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Para uma semântica intencional + exercícios

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Décima quarta aula de semântica formal
Alessandro Boechat de Medeiros – alboechat@gmail.com
Para uma semântica Intensional
Até aqui, vimos que podemos calcular a extensão de uma expressão complexa a partir das extensões de suas partes passo a passo. Mas observem-se os exemplos a seguir:
João acredita que Maria é doida.
João acredita que Pedro é médico.
Suponha que as sentenças encaixadas sejam verdadeiras. Como as orações principais são iguais (“João acredita que...”), então, se as extensões das subordinadas são iguais, as extensões das sentenças inteiras são iguais; ou seja: se [[Maria é doida]] = [[Pedro é médico]] =1, então [[João acredita que Maria é doida]] = [[João acredita que Pedro é médico]] = 1. 
Mas essa previsão é obviamente errada.
Sentenças encaixadas sob o verbo acreditar (e outros tantos) são contextos não-extensionais. Há muitas palavras que criam contextos não-extensionais, como os verbos temer, esperar, etc.; preposições como sobre; conectivos como porque; modais de vários tipos: pode, deve, provavelmente, obviamente, etc.
Como lidamos com isso?
Lembremos da primeira aula, em que Frege discutia esses contextos opacos (ou, como chamamos agora, contextos não-extensionais). Ele dizia que, nesses casos, a referência era o sentido. Mas o que é o sentido? Frege nos diz que o sentido é o modo de apresentação da referência. Quais podem ser os modos de apresentação da referência? 
Vimos que é possível usar conjuntos, algoritmos, etc., para apresentar uma determinada referência. Rudolf Carnap, um aluno de Frege, propôs outra maneira de definir um modo de apresentação para uma referência. A verdade de uma expressão qualquer depende das circunstâncias. Por exemplo, é verdade que a Patrícia agora está no Rio de Janeiro, mas isso não será mais verdade daqui a pouco; e se as circunstâncias fossem outras (por exemplo, se tivéssemos cancelado nossa última aula), ela não teria talvez saído de Petrópolis. A extensão de um predicado, do mesmo modo, depende das circunstâncias. E assim para outras expressões linguísticas.
Formalizando, uma intensão (com “s” mesmo, pois não se trata da intenção de um falante, mas do sentido de uma expressão), no sentido carnapiano, seria uma função que relaciona um índice (que seria um empacotamento de vários fatores circunstanciais dos quais uma extensão pode depender) à extensão apropriada. Simplificando (deixando de lado a dependência em relação ao tempo, ao falante, etc.), vamos dizer que essa função relaciona mundos possíveis com as extensões apropriadas. Assim, a intensão de uma sentença é uma função que relaciona um valor-de-verdade a mundos possíveis; a intensão de um predicado de um lugar (por exemplo, um nome comum ou um verbo intransitivo) é uma função que relaciona mundos possíveis com funções características de conjuntos de indivíduos, etc.
Mas o que são mundos possíveis? Um trecho de um texto de David Lewis, retirado de Heim & Kratzer (1998), pode esclarecer:
The world we live in is a very inclusive thing. Every stick and every stone you have ever seen is part of it. And so are you and I. And so are the planet Earth, the solar system, the entire Milky Way, the remote galaxies we see through telescopes, and (if there are such things) all the bits of empty space between the stars and galaxies. There is nothing so far away from us as not to be part of our world. Anything at any distance at all is to be included. Likewise the world is inclusive in time. No long-gone ancient Romans, no long-gone pterodactyls, no long-gone primordial clouds of plasma are too far in the past, nor are the dead dark stars too far in the future, to be part of the same world. . . .
The way things are, at its most inclusive, means the way this entire world is. But things might have been different, in ever so many ways. This book of mine might have been finished on schedule. Or, had I not been such a commonsensical chap, I might be defending not only a plurality of possible worlds, but also a plurality of impossible worlds, whereof you speak truly by contradicting yourself. Or I might not have existed at all - neither myself, nor any counterpart of me. Or there might never have been any people. Or the physical constants might have had somewhat different values, incompatible with the emergence of life. Or there might have been altogether different laws of nature; and instead of electrons and quarks, there might have been alien particles, without charge or mass or spin but with alien physical properties that nothing in this world shares. There are ever so many ways that a world might be: and one of these many ways is the way that this world is.
Mas como formalizar essas coisas todas. Heim e Kratzer (1998) fornecem uma maneira de fazer aproveitando o formalismo já visto da semântica extensional. (Todas as definições abaixo foram retiradas de Heim & Kratzer (1998), capítulo 12.) Vamos começar com uma definição recursiva dos tipos semânticos:
e é um tipo.
t é um tipo.
Se a e b são tipos, então <a,b> é um tipo.
Se a é um tipo, então <s,a> é um tipo.
Nada mais é um tipo.
Com relação aos domínios semânticos:
Seja W o conjunto de todos os mundos possíveis. Associado a cada mundo possível w está o domínio de todos os indivíduos que existem em w. Seja D a união dos domínios de todos os mundos possíveis; isto é, D contém todos os indivíduos que existem no mundo real, mas também os indivíduos que existem em qualquer mundo possível. D é, pois, o conjunto de todos os indivíduos possíveis. O conjunto de domínios intensionais é agora definido como:
De = D
Dt = {0, 1}
Se a e b são tipos semânticos, então D<a,b> é o conjunto de todas as funções de Da em Db.
Se a é um tipo, então D<s,a> é o conjunto de todas as funções de W para Da.
Usaremos agora um índice que indica mundo possível (e outro que indica o assinalamento, quando for relevante) na representação da extensão de determinada expressão linguística. Assim, [[]]w,g. Nos casos em que o assinalamento não for relevante, [[]]w.
Para os nomes próprios (designadores rígidos), a referência ao mundo possível não modifica a extensão:
[[João]]w = João
Já para os predicados, a extensão será dependente das circunstâncias (do mundo possível considerado). Assim,
[[unicórnio]] = xe.x é um unicórnio em w
[[come]] = xe. ye.y come x em w
Determinantes (a menção ao mundo não modifica a extensão):
[[todo]]w = f<e,t>. g<e,t>.(x)[f(x) = 1 g(x) = 1]
Agora o interessante: como definimos semanticamente as expressões que criam contextos opacos ou não-extensionais? Tomemos verbos como acreditar e saber. Como seriam as definições semânticas de tais verbos?
[[acredita]]w = p<s,t>.xe.w’ W que é compatível com o que x acredita em w, p(w’) = 1.
[[sabe]]w = p<s,t>.xe.w’ W que é compatível com o que x sabe em w, p(w’) = 1.
Na definição, w pode fazer referência ao mundo real, por exemplo (mas não necessariamente). Assim, uma proposição p é verdadeira em w’, que é um mundo compatível com o mundo de crenças (ou de saberes) de uma determinada pessoa no mundo real (w).
Como estamos agora lidando com uma semântica que inclui as intensões, temos que redefinir aplicação funcional:
Aplicação funcional intensional
Se é um nó ramificante e {,} o conjunto de seus filhos, então, para um mundo possível qualquer w e um assinalamento a, se [[]]w,a é uma função cujo domínio contém w’.[[]]w’,a, então [[]]w,a = [[]]w,a(w’.[[]]w’,a)
Como então tratamos de sentenças como (1) e (2) do início da aula? Repetidas abaixo como (3) e (4):
João acredita que Maria é doida.
João acredita que Pedro é médico.
Tomemos (3):
	 [[S]] = 1 sse w’ W compatível com o que João acredita em w, Maria é doida em w’
 qp
João	 [[VP]] = xe.w’ W compatível com o que x acredita em w, Maria é doida em w’
		qp
	 V	 [[S’]] = 1 sse Maria é doida em w
	 acredita	 	 3
				 C	 [[S]] = 1 sse Maria é doida em w
			 quewy
				 Maria [[VP]] = xe.x é doida em w
					 3
					 V	 AP
					 é doida 
						xe.x é doida em w
Note-se que, para a frase (4), teríamos as seguintes condições de verdade: 
[[(4)]] = 1 sse w’ W compatível com o que João acredita em w, Pedro é médico em w’.
Agora não existe mais o problema apontado no início da aula. As sentenças não terão valores-de-verdade iguais se as subordinadas o tiverem. 
Última lista de exercícios
Tomemos a frase João não prendeu um passarinho. Essa frase é ambígua? Se sim, como seriam as formas lógicas possíveis para a sentença (use a lógica de predicados para responder a essa pergunta)? Assumindo que a definição da negação é f<e,t>.xe.f(x) = 0 e que, para resolvermos o problema da incompatibilidade do tipo semântico do quantificador generalizado com o domínio estabelecido pelo verbo em questão, alçamos o complemento e fazemos abstração de predicado, que leitura obtemos para a sentença? Se a sentença for ambígua, essa solução é satisfatória? Como conseguimos dar conta das diferentes leituras, se houver? (Sugestão: leia a seção 6,9 do livro do Marcelo para responder à última pergunta).
Considere a sentença “nem todo gramado é verde”. Como é a forma lógica dessa sentença (use a lógica de predicados). Suponha agora que “nem” seja um sintagma adjunto ao DP, como no esquema abaixo. Forneça uma extensão para o item lexical “nem”.
 S
 3
DP	 ......
			 3
			 Nem	 DP
				 3
				 D NP
				todo gramado
Quais são as condições de verdade que o sistema que desenvolvemos no nosso curso atribui para a frase “João não encontrou ninguém”? Essas condições são adequadas? Justifique (assuma que a entrada lexical “ninguém” tem a seguinte extensão: g<e,t>.(x)[x é uma pessoa g(x) = 1] .
Tome a sentença “João disse que Maria comeu uma pizza”. Há contextos não-extensionais aqui? Justifique (não é preciso fazer cálculo lambda).

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