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Vera Carvalho VIRGINIA E SEU LABIRINTO

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 VIRGÍNIA E SEU LABIRINTO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
autora: Vera Carvalho Assumpção 
 
e-mail: veraluck@terra.com.br 
 
 
 
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- Dona Virgínia aceita um café? 
Ouço a voz da empregada que excepcionalmente está sem o uniforme 
engomado e sinto-a mais humana. Sua expressão é tremendamente sombria. Fazendo 
um pequeno esforço, lembro-me do seu nome: 
- É uma ótima idéia, Luíza. - Tento esboçar um sorriso. 
Ela sai da sala e meus olhos voltam a se fixar num móvel escuro que é o 
piano. Creio que estou aqui há um longo tempo, na mesma posição, largada na 
poltrona da sala de música, talvez o único cômodo desta imensa casa que não se 
lembraram de revistar. O que acaba de ocorrer é inverossímil como um sonho. Com as 
idéias completamente desbaratadas, fico na poltrona com os olhos perdidos no piano, 
enquanto meus ouvidos captam uma ou outra palavra que o turbilhão de gente que 
transita pela casa vai tagarelando. E estas palavras, referentes a assassinato, suicídio e 
uma arma que não conseguem encontrar confundem minhas idéias. O que mais desejo 
no momento é que tudo não passe de um sonho, do qual possa despertar, esquecendo-o 
em seguida. 
Não é todos os dias que se sai de casa com o ânimo que saí hoje. Aliás, 
havia começado o dia com disposição para o melhor trabalho de minha vida. Passei a 
manhã costurando, caprichando como jamais fiz. O vestido de Maria Amélia tinha de 
estar perfeito! Embora desde garota minha profissão tenha sido a costura, este vestido 
era um desafio. Tinha de ser minha obra prima. Não só pela admiração que dedico a 
Maria Amélia mas, ter sido escolhida a modista das madrinhas do casamento de 
Tatiana Lima Albuquerque, abre-me uma porta para as damas da alta sociedade. E foi 
Maria Amélia quem me proporcionou esta oportunidade. Trabalhei até a hora do 
almoço, comi alguma coisa com minha mãe e meu filho, empacotei o vestido de forma 
a amassá-lo o mínimo possível e saí. Ao entrar no táxi, não pensava em outra coisa 
que não fosse ver o vestido cair com perfeição sobre o corpo de Maria Amélia. Mesmo 
sendo eu a costurar os vestidos das outras madrinhas, fazia questão que ela fosse a 
mais chique. Admiro-a de verdade e, apesar dela não ser alta e possuir medidas 
avantajadas, fiz o possível para que seus encantos fossem valorizados com a roupa. 
Para isto, gastei muitas horas de trabalho no desenho do modelo e outro tanto para 
executá-lo. Aparentemente estava como o imaginei. Era preciso vê-lo no corpo e 
confirmar as expectativas. 
Minha excitação era grande quando o táxi virou a esquina e foi se 
aproximando aqui da casa. Na rua, havia duas viaturas de polícia e carros parados dos 
dois lados. Sem cogitar que o ocorrido fosse exatamente na casa para a qual me 
dirigia, comentei com o chofer do táxi que provavelmente ocorrera um assalto. Ele 
falou qualquer coisa sobre a violência na cidade e até me aconselhou a retornar mais 
tarde. Muitas vezes havia tiroteios e os ladrões pegavam qualquer um como refém. 
Mas eu não podia nem pensar em retornar mais tarde. Precisava descer do táxi e ver o 
que havia. A confusão era exatamente onde estou agora: a casa de Raul e Maria 
Amélia. O portão estava aberto e, assim que o atravessei, senti um clima alucinado. O 
pressentimento de que algo terrível havia ocorrido impulsionou-me pelo jardim. Dona 
Odete, mãe de Maria Amélia, abriu a porta. Antes que eu pronunciasse uma única 
 
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palavra, segurou-me pelos ombros e, com um olhar atônito, afirmou que a filha estava 
morta. Minha primeira sensação foi de mal estar no ventre e nos joelhos, depois de 
irrealidade, de frio, de temor. Amassei contra o peito o pacote com o vestido para não 
desfalecer. Ela percebeu meu mal estar e segurou-me pelo braço. Respirei fundo, mas 
minha cabeça estava oca, sem condições de um único pensamento. Só então consegui 
olhar ao redor e me senti num verdadeiro circo. Não posso precisar, mas entre parentes 
e policiais, umas quarenta pessoas entravam e saíam, subiam e desciam as escadas, 
falavam sem parar, transportavam câmeras fotográficas e outros equipamentos. Era 
como se preparassem um grande espetáculo. Com a sensação de irrealidade tomando 
conta de mim, segui dona Odete até o quarto do casal. 
Ali, o tumulto era tão grande que titubeei antes de me decidir a entrar. 
Apesar da porta que dava para a sacada estar escancarada, um cheiro nauseabundo 
inundava o ar. Ao invés de deslumbrar Maria Amélia com o vestido, deparei-me com 
equipes fotografando corpos sobre a cama. Minhas pernas começaram a ceder, 
chegaram a vergar. Larguei o pacote com o vestido e me agarrei às maçanetas do 
armário para não morrer. Havia dois corpos sobre a cama. Um era o de Maria Amélia 
e o outro só poderia ser o de Raul! Oh! Deus! também Raul! 
- Ele matou a pobrezinha e se matou.- Dona Odete falou com tamanha 
naturalidade que eu encostei o rosto na porta do armário e mantive um único 
pensamento: não desmaiar. 
- Ainda não encontramos a arma! - Ouvi a voz tonitroar, mas não vi 
quem falou. 
Tomando fôlego, dei uns poucos passos em direção da cama. Os tiros 
haviam sido no rosto. Ambos estavam deformados. Os corpos não passavam de duas 
massas de carne sendo fotografadas por policiais. Não consegui me controlar, uma 
náusea tomou conta de mim, a visão turvou-se, as pernas cederam, desabei. Vendo-me 
no chão, os policiais praguejaram, mas pararam o trabalho com as câmeras e me 
socorreram. Mesmo com o quarto rodando diante dos meus olhos, ajudada por homens 
fortes, consegui me levantar. Ao sentir as pernas mais firmes, apoiada em dona Odete, 
vim para a sala de música. Ela me deixou, afirmando que providenciaria um café e 
retornou ao tumulto. Aqui, os parentes e policiais ainda não se lembraram de 
vasculhar, pois por toda a casa parece que não ficou pedra sobre pedra. 
Ouço o ruído de Luíza retornando e abro os olhos. O bule, o açucareiro 
e as xícaras estão sobre a bandeja de prata coberta por uma toalha de crochê 
engomada. Ela pergunta se quero açúcar ou adoçante. 
- Quero muito açúcar, e espero que o café esteja bem quente. - 
Respondo e ela me serve em silêncio. Engulo o café rapidamente. Reanimada pela 
quentura, estendo a xícara para que ela me sirva novamente. Luíza reenche minha 
xícara e senta-se ao meu lado. Reparo que sua expressão está abobalhada e ela deve 
pensar o mesmo de mim quando fala: 
- Eu também quase morri ao entrar no quarto! - Sua voz parece querer 
me confortar, mas ao mesmo tempo convencer a si mesma que tudo aconteceu de 
verdade. - Trabalho aqui há dez anos e nunca vi uma briga entre meus patrões. Jamais 
imaginei doutor Raul capaz de tamanha violência. ... - Ela balança a cabeça, olha 
para o chão. Seus olhos enchem-se de água. 
 
- Você sabe como as coisas aconteceram? - Pergunto. 
 
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- Não faço a menor idéia! - Luíza encolhe os ombros. - Fiquei toda a 
noite no meu quarto e não ouvi tiros e nem notei qualquer coisa diferente na casa a não 
ser hoje cedo. Meus patrões jamais se levantam tarde. Mesmo nos fins-de-semana ou 
depois de alguma festa, nunca os vi sair do quarto depois das oito. Outro detalhe 
estranho que percebi de manhã foi o quarto trancado. Hoje cedo, dona Odete e doutor 
Geraldo vieram aqui e também eles se espantaram ao saber que doutor Raul e dona 
Maria Amélia ainda estavam no quarto. Mas não fizeram coisa alguma. Sequer 
tentaram chamá-los! Foi só depois do meio-dia que Joãozinho apareceu com a 
namorada e me pediu para subir numa escada e entrar no quarto pela sacada. 
Emprestei a escada do vizinho porque não temos uma tão alta aqui em casa. Cheguei 
até a sacada e, sem pular a grade, empurrei a porta com uma vassoura. Vi os dois 
deitados, cobertos com o lençol. Pareciam estar dormindo, mas não despertaramcom 
meus gritos. Desci e falei que era melhor alguém arrombar a porta. Mas tanto 
Joãozinho como o doutor Geraldo acharam melhor chamar a polícia, pois poderia ser 
um assalto e o ladrão ainda estar dentro do quarto. Aí começou o tumulto. A polícia 
chegou em seguida, os guardas subiram pela escada que eu havia deixado encostada na 
sacada e encontraram os dois mortos, cobertos com o lençol. Parece que 
simultaneamente avisaram os parentes e amigos e todos vieram para cá. Desde então, 
formou-se este tumulto que a senhora está vendo! 
Luíza abre os braços numa demonstração de impotência. Seus olhos 
estão congestionados. Serve-se de café e o ingere. 
- E eu não paro de passar café! - Ela tenta sorrir, mas seus olhos não 
perdem o terror. 
- Não dá para acreditar! Não dá, não dá! - Sinto que minha voz é um 
profundo suspiro. Não sou capaz de reação alguma, nem chorar, nem perguntar-lhe 
mais sobre o que aconteceu. Encosto a cabeça no sofá e fecho os olhos, estou flutuante 
e remota. Cessa minha capacidade de análise. Qualquer pensamento me leva a uma 
periferia escura e assustadora, à beira de um vórtice negro de paranóia. 
Nem percebi quando Luíza saiu da sala. Provavelmente ela queria falar 
mais coisas a respeito da tragédia e eu não a ouvi. Na minha cabeça só há o desejo 
desesperado de que o que acabo de ver não tenha acontecido. Quero que as coisas 
sejam como antes. E, com o olhos semi cerrados, consigo imaginar-me sonhando. Sou 
arrancada deste torpor por passadas fortes que abalam a sala. Abro os olhos e me 
endireito na cadeira. Deparo-me com o porte arrogante, o rosto de gavião, os olhos 
penetrantes e a boca cínica de Geraldo, o irmão do morto. Sem rodeios ele determina 
que o motorista vai me levar para a casa, e nem dá tempo para que eu possa dizer que 
não é preciso, que posso voltar de táxi. Pega minha mão num cumprimento despedida 
com tal determinação, que mais me ajuda a levantar da cadeira do que me 
cumprimenta. Agradece a solidariedade puxando-me para a porta. Atrás dele está o 
motorista e não me resta nada além de acompanhá-lo. Como um touro desenfreado, ele 
vai abrindo caminho entre os parentes e policiais que circulam pela casa. Caminho 
trôpega. Ao levantar o olhar, deparo-me com uma sentinela no primeiro degrau da 
escada. Com o mesmo olhar arrogante de Geraldo, vejo doutor Pedro, tio de Maria 
Amélia. 
- Virgínia, o que você faz aqui nesta hora? - Mesmo no meio de todo o 
tumulto, consigo sentir-me lisonjeada por um advogado tão ilustre lembrar-se de meu 
nome. Deixo num canto da memória o tom de censura irônico de sua voz. 
 
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- Vim provar o vestido de Maria Amélia. - Balbucio. 
- Provar vestido numa hora destas! - Suas feições de raposa e seu rosto 
agudo têm um olhar de cobra disposto a penetrar-me o cérebro. 
- Eu não fazia a menor idéia de que estava ocorrendo esta tragédia. - A 
desculpa surge diante da sua expressão de incredulidade. Despeço-me. Pouco me 
importa sua opinião. 
No meio das pessoas que entram e saem, já quase na porta, vejo os dois 
filhos do casal morto: Joãozinho e Marcela. Uma onda de carinho por estes dois 
adolescentes indefesos me invade e eu os abraço em silêncio. Não encontro uma única 
palavra de conforto. Joãozinho está transfigurado e diz que não teve coragem de entrar 
no quarto e nem deixou a irmã fazê-lo. 
- Fez bem, - digo tentando recordar os rostos deformados pelos tiros. 
Estava tão chocada que não consegui fixá-los. 
Afasto-me. Geraldo está atrás de mim, aflito para se desencumbir da 
missão de me despachar. Caminho para o carro sentindo um distanciamento 
entorpecido. É como se as forças me faltassem até para acreditar. 
O motorista abre a porta do carro e eu sento no banco de trás. Só então 
lembro-me que havia deixado o vestido jogado no chão do quarto e sabe Deus onde 
andará. E afinal, que diferença pode fazer! O carro se põe em movimento e eu penso 
em Maria Amélia como a amiga que tanto me ajudou e não como um corpo sobre 
aquela cama. Ela não era uma mulher bonita, mas possuía alguma coisa, um charme 
que fazia com que as pessoas se aproximassem dela, que gostassem dela. 
- Descobriram os patrões mortos na hora do almoço, mas desde cedo 
alguma coisa estava estranha na casa. - O motorista fala e eu volto à realidade. Ele é 
um empregado que não dorme na casa. Vem todas as manhãs. - Ninguém bateu na 
porta do quarto, ninguém tentou acordar os patrões! Joãozinho já havia se levantado e 
ido para a casa da Marilu. Quando voltou, ele e o doutor Geraldo, ao invés de 
arrombarem a porta, preferiram chamar a polícia. Se bem que quando a polícia chegou 
já estava a família toda na casa, e os dois mortos desde a madrugada. Mesmo que 
tivessem aberto a porta antes, não havia o que fazer. Doutor Raul não era capaz de 
matar uma barata, como é que pôde matar a esposa! 
- Ouvi que estão procurando a arma e não conseguem encontrar. Será 
que não foi um assalto? - Pergunto e penso que faria mais sentido alguém ter matado 
os dois. 
- Os policiais falaram sobre isto. . . Mas, se ainda não roubaram, na 
mesa de cabeceira estão as jóias que dona Maria Amélia tirou antes de se deitar. Um 
ladrão não iria deixá-las ali! 
Ele lança-me um sorriso desesperado pelo espelho retrovisor e eu 
repito que tudo me parece inacreditável. Faço um esforço e não me recordo de nada 
além dos corpos. Sei que as jóias de Maria Amélia são valiosíssimas. Um ladrão não 
as desprezaria. Meus pensamento estão de tal forma confusos que tento desviar a 
atenção. Pela janela do carro vão passando as casas grandes e calmas que povoam o 
bairro. Vendo-as espalhadas no meio da vegetação, ninguém poderia imaginar que 
dentro delas possa ocorrer tamanha desgraça. As ruas são arborizadas. Não há muitas 
pessoas circulando, pois os proprietários das casas saem e entram de carro. Só os 
vigias aglomeram-se para saber do ocorrido. Apesar de eu ter nascido num bairro 
 
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pobre e ter tido de trabalhar desde pequena, sempre sonhei com riqueza, nunca me 
conformei em viver perto de gente pobre. Meu desejo é voar alto. 
Ao nos embrenharmos para os lados do meu ateliê somos detidos pelo 
tráfego da moçada que circula pela cidade nos sábados à tarde. Nosso carro está atrás 
de um ônibus municipal que lança fumaças nocivas com um rumor intestinal. Sinto 
uma sufocação e começo a tossir. O motorista me olha pelo retrovisor e esforça-se 
para sair de trás do ônibus, resmungando qualquer coisa sobre a ineficiência dos 
transportes coletivos. 
- A senhora parece muito chocada, - comenta. 
Vejo-o mirando-me pelo retrovisor. Deve estar impressionado com 
minha expressão. 
- Gostava muito de Maria Amélia, - confesso. - Aliás, tanto dela como 
do doutor Raul. 
Um calafrio me invade ao mencionar o nome de Raul. Sinto que até 
agora pensei somente em Maria Amélia. Alguma coisa me bloqueia a mente, me 
impede de pensar que também Raul está morto. Se não fosse isto, tenho certeza que já 
teria começado a gritar, esgoelando-me até o mundo sair de foco, até explodir! 
O motorista continua dirigindo na lentidão que o transito permite 
enquanto vai falando do santo homem que era doutor Raul e da santa mulher que era 
dona Maria Amélia, mas eu mal consigo fixar a atenção. O choque, meu pesar 
profundo e indescritível vão pressionando os limites da tolerância e de um controle 
que procuro desesperadamente manter. Raul, repito seu nome com o coração em carne 
viva. 
Finalmente o carro pára. O motorista desce para me abrir a porta, mas 
eu não consigo esperar. Saio do carro e encontro-o no gesto de pegar a maçaneta. 
Tomo-lhe a mão e agradeço, contendo o ímpeto de abraçá-lo e chorar no seu ombro 
todas as lágrimas do mundo. 
 
 
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2______________________ 
 
Entro no meu ateliê. Fecho a porta. Com o peso do corpo largado sobre 
a porta, sinto um tremendo alívio, comose pudesse ter deixado para fora todas as 
coisas ruins. Deve ser a sensação dos animais retornando à toca. Olhando a penumbra 
requintada que eu mesma criei, sinto recém despertar de um sonho. A tragédia não 
aconteceu! Consigo pensar e sentir um tremendo alívio. Ali estão os manequins 
brancos e carecas que vesti com roupas de festa e os acessórios espalhados por seus 
pés. Eles podem ser vistos tanto pelas pessoas que passam na rua e olham a vitrine, 
como as que entram e querem escolher um traje. De um lado tenho as prateleiras e 
araras com a linha prêt-à-porter. Do outro, a mesa onde desenho os modelos. Em 
frente há um sofá, duas poltronas e uma mesinha com figurinos. Uma parede branca 
separa a sala de provas. Mais ao fundo é a cozinha e, num salão que mandei construir 
no quintal, fica a oficina com as máquinas de costura e a mesa para cortar tecido. Nos 
últimos anos, aqui é o meu mundo. Desde que resolvi me estabelecer por conta 
própria, achei que deveria ser num lugar de classe para clientes endinheiradas. Minha 
mãe partilha plenamente dos meus planos. Alugamos este sobrado onde no andar de 
baixo é o ateliê e moro com ela e meu filho nos três quartos e banheiro do andar de 
cima. O trabalho não me assusta. Tenho disposição e ganância suficientes para fazer 
tudo o que faço. Minhas clientes não saem descontentes e a cada dia adquiro mais 
desenvoltura nos negócios. Conheci Maria Amélia por acaso, freqüentando o mesmo 
analista. Ela mencionou várias vezes que sentia meu potencial e, mais do que qualquer 
parente, fez muito por mim. Trouxe todas as suas amigas da alta sociedade para se 
vestirem aqui. O simples fato dela fazer o vestido para o casamento no meu ateliê 
atraiu as madrinhas da noiva e algumas convidadas. 
- Como foi a prova? - Ouvi a voz de minha mãe que vinha lá do fundo 
toda excitada, e até me assustei ao pensar que quando saí tudo girava em torno da 
expectativa do vestido. E ela entrou na sala com tal animação que não conseguiu 
reparar meu desespero até se aproximar. 
- Ah! mãe! - Foi o que consegui balbuciar antes de desencostar da porta 
e me atirar em seus braços. 
Aturdida com meu estado, ela me ampara e andamos até o sofá, onde 
sentamos. Seus olhos, que fizeram a pergunta brilhantes de excitação, mostram-se 
murchos de desapontamento. 
- Maria Amélia não gostou do vestido? - Sua voz sai trêmula. 
- Se fosse isto, era até capaz de estar me preparando para fazer outro. - 
Suspiro. - Mas ao invés disso, houve uma tragédia medonha! Parece inacreditável, 
mãe, mas ela e Raul estão mortos! 
- Mortos! - Minha mãe repete e sua expressão toma um ar de 
incredulidade. 
Para ela é ainda mais difícil de acreditar. Vejo sua mão com o dedal no 
indicador tapando-lhe a boca aberta. Arrependo-me de ter dado a notícia tão sem 
preâmbulos, mas realmente não me ocorreu outra forma de dizer. Passado o primeiro 
impacto, ela quer saber tudo, desde o começo. Conto-lhe tintim por tintim o que vi e 
ouvi em casa de Maria Amélia. Ela escuta em silêncio. Em seu rosto forma-se uma 
expressão monumental de horror e espanto. 
 
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- Não é fácil imaginar este tipo de tragédia acontecendo com gente rica 
e grã-fina! - Após um profundo silêncio, ela balança a cabeça. 
A expressão de horror e espanto vai se desmanchando e seu olhar 
assume um jeito meditativo. Um vinco profundo acentua-se entre suas sobrancelhas. 
Observo-a nesta pose. Apesar da falta de dinheiro em que vivemos a vida toda, minha 
mãe sempre foi uma mulher de classe. Seus cabelos acobreados, repartidos do lado, 
lisos e bem aparados abaixo das orelhas contribuem muito para sua boa aparência. 
Além do mais, ela jamais se descuidou do peso mantendo uma silhueta esbelta. Como 
eu, ela sempre sonhou com riqueza e alta sociedade. As amigas de Maria Amélia que 
freqüentam o ateliê a realizam. Recebe as grã-finas com a naturalidade de quem 
sempre viveu neste meio. 
- Com certeza foram assassinados por algum assaltante. - Ela sai da 
pose meditativa e volta a falar. 
- Para mim esta idéia faz muito mais sentido do que assassinato seguido 
de suicídio. Não pode me passar pela cabeça a idéia de Raul atirando em Maria 
Amélia e, em seguida, na própria cabeça! 
Estamos as duas sentadas, envoltas em pensamentos sombrios, quando 
Sandro entra na sala, deve estar vindo da oficina. 
- O que aconteceu para que vocês duas estejam com esta cara de 
enterro. - Ele fala com os trejeitos que faz sempre que quer nos cativar. - Animo, 
meninas, ânimo! Aposto que o drapeado do vestido de Maria Amélia a engordou e ela 
mandou arrancar! 
Sandro é meu ajudante desde que as coisas começaram a melhorar e eu 
e minha mãe já não dávamos conta do serviço. Mas somos amigos há muito mais 
tempo. Ele tem a garra do bom profissional. Além do que, os homens de sexo 
duvidoso agradam as madames. Sem que eu lhe peça, cada vez que atende uma cliente 
difícil faz todos os trejeitos que sabe, e acaba por cativar. E ele os faz agora para que 
eu e minha mãe comecemos a sorrir, como sempre acontece quando enfrentamos 
algum problema. 
- Será que alguém morreu? - Ele pergunta fazendo pilhéria, revirando 
seus olhos doces e imensos, longe de imaginar a tragédia que ocorreu. 
Resumo a história enquanto observo-lhe a expressão ir tomando um ar 
de incredulidade e espanto. Também ele não consegue conceber a carnificina que 
descrevo. 
- Vou apanhar umas folhas de erva-cidreira no quintal. - Minha mãe 
anuncia. - Ponha água no fogo. Vou fazer um chá para que nossos nervos tenham uma 
trégua. 
Eu e Sandro seguimos para a cozinha e, enquanto ponho a água no 
fogo, ele volta a falar: 
- E o casamento, e as roupas que começamos, os tecidos que você 
comprou? - Sandro perde os trejeitos saltitantes. Seus gestos ficam pesados. Um ar de 
preocupação anuvia-lhe o rosto. 
- Não faço a menor idéia do que vai acontecer! - Comento. - Como é 
que os preparativos para uma festa tão importante possa terminar em tamanha 
tragédia? 
Ele franze a testa e seus imensos olhos negros transmitem toda a aflição 
que o caso requer. Se as madames cancelarem as encomendas dos vestidos, nosso 
 
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prejuízo vai ser enorme. Mesmo ele sendo empregado e não sócio, sente na pele que as 
comissões não vão ser o que ele espera. Talvez também sofra por mim que já paguei 
por todo o tecido, isto sem falar da parte emocional! E Raul! Oh! Deus! Raul! Minha 
mãe entra com as folhas de erva-cidreira e coloca-as na água fervente. O cheiro do chá 
espalha-se pela cozinha. Como um bálsamo, envolve-nos trazendo um certo conforto. 
- Ah, dona Genoveva! - Sandro usa a expressão que sempre invoca para 
pedir ajuda de minha mãe nas situações difíceis. Seus olhos pousam nela com um 
misto de indagação e aflição. 
- Nesta altura, só um bom chá para entreter os nervos. - Ela fala 
tentando esboçar um sorriso. Traz a chaleira para a mesa.- Temos de esperar para ver 
no que vai dar a coisa toda. Enquanto isto só nos resta rezar. 
- Rezar, e muito! - Sandro confirma com a voz pesarosa. - Precisamos 
de orientação, de calma. Estou totalmente atônito! 
Coloco três xícaras sobre a mesa. Minha mãe serve o chá e eu o açúcar. 
Ingerimos a bebida bem quente enquanto ela e Sandro conjeturam sobre a tragédia. 
Escuto, e quanto mais ouço, mais irreais me parecem os fatos. Menos lógica parecem 
possuir. Mesmo com o chá que eu tanto gosto me trazendo algum conforto, não 
consigo sair do estado choque. É como se alguma coisa dentro de mim fosse explodir. 
A realidade me põe completamente aturdida. Minha mãe e Sandro possuem uma fé 
inabalável nos poderes dos seus santos protetores. Ouço-os combinando uma reza das 
fortes. Com certeza, ao cair da tarde, ela vai acender as velas nos pequenos altares que 
tem em seu quarto e vai pedir que as coisas se encaminhem da melhor maneira. Ela e 
Sandro rezarão em pontos diferentes da cidade,porém na mesma hora e com os 
mesmos apelos. Sandro termina o chá e se despede afirmando estar preocupado com 
minha indiferença. Preferia me ver chorosa e descabelada. Meu controle o assusta. 
Pede que eu os acompanhe na reza e avisa que no dia seguinte, apesar de ser domingo, 
virá trabalhar. Acha que é melhor continuar trabalhando como se o casamento fosse 
ocorrer. 
Observo Sandro partir. Ele está pesaroso. Seu corpo sempre lépido e 
saltitante, arrasta-se devagar. Seu ser exibe alguma coisa do ar estóico desta metrópole 
que se tornou triste, com o concreto enegrecido e as ruas sujas. Sandro fecha a porta e 
minha mãe anuncia que vai buscar Carlinhos. Ele passou a tarde na casa de um amigo. 
Minha mãe sobe e quando desce está penteada, com o batom retocado e os sapatos 
trocados. Esboça um sorriso antes de sair. Volta-se para mim e diz que se eu quiser me 
distrair, posso lavar os morangos que comprou na feira da manhã. Carlinhos vai gostar 
de comê-los ao chegar. Ela sai e eu vou para a cozinha. 
Encontro a caixa de morangos na geladeira e começo o serviço. Por 
mais que insista com minha mãe para que não vá à feira, por ser um serviço muito 
cansativo, não consigo convencê-la. Ela afirma que se diverte. Todo mundo ri, 
pechincha, prova as frutas, come pastel. Segundo ela, não há no mundo pastel melhor 
do que os da feira. Acredita que nos supermercados, somos uma pessoa anônima, 
pegando frutas embaladas e pagando para um caixa que não sabe o que é comércio, só 
registra preços. E tanto ela falou que acabou por me convencer que o comércio é um 
dos prazeres da vida tão naturais e gostosos como o ato de se apaixonar. Nas feiras ele 
ainda existe! Talvez ela tenha razão. Afinal, adoro negociar minhas roupas. De 
qualquer forma, graças às suas idas à feira, temos sempre frutas frescas. 
 
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Termino a lavagem e enfio um morango na boca. Ele desmancha-se aos 
poucos. Está delicioso! Deixo as frutas no escorredor e vou para a sala esperar dona 
Genoveva e Carlinhos. Sento, mas não penso na tragédia. Sandro tem razão. Eu 
mesma gostaria de ter uma reação mais violenta. Sinto os pensamentos e as emoções 
bloqueadas. Não sei o que vai ser de mim quando cair na real! Com a luz acobreada do 
entardecer entrando pelas vitrines, penso em minha mãe. Nós trabalhamos juntas há 
tanto tempo. . . Meu pai desapareceu numa noite chuvosa quando eu ainda era 
pequena, e sempre achei que foi um grande alívio. Minha mãe teve seus sonhos de 
melhorar na vida. Livrar-se de um homem que não almejava coisa alguma além de um 
copo de cerveja e uma televisão fez com que progredisse. Ela costurava para fora, 
depois comprou uma máquina especial e passou a fazer acabamentos para uma fábrica. 
Comprou outro tipo de máquina, contratou uma ajudante e passou a fornecer para 
alguns magazines e fábricas maiores. Quando eu tinha quinze anos, incentivou-me a 
tirar fotos para uma revista e, a partir deste trabalho, consegui vários outros. Ganhei 
dinheiro, mas infelizmente não encontrei alguém que se dispusesse a ser meu santo 
protetor. Como modelo, não fiz carreira longa, mas o que ganhei, junto ao que ela 
economizara deu para que comprássemos uma casinha. Enquanto ela continuava 
trabalhando em sua própria oficina, eu me empreguei em diversas fábricas de roupa. 
Aprendi muito até que me aventurasse a abrir o ateliê. E agora, tanto eu como ela nos 
realizamos vivendo no mundo da moda. Especialmente na alta-costura. 
Apesar de todas as adversidades da vida, minha mãe jamais se 
descuidou dos seus santos. Não diria que ela é religiosa, mas mística. Tem no seu 
quarto diversas imagens e reza para todas, mas sua devoção maior é para Santo 
Antônio e Yemanjá. Quando eu era pequena, lembro-me que ela não perdia a missa de 
domingo, mas com o tempo, decepcionou-se com os padres e concluiu que preferia se 
entender diretamente com seus santos. Hoje, ela e Sandro vão rezar. Este é o ponto em 
que eles melhor se combinam. Quando há algum problema, pedem aos seus santos a 
graça de abrandá-los. Diante desta tragédia, nem sei o que poderia pedir! Que se 
desvende o que ocorreu naquele quarto, creio que a polícia o fará em pouco tempo. 
Trazer Raul de volta é pedir o impossível! Sozinha na sala, observando a luz do dia 
que vai amainando, junto as mãos em oração e peço ao santo que estiver me ouvindo 
que perdoe as loucuras que Raul e Maria Amélia tenham cometido, e que lhes dê um 
caminho iluminado pela eternidade. Peço também que eu consiga viver num mundo 
sem Raul e que ele, onde quer que esteja, possa me dar forças para continuar! 
Espero meu filho e penso que no meio desse infortúnio, ver que a vida 
continua parece bizarro. Aqui em casa tudo está como sempre. Através das vitrines, 
observo o movimento na rua. As pessoas e os carros se movimentam exatamente como 
todos os sábados à tarde. A noite vai caindo com a calma de todos os dias. Ouço as 
risadas de Carlinhos. Ele e a avó chegam conversando. Assim que entra, corre para me 
dar um beijo. Sorrio. Aconchego-o quando está no meu colo. Ele fala da casa do 
amiguinho, da tarde gostosa que passou, das brincadeiras, do lanche com bolo e 
sorvete. Por um momento, me esqueço completamente da tragédia e deixo-me 
envolver por seu mundo. Encomendo uma pizza por telefone. Enquanto esperamos 
colocamos a toalha na mesa, os pratos, os talheres, preparamos um suco. 
Um garoto chega de bicicleta com a pizza quentinha. Comemos 
interessadas nas histórias de Carlinhos. Com a petulanciazinha dos seus sete anos, ele 
vai narrando as brincadeiras da tarde. Como ele e o amigo venceram os vilões 
 
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interplanetários com seus lasers que evaporavam tudo com um brilhante raio 
vermelho. Enquanto ajeito os pratos penso que seria tão bom ter vivido aquela tragédia 
como meu filho em seus brinquedos eletrônicos! Pura imaginação! 
 
 
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3______________________ 
Bem cedo na manhã escura do dia do enterro, desperto no meio de um 
sonho. O casamento estava se realizando e eu via Maria Amélia maravilhosa, trajando 
o vestido que eu fizera. Mas a seguir alguma coisa acontecia e o vestido começava a se 
desmanchar. As partes iam se desprendendo, esvoaçando. Desesperada, eu tentava 
catar os pedaços de pano, unindo-os sobre seu corpo alvo, mas não conseguia. Como 
uma imagem esverdeada de sonho eu me esforçava debalde. As pessoas ao nosso redor 
sorriam. Quando me voltei, disposta a avançar sobre os que começavam a rir às 
gargalhadas, despertei agitadíssima, empapada em suor. Reviro-me na cama, 
contemplo os dígitos iluminados do rádio-relógio: 5:10. Assustada que estou com as 
imagens do sonho, tenho certeza que não voltarei a adormecer. Havia um desespero 
muito grande no rosto de Maria Amélia. Fecho os olhos e tento revê-la exatamente 
como a vi no sonho. Era uma imagem agônica de alguém que precisa de ajuda. Meu 
Deus! Onde andará Maria Amélia e que ajuda eu poderia lhe dar? 
O suplício da noite anterior retorna nítido à minha mente. Carlinhos 
adormeceu e passei pelo quarto de minha mãe. Ela começava a rezar. As chamas das 
velas projetavam suas luzes movediças. As imagens de barro pareciam agitadas, como 
se estivessem simplesmente adormecidas pela magia, no meio de uma floresta em 
fogo. Encantada com o que via, porém com a cabeça vazia, não consegui me 
concentrar numa única oração. Mas fiquei ao lado de minha mãe, observando-a rezar 
em silêncio. Quando finalmente ela apagou as velas, fui ao banheiro me preparar para 
dormir. Foi então que a verdade finalmente caiu sobre mim e eu acreditei nela. Não 
consegui conter um acesso violento de lágrimas, no qual quase perdi a respiração. 
Sentei na privada e, com o rosto afundado numa toalha, chorei todas as lágrimas que 
não chorara desde que soube da tragédia. Simultaneamente surgiu uma dúvida que 
cresceu em proporções assustadoras. Qual teria sido minha contribuiçãopara o 
desfecho tão trágico? A pergunta martelava em minha cabeça enquanto se abatia sobre 
mim uma tempestade de pesar. O mundo desabava ao meu redor. Dentro de mim, algo 
sangrava sem parar. Eu usava a toalha para abafar meus suspiros alucinados. Raul, 
porque você fez isto Raul? Você era um homem maravilhoso. Tinha tudo o que se 
pode desejar da vida. Família, dinheiro, esposa, filhos, fazenda, avião. Até amante! O 
que poderia tê-lo levado a matar uma mulher como Maria Amélia? Os problemas dela 
eram bem diversos de um mau relacionamento com o marido. Aparentemente viviam 
bem. Ela jamais falou mal de Raul, e Raul jamais usou o chavão de se queixar da 
mulher. Por que ter de acabar nesta tragédia? Por quê? Com muitas perguntas 
martelando em minha cabeça, chorei até me sentir exausta. Só então fui para a cama e 
afundei num sono turbulento e cheio de sonhos. 
Apesar de me sentir aconchegada, envolta no cobertor quentinho, 
levanto-me da cama e vou ao banheiro. Examino-me no espelho. A noite deixou suas 
marcas. Meu rosto está inchado e os olhos vermelhos e irritados. Chorei demais! 
Enfio-me em baixo do chuveiro e deixo a água cair por longo tempo. Pego a bucha e 
me ensabôo com violência. Tento não pensar, mas a pergunta martela em minha 
cabeça. Até que ponto meu envolvimento com Raul, tinha a ver com toda aquela 
tragédia? Era preciso não pensar e esperar. Deixar-me flutuar numa semi-anestesia 
para não enlouquecer. Alguém iria ter uma explicação. Nesta altura talvez a polícia já 
 
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saiba exatamente o que ocorreu. Se foi assassinato seguido de suicídio, jamais se 
saberá os motivos. A dúvida continuará a me atormentar pelo resto dos meus dias. 
Mais um doloroso mistério como os tantos com que terei de conviver. 
Visto-me, seco o cabelo, passo creme no rosto, enfio-me num velho e 
confortável roupão e vou para a cozinha preparar o café. Sento-me sozinha, olhando a 
luz do amanhecer aumentar na superfície brilhante da mesa de fórmica, enquanto bebo 
uma xícara de café forte, quente e açucarado. De repente, sinto uma nova incisão de 
dor começando a cortar-me o corpo. Aquela tragédia não podia ter acontecido! Raul 
não pode estar morto! Será que não pensou em mim antes de cometer tamanha 
barbaridade! Será que não signifiquei coisa alguma para ele! A dor de perdê-lo é 
incomensurável. E o pior de tudo é que tenho de continuar vivendo. Trabalhando e 
ganhando dinheiro para sustentar a mim, minha mãe e meu filho. Não posso perder 
todos os vestidos do casamento de Tatiana! Já investimos nos tecidos, no material para 
o bordado. Se as madames cancelarem as encomendas, não sei como vou ajeitar as 
finanças! Para mim é fundamental que as roupas fiquem maravilhosas e que os jornais 
publiquem meu nome. Que muitas outras madames ricas se encantem com a modista e 
queiram ter vestidos confeccionados por mim! Como é que posso continuar desejando 
tudo isto se nem sei ao certo se o casamento vai se realizar! E se vier a ocorrer, onde 
arranjarei forças e inspiração para fazer os melhores vestidos de minha vida! Vou até o 
fogão e mais uma vez coloco café na xícara. A verdade é que não sei se conseguirei 
sobreviver sem Raul! Pelo menos a minha verdade tenho de admitir! Se ele não 
pensou em mim antes de cometer a loucura que dizem que cometeu, eu não faço outra 
coisa da vida que não seja pensar nele. Será que no meio de toda a investigação, que 
com certeza vai ocorrer, vão descobrir nosso relacionamento? Deus do céu! Até onde 
tudo isto vai me levar? 
Na tarde anterior à tragédia, Maria Amélia havia passado aqui no ateliê. 
Falamos sobre a festa do casamento. Mostrei-lhe os desenhos dos vestidos das outras 
madrinhas e ela até deu alguns palpites. Ninguém que engendrasse qualquer tipo de 
morte poderia estar tão eufórica. Ninguém que estivesse tendo brigas aterradoras com 
o marido poderia estar se preparando para uma festa como ela estava. Pois ela falava 
do terno dele, da gravata dele, dos sapatos dele. Por fim, ela viu seu vestido sendo 
montado e combinamos a prova para o dia seguinte. Afirmei que ela seria a madrinha 
mais chique e ela respondeu que era exatamente o que esperava. Ninguém assassina e 
se suicida sem um bom motivo. Uma barbaridade destas não se comete à toa! As 
lágrimas começam a se formar em meus olhos mas eu as contenho. Preciso estar em 
forma para o enterro. Não posso me apresentar com a cara mais chorosa do que o resto 
da família. 
Carlinhos e minha mãe se levantam. Ouço o barulho dos passos no 
andar de cima. Meu filho é o primeiro a descer. Não esquece o beijo de todas as 
manhãs e não estranha me ver com o rosto transtornado. Tento sorrir e me levanto para 
preparar-lhe o café. Tenho de me manter em pé, especialmente por ele. Observo-o 
devorando o pãozinho que esquentei e enchi de manteiga e geleia, mas não tenho 
coragem de falar. A tragédia parece ter criado um certo distanciamento entre eu e o 
mundo. Minha mãe desce em silêncio e tomamos café. O clima da tragédia parece ter 
envolvido até meu filho e nem ele tem assunto. O silêncio só é quebrado pelo barulho 
dos talheres e da louça. 
 
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A chegada de Sandro com o jornal traz um pouco de vida para dentro de 
casa. Seus trejeitos voltaram um pouco acanhados e ele mostra-me o jornal afirmando 
que toda a tragédia está ali. Tudo o que eu contara na tarde anterior estava no jornal. 
Não havia certeza de ter sido assassinato seguido de suicídio por que não conseguiam 
encontrar a arma. Para mim, seria um alívio saber que alguém de fora matou o casal. 
Pego o jornal e, antes de ler a notícia, assusto-me com as fotos. A da cama com os 
corpos não mostra coisa alguma além de um lençol branco. Ao lado estão os rostos de 
Raul e Maria Amélia tão jovens que mais parecem os próprios filhos. Por um 
momento as fotos me fazem pensar que não era o casal que conheci. Largo o jornal. 
Sandro mostra-o a dona Genoveva, comentando que os anos haviam deixado Maria 
Amélia mais charmosa. 
- Arrumaram uma foto em que ela mais parece uma colegial! - Sandro 
fala e minha mãe sorri concordando. - Raul tem a expressão de Carlinhos quando é 
repreendido na escola! 
- Não tinham vinte anos quando tiraram estas fotos! - Minha mãe 
conclui depois de ler a notícia. 
Calada, ouço Sandro e minha mãe fazerem todo o tipo de conjecturas. 
Leio diversas vezes a notícia e não encontro nada além do que ouvi no dia anterior. A 
arma não foi encontrada, o que elimina a hipótese de assassinato seguido de suicídio. 
O jornal avisa a hora do enterro. Seria só no fim da tarde. Apesar de ser domingo, 
passamos a manhã toda trabalhando. Concentro meu pensamento no serviço, não 
deixando que escape para a tragédia. Sandro está empenhado em me ajudar, em não 
me deixar sucumbir ao desespero. Fala o tempo todo que devemos adiantar o serviço. 
Se o casamento vier a se realizar, já teremos nos livrado dos compromissos e 
poderemos nos dedicar exclusivamente aos vestidos das madrinhas e convidadas. Ele 
acredita que a festa possa ser cancelada, mas a cerimônia na igreja deverá ocorrer. 
Acredita que não vamos perder as encomendas. 
Almoçamos e vou para o quarto me aprontar para o enterro. Apesar do 
cataclismo que sinto nas entranhas, continuo sendo uma modista e preciso me 
apresentar como tal. Quero chegar um pouco mais cedo e conversar com Joãozinho e 
Marcela. Eles têm de saber alguma coisa a mais. Se os pais estavam brigando, com 
certeza presenciavam. Apesar dos dois terem gênios difíceis e Maria Amélia 
queixar-se amargamente do relacionamento com os filhos, eles não poderiam viver na 
mesma casa sem saber o que estava ocorrendo. Ou será que podiam? Sentada na cama, 
penso na figura insignificante de Marcela. Parecida com a mãe, mas sem carisma, sem 
charme. Maria Amélia tivera um péssimo relacionamento com a própria mãe e 
pretendia relacionar-se bem com os filhos, especialmente com a filha.Falhou. Marcela 
a enfrentava em tudo, transformando-se num dos seus desafios diários. Segundo falava 
no grupo de análise, por mais que fizesse, a filha arranjava motivos para se revoltar e 
para criticá-la ininterruptamente. Havia uma constante irritação no relacionamento 
com os filhos. Relembro-me da figura cinzenta de Marcela no dia anterior, e lamento 
que ela tivesse o dom de infernizar a vida da mãe. Não sei por onde começarei a 
conversar com ela. Se souber que a mãe se queixava é capaz de odiá-la mesmo depois 
de enterrada. Os relacionamentos familiares são sempre complicados. Levanto-me, 
termino de me pentear. Tenho de ter coragem. Não posso perder mais tempo ou não 
chegarei para o enterro. 
 
 
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O velório está apinhado de gente. Não foi fácil atravessar os grupos que 
se formam do lado de fora e entrar na sala. Dirijo-me diretamente aos caixões. Quero 
despedir-me de Maria Amélia. Quero ver pela última vez o rosto tão querido de Raul. 
Nos velórios, o progresso da decomposição faz com que o morto recupere 
magicamente suas faces anteriores. Quero ver a face de Raul, que tanto me inquietou, 
cheia da autoridade imposta pelo orgulho e pelo dinheiro. Aproximo-me devagar, 
esforçando-me para não sucumbir. Estou de tal forma abalada que tenho certeza que 
não vou cair em prantos. Mas ao invés de corpos cobertos de flores e rostos queridos, 
deparo-me com caixões lacrados. Não se pode ver os defuntos. Sinto-me desamparada 
entre os dois ataúdes. Imagino os tantos exames que fizeram nos corpos e a 
possibilidade de terem deformado ainda mais seus rostos. Com certeza arrancaram as 
balas do cérebro. Recordo-me do tempo em que era criança e os velórios ocorriam nas 
casas. Quando havia algum pelas redondezas, eu sempre arranjava um jeito de entrar e 
me aproximar do caixão para ver o defunto. O morto com cara de cera e envolto nas 
flores me fascinava. Sabia que passaria algumas noites aterrada pela imagem, mas 
talvez fosse exatamente isto a me atrair tanto. Será que nem esta visão me é permitida! 
Fecho os olhos e imagino o estado que devem estar seus rostos para que os caixões 
tenham sido lacrados. Talvez seja melhor nem vê-los e guardar a lembrança deles 
inteiros. O cheiro das coroas de flores é tão forte que começo a me sentir mal e resolvo 
sair para tomar ar. Mas ao voltar, deparo-me com Joãozinho e Marcela sentados no 
canto da sala e fico estarrecida como eles se parecem às fotos do jornal. Marcela chora 
ininterruptamente, mas Joãozinho parece o mais abalado. Chego-me a eles, abraço-os 
na esperança de que possam me esclarecer todo o mistério, mas eles estão calados e 
não me ocorre uma boa pergunta. Envolta num emaranhado de indomáveis cabelos 
negros, Marcela tem uma expressão tremendamente vulnerável. Não consegue 
interromper as lágrimas. Será que depois de tanta revolta e irritação, está realmente 
sentida pela morte dos pais? 
- Cuidado com a imprensa! - Joãozinho adverte. - Eles estão revirando 
nossas vidas! 
Seus olhos estão tremendamente vermelhos e irritados. A princípio 
penso que chorou muito, mas depois lembro-me do grupo de psicanálise e conjeturo 
que talvez esteja em uma de suas "viagens". Sento-me ao lado de Marcela e ela me 
abraça, pega minha mão. Os contatos físicos sempre me dão um arrepio, mas passado 
este primeiro impacto, sinto que ela precisa imensamente de carinho e apoio. A família 
e os amigos estão de tal forma alvoroçados que talvez seja eu a única pessoa 
disponível para este gesto. Seu corpo está arcado num espasmo de agonia. Será que, 
como eu, ela também sente que de alguma forma colaborou com a tragédia? 
Conheci Maria Amélia há uns quatro anos quando me divorciei e 
procurei um psicanalista. Foi uma época da minha vida em que precisava de um 
confessor. Alguém para quem eu pudesse falar com o coração em carne viva, 
despejando todas as mágoas e anseios. Dr. Roberto foi esta tábua de salvação. E foi no 
primeiro grupo do qual participei, que conheci Maria Amélia. Ela estava desesperada 
por causa de Joãozinho. Apesar de seus esforços para que os filhos tivessem uma vida 
normal, ele havia enveredado pelos caminhos da droga. Ao perceber, ela desabou. 
Também ela precisava de um confessor, talvez mais até do que eu. Dr. Roberto 
cumpriu seu papel. 
 
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Ela se queixava que no colégio jamais mencionaram o problema da 
droga. Chamavam-na porque o menino não ia bem nos estudos, falavam que ele estava 
a cada dia mais desatento e desinteressado, mas por não ter experiência ela não 
conseguia atinar o por quê. Conversava com ele, dava conselhos, e nada. Partia para 
brigas e repreensões que tampouco davam resultado. Chegou a ir a diversos 
oftalmologistas acreditando que a poluição causava uma conjuntivite crônica no 
menino. Algum tipo de alergia que lhe deixava os olhos embriagados. Foi só quando a 
polícia entrou em cena que ela soube exatamente o problema do filho. Joãozinho foi 
pego fumando maconha, e ao invés de prendê-lo a polícia o levou para a casa. Ela 
agradecia o gesto, pois pela primeira vez alguém explicava-lhe o problema real de seu 
filho, sem subterfúgios. 
Consciente da realidade, ela sentiu-se enlouquecer, mas passado o 
primeiro impacto, achou que era hora de ajudar o filho, de ser solidária a ele. 
Armou-se de todos os argumentos e conversou com Joãozinho como se fosse uma 
colega, uma amiga. Ele acatou-lhe todos os pontos de vista e ela ficou radiante 
acreditando que tivesse vencido a batalha assim facilmente. Joãozinho devia ter uns 
treze anos. Desde então, pelo menos uma vez por mês, ele era pego se drogando. E ela 
foi desacreditando a possibilidade de reabilitá-lo. Começou daí a tortura psicológica de 
Maria Amélia. Um dos grandes problemas era não conseguir admitir que falhara 
completamente na missão de educar filhos. Ela chegava a mencionar que quando se 
casara, parara de trabalhar fora porque acreditava que uma dona de casa tinha uma das 
missões mais importantes da sociedade, que era formar criaturas íntegras. O filho 
maconheiro arrasava-lhe os ideais. Tudo o que ela havia planejado para a vida dele 
vinha por terra. E ele foi ficando agressivo e não queria absolutamente saber de estudo 
ou trabalho. Obviamente sem dispensar o carro e o dinheiro. Ela tentava esconder o 
problema das amigas e dos parentes. Desculpava os desligamentos do rapaz como 
crises da adolescência, ou pior, afirmando que ele era um gênio, que seu Q.I. era 
altíssimo e não conseguia se adaptar. Quando a conheci, ela vivia num clima de terror. 
Ao mesmo tempo em que se culpava por ter falhado no que julgava "a missão" de sua 
vida, fazia o possível para esconder os problemas da própria mãe e dos amigos e 
parentes. Por vezes eu ficava na dúvida se o que mais a perturbava era o problema em 
si ou a possibilidade de dona Odete vir a descobrir. Com o correr do tempo e da 
terapia ela foi aceitando. Quando nos tornamos amigas, o terapeuta nos separou de 
grupo e então ela não tocou mais neste assunto comigo. Por cortesia, eu 
perguntava-lhe sobre os filhos. Ela devia representar como representava para todas as 
outras pessoas e afirmava que iam bem e até contava algumas coisas importantes que 
estavam fazendo, especialmente os rasgos de genialidade de Joãozinho. Observando-o 
ao lado do caixão dos pais, vejo-o profundamente abalado. Ele sai da sala por uns 
momentos, mas retorna para consolar-se com a irmã. Apesar das desavenças de 
adolescentes das quais Maria Amélia se queixara, nesta hora os dois parecem tirar 
forças um do outro. Observo-os, mas não comento coisa alguma. Talvez seja melhor 
esperar e ver o que descobrem nos próximos dias. É provável que nenhum dos dois 
seja capaz de me informar algo além do que já sei. 
Um padre entra na sala do velório e as pessoas de fora se aproximam. 
Nós nos colocamos em pé. Marcela solta minha mão e sinto um certo alívio. Enquanto 
o padrebalbucia umas orações que eu mal entendo, o odor das flores misturado ao do 
aglomerado dos corpos vai criando um clima de sufocação. Noto que os lábios de 
 
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Marcela vão ficando muito brancos. Antes mesmo que eu pergunte se sente-se bem, 
ela desaba devagarinho. Joãozinho e eu a amparamos e a deitamos no sofá. O padre 
apressa a oração. Alguns parentes abrem lugar no aglomerado de pessoas, tentam se 
aproximar. Afirmam que é bom abaixar a cabeça, tomar ar fresco, sair daquele clima. 
Faço o possível. Marcela se reanima. É a hora do enterro. Não é fácil sair da sala 
abafada. As pessoas se alvoroçam. Uma tragédia destas estimula interesses sórdidos 
em muita gente. Estavam ali colegas, amigos, vizinhos e parentes para observar o ato 
final daquela tristeza toda, com seus olhares cheios de uma curiosidade meio mórbida. 
Qual seria a verdadeira história? Há astutas maquinações formando-se por trás de 
olhos mortiferamente curiosos. Vejo gente importantíssima disputando a glória de 
carregar os ataúdes lacrados. Vou amparando Marcela na turba atrás do féretro. Depois 
de ajudar a acomodar o caixão dos pais nos carros funerários, Joãozinho vai buscar o 
carro e, assim que chega, eu e Marcela entramos. 
- Não encontraram a arma? - Pergunto durante o trajeto. 
- Tenho certeza de que o que houve com meus pais foi assassinato 
seguido de suicídio, só que a arma desapareceu. - A voz de Joãozinho é pesarosa. 
Apesar de ter mil perguntas para fazer a ele, limito-me a observar sua 
face rígida pelo sofrimento. 
- Vocês não encontraram nenhum bilhete? - Pergunto assim que me 
surge a idéia. - Às vezes os suicidas deixam algo escrito! 
Joãozinho limita-se a me olhar com estupefação. Fico quieta. É a 
primeira vez que me surge a idéia de bilhete. Alguma forma de comunicação, por 
menos razoável que fosse, era um rasgo de esperança. Mas se Joãozinho sequer 
respondeu é porque não havia bilhete. 
No cemitério continuo amparando Marcela, mas aproximam-se as tias e 
a avó. Parece que se lembraram de Marcela, da fragilidade da sua adolescência. 
Abraçam-na e vão andando juntas atrás dos caixões. Espero um pouco e sigo depois 
que todos já passaram. De repente, a mágoa, o choque, a força penetrante da visão do 
enterro, meu pesar profundo e indescritível afloram e mais uma vez pressionam os 
limites da tolerância e de um controle que procuro desesperadamente manter. 
Argumento comigo mesma. Não assistirei ao ato dos caixões encerrarem-se na tumba. 
Há trabalho a fazer no ateliê. Há gente até demais para se comprimir ao redor do 
túmulo, derramando lágrimas por mais uma das intermináveis desolações da vida. Ao 
voltar-me para a porta do cemitério, sinto que um pedaço de mim enterra-se ali. Meus 
saltos ecoam pelas alamedas e começo a correr em direção da saída. Não consigo 
conter as lágrimas. Por sorte logo na porta encontro um táxi. 
 
 
 
 
 
 
 
 
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 4_____________________ 
 
 
O ateliê está com um ar bizarro de calamidade, de desamparo. Está 
completamente vazio. Sandro já se foi e minha mãe deve estar em algum parque com 
Carlinhos. Parece que foi encomendado, pois a coisa que mais quero no momento é 
ficar sozinha. A visão de um casal tão amigo, que brilhava na alta sociedade, passando 
por tamanha tragédia e afundando na sepultura perturba-me até a medula dos ossos. 
Tanto desejei ser como Maria Amélia! Sua vida era exatamente a que sonhei. Boas 
amizades, boas comidas, bons carros, boas roupas, freqüentando lugares badalados. . . 
E um marido fantástico! No entanto, fui me casar com um borra-botas cujo único 
sonho era ganhar o suficiente para poder assistir jogo de futebol tomando cerveja com 
a carcaça esparramada num sofá confortável. Carlos para mim sempre foi o Caco. E 
nem fui eu quem lhe pôs o apelido. Quando o conheci já veio com ele! Apaixonada 
que estava, não percebi o porque de Caco. Minha mãe e minhas amigas não paravam 
de afirmar que ele era bom, trabalhador, de boa família. Tivemos uma lua-de-mel, 
talvez tenhamos vivido um ano sem discussões. Mas antes disto eu já havia percebido 
que as qualidades do Caco não eram suficientes para mim! 
 
 Sempre tive um bom relacionamento com minha mãe mas, na época, 
me irritava profundamente ouvi-la enumerar as qualidades de Caco. Apesar dela ter 
vivido a mesma situação com meu pai, era da opinião que eu devia agradecer a Deus 
por ter um marido bom, trabalhador, que não me traía. Eu concordava, mas queria 
mais da vida. Teria sido fácil centrar minha vida em torno da cozinha e do quarto de 
Carlinhos, vestida num roupão confortável, fazendo comidinhas especiais para os dois 
e me deitando e assistindo televisão nas horas de folga. Talvez a maioria das mulheres 
não espere muito mais da vida. Mas para mim além de não bastar, seria profundamente 
entediante. Nunca fui capaz de pensar nos famintos e agradecer a Deus por ter um 
prato de comida! Sempre olhei em direção dos que comem caviar e bebem champanhe 
francês! Quando eu e Caco resolvemos nos divorciar, eu trabalhava numa confecção 
de roupas para senhoras. Apesar do minguado salário, não titubeei em marcar consulta 
com um psicanalista. Precisava de alguém que me ouvisse e acreditasse que, mesmo 
havendo coisas bem piores no mundo, era-me impossível viver com um homem sem 
ambição. Precisava de alguém que me desse razão e doutor Roberto foi esta pessoa. 
Tanto Caco como minha mãe tentaram me levar para a igreja que 
freqüentavam na época e não conseguiram. Acredito em Deus, mas também acredito 
que se quero um destino melhor tenho de batalhar por ele. E no caso de Caco, não era 
uma questão de perdoar e começar de novo. Não havia do que o perdoar! Sabia que 
jamais iria criar-lhe ambição ou gosto pelas coisas boas. Ele queria uma mulher que 
não só renunciasse ao nome de solteira, mas à própria identidade. Queria uma 
empregada que mantivesse a casa limpa e fizesse umas comidinhas cheirosas e que de 
tempos em tempos fosse com ele para a cama. Eu jamais me prestaria a isto. Sei 
também que não há reza que crie ambição num homem que nasceu sem ela. Nos 
separamos sem brigas e quando ele vem buscar Carlinhos nos fins de semana, 
conversamos amigavelmente. Não tenho ressentimentos. Ele casou-se novamente e 
está feliz porque sua nova esposa é o que eu nunca fui: uma governanta mal paga. 
 
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Foi freqüentando o psicanalista que conheci Maria Amélia. 
Identifiquei-me com ela no primeiro dia que a ouvi falando no grupo. Só que no caso 
dela, não era o marido o problema maior. Os filhos a atormentavam de tal forma, que 
não havia espaço para ele. Ela era cheia de ambições para o filho que, segundo ela, não 
queria nada além do que fumar maconha e andar metido com uma turma de 
desqualificados. Ela sonhava com que ele enfrentasse os desafios da realidade, 
estudando, falando inglês, envolvendo-se em negócios internacionais. Ele se 
contentava em partir para viagens químicas, onde não tivesse que assumir coisa 
alguma da realidade. Maria Amélia sentia-se enlouquecer. Ainda havia Marcela que 
vivia uma eterna crise, revoltada com tudo. No grupo, embora jamais perdesse a 
compostura ou deixasse de estar elegante, a fala de Maria Amélia era sempre 
dramática. Afirmava que se não fosse por doutor Roberto, que lhe agüentava os 
desabafos, já teria perdido o juízo. Outro problema que enfrentava era a própria mãe 
que vivia como um urubu na carniça, tentando descobrir-lhe os erros para penalizá-la 
com falatórios mais do que a penalizavam os próprios problemas. O dinheiro, creio 
que nasceu com ele, e jamais soube o que era ser pobre, mas de qualquer forma, não 
lhe trazia felicidade. Eu ambicionava criar meu próprio negócio, ter condições de 
freqüentar bons lugares, ter clientes da alta sociedade. Falava no grupo sobre minha 
separação de um homem que se contentava comum copo de cerveja e um jogo de 
futebol na televisão. Falava da minha luta para aceitar o fato de ter me entregado a um 
homem em troca de uma segurança que não passou de uma ilusão de noiva. E apesar 
de tudo, enfrentava o trauma da separação e as dificuldades de ser novamente dona do 
meu nariz. 
Tanto eu como Maria Amélia vivíamos com o peso esmagador de uma 
carga que necessitávamos compartilhar e só doutor Roberto merecia tal confiança. 
Além de freqüentar o grupo, ela também se anestesiava. Comia e bebia como uma 
alucinada, como se fosse capaz de engolir os problemas. Passava então pelos médicos 
endocrinologistas do momento, fazendo todo o tipo de dietas, sem jamais emagrecer. 
Eu não me deixei engordar como a maioria das mulheres que não tem mais esperança 
de que as coisas dolorosas melhorem. Sempre acreditei que a vida poderia apresentar 
surpresas e era preciso estar em forma para recebê-las. A terapia não nos curou nem 
resolveu nossos problemas, mas reduziu-os a proporções mais humanas. Consegui 
montar o ateliê. Não sei se ela conseguiu alguma coisa com os filhos porque ficamos 
tão amigas que doutor Roberto nos colocou em grupos separados. O que foi muito 
bom porque meu relacionamento com ela acabou por envolver Raul. A princípio só 
nos encontrávamos no consultório. Era nítida sua classe e sua riqueza, e eu tinha 
vergonha de encontrar-me com ela e acabar por ter de convidá-la para ir à minha casa. 
Mas consegui o ateliê e então as coisas ficaram mais fáceis. Para ela, ajudar-me 
parecia a coisa mais natural do mundo. Era rara a semana que não aparecesse com uma 
nova amiga, e não se cansava de mencionar a boa qualidade dos meus serviços. 
Quando lhe agradecia, afirmava que eu tinha potencial. Valia a pena investir! O 
casamento de Tatiana, que nem sei se vai se realizar, seria a oportunidade de mostrar 
meus serviços para mais um grupo de pessoas ricas e de bom gosto. 
Foi na época em que eu recém havia inaugurado o ateliê que Maria 
Amélia me convidou para passar um fim-de-semana em sua fazenda. O mesmo 
motorista que me trouxe depois da tragédia, me apanhou e me levou ao aeroporto. Eu 
havia encontrado Raul umas poucas vezes, mas não tinha intimidade. Não posso 
 
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deixar de admitir que o cobicei desde a primeira vez que o vi. Ele era um homem de 
quase cinqüenta anos, moreno, alto, charmoso, não tinha nada a ver com a foto de 
moleque que publicaram no jornal. A viagem à fazenda foi uma das boas coisas que 
me aconteceram na vida. Só que ao retornar, tive de pedir ao doutor Roberto que me 
ouvisse numa sessão extra. Retornei com um misto de euforia e sentimento de culpa. 
- Você está apaixonada pelo marido da amiga que mais fez por você! - 
Ele afirmou mesmo antes que lhe contasse todos os fatos. 
Naquela tarde em que fomos para a fazenda eu estava excitadíssima. 
Mesmo com todos os sonhos de grandeza, voar num avião particular ainda não fazia 
parte das minhas ambições. E tanto Maria Amélia como Raul se encantaram com meu 
deslumbramento. A viagem foi longa. Eles me mostraram cada ponto importante que 
sobrevoávamos. Lá em baixo era um quadriculado de diversos tons de verde e, pela 
cor, Raul sabia exatamente o que estava plantado. Depois vieram os pastos, as boiadas 
e o pantanal. Lá em cima, com um sol que iluminava e fazia brilhar tudo o que havia 
no solo, eu me sentia atordoada. Cada vez que Raul se chegava a mim, explicando e 
mostrando o que víamos das alturas, eu estremecia com o calor da sua voz. Talvez eu 
tentasse me convencer que aqueles estremecimentos eram por jamais ter concebido as 
quantas delícias a vida oferece para quem tem dinheiro. Mas quando meus olhos 
encontravam-se com os dele, um suor glacial umedecia-me as mãos. Sentia que o 
momento era importante, a emoção inebriante, o sentimento profundo, no entanto, 
tudo inalcançável. Já bem próximos da fazenda, Raul me mostrou o começo da selva, 
as seringueiras e o rio Mamoré. A água barrenta cheia de reflexos bronzeados do sol 
era um caminho na mata. 
Raul pediu ao piloto que sobrevoasse a fazenda a fim de avisar o 
administrador da nossa chegada, e Maria Amélia aproveitou para mostrar a boiada. 
Orgulhosa do fato, contou que haviam desmatado um bom trecho para criar gado e fez 
questão de afirmar que os animais eram sua maior fonte de renda. Apesar do vazio nas 
entranhas por causa das manobras do avião, observei tudo. Aterrissamos quando o sol 
já era uma imensa bola de fogo que fugia rapidamente para trás das montanhas. O 
administrador estava nos esperando com um jipe. Subimos e ele dirigiu-o por uma 
estradinha de terra. O ar iluminado pelo sol do fim da tarde envolvia a paisagem e 
fazia com que parecesse o cenário de um sonho. A brisa trazia o ar denso de mata e 
rio. Paramos em frente ao jardim florido. Passamos pela piscina e entramos na casa 
que era enorme, de uma simplicidade requintadíssima. Para cada lado que eu olhava, 
não podia deixar de elogiar o gosto de Maria Amélia. Não havia um único recanto que 
não tivesse sido pensado. Ela acompanhou-me até um dos quartos de hóspedes e Raul 
veio atrás, carregando minha mala. Avisaram-me que teriam convidados para jantar e 
foram para próprio quarto. Atirei-me na imensa cama de casal, inebriada. Era tudo tão 
maravilhoso que nem parecia realidade. Desde que me separara de Caco, não havia 
conhecido outro homem que valesse a pena. Com meu empenho no trabalho, não tinha 
tempo para procurá-los. Tampouco queria dar a impressão de que estava desesperada 
para ir para a cama com qualquer um, como ocorre com a maioria das desquitadas. 
Mas a voz quente de Raul havia tocado fundo minhas entranhas. Fui até a janela, 
empurrei as venezianas e olhei as estrelas que começavam a pipocar no céu. O luar 
clareava a noite. O barulho da mata, a fúria dos grilos penetravam todo o meu ser. 
Naquele instante me senti num mundo talhado para a gestação dos sonhos, um mundo 
vasto e limitado pela selva, pelo rio. Mas não poderia me deixar perder em 
 
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pensamentos. O homem maravilhoso que encantava estes sonhos era marido de uma 
grande amiga. Desarrumei a mala, fui para o banheiro, tomei um banho e me aprontei 
com capricho para o jantar, para Raul. 
Aos poucos, foram chegando os amigos e parentes que viviam na 
cidade encostada à fazenda. Havia diversas empregadas, e mesmo estando numa 
fazenda, desempenhavam suas funções bem ao estilo de Maria Amélia. Todas 
uniformizadas e servindo aperitivos muito gostosos em bandejas de prata com 
toalhinhas engomadas. Eu não me cansava de olhar para tudo, cheia de admiração. Por 
várias vezes Raul chegou-se a mim, apresentou-me como amiga e teceu elogios quanto 
ao meu talento para a moda. Suas palavras enalteciam-me o ego e, como o barulho da 
mata, penetravam-me todo o ser. Ele apresentou-me a uma de suas primas, Daisy, 
dona de uma butique na cidade. Logo nos entrosamos. Muito simpática e agitada, ela 
não parava de afirmar que adorava quando Maria Amélia vinha para a fazenda. Além 
dos quitutes diferentes e requintados, era uma oportunidade de reunir a família e os 
amigos que não fosse numa mesa de carteado. Daisy adorou a calça e a blusa que eu 
vestia. Combinamos que lhe enviaria os desenhos da minha linha prêt-à- porter a fim 
de que escolhesse algumas peças para sua butique. A reunião seguia e por diversas 
vezes Raul veio reencher nossos copos de vinho. Cada uma destas vezes ele pôs as 
mãos nas minhas costas. Acreditei ser um gesto de pura amizade, pois ele o fazia com 
outras pessoas. Talvez os outros não sentissem, mas para mim, o gesto de segurar-me 
o ombro sobre a blusa de seda causava um calafrio, um tremor nos joelhos, um abalo 
no abdome. Eu fitava meus próprios pés, fazendo o possível para que não percebessem 
minha comoção. 
As empregadas trouxeram as comidas para a mesa e os convidados 
foram se aproximando e se servindo. Daisy explicou-mea vida e os hábitos de cada 
peixe dos rios da região e que estavam ali cozidos com muito capricho. Não havia 
quem não revirasse os olhos de gosto ao mastigar a peixada com pirão. Talvez o fato 
de tentar resistir à paixão fizesse com que eu não fixasse as outras pessoas e só ouvisse 
Daisy repetir que adorava quando Maria Amélia estava na fazenda. A única coisa que 
via, era Raul e Maria Amélia circulando entre os convidados com uma naturalidade 
assombrosa e conjeturava que se um dia ganhasse dinheiro de verdade, iria ser como 
ela. O pessoal comeu a se fartar. As empregadas recolheram os pratos vazios e 
trouxeram a sobremesa. Entre bocaditos de doce, conheci diversos primos e tios de 
Raul. Fiquei sabendo que toda sua família nascera naquela cidade. Seu avô viera do 
Golfo Pérsico e instalara-se ali, talvez na fundação da cidade. Desde então a família 
vinha crescendo e prosperando. Os homens iam estudar nas cidades grandes, mas 
retornavam. Poucos eram os que, como Raul e Geraldo, viviam fora. A conversa 
seguiu animada até tarde. Depois da sobremesa foi servido o cafezinho com licor e 
então os convidados começaram a se despedir. 
Quando a casa ficou vazia, ainda tomamos, só os três, mais um licor. 
Conversamos. Eu estava um pouco alta, nem me lembro do assunto, mas lembro-me 
de sentir a mão de Raul tocando meus braços, seus dedos batendo nos meus para 
encostar os copos e brindar umas tantas coisas. Sentia o sangue virando espuma, mas 
disfarçava. Por fim fomos nos deitar. Aos nos despedirmos, Maria Amélia me beijou e 
em seguida Raul também o fez. Senti-lhe o rosto roçando no meu, seus cabelos 
passando rápido pela minha face. Tive um ímpeto de abraçá-lo e prendê-lo contra 
mim, mas ele já se afastava com Maria Amélia. Uma breve sensação de perda, uma 
 
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espécie de dor subiu-me dos calcanhares à cabeça e se desfez. Entrei no meu quarto. 
Um pouco alta, sentia flutuar sobre mim algo familiar, talvez a misteriosa coisa 
humana revivida, homem e mulher, nada além disto. A magia do desejo, do amor. 
Creio que sonhei a noite inteira que eu era Maria Amélia e que era eu a viver ao lado 
de Raul. Despertei com a convicção de que jamais encontraria um homem tão 
simpático e cheio de classe como ele. Mas também com a lembrança de que era o 
marido de minha melhor amiga e que por esta e muitas outras razões era inacessível. 
A vida na fazenda parecia uma eterna festa. Tão logo tomamos o café 
da manhã, Maria Amélia avisou-me que teríamos convidados para o almoço. 
Esticamo-nos em espreguiçadeiras ao lado da piscina, tomamos um pouco de sol e 
demos umas braçadas antes que os convidados começassem a chegar. Creio que eram 
as mesmas pessoas da noite anterior. Nadamos, comemos churrasco e depois que todos 
se foram, Raul falou que iria me levar para conhecer a Bolívia. Maria Amélia bocejou 
cheia de preguiça. Havia passado da conta nas caipirinhas e preferia dormir um pouco. 
Aliás, aconselhou-me a fazer o mesmo afirmando que a estrada era péssima e a 
fronteira não passava de um rio lamacento. Mas Raul achava que era uma pena ter ido 
até ali e não conhecer a fronteira. Mesmo porque ele precisava falar com um amigo 
que vivia do outro lado. Maria Amélia foi para o quarto e eu subi no jipe com Raul. 
A estrada não era mesmo muito boa, mas naquele momento seria a 
última coisa que poderia me preocupar. Raul foi mostrando a fazenda e contando a 
história de cada detalhe. Sua família havia ganho dinheiro com a extração da borracha 
e plantando castanha-do-pará. Mostrou-me também uma planta, a ipecacuanha. Nos 
tempos coloniais, os portugueses que se aventuravam pelos sertões em busca de ouro e 
pedras preciosas, levavam raízes desta planta para expectorantes e vomitórios. Raul ia 
falando e eu cada vez mais seduzida por seu mundo. Muitas vezes, os solavancos me 
jogavam para o lado dele e o contato morno do seu corpo me atordoava. Nos 
aproximamos de um rio lamacento e ele afirmou que ali terminava o Brasil e do outro 
lado começava a Bolívia. Era o rio Mamoré que ele me mostrara do avião. Raul 
buzinou algumas vezes e um barco saiu da outra margem e veio até nós. Ele pediu-me 
que esperasse enquanto falava com um amigo. Andou em direção ao barranco do rio, 
subiu no barco e desapareceu. Eu fiquei fora do carro observando aquela natureza, as 
árvores frondosas, abismada com a quantidade de pássaros. Havia uma fragrância de 
flores agrestes, um alvoroço de insetos no ar parado do fim da tarde. Jamais estivera 
tão próxima assim da natureza. Estar ali era sentir a palpitação da vida. Meu corpo 
parecia em transe, em levitação. 
Não posso precisar o tempo que Raul se demorou no barco. Quando ele 
voltou para o carro o sol era uma bola de fogo sobre as árvores. Ele sorriu e seus olhos 
refletiram-na. Falou-me que ali era o começo da selva. Muita gente já se embrenhara 
por ela em busca de fortuna. Hoje em dia ainda havia artistas que buscavam bálsamos 
espirituais e cientistas à procura de remédios milagrosos. Ele mesmo, depois de 
perscrutar o horizonte na direção das infinitas possibilidades de magia da floresta, 
encontrara sua fortuna. Eu nem entendia direito suas palavras, sentia o calor com que 
eram ditas. Ele ligou o carro e andamos até um ponto onde se podia ver boa parte da 
fazenda iluminada pelos últimos raios de sol. Os pastos estavam avermelhados. Toda a 
folhagem sob aquela luz tornava-se furta-cor. Foi então que Raul desligou o carro e me 
olhou bem dentro dos olhos. Completamente hipnotizada, senti que alguma coisa iria 
acontecer e me pus a falar. Inventei uns casos enquanto ele não tirava os olhos dos 
 
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meus, até que sua mão morna e firme pousou na carne ardente da minha coxa e eu tive 
um sobressalto. Calei-me. Seu hálito morno foi se chegando ao meu rosto. Estremeci e 
não atinei com outra coisa que não fosse atirar-me ao pescoço daquele homem. Nos 
beijamos até perder o fôlego. Não tive um único pensamento de misericórdia para 
Maria Amélia. Fui me deixando acariciar ao mesmo tempo em que alisava seu peito 
rijo, seus braços ardentes. De repente, ele ajudou-me a desabotoar a blusa. Nós dois 
nos ajudando, nos atrapalhando, beijos, botões, sorrisos. Ele procurando-me a boca, 
apertando-me devagar contra ele. Eu sentindo-o respirar um hálito moreno, cheio de 
desejo. O carro acolheu-nos o fogo. O sol desapareceu do horizonte e a primeira 
estrela despontou no céu enquanto nós nos engalfinhávamos enlouquecidos, envoltos 
no calor e odor compartilhados o que era um incentivo que nos incendiava os corpos. 
Queria aquele homem não só sexualmente, queria entranhar-me numa estranha luz que 
ele possuía. Por vezes eu abria os olhos e via as estrelas irem aumentando no céu e não 
me ocorria nada mais do que viver com toda a intensidade aquele momento. 
Aninhar-me naquela sensação doce e quentinha. 
Quando finalmente nos acalmamos, Raul deu partida no jipe. Jamais em 
toda minha vida sentira tal plenitude. Passei o braço por suas costas e sorri de pura 
felicidade. Foi então que pensei em Maria Amélia, onde arranjaria coragem para 
encará-la. Comentei com Raul. Ele também estava aturdido, mas aconselhou que 
agíssemos o mais naturalmente possível. A lua surgiu imensa e eu vi Raul magnífico e 
enluarado. Chegamos à casa. Nossos corpos, nossas mãos tinham dificuldades em se 
separar. Por sorte Maria Amélia ainda estava deitada. Corri para o meu quarto. Deitei e 
fiquei olhando para o teto e pensando em tudo o que acontecera. Minha felicidade era 
grande demais. Aturdia! Devo ter adormecido, mas depois de um tempo despertei com 
ruídos na sala e constatei que havia convidados para o jantar. Aquela festa perene 
facilitou as coisas. Tomei uma ducha rápida e caprichei na vestimenta. Ao sair do 
quarto, foi mais fácil enfrentar Maria Amélia no meio de muita gente. 
Quando contei tudo isto ao analista, nem eu mesma conseguia 
compreendermeus sentimentos. Só possuía a certeza de que Raul era o homem com 
quem eu sempre sonhara e que me fazia extremamente feliz. 
- Sabe, ele é demais! - concluí. 
Doutor Roberto me olhou com uma certa surpresa, ou curiosidade. 
- Raul é demais em tudo, - expliquei. - Classudo demais, ousado 
demais, confiante demais e especialmente sexy demais. 
- Você está apaixonada por ele e morrendo de dor de culpa porque ele é 
marido de sua melhor amiga. - Ele reafirmou o óbvio. 
Depois da viagem à fazenda nos encontramos nem sei quantas vezes. 
Comecei a ficar ousada demais. Saíamos os três. Freqüentávamos os melhores 
restaurantes da cidade. Maria Amélia conhecia-os bem, mas para mim tudo era 
novidade. E eu estava tão eufórica que mesmo adorando Maria Amélia, deixava Raul 
encostar sua perna na minha por baixo da mesa. E o pior era que eu olhava Maria 
Amélia e sentia uma estranha inocência. Era como se deitar-me com seu marido só 
existisse na minha cabeça. Dr. Roberto concordou comigo que era uma forma de 
loucura. E eu estava absolutamente convencida de que o mundo exterior funcionava 
pelas regras que existiam em minha cabeça. Podia olhar Maria Amélia com a 
consciência tranqüila. Era como se todas as vezes que fui para motel com Raul 
 
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fizessem parte dos meus sonhos e não da realidade. Ah! Deus! Do que é capaz a magia 
do amor. . . 
Agora aqui, com as sombras da noite entrando pelo ateliê, meu 
desespero é saber até que ponto este relacionamento influiu na tragédia que ocorreu 
com eles. Maria Amélia pode ter descoberto, afinal estávamos ficando ousados, indo a 
motéis constantemente. É como se a tragédia me despertasse para a realidade. Não há 
mais como negar que eu era amante do marido de minha melhor amiga. Até que ponto 
isto influiu nos atos tresloucados que praticaram me atormenta, me corrói. Não 
suportaria carregar pelo resto da minha vida esta culpa. É preciso que a polícia 
descubra exatamente o que ocorreu. Rezo para que tenha sido um assalto. Seria muito 
mais fácil de aceitar alguém entrando lá e matando os dois. 
Os ruídos provocados pela chegada de minha mãe e meu filho 
trazem-me de volta à realidade. Carlinhos entra e me abraça. Minha mãe está curiosa, 
quer saber sobre o enterro. 
- Ah! Dona Genoveva! - Eu falo e olho-a desconsolada. Vamos os três 
para a cozinha. Enquanto lhe conto todos os detalhes do enterro, ela prepara o jantar e 
Carlinhos e eu colocamos os pratos na mesa. 
 
 
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5_____________________ 
 
Os jornais não perdoam. Tudo o que Maria Amélia tentou esconder 
sobre o filho é manchete de primeira página. Já descobriram que usava drogas, que 
contraíra imensas dívidas de jogo, que vivia batendo o carro e que dormia com a 
namorada. A vida da família toda começa a ser exposta. Está tudo nos jornais, nas 
ruas. Os próprios amigos vão relatando os fatos. Os empregados deliram em dar os 
detalhes. Sabe-se que o casal levava uma vida bem regrada quanto aos horários. 
Sabe-se que eram muitos ricos. Sabe-se das brigas familiares envolvendo tios e avós. 
Sabe-se que dona Odete vivia atormentado a vida da filha. Sabe-se que Marcela tinha 
um gênio de cão e não sabia falar com a mãe que não fosse aos gritos. Sabe-se até que 
a cachorra dálmata saía sozinha todas as noites para dar um passeio e fazer xixi na rua. 
O que Maria Amélia precisou de um analista para confiar, está na boca da cidade 
inteira. E com que mórbido prazer cada um deve tirar as próprias conclusões! O caso 
já foi até batizado de "a tragédia dos Murad". 
Estou entretida com as notícias do jornal quando a campainha do 
telefone rompe o silêncio com violência. Atendo. Para minha surpresa a pessoa do 
outro lado se identifica como Marilu, a namorada de Joãozinho. Sua voz está bastante 
simpática ao me avisar que o casamento de Tatiana Albuquerque vai se realizar. 
Pede-me que vá à sua casa com seu vestido e o da mãe para as provas. Uma vez que 
nem a festa foi cancelada, querem estar vestidas de acordo. Marco para o dia seguinte 
às duas da tarde. Desligo o telefone e um pouco de animação entra na minha alma. Se 
vai haver o casamento, tenho uns dias de trabalho bastante intenso, o que vai me tirar 
toda esta história maluca da cabeça. Sem contar o principal, que é ganhar dinheiro para 
continuar mantendo meu negócio. Pelo menos não vai haver um colapso econômico, o 
emocional já é suficiente. Tenho de me dedicar de corpo e alma aos trajes. Buscar 
inspiração sabe Deus aonde e apresentar um trabalho profissional. Bato palmas, chamo 
Sandro, minha mãe. Eles entram na sala e aproximam-se da mesa um pouco 
assustados. 
- O casamento vai se realizar, com festa e tudo! - Anuncio cheia de 
entusiasmo. 
O olhar apreensivo de Sandro se desvanece. Ele passa os dedos nos 
cabelos alvoroçados, gira em torno dos próprios pés e levanta o braço num gesto de 
vitória. Seus olhos começam a brilhar. 
- Isto é digno de uma comemoração! - Sugere. 
- Enfim uma ótima notícia! - A voz de minha mãe está alterada pela 
surpresa. 
Requebrando e cantarolando, ela apanha os copos da prateleira e vai à 
cozinha buscar gelo. Abro o armário e pego a garrafa de Campari. Sirvo um 
pouquinho para cada um. 
- Ao sucesso do casamento! - Nossa voz sai quase em uníssono. 
Levantamos os copos com o líquido vermelho e brindamos. 
- Espero que a morte dos teus queridos não faça você perder a 
inspiração. Vamos precisar muito dela! - Sandro termina de emborcar a bebida e 
parece pensar no serviço que teremos pela frente. 
 
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- Você me conhece, já passei por outras crises e não entreguei os 
pontos. Se bem que a morte de Raul. . . 
- Ah! dona Genoveva. . . - Sandro ignora minha última frase, passa o 
braço nas costas de minha mãe, nas minhas. Noto-lhe uma expressão de alívio. 
- O que temos de fazer é trabalhar! - O sorriso toma conta do rosto de 
minha mãe. A notícia reavivou-lhe as esperanças de fazer o ateliê progredir. - Quanto 
à tragédia, é bom esquecermos dela! Afinal se nem os amigos e parentes se abalaram a 
ponto de cancelar a festa, não vamos ser nós a nos amofinarmos. 
Ela tem toda a razão. Não vamos ser nós a nos amofinarmos. Mesmo 
sem Maria Amélia e Raul, temos de tirar todo o proveito desta oportunidade. 
- Começaremos por montar o vestido da Marilu e o da mãe. - Proponho. 
- Prometi fazer a prova na casa delas amanhã às duas da tarde. 
- Pensei que a exceção fosse só para a Maria Amélia. - Minha mãe 
conjectura. - Se vamos fazer as provas nas casas, perderemos muito tempo! Não se 
esqueça que a quantidade de vestidos é grande! 
- Quando Marilu me deu a notícia fiquei tão empolgada que concordei 
sem pensar. Mas esta será a única prova fora do ateliê. - Prometo. 
Sandro não se lembra de Olga, mãe de Marilu. Recordo-o que ela é uma 
loura muito charmosa. Veio uma única vez ao ateliê, pois Maria Amélia não gostava 
dela nem da filha. Só as trouxe para fazer os vestidos de casamento, por insistência de 
Joãozinho. 
- O vestido da Olga é o vinho e o da Marilu o azul claro? - Sandro faz 
um ar de quem está se lembrando. 
Na oficina, pego o caderno com os desenhos de cada modelo. 
Reorganizamos nossas idéias e em pouco tempo engrenamos novamente naquele 
trabalho. Colocamos as peças sobre a mesa e começamos a montá-las. No final da 
tarde, quando minha mãe vai buscar Carlinhos e Sandro se despede, já temos os dois 
vestidos no ponto de prova e alguns outros começados. 
Carlinhos chega da escola e, embora para ele seja difícil entender, 
explico-lhe que temos de trabalhar muito nos próximos dias. Ele é um menino dócil. 
Senta-se ao nosso lado e começa a montar um quebra-cabeça. Minha mãe continua o 
trabalho com os vestidos e eu pego a caderneta de telefones e vou ligando para as 
clientes a fim de confirmar as provas. Todas elas já foram avisadas que o casamento 
vai se realizar. As encomendas

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