. Não representavam um perigo grave. Mory, que não tinha recebido qualquer treinamento específico, foi a única que sucumbiu no primeiro instante à constrição mental.
— Cuidado — voltou a gritar André Noir. — Alguém tenta atrair-nos para a área infestada de radiações. Consegui localizar o transmissor. Fica do lado de fora do círculo que bloqueia as pirâmides.
— A queda d'água — disse Mory e prosseguiu em sua caminhada, até que Melbar Kasom a agarrasse e voltasse a colocá-la sobre o ombro.
Depois corremos para o sul o mais depressa que podíamos naquele calor. Era fácil acompanhar o passo acelerado de Rhodan. O mutante corpulento era o único que parecia experimentar certas dificuldades.
Os olhos de Mory pareciam vidrados. Resistia vigorosamente às mãos do ertruso, que a seguravam e tentava convencer-nos constantemente de que a queda d'água junto às pirâmides realmente era muito bonita.
Forcei as pernas, até alcançar Rhodan.
— Quem será?
— São seres com uma potência mental pouco pronunciada. Para nós não representam nenhum perigo. Mas temos de cuidar de Mory.
Fiquei calado por alguns minutos, aspirei o ar e respondi com outra pergunta:
— Quem sabe se são os habitantes das duas cidades que vimos?
— Não acredito. As casas parecem ser bastante rudimentares. Além disso vi as muralhas de uma fortaleza. Na melhor das hipóteses os nativos devem ver nas pirâmides uma espécie de santuário.
— Quer dizer que nas pirâmides existem seres diferentes, que não nasceram aqui. Acho que mais tarde devemos investigar este ponto, a não ser que os desconhecidos nos forcem a entrar logo em combate. Por que não nos enfrentam?
— Talvez sejam degenerados que nem os bigheads — observou Rhodan, respirando com dificuldade.
Voltei a aspirar o ar. Kasom apoiava André Noir. O calor do planalto desértico parecia consumir rapidamente as forças do mutante. Bell estava resistindo muito bem.
— Não sei, Rhodan. Talvez seja apenas por comodidade ou indecisão, ou porque confiam em suas forças sugestivas, que em sua opinião até podem ser irresistíveis. Não se esqueça de que somos exemplares especiais da espécie humana.
Deu uma risada e me olhou com uma expressão que só mais tarde consegui interpretar.
Da espécie humana, eu acabara de dizer. Acontece que eu era um arcônida. Retribuí a risada.
— Não diga nada, amigo — pediu Rhodan. — Você já se transformou num ser humano. A única coisa que o liga a Árcon é o nome. Em sua consciência você é um terrano.
Passamos a andar mais devagar e ficamos à espera de Bell. Este aproximou-se fungando e procurou abrigar-se atrás da elevação que havíamos atingido.
Examinei o aparelho conjugado que trazia no pulso. Era muito menor que o de Kasom. Era bem verdade que o aparelho que eu usava era um produto da microtécnica siganesa altamente aperfeiçoado.
As radiações tinham diminuído. Fiz uma contagem e vi que só havia cinqüenta e quatro ciclos por minuto. Descansamos cinco minutos e prosseguimos.
Dali a meia hora apareceram as primeiras manchas verdes de vegetação, se bem que a encosta íngreme ainda ficasse a cinco quilômetros.
Encontramos uma caverna natural no flanco de uma rocha que avançava planalto a dentro e voltamos a abrigar-nos. Não se notava mais nada dos raios gama. Nem mesmo Noir conseguiu localizar o fluxo de impulsos sugestivos. Mory dormia um sono profundo e tranqüilo. Já não se lembrava da penetração que se verificara em seu consciente.
Kasom e eu ainda não estávamos nem um pouco cansados. Os terranos já padeciam os martírios da sede. Na sombra da caverna a temperatura chegava a 48 graus centígrados. No sol meu termômetro chegou a acusar sessenta graus.
O ar superaquecido parecia uma cortina cintilante à frente da caverna. Produzia uma distorção extrema de todas as impressões óticas.
No momento em que Rhodan começava a explicar que não poderíamos ficar mais muito tempo sem água, meu rastreador energético entrou em funcionamento.
A maravilha micromecânica dos homenzinhos de Siga não eramaior que a ponta de meu polegar. Só ocupava uma fração do espaço existente em meu aparelho conjugado.
A campainha do aparelho de Kasom também começou a soar. Conforme prevíramos, a faixa de ondulações vinha do lado das pirâmides. Com um movimento tranqüilo Rhodan pôs a mão na arma e verificou se estava em condições de uso.
Kasom arrancou sua arma energética. Era um modelo que geralmente só costumava ser montado nos robôs de guerra superpesados. Aquilo que o gigante balançava na mão quase chegava a ser um pequeno canhão.
— Estão chegando — afirmou Rhodan em tom indiferente. — Quer dizer que estão nos perseguindo. Não faz mal; vamos morder mais esta maçã azeda.
— Tenho a impressão de que ultimamente temos mordido muitas maçãs azedas — disse Mory que se ergueu abruptamente e olhou em torno, confusa. — O que houve comigo?
— Depois eu digo, leoa de juba — resmungou o ertruso. — Agora não há tempo para explicações.
— A senhora foi submetida a uma influência sugestiva — explicou Rhodan, levantando-se.
— Kasom e Bell, venham comigo. Atlan...?
— Também irei. Noir, fique na caverna com Mory. O senhor está exausto.
Subimos pela encosta e vimos que tanto Mory quanto o mutante nos seguiam.
Os movimentos da moça eram rápidos e ágeis. Assim que me alcançou, começou a falar com o rosto vermelho de raiva:
— Desde quando deu para acreditar que obedeço às suas ordens? Ainda não chegamos a este ponto, arcônida.
Não respondi. Uma vez no topo da encosta, deitamos no chão. Bell soltou um grito de dor e, como de costume, soltou uma verdadeira metralha de pragas. Queimara-se numa rocha quente.
— Cuidado — preveniu Rhodan. — Não encostem a pele na rocha. Não fiquem com a cabeça descoberta. Os capacetes não são muito confortáveis, mas protegem contra o sol. Mory, acho que a senhora deveria amarrar os cabelos em cima da cabeça.
Espiamos para o norte. As pirâmides estavam a uns oito quilômetros, e o local em que pousara a nave a pouco mais de cinco quilômetros.
— Oi...! — fez Kasom quando uma figura negra saiu do chão pouco antes do círculo da morte. Encostei o visor de minha arma ao olho e regulei a ampliação para o máximo.
Apesar do ar aquecido vi o que estava acontecendo por lá.
A figura negra era uma torre redonda de cerca de trinta metros de diâmetro, que estava sendo levantada mecânica ou energeticamente. Continuava a crescer para fora do chão. Quando o movimento cessou, a torre tinha uns cinqüenta metros de altura.
— Fantástico! — disse Rhodan com um tom de admiração. — O que será isso? Quais são as indicações de seu rastreador energético? Forneceu dados precisos? Meu aparelho não está funcionando muito bem.
— Marca três, máquinas geradoras de corrente comuns. Nenhuma hiperenergia — esclareci. — O que localizei devem ter sido campos magnéticos comuns ou motores elétricos. Veja!
Um objeto que cuspia fogo — devia ser um pequeno foguete — acabara de sair da torre. O projétil subiu chiando, inverteu a direção e desceu para o lugar em que estivera pousada a nave cilíndrica.
Ninguém esperou que a carga do objeto voador detonasse. Escorregamos encosta abaixo e corremos agachados para a caverna.
Antes que conseguíssemos chegar lá, um brilhante cogumelo atômico subiu para o alto. Dali a pouco uma onda de pressão pouco intensa passou por cima de nossas cabeças. O estrondo da explosão também mostrou que se tratava de uma carga fraca.
O estrondo foi-se desfazendo. Entreolhamo-nos espantados. A tática do atirador de foguetes desconhecido, que sem dúvida se identificava com os sugestores, teria provocado risos em qualquer menino de escola terrano.
Melbar exprimiu sua opinião:
— Devem estar completamente loucos, ou então nunca enfrentaram um inimigo para valer. Não se atira num lugar em que o inimigo esteve mais de uma hora antes. Será que eles não são capazes de imaginar que neste meio tempo podemos ter percorrido uns cinco quilômetros?
O ertruso olhou em torno, como se esperasse uma resposta. Rhodan fez um gesto de pouco-caso. Sem dizer uma palavra, voltou a subir pela encosta. Seguimo-lo. Naturalmente Mory fez a mesma coisa.
O cogumelo atômico já se desfazia ao vento. Os resíduos brilhantes estavam sendo tangidos para o norte. Mais uma cratera surgira no lugar em que estivera pousada a espaçonave. Era muito pequena.
— É um volume de energia correspondente, no máximo, a cinqüenta toneladas de TNT — conjeturou Bell.
— Uma carga terra-terra para combates na superfície. Será que os donos da torre negra não têm coisa melhor para oferecer?
Quanto a mim, tinha certeza de que eram capazes de provocar um inferno atômico, mesmo que fossem iguais aos bigheads, que já não sabiam o que estavam fazendo. Achei preferível não assumir o risco de levá-los a adotar este procedimento.
— Olhem! — disse Mory em voz alta, estendendo o braço. — O que é aquilo?
Levantei a arma e voltei a olhar pela mira ótica. Uma estranha nave triangular, achatada que nem uma forma de bolo, saiu da sombra bem definida da torre.
Sem provocar qualquer ruído perceptível, voou em direção ao local da detonação e pousou tão perto da cratera mais recente que prendi a respiração de espanto.
Kasom tirou-me as palavras da boca.
— Será que essa gente enlouqueceu? No lugar em que estão deve haver uma forte dose de radiações.
O gigante ergueu ligeiramente o corpo e olhou ainda mais atentamente para o norte. Finalmente dirigiu-me a palavra.
— Já está na hora de eu dar uma olhada nisso, senhor. Permite que eu corra para lá? Gostaria de ver os tipos que devem estar nessa nave.
Não hesitei em dar a permissão. Para Kasom isso era apenas um passeio. Poderia estar de volta dentro de meia hora.
— Está bem, saia pulando. Mas não deixe que o localizem ou exerçam alguma influência sugestiva em sua mente. Veja quem são os seres com que nos defrontamos. O comportamento desses desconhecidos é tão estranho que merece ser examinado.
— Será que o senhor conseguirá? — perguntou Rhodan em tom de dúvida. — Não se esqueça do calor. Além disso a área oferece poucos esconderijos.
Kasom fez um gesto de pouco-caso.
— É fácil, senhor. Já escolhi o caminho. Ninguém me verá. Quer esperar aqui por mim?
Limitei-me a acenar com a cabeça. Dali a alguns segundos o gigante desapareceu. Não chegamos a vê-lo uma única vez.
— Que coisa estranha — admitiu Mory. — Esses ertrusos realmente parecem ser uma raça invencível.
Desisti dos meus esforços de descobrir o especialista da USO. Se Kasom dizia que ninguém o veria, realmente seria assim. Preferi olhar para a nave pousada no chão.
Três pessoas saíram. Apesar da grande ampliação, não consegui distinguir os detalhes. Ou melhor, descobri uma coisa. Os desconhecidos possuíam dois braços e duas pernas. E caminhavam eretos.
— São humanóides — constatou Rhodan. — Parece que estão usando trajes espaciais. Os movimentos são desajeitados. Reconheceu mais alguma coisa?
Respondi que não.
— São negros — informou Noir. — Quer dizer, os trajes protetores ou espaciais que usam são negros. Será que isto é razoável com um sol tão forte? Suas roupas devem sugar o calor. Por que não usam trajes com revestimento reflexivo?
O mutante acabara de propor um novo enigma. Aliás, os enigmas pareciam ser muito numerosos neste mundo.
Os três desconhecidos só permaneceram quinze minutos junto à cratera. Depois disso voltaram à nave, entraram e decolaram. Procurei descobrir eventuais radiações emitidas pelos propulsores. Não consegui. Meu rastreador energético esboçou uma reação débil.
Mais uma vez ficamos de armas apontadas atrás dos blocos de pedra que nos protegiam. Sem dúvida os desconhecidos iniciariam as buscas.
Nem pensavam nisso. A nave voltou e desapareceu numa abertura da torre.
— Não compreendo — disse Rhodan em tom pensativo. — Se não tivessem tentado influenciar-nos por via sugestiva e disparado o foguete, sentir-me-ia inclinado a pensar que nem perceberam nossa chegada. Afinal, saímos da nave robotizada às pressas.
— Aconteceque realmente tentaram influenciar-nos — objetei. — Quer dizer que tiveram conhecimento da chegada de seres estranhos. O ataque paramental foi, do ponto de vista lógico, uma operação muito precisa destinada a atrair-nos para o círculo de influência das pirâmides. O que foi feito depois só pode ter sido obra do cérebro de um louco. Nenhum ser dotado de inteligência age assim quando está empenhado em pôr as mãos em outros seres. Por que não vasculham a área com espaçonaves?
Rhodan enxugou a testa. O pó fino deixara seus olhos inflamados.
— Vamos voltar para a caverna. É possível que Kasom tenha descoberto alguma coisa. Atlan, precisamos arranjar água com urgência. Lembre-se de que não somos arcônidas.
Olhei para o sul. Via-se perfeitamente uma faixa de vegetação na encosta.
— Ali existe água de sobra. Acho que devemos esperar que escureça.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Não agüentamos até lá. Precisamos sair imediatamente.
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4
Dali a uma hora, quando Melbar Kasom voltou, eu lhe fiz uma recomendação. O ertruso ainda não dera nenhum sinal de cansaço. Seria perfeitamente capaz de fazer um relato preciso e detalhado, mas não teria encontrado ouvintes.
Mory Abro e André Noir estavam totalmente apáticos. O estado de Rhodan e Bell também se tornara preocupante, o que nos levou a partir imediatamente.
O ar seco e empoeirado do planalto ressecava o organismo das pessoas com uma rapidez extraordinária. As últimas reservas de líquido já tinham sido consumidas.
Kasom carregou Mory e Noir e eu apoiei Bell. Rhodan revelou uma energia tremenda, arrastando-se sozinho para o sul.
Finalmente a marcha dolorosa chegou ao fim. Chegamos à encosta íngreme. Mil metros abaixo de nós estendia-se o tapete contínuo da folhagem da mata virgem, que parecia estar em ebulição. Nuvens de vapor eram arrastadas para cima por um vento extremamente forte. Perdiam a água que continham a quinhentos metros de altura. A corrente de ar que passava chiando sobre a borda do último degrau era quente e seca.
Estávamos deitados numa grande caverna que ficava em um dos flancos da encosta. Era o início da tarde. O sol que fustigava impiedosamente o solo caminhava lentamente pelo céu. Pelos nossos cálculos, o planeta levava trinta e cinco horas para descrever um movimento de rotação completo em torno do eixo polar. Em conseqüência, os dias deviam ser compridos e muito quentes, e durante as noites, também compridas, certamente se verificava uma queda enorme da temperatura.
Não havia nuvens no céu verde-azulado. Não se via uma única criatura viva. As gigantescas montanhas que se erguiam ao longe marcavam o horizonte sob a forma de uma massa marrom-amarelenta sem contornos definidos. As miragens transformavam os cumes e as cordilheiras angulosas em massas de vapor que ondulavam incessantemente, dando a impressão de que se tratava dos esguichos lançados pelas ondas de um oceano de mercúrio.
Esperei por Kasom. Até esse gigante, que era um verdadeiro super-homem, acabara confessando que se sentia exausto. Apesar disso partira depois de um ligeiro descanso, a fim de procurar água para as pessoas que estavam morrendo de sede. Se não fosse o ertruso, provavelmente estaríamos perdidos.
Mory balbuciava e gritava num delírio incipiente. O mutante refugiara-se em sua rigidez auto-sugestiva. Rhodan e Reginald Bell jaziam imóveis sobre a rocha da caverna.
Minha língua também estava inchada. Os sentidos turvaram-se. Quando Kasom finalmente voltou, tive a impressão de ver à minha frente uma criatura que se desmanchava na neblina.
A água, a água preciosa e benfazeja, correu pelos meus lábios. Tive bastante autocontrole para não beber com uma gula descontrolada.
Kasom parecia estar novamente em perfeita forma. No mundo infernal em que nos encontrávamos um gole de água devia produzir verdadeiros milagres.
Sorvi o líquido lentamente e com muita cautela. Assim que a sequidão na garganta diminuiu um pouco e o sangue viscoso voltou a correr mais depressa pelas veias, passamos a cuidar dos terranos.
Demos de beber em primeiro lugar a Mory e André. Kasom cuidou para que ninguém bebesse muito depressa.
Demorou quase uma hora até que meus companheiros recuperassem a capacidade de raciocinar. Assim que o metabolismo de líquido dos organismos se estabilizou razoavelmente, Kasom saiu para trazer mais água fresca. Descobrira uma nascente a algumas centenas de metros de distância. Esta nascente despejava o líquido cristalino encosta abaixo, em direção à planície.
Melbar levou um saco dobrável feito de plástico muito fino, no qual cabiam cinqüenta litros. O recipiente fora adaptado à força física do gigante e pertencia a seu equipamento de emergência.
Os outros também possuíam recipientes desse tipo. Kasom voltou com todos eles cheios.
Derramamos alguns litros na cabeça e na nuca, voltamos a beber e ficamos completamente restabelecidos.
Preferimos não falar no estado de fraqueza que tínhamos atravessado. Bell foi o único que observou um tanto perturbado que nunca mais sairia para o planalto desértico sem levar uma reserva de água. Foi bastante claro.
De repente ouviu-se um rugido forte, que fez com que Mory se assustasse e pusesse a mão na arma. Ficou de pé no fundo da caverna que nem um gato selvagem e olhava para a entrada.
— O que foi isso? — cochichou, muito tensa.
Mais uma vez Kasom ficou perplexo. Olhou em torno, estupefato.
— Meu estômago está roncando. Por quê? O que houve com a senhora?
Rhodan descansou a cabeça sobre os joelhos encolhidos e riu tanto que seus ombros tremeram. Kasom sorriu encabulado para a moça fula de raiva, pela qual sem dúvida sentia muito respeito.
Pigarreei discretamente, conforme convinha a um homem muito idoso.
— Seu monstro! — disse Mory e guardou a arma. — Será que o senhor só veio ao mundo para assustar seus semelhantes?
— Sou um exemplar único de homem — afirmou o ertruso e, satisfeito consigo mesmo, passou a mão direita pela faixa de cabelos cor de areia. Orgulhava-se bastante deste enfeite masculino ertruso. Sua maior mágoa era que as partes do crânio que tinham sido raspadas de ambos os lados da faixa mostravam sinais de um indesejável crescimento capilar.
— Acho que o senhor nunca soube o que é complexo de inferioridade.
— Por que haveria de saber, leoa de juba?
Mory fitou prolongadamente o gigante.
— E verdade. Por quê? Muito obrigada pela ajuda que me tem prestado, Melbar. Desde logo nomeio-o para o cargo de chefe de minha guarda pessoal em Plofos. Aceita?
Rhodan pigarreou. Kasom olhou para o chão. Parecia embaraçado.
— Faça o favor de não aliciar nossos melhores elementos — resmungou o terrano. — Por enquanto não estamos em casa e falta muito para a senhora ser a chefe do governo de Plofos. Ao que tudo indica, nunca será. O que foi que o senhor descobriu, Kasom? Receio que não estávamos em condições de ouvir seu relato.
Mory atirou os cabelos para a nuca, mediu Rhodan com um olhar gelado e saiu caminhando em direção à entrada da caverna. Uma vez lá, encostou o ombro na rocha e olhou para a planície, ficando acintosamente de costas para nós.
Rhodan sorriu. Parecia que não havia nada capaz de quebrar o orgulho dessa moça. Era uma pessoa formidável.
— “Será que você ainda consegue pensar de vez em quando?” — indagou o setor lógico de minha mente, bastante contrariado. — “Afinal, você tem dez mil anos nas costas, mesmo que tenha o aspecto de um terrano de trinta e cinco anos. Procure controlar-se.”
Suspirei instintivamente. Rhodan piscou os olhos para mim. Parecia ter interpretado corretamente meu olhar distraído.
Kasom logo iniciou seu relato.
— Cheguei a uma cratera no momento em que os pretos estavam descendo da nave.
— Os pretos? — perguntei.
— Sim senhor, os pretos. Foi o nome que eu lhes dei. No início pensei que usassem trajes protetores por causa das radiações. Mas não é nada disso. Suas vestimentas são armaduras do tipo que antigamente se usava na Terra. Na época da cavalaria, se não me

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