Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 A IGREJA CATÓLICA E AS FORÇAS DE OPOSIÇÃO AO REGIME MILITAR DE 1964. DE 1973 A 1985. Prof. M.e Norberto Ribeiro Torres Júnior Docente no Curso de Licenciatura em História - Faculdade de São Paulo - FASP - Centro Novo Resumo: O período militar brasileiro deflagrado com o golpe de estado de 1964 mergulhou o país no período de ações de força, como os Atos Institucionais baixados já no governo do marechal Humberto de Alencar Castello Branco. Com o Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5, decretado no segundo governo do período militar, o do general Costa e Silva, o estado brasileiro encontrou-se de vez com o estado de exceção, com a liberdade individual sendo extinta, e as forças opressivas ganhando de “presente” um poderoso aliado institucional, que permitia que ostensivamente pudessem mostrar suas garras; quer contra seus inimigos, ou contra qualquer um que lhes contestassem. A partir de 1973, com a escolha do general Ernesto Geisel para a presidência da república, o lema governamental foi de “abertura lenta, gradual e segura”. Não que a abertura do regime fosse uma benesse cedida espontaneamente pelo governo. Para isso, muitas forças concorreram: estudantes, operários, comunidades, associações profissionais etc; e a Igreja Católica, que teve papel de grande relevo no processo. Desde conversas reservadas com a alta cúpula militar e empresarial, até o trabalho de base na defesa das liberdades do povo, sempre enfrentando extremada violência das forças militares e paramilitares. A volta à democracia foi construída com muita paciência, suor e dor física e moral; e a Igreja Católica destacou-se como um dos expoentes dessa luta, muitas vezes de forma silenciosa. Padres foram presos, assassinados, torturados, expulsos do país; bispos foram execrados na imprensa nacional, ridicularizados pelos órgãos oficiais e proibidos de defenderem a volta ao estado de direito. Com sua luta, a Igreja se redimia de seu apoio inicial (de parte do clero) ao regime de exceção imposto ao país a partir de março de 1964. Palavras-chave: Igreja Católica. Forças de Oposição. Regime Militar de 1964. 1973 a 1985. INTRODUÇÃO Este ensaio procura melhor compreender qual foi o papel da Igreja Católica durante o período de transição política, iniciado em 1973, e finalizado em 1985. Lembrando que a Igreja passava por profunda transformação, e que após colocar-se a favor do golpe militar deflagrado em 1964, reorientou sua atuação no decorrer do regime imposto. A Igreja que desde a passagem da Monarquia para a República aliou-se aos desígnios do Estado brasileiro, e caminhou lado a lado com os detentores do poder político da nação, viu esses mesmos setores voltarem-se contra elementos da instituição eclesiástica: bispos, padres, freiras, e também leigos ligados aos movimentos populares de base, que passaram de alvo de difamações à perseguição e violência física. A tradicional Igreja Católica que via na concepção marxista a antítese de toda sua constituição era agora acusada de “comunista”. Pecha que no período possuía forte conotação incriminadora. A Igreja não era mais a aliada do sistema, e, portanto, acomodada em seu status quo. 2 Não sendo possível abranger em um só trabalho toda a informação referente às esferas da atuação da Igreja Católica no processo de democratização do Brasil, procurei limitar o ensaio a uma visão histórica do período, e a ação dos variados agentes pró-democracia ou contra a democracia, inseridos no contexto político-econômico interno e externo. O período estende-se do ano de 1973, - quando é escolhido o general-presidente Ernesto Geisel para assumir o próximo mandato presidencial -, ao ano de 1985, quando, após vinte e um anos de governos militares, um civil é escolhido para o poder da República – Tancredo Neves; encerrando-se assim o ciclo da ditadura militar que se iniciara em 1964, com a presidência do marechal Humberto de Alencar Castello Branco. A transição ditadura- democracia caminharia durante os mandatos de Ernesto Geisel e João Figueiredo, além dos civis Tancredo Neves e José Sarney, seu vice-presidente. Somente com a eleição por voto direto de Fernando Collor de Melo é que essa transição terminaria. Histórico do período: 1973-1985: I – Quadro Político Apesar do enunciado otimista, a abertura política que o general-presidente Ernesto Geisel definiu como “devolução gradual e lenta do poder político à sociedade civil”, mostrou-se lenta demais pelos que tiveram de sofrer com as arbitrariedades que um regime de exceção impõe. A escolha de Geisel pelo Colégio Eleitoral em 1973, e sua posterior posse no ano seguinte, marcavam também o fim de um ciclo conhecido como “milagre econômico”. O momento antes encontrado era de oferta de dinheiro no mercado internacional, e aceitação e incentivo do capital e controle norte-americano para as várias ditaduras encontradas na América Latina. A operacionalidade do plano econômico baseava-se na premissa de fazer crescerem os recursos, e só depois distribuí-los. Mesmo marcando um avanço do país em modernização do parque industrial, inovação tecnológica, e atrair capital internacional para a nação, a distribuição dos recursos foi por demais desigual. Esses resultados negativos vão compor o cenário político-social brasileiro encontrado pelo novo presidente. Outro aspecto negativo do milagre que perdurou depois dele foi a desproporção entre avanço econômico e o retardamento, ou mesmo o abandono dos programas sociais pelo estado. O Brasil iria se notabilizar no contexto mundial por uma posição relativamente 3 destacada pelo seu potencial industrial e por indicadores muito baixos de saúde, educação e habitação, que medem a qualidade de vida de um povo. O momento que se ultrapassava era o da ditadura Médici, que buscou o tempo todo, descobrir e eliminar “inimigos internos” do Brasil. A repressão foi total aos grupos que tentaram organizar as classes trabalhadoras, além do controle draconiano aos sindicatos. As forças de segurança também vigiavam e observavam muito de perto qualquer associação que se formasse tanto nas áreas urbanas e favelas, como na área rural. Esse medo disseminado pelos anos do governo do general Médici, alcançou também membros da elite, e assustou o corpo da instituição judiciária; com advogados temerosos em defender presos e perseguidos políticos, e promotores e juízes pressionados em seu trabalho. A imprensa era outra instituição intimidada pelo governo: prisões e tortura de jornalistas, pressões sobre proprietários de jornais, que não raramente terminaram em incêndios, censura direta nas redações. Essas condições impuseram uma imprensa pró-governo, ou opaca de comentários. Apenas alguns poucos semanários conseguiram circular, mas atingindo um público reduzido. Homens de negócios lucravam com o crescimento econômico, e nos anos 70 os salários dos executivos brasileiros se achavam entre os mais altos do mundo. O governo Médici não precisava recorrer a prisões para manter o empresariado sobre controle. Seus instrumentos valiam quer pela recompensa, quer pela punição: controle das taxas de juros, contratos com entidades públicas, incentivos tributários, e mesmo a pressão direta em empresas particulares com elementos militares e civis, ligados ao governo, em comissões e cargos nessas empresas. O autoritarismo em sua face mais violenta começou com Costa e Silva, e atingiu com Médici a sua capacidade maior de amedrontar e imobilizar qualquer ação autônoma importante das instituições nacionais. Foi nesse prelúdio que Geisel recebeu o quarto mandato presidencial-militar, e apareceu falando da perspectiva de um novo diálogo comos líderes da sociedade civil. O presidente e seu grupo avançaram para uma democracia conservadora, tendo como projeto definido evitar que a oposição chegasse muito cedo ao poder, e conseguir conter a “linha-dura” que continuava atuando nos quartéis, nas delegacias policiais, nas ruas e nos “porões”. A estratégia para a distensão tinha no chefe do gabinete-civil da presidência, general Golbery do Couto e Silva, o seu principal artífice. O mesmo general Golbery que foi um dos engendradores do golpe militar de 1964 e da sustentação política do governo do 4 marechal Castello Branco; e que com Geisel, continuava na projeção de uma “eminência parda” do governo, estando por trás de tudo, inclusive em ações fora de sua alçada direta. A pressão contra o governo fazia-se sentir pela oposição política, concentrada no MDB (Movimento Democrático Brasileiro), na Igreja Católica e vários outras instituições da sociedade civil. Mas não podemos esquecer que outras conjunturas provenientes de variados universos, contribuíram para o esgotamento do regime militar, como por exemplo, a posição de crítica do governo norte-americano de Jimmy Carter que colocou o governo dos Estados Unidos em “rota de colisão” com várias ditaduras latino-americanas, e o ocaso das últimas ditaduras ocidentais europeias: a vitória da Revolução dos Cravos em Portugal no ano de 1974 pondo fim ao período da ditadura de Salazar, e o fim do regime de Franco na Espanha em 1975, após trinta e seis anos de governo único. A partir de 1973, com a emergência de novas condições sociais, tornava-se cada vez mais difícil para os integrantes do grupo do poder, escamotear a correspondência entre os seus valores e os seus interesses. O ano de 1973 é um marco para pedidos de mudança, que foram impulsionados, principalmente, pelos setores sociais que se organizavam contra a exclusão social, econômica e política. A especificidade daquele período foi introduzir questões inéditas diante do quadro existente, dentre elas estava a luta pela ampliação de espaços políticos. Apesar da aparente boa vontade, o período Geisel foi uma série ininterrupta de idas e vindas quanto à volta da liberdade. De seu governo assistiu-se tanto a sua vinda a São Paulo para demitir o general Ednardo d’Avilla Melo, comandante do II Exército, quando do assassinato do jornalista Vladimir Herzog; quanto à decretação de emendas constitucionais apelidadas de “pacotes”, que tinham por objetivo a concentração das decisões nas mãos do governo. II – Estado Militar e Conflito: O conjunto das Forças Armadas, por mais que tentasse sempre passar uma aparência de força e coesão, via-se rachado em duas forças preponderantes. Sabemos hoje da divisão interna dentro dos poderes militares, que remontam ao início da República brasileira, desde a simpatia ao comunismo dos “tenentistas” que acabou caminhando para o tecnocratismo, até o “fascismo” de vários comandantes militares, principalmente durante e após o período Vargas. 5 Com o golpe de 31 de março de 1964, a chamada linha-dura poderia agir com desenvoltura dentro da máquina estatal. Os atos institucionais, principalmente o AI-5 (Ato Institucional nº 5, baixado em 13 de dezembro de 1968), deram-lhe a cobertura necessária para o cerceamento da liberdade e perseguição à oposição. O golpe que derrubou o governo constitucional de João Goulart foi uma ação militar com apoio de vários setores da sociedade civil, de contexto bem mais amplo do que se fazia parecer. Para René Dreifuss foi “uma campanha política, ideológica e militar travada pela elite orgânica centrada no complexo IPES/IBAD” (Dreifuss, 1981, p. 230). O IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais foi criado no ano de 1961, reunindo empresários do Rio e São Paulo, com ativa participação de profissionais liberais e oficiais militares, com destaque para o general Golbery do Couto e Silva que foi um de seus principais incentivadores; e o IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática, nascido sob o pretexto de “defesa da democracia” em 1959, era originário dos setores mais conservadores das classes dominantes, tendo inclusive sido denunciado como sendo uma das “principais operações políticas da CIA no Rio, sendo basicamente uma organização de ação anticomunista” (Ibid., p. 102). O objetivo era conter movimentos populares liderados por organizações e partidos de esquerda. A ligação de oficiais militares com o complexo IPES/IBAD, passava pela ESG – Escola Superior de Guerra -, generais da ativa e militares reformados. A aproximação era favorecida, pela visão de ser o governo Goulart, um convite ao comunismo. Castello Branco era ligado aos líderes do IPES, bem como Ernesto Geisel e o já citado general Golbery. Essa facção de cunho mais intelectualizado era conhecida como o grupo da “Sorbonne ou “castellistas”; já a outra facção, de caráter mais autoritário e ligada aos “porões” das Armadas, foi chamada de “linha-dura”. A disputa entre as duas facções pela influência no poder da República foi uma constante no desenrolar dos governos militares. O restabelecimento completo da autoridade constitucional do presidente da República sobre as Forças Armadas, só se deu em 12 de outubro de 1977, quando Geisel exonerou o ministro do Exército, general Sylvio Frota, que ensaiava um golpe dentro do golpe, no intuito de restabelecer a rigidez do sistema e a continuidade da repressão. Acaba-se, portanto, o ciclo aberto em 1964, em que a figura do chefe de governo se confundia com a de representante da vontade militar. Convém lembrarmos que os dois últimos governos militares, os de Ernesto Geisel e o de João Figueiredo, apesar dos abusos de violência que continuaram a acontecer em seus 6 mandatos, foram comandados pelos castellistas; o que é fator de peso para melhor compreensão da dinâmica que propiciou o caminhar do país para a redemocratização institucional, e o seu contato com as instituições; entre elas, a Igreja Católica. Em um contexto internacional muito favorável, com expansão acelerada do comércio internacional e disponibilidade de capitais para investimento e financiamento, que não se repetiria nas décadas seguintes; e apoiado por um conjunto de medidas e incentivos estatais, o capitalismo brasileiro aprofundou a linha ascendente inaugurada em 1967. Destacaram-se os índices anuais de crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB); nossa indústria registrou taxas bastante positivas de aceleração, com destaque para a indústria automobilística e de eletroeletrônicos; crescimento mesmo nos setores menos dinâmicos da economia, como os bens de consumo popular; além de aumento nas exportações influenciando também para cima, as importações. Na indústria, as dimensões da petroquímica, na infraestrutura, o desenvolvimento das telecomunicações, integrando o país de uma forma nova e com uma visão padronizada pelas principais organizações de comunicação, passando ainda pelas rodovias e pelo complexo hidrelétrico, nas finanças, a constituição de uma banca de nível internacional, na agricultura, o desenvolvimento de novas culturas, como a da soja, no comércio internacional, para além do já referido crescimento, introdução de manufaturados na nossa pauta de exportações. O país foi tomado à época, por incontida euforia de desenvolvimento, divulgando-se slogans otimistas e ufanistas, e outros, execrando os contrários. Esse momento vivido pelo Brasil, do final do mandato de Costa e Silva e no transcorrer do governo Médici, ficou conhecido como o “milagre econômico” brasileiro. O governo Geisel, diferentemente do que tentaram passar à opinião pública os seus ministros e representantes econômicos, nãofoi tragado para a crise financeira e econômica que se instalou no país, única e exclusivamente por conta do choque do petróleo protagonizado pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em 1973. A crise era mais complexa. Portanto, a artificialidade da tão propalada expansão da economia brasileira começou a ruir no ano de 1974. A crise teve conjuntura internacional, mas as nações desenvolvidas absorveram o choque, reduzindo seus custos. O Brasil, em caminho inverso, viu suas exportações diminuírem dramaticamente, e continuou atrelado à importação do petróleo para poder continuar a fazer funcionando seu parque industrial. Com o segundo choque do produto em 1979, e o aumento da taxa internacional de juros, acelerou-se a dívida externa do país, tornando-o ainda mais dependente 7 dos empréstimos do exterior. No mesmo ano de 1979, o governo ainda se gabava do crescimento econômico do país, sem justificar, é claro, que esse crescimento era atrelado ao endividamento externo. O arrocho salarial, com consequente garantia de mão-de-obra barata às transnacionais, negou aos trabalhadores condições de consumo interno, levando o governo a incentivar as exportações. Essa perda de poder aquisitivo da massa trabalhadora, mesmo para a aquisição de artigos básicos do dia a dia, criava bolsões de miséria que comprometiam a própria sobrevivência do trabalhador e sua família. Sobre esse assunto tratou D. Cláudio Hummes, então Bispo da Diocese de Santo André, em carta aos Bispos do Brasil quando de seu relato da participação da Igreja na greve dos metalúrgicos em abril de 1980: Quanto a incentivar a greve, todos sabemos que o verdadeiro e único incentivador dessa greve foi o baixo salário mínimo do governo, portanto a pobreza produzida pelo sistema. Houve quem dissesse que os metalúrgicos não são pobres. Isso é um mito e uma manobra política. É público que cerca da metade dos metalúrgicos ganham salários de pobreza, ou seja, até três salários mínimos, com o que nenhum operário consegue aqui no ABC alugar uma casinha, acabando por morar em favela. Temos favelas, com levantamento feito pela Diocese, em que 90% são famílias de metalúrgicos! Somente os funcionários mais altos, que ocupam a ponta da pirâmide dos funcionários das empresas, ganham bem e por vezes muito demais. Mas, se inclusive esses participassem da greve, estariam cumprindo apenas seu dever de defender os que têm salários de fome e sozinhos têm pouca força de reivindicar. (Morais, 1982, p. 69). Apesar da crise que já começava a assolar o país, a euforia proveniente dos anos do milagre econômico persistia. A ortodoxia econômica do governo Geisel, logo após a posse, lançou o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). Esse plano, com preocupações evidentes com o problema energético brasileiro, propunha um avanço na pesquisa com o petróleo em território nacional, contando ainda com a recente descoberta da bacia petrolífera de Campos, no Rio de Janeiro. Parcialmente substituiu-se a gasolina pelo álcool, substituição que contou com o ufanismo nacionalista da eficácia brasileira propagada pelo governo, mas sem esclarecer ou nem mesmo levar em conta, os prejuízos advindos da exploração desmesurada da terra cultivadora da cana-de-açúcar. Usinas hidrelétricas e programa nuclear constavam do plano, com a segunda obtendo pífios resultados, devido a negócios desvantajosos com a indústria nuclear alemã, e à intencionalidade em competição com a vizinha Argentina pela obtenção da tecnologia de fissão nuclear do átomo. A partir de 1979, com o último governo militar, o do presidente João Batista Figueiredo, retornava a equipe econômica do governo Médici, novamente com Delfim Neto na direção dos destinos da economia nacional, mas em uma situação financeiro-econômica 8 bastante diferente da anterior. Sacudido pelo segundo choque do petróleo o Brasil sofreu com a elevação da taxa de juros internacionais, e com a cada vez maior dificuldade em novamente levantar novos empréstimos. Isso, somado ao estreitamento dos prazos de pagamento, fazia o sonhado crescimento e o controle inflacionário, tornarem-se distantes. Restava apenas, brecar o decantado mecanismo desenvolvimentista que sempre fora a marca de expressão do governo militar, tendo isso ocorrido no final de 1980, quando a expansão da moeda foi duramente limitada e acompanhada de corte nos investimentos das empresas estatais, elevação dos juros internos e o consequente declínio do investimento privado. O Brasil atravessou forte recessão no período de 1981 a 1983, com pesadas consequências. O declínio da renda dos trabalhadores foi comparado igual, ou superior até, ao que se seguiu após a crise de 1929, e a isso se somou o crescimento do desemprego. A inflação atingia, seguidas vezes, a casa dos três dígitos ao mês. Em 1981 houve crescimento negativo da economia do país. Era a “estagflação”: mistura de estagnação econômica com inflação. Com o pedido de moratória mexicana em 1982, o Brasil viu suas possibilidades de continuar obtendo recursos no exterior, bastante prejudicadas. Restou recorrer ao Fundo Monetário Internacional, que para conceder o empréstimo solicitado desfilou o seu extenso e amargo rol de exigências; exigências essas que tornavam ainda mais duras as condições de vida da população trabalhadora, devido aos cortes internos de gastos, que recaiam com peso especial sobre os programas sociais e de saúde, além da educação e do trabalho, tanto na zona urbana quanto na zona rural. O ano de 1984 viu a economia dar uma reativada, puxada pelo crescimento das exportações, sobretudo de produtos industrializados. O petróleo teve queda de preço, e o Brasil pode diminuir sua cota de importação devido a produção interna ter aumentado substancialmente. Apesar de terminar seu mandato com a inflação em alta, o final do governo do general Figueiredo foi de certo alívio financeiro e econômico, retomando, mesmo que moderadamente, a fase de crescimento, mas com um rastro cada vez mais permanente de intensa desigualdade social. O Brasil no transcorrer dos governos militares, precipitou-se do milagre econômico, para o lugar de país mais endividado no mundo em desenvolvimento. III – Forças de Oposição: A oposição ao regime militar fez-se desde o seu início, mas a princípio acautelada e concentrada mais no individualismo de seus agentes, do que concentrada em partidos, 9 instituições ou grupos minimamente organizados de cidadãos. Os atos de exceção coibiram de imediato a concentração de forças que pudessem perturbar a instalação de um regime que se intitulava com a prerrogativa de “ legitimidade principalmente ao estabelecer a ordem social e ao derrotar a ‘ameaça subversiva’. ” (Mainwaring, 1989, p. 101). Políticos e pessoas de várias áreas, que afrontaram de imediato a tomada de poder por parte dos militares, foram expurgados, com muitos tendo de abandonar o país. A partir de 1965 delimitava-se a opção política em dois partidos; ARENA (Aliança Renovadora Nacional) da situação, e MDB (Movimento Democrático Brasileiro) da oposição, colocando- se a questão na mera simplicidade de se poder ser apenas a favor, ou contra o governo. Tanto a cidade como o campo sentiram de imediato a rispidez do novo regime. As policias militares, e logo após as civis, transformaram-se nos legionários da causa política, abandonando quase que por completo o dever de garantir a segurança do cidadão e o bom funcionamento do estado. O cidadão comum passava agora a ser o possível “agente inimigo”, que necessitava ser vigiado e intimidado em suas imaginárias “ações subversivas”. Com a oposição violentamente combatida, eem muitos casos praticamente dizimada após os governos Costa e Silva (que deu legitimidade à repressão, principalmente com o AI-5) e Médici, Ernesto Geisel surgia com a obrigação de após seu discurso inicial de apaziguamento, de ver serem recompostas as diversas forças oposicionistas do país. O caminho da oposição não foi suave. O restabelecimento democrático proporcionado pelo novo governante ainda era muito moroso, e os métodos violentos e brutais continuavam a ser empregados pelos que se apaniguavam do sistema. O ciclo de abertura social e política consumiu todo o período do governo de Ernesto Geisel e de João Figueiredo. Além do aspecto econômico, as ações políticas, mesmo com o pretenso abrandamento, refletiam o autoritarismo institucional comparável aos momentos mais duros do regime. No ano de 1975 o governo pôs fim à luta armada no campo, matando e prendendo elementos ligados ao PC do B. Oposição ao governo ainda era vista por parte das forças armadas, como legitimação na utilização de quaisquer mecanismos para detê-la. Nos corredores do Congresso, Senado, Câmaras Estaduais e Municipais isso também acontecia. A oposição concentrada toda no MDB articulava entre outras coisas, uma maior liberdade política e a recuperação no que fosse possível, do estado democrático. Na escolha de Geisel para a presidência, o MDB lançou candidaturas simbólicas ao cargo, denunciando país afora o preceito antidemocrático das eleições indiretas. Nas eleições legislativas de 1974, o MDB saiu vitorioso nas urnas, com manchetes de jornais destacando o feito. Esse um terço 10 equivalia a quarenta por cento das cadeiras, o que deixava a ARENA, e, portanto, todo o staff militar, preocupados com a pequena margem favorável. Nas eleições municipais de 1976 o governo interferiu diretamente no processo, promulgando lei modificadora da legislação eleitoral, impedindo que os candidatos se apresentassem na televisão e rádio. O dispositivo legal ficou conhecido como lei Falcão. Mesmo com essa precaução casuística, a oposição levou a melhor nas urnas novamente. O governo continuava a ter de adotar medidas de força para poder aprovar seus projetos mais polêmicos, como por exemplo, o “pacote” de abril de 1977, conforme relata o historiador brasilianista Thomas Skidmore: Geisel preferiu a solução de uma emenda constitucional através do AI-5, e em 1 de abril de 1977, fechou o Congresso. O pretexto para o ato de força foi um ambicioso projeto de reforma judiciária que o MDB rejeitava, pois, segundo afirmava, a reforma pleiteada pelo governo não fazia sentido sem que antes fossem revogadas leis arbitrárias como o AI- 5 e a Lei de Segurança Nacional. Invocando os poderes arbitrários do AI-5, Geisel anunciou uma série de importantes reformas constitucionais (apelidadas de ‘pacote de abril’), todas visando direta ou indiretamente tornar a ARENA imbatível nas próximas eleições. (Skidmore, 1989, p. 373). Com essas medidas de exceção, o governo sentiu-se mais alicerçado para controlar o processo de distensão, que avançou consideravelmente já no ano posterior. Contatos passaram a ser frequentes com líderes do MDB, da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), para se abrirem os canais que levariam à restauração das liberdades públicas. Ao final do mesmo ano foi aprovada a Emenda Constitucional nº 11, que revogava parte do Ato Institucional nº 5, impedindo a partir de 1º de janeiro de 1979 que o Executivo pudesse declarar o Congresso em recesso, cassar mandatos, demitir ou aposentar funcionários que não lhe aprouvessem, e suprimir dos cidadãos os seus direitos políticos. Mesmo com esse avanço, o próximo presidente, o general João Figueiredo, só teve de enfrentar para chegar ao poder, adversários de dentro da própria instituição. O general Sylvio Frota, sempre representando a ala mais dura do sistema, e o general Euler Bentes Monteiro, único candidato permitido ao MDB para poder lançar como seu representante. Figueiredo governou um país em crise. Não conteve o índice inflacionário, e assistiu a mais um salto do montante de nossa dívida externa e interna. Mesmo assim, o modelo concentrador de renda e o arrocho salarial, garantiram a uma pequena parte da população a ilusão desenvolvimentista para a qual o país “sempre foi destinado”. Essa concentração persistia em deixar à margem de qualquer melhoria de condição de vida, o crescente número 11 de excluídos sociais. Na política, o governo enfrentava sérias dificuldades sempre que se aproximavam as eleições. A chamada pela liberdade já havia contagiado boa parte da população brasileira, que se sentia cada vez mais a vontade em manifestos por redemocratização, reivindicações sociais e por completa liberdade de expressão. Figueiredo que havia jurado “fazer deste país uma democracia”, proporcionou uma abertura pautada de oportunismos e recuos. Afrouxou a censura e deu liberdade para algumas manifestações democráticas, além de levar adiante o processo de anistia, mas reprimiu greves, prendeu militantes do PCB e do PC do B, expulsou padres estrangeiros que colaboravam com a luta camponesa pela reforma agrária, impôs casuísmos nas regras eleitorais a fim de favorecer o governo, e enquadrou estudantes na Lei de Segurança Nacional. A extrema-direita, que nunca sofreu repressão por parte do governo militar em suas ações contra civis, continuou sua onda de atentados terroristas, como na sede da OAB de São Paulo em 1980, e no Riocentro (Rio de Janeiro) por ocasião do show de MPB comemorando o dia 1º de Maio. A partir de 1979, com a Nova Lei Orgânica dos Partidos, o presidente Figueiredo, na visão de muitos analistas políticos, com o intuito de dividir a oposição, acabava com a divisão ARENA e MDB, nascendo daí, cinco novos partidos políticos: o PDS (Partido Democrático Social) – na realidade, a nova sigla da ARENA, sob a liderança de José Sarney; o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) herdeiro do MDB e liderado por Ulisses Guimarães; o PDT (Partido Democrático Trabalhista) sob o comando de Leonel Brizola; o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), com Ivete Vargas na liderança, e o PT (Partido dos Trabalhadores), sob o comando de Luís Inácio Lula da Silva, tendo suas raízes no movimento operário organizado do ABC paulista. O militarismo que havia tomado de assalto o país em 1964, com a promessa de limpar o “perigo subversivo” e alavancar o país economicamente, só conseguiu cumprir a primeira parte das propostas. Brigas internas e falta de sintonia com os reais problemas da nação deixaram uma herança pesada para os militares meditarem sobre seus reflexos na nação. III.1 Partidos, instituições e movimentos populares Além da força concentrada no MDB e na Igreja Católica como fontes de oposição ao regime acrescentem-se a pressão cada vez mais constante de vários outros órgãos e instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB -, que em agosto de 1974, em convenção no Rio de Janeiro, se comprometeu a uma ativa defesa dos direitos dos presos 12 políticos, posição essa que atingiria a legislação do Ato Institucional nº 5 – AI-5 – e traria para discussão nacional, o tema da anistia. No ano de 1977, também no mês de agosto, advogados congregados na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e liderados pelo jurista paulista Goffredo da Silva Teles trariam para conhecimento da nação a “Carta aos Brasileiros”, documento que exigia a volta ao estado de Direito. Em 1975 nascia o Movimento Feminino pela Anistia (MFA), num esforço quase que isolado e de extremo risco de Terezinha Zerbini, esposa do afastado general Zerbini, quehavia se colocado contra o golpe de 1964. Mais de 16 mil assinaturas foram coletadas em apoio à anistia política. A imprensa passou de legitimadora e incentivadora do estado de exceção, para o estigma da censura governamental, e acabou terminando por ser mais uma das contestadoras do regime. Uma imprensa menos aparelhada se destacou na oposição, como por exemplo, o semanário Opinião e Movimento, e folhetins como O Pasquim. Na música e teatro, temas de críticas ao sistema, e exaltações à volta do estado democrático, passaram a fazer parte do cotidiano cultural brasileiro. Vários autores e compositores foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional por desrespeito à censura; além da proibição de livros de Marx, Lenin, Che Guevara, Mao Tse-tung, entre outros. A preocupação com a segurança expressou-se também na criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), que montou uma vasta rede de agentes secretos e informantes, englobando centenas de milhares de pessoas. Esses agentes espalharam-se por todo o território nacional, infiltrando-se em órgãos públicos, empresas, sindicatos, escolas, meio artístico, bares e locais públicos. O governo Geisel estava longe de desarticular toda essa estrutura de espionagem. No ano de 1976, as energias da oposição concentraram-se na reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizado naquele ano em Brasília. A partir de 1977 as oposições se robustecem e diferenciam-se, com os estudantes voltando a sair às ruas, e sofrendo toda a violência por parte da polícia; ficando como exemplos marcantes dessas arbitrariedades a invasão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que sofreu uma repressão desmedida e movida a bombas pela truculência da polícia paulista, e a invasão militar da Universidade de Brasília, só para citar dois exemplos. No campo trabalhista o ano de 1978 foi o marco do início dos movimentos grevistas da classe operária. O movimento já se encorpava desde o início dos anos 70 na região do ABC paulista. A Lei 4300 de 1964, que proibia greves, havia sido derrubada na prática. 13 Inúmeras categorias de assalariados; funcionários públicos, professores, motoristas de ônibus, profissionais liberais, bancários e outros, passaram a fazer reivindicações por todo o país; e sofreram com a repressão governamental, que apesar de ceder em alguns aspectos continuava na marcha da vertente autoritária. Em vastas regiões do campo brasileiro travava-se uma luta surda e violenta. Posseiros e pequenos agricultores desprovidos de títulos legais de posse das terras enfrentavam grandes e médios proprietários que tentavam, legalmente ou não, se apossar das terras disputadas. Some-se a isso, o problema no crescimento da figura do boia-fria, trabalhador itinerário e sem qualquer garantia trabalhista, que se sujeitava às piores condições; quer de trabalho, de transporte, alimentação e moradia. A partir da década de 70, a Igreja Católica, que já estava atuando no campo, intermediando conflitos entre fazendeiros e posseiros contra comunidades indígenas, acaba estreitando seu relacionamento com os posseiros e os desprovidos de qualquer pedaço de terra, fazendo um levantamento meticuloso dos diversos problemas encontrados na área rural brasileira. Mais uma frente de oposição às pretensões dos militares e classes dominantes se levantava. Do exterior, o advento do governo de Jimmy Carter nos Estados Unidos ia contra tudo o que sempre foi tolerado, e mesmo incentivado, pelos governos norte-americanos anteriores. A democracia passou a abrir espaços em várias partes do planeta, inclusive no Brasil. III. 2 A Igreja Católica Desde o início do governo militar brasileiro, em abril de 1964, ocorreram situações de violência e coerção contra elementos da Igreja Católica. Teve início com o caso do padre Francisco Lage que, duas semanas após o golpe, sob acusação de ser subversivo, foi espancado pela polícia militar de Belo Horizonte. Durante o governo Médici, a situação beirou o explosivo. A situação era tão tensa que encontros secretos entre as cúpulas – estado e religião – foram realizados, como registrado pelo estudo do brasilianista Kenneth Serbin em seu Diálogos na Sombra. Bispos e Militares, Tortura e Justiça Social na Ditadura. Esses encontros ficaram conhecidos como a Bipartite. O ano de 1973 marca posições da Igreja, ou de elementos pertencentes a ela, em contestação cada vez mais ativa aos preceitos não democráticos, mesmo que com isso se expusessem à truculência do sistema, que preconizava encerrar sua fase mais repressora. 14 “As relações com a Igreja Católica eram decisivas para a estratégia de descompressão de Geisel.” (Skidmore, 1985, 356). Pouco antes da posse, ativistas católicos da Grande São Paulo foram presos; e antes de deixar a cadeira presidencial, o governo Médici tentara impedir a ação de todos os missionários católicos que trabalhavam junto aos índios. Para melhor se avaliar a importância da Igreja no processo de liberalização do sistema, devemos notar que duas importantes mudanças internas realizaram-se no seio da instituição religiosa católica durante o governo Médici: a emergência da CNBB como porta-voz institucional da Igreja, e o rápido crescimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). As CEBs foram constituídas desde seu início, por células de estudos leigos, e sua criação foi encorajada pela hierarquia eclesiástica a partir dos anos 60, que via com apreensão a acelerada escassez de padres seculares e religiosos, além da rápida disseminação do pentecostalismo, do espiritismo e dos cultos afro-brasileiros. As Comunidades espalharam-se por todo território brasileiro, não obstante as intenções iniciais do episcopado, que não aprovava vida própria às CEBs. Estas passaram a integrar cada vez mais a chamada “igreja popular”, dando ênfase às bases da Igreja, e a propagação da teologia da libertação, com mobilização de seus fiéis para a prática da ação social. O rápido crescimento das CEBs inquietou elementos do regime militar, que gostavam de propagar que a oposição da Igreja Católica partia de figuras isoladas e “agitadoras”, como por exemplo, D. Hélder Câmara; e não de ações articuladas de bases constituídas. A problemática da atuação repressiva da linha dura do governo militar, e a luta contra esse estado de coisa, era tema da mídia estrangeira. D. Hélder Câmara aparece em destaque na revista Time, em junho de 1974, em reportagem pelo título de doutor honoris causa que lhe foi concedido pela Universidade de Harvard, na sua luta em favor dos direitos humanos. Direitos humanos que, aliás, foi tema no mesmo ano, de entrevista do cardeal de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, à Associated Press, onde afirmou sua esperança em que cessassem as torturas no Brasil. A presença da Igreja, nas mais variadas formas de contestação à ilegalidade do sistema, já era constante, principalmente após 1968, quando esse mesmo sistema passou a abusar desmedidamente da força e do poder. Sentindo a perspectiva da propalada “distensão” política anunciada pelo novo governo, e confiando nos diálogos travados entre a hierarquia militar e a Cúria, antes mesmo da posse de Geisel, a Igreja passou a uma ofensiva cada vez mais contundente na luta pelos direitos dos despossuídos e injustiçados da sociedade brasileira. 15 A “descompressão” de Geisel pouco pôde contra a linha-dura e as forças de segurança que sabotaram a política governamental desde seu início. O assassinato de Vladimir Herzog nas dependências do Segundo Comando do Exército de São Paulo, encarna para vários dos autores, a marca mais cruel dos porões do regime, mas casos de todos ostipos de violência se sucediam: interrogatórios e torturas contra leigos vinculados à pastoral na Prelazia de São Félix do Araguaia, suspensão na concessão de funcionamento das rádios católicas de São Paulo e Goiás, prisão de elementos da Igreja vinculados à promoção humana em São Paulo, prisão de leigos que atuavam na pastoral de Recife, invasão da PUC, assassinatos de padres etc. A Santa Sé, com destaque da imprensa mundial, se pronunciava sobre a ditadura brasileira, desde o início da década de 70, exortando em seus discursos pontifícios o caminho para regimes democráticos, além de condenar a tortura e classificá-la como “decadência moral”, conforme artigo publicado no Le Monde na edição de 23 de outubro de 1970. Geisel e seus seguidores do grupo castellista passaram a perceber que elementos participantes dos órgãos de repressão mostravam clara independência e desrespeito hierárquico, e tratavam a tortura e perseguição a supostos inimigos, como uma forma eficaz e válida para atingir seus objetivos, e não poupavam a Igreja como um desses principais inimigos. A luta não se resumia única e exclusivamente aos direitos humanos. Toda e qualquer forma de subjugação dos elementos vitais à integridade dos pobres e perseguidos passaram a serem tópicos de batalha da Igreja Católica; batalhas estas que não suprimiam as divergências internas dentro da instituição eclesiástica, mas ela se mostrava una quando de seu enfrentamento aos problemas. Mesmo os elementos mais conservadores do clero, com o passar do tempo, compreenderam a missão que cabia à Igreja, e essa missão se reservava aos que sofriam na pele as agruras do sistema de exceção. Na cidade de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, em continuidade à sua ação de esforço para a democratização do país, mandou ler em todas as igrejas da arquidiocese uma nota sobre a ocorrência de prisões por motivo de segurança nacional. Esse fato se deu em março de 1975; e no mês seguinte, D. Hélder Câmara, em um relatório da arquidiocese de Recife, informa sobre a ocorrência de prisões arbitrárias de leigos por supostas atividades subversivas. E o Boletim de junho, da mesma arquidiocese, denunciava a tentativa de denegrir a Igreja e pessoas do clero, como o cardeal Arns e D. Ivo Lorscheider. A Igreja caminhava decisiva em sua luta contra os desmandos do aparelho repressivo e defendia-se unida dos ataques a ela perpetrados. 16 O estado militar brasileiro, e representantes civis que ocupavam posições políticas atreladas ao sistema autoritário, continuavam a usar o argumento-tema comunista, na retaliação que empregavam contra membros do clero, tanto nacionais quanto estrangeiros. ...a Igreja esteve envolvida em sérios problemas entre favelados e o Estado, em Belém (Pará) e São Paulo, e entre os camponeses e o Estado, em Ronda Alta, Rio Grande do Sul. Essa série de conflitos impeliu Jarbas Passarinho, senador do Pará e líder do Senado do PDS, a atacar a Igreja, a 30 de agosto. Passarinho, antigo crítico da Igreja progressista, fez a acusação de que muitos padres eram marxistas subversivos que queriam solapar a ordem capitalista. (Mainwaring, 1989, p. 184). No plano secreto, uma comissão se criara para discutir as questões que envolvessem a Igreja, bem como os casos de torturas. Liderada a idéia pelo professor Cândido Mendes e tendo na figura do general Antonio Carlos Muricy o articulador das Forças Armadas, a chamada “Bipartite” reuniu-se durante dois anos, colocando na mesma mesa dois grupos distintos: a “situação”, chefiada por Muricy e contando com representantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, SNI (Serviço Nacional de Informação) e CIE (Centro de Informação do Exército), e o lado “religioso” com hierarcas da Igreja Católica, sempre liderados por um dirigente da CNBB. Era o início do caminho do diálogo, apesar de muitas vezes áspero e com resultados nulos ou parciais. O quadro político que se apresentou no Brasil no período analisado, mostra, portanto, uma promessa governamental de distensão, que sofreu congestionantes conflitos internos que alternaram avanços e recuos no processo de abertura. Esse período viu ressurgir com força as reivindicações sindicais, que acabaram por formar a base dos Partidos dos Trabalhadores, nascido na região do Grande ABC de São Paulo, e também o embrião que formaria o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), embrião esse que nasceria no seio das comunidades de base. O período viu a Igreja Católica passar por um intenso processo de mobilização e educação política crescente, o qual a transformou em uma força da sociedade civil relativamente livre do controle do Estado, e, portanto, numa ameaça potencial para a tecnocracia civil e militar que dominava o país. Para uma melhor dimensão da abrangência da atuação da Igreja na vida nacional, segue quadro referente às principais ações envolvendo a instituição, nos anos iniciais do tema de estudo: 1973-1974. 17 1973: Janeiro: 08 – D. Hélder denuncia a prisão de um membro do movimento de evangelização na arquidiocese de Recife. 09-18 – O jornal O Estado de São Paulo publica uma série de artigos sobre a crise do catolicismo brasileiro. Fevereiro: 06-15 – Realizada em São Paulo a XIII Assembléia Geral da CNBB. 22 – A Cúria Metropolitana de São Paulo justifica a demissão de três professores da PUC por apoiarem o escritor Gustavo Corção, que havia se colocado em defesa do Cardeal Eugênio Sales. 25 – O Estado de São Paulo publica artigo “Terrorismo Cultural na PUC”, referente à expulsão dos professores. Março: 24 - Uma violação dos direitos humanos, por parte da polícia, é denunciada pelo bispo de Sorocaba D. José Melhado, que, divulga uma nota sobre a morte de Alexandre Vannuchi Leme. 31 – A CNBB manifesta estranheza diante de críticas feitas por funcionários da FUNAI sobre a obra missionária junto aos índios. Abril: 25 – Encontro da Bipartite (15º) para discussão sobre o pronunciamento da CNBB no 25º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas. Maio: 18 06 – Os bispos do Nordeste e alguns provinciais religiosos publicam o documento Eu ouvi os clamores do meu povo, sobre os problemas sociais da região. 28 – Padre Francisco Gentel é condenado a dez anos de prisão pelo Tribunal Militar de Campo Grande. 29 – Padre Carlos Machado é absolvido por maioria de votos no Supremo Tribunal Militar, de condenação anterior a um ano de prisão, pela Auditoria Militar do Rio Grande do Sul. 29-31 – Reunião do Episcopado de São Paulo, em Itaici, afirmando os bispos que a Igreja deveria empenhar-se para que as estruturas injustas e as rivalidades opressivas fossem corrigidas. 30 – Encontro da Bipartite (16º) para a discussão sobre subversão, direitos humanos e declaração dos bispos. Junho: 05 – A polícia invade, revista e fotografa os arquivos da sede da Prelazia de São Félix do Araguaia. 06 – O diretor de O São Paulo (jornal da arquidiocese de São Paulo), recebe proibição de notificar qualquer declaração dos bispos da CNBB sobre a questão dos direitos humanos. 07 – A Justiça Militar de Juiz de Fora absolve por unanimidade os trinta e quatro padres de Belo Horizonte que haviam distribuído manifesto em 1969, pela morte de um estudante no Rio de Janeiro. 16 – A polícia invade pela segunda vez o prédio onde funciona a Cúria Arquidiocesana e os Secretariados da CNBB no Recife. 18 – O general Ernesto Geisel é apresentado à nação como sucessor do presidente Médici. 19 – O Correio do Povo de Recife reproduz alocução de D. Vicente Scherer, “Nãocabe à Igreja opinar sobre política econômica”, referindo-se aos documentos dos bispos do Nordeste. 28-29 – Proibida a divulgação de notícia sobre as invasões das Cúrias Metropolitanas de Goiânia e Recife. Julho: 19 04 – D. Fernando Gomes arcebispo de Goiânia, afirma em documento o direito sim, de a Igreja opinar sobre política econômica. 25 – Encontro da Bipartite (17) para tratar de subversão dentro da Igreja e direitos humanos. Agosto: 03 – Encontro da Bipartite (18º). Encontro especial para discutir a carta pastoral de D. Fernando Gomes. 19 – Onze bispos e numerosos padres de diversas regiões vão a São Félix para uma celebração em solidariedade ao bispo D. Pedro Casaldáliga. 29 – Encontro da Bipartite (19º) para discussão sobre a pressão de militares contra bispos e direitos humanos. 31 – O Boletim da CNBB informa que em Fortaleza, os órgãos de imprensa foram advertidos de que não poderiam transmitir palavras de P. Avelar, D. Ivo Lorscheider e D. Hélder Câmara, por ocasião da tomada de posse de D. Aloísio Lorscheider, e que, na Prelazia de São Félix, leigos vinculados à pastoral, haviam sido submetidos a interrogatórios com choques elétricos. Setembro: 26 – Os dominicanos presos em São Paulo têm sua pena reduzida para dois anos, segundo sentença do Supremo Tribunal Federal. Encontro da Bipartite (20º) para discussão sobre a pressão de militares contra bispos, a censura e os direitos humanos. Outubro: 24 – Na sede da CNBB do Rio de janeiro, é lançada oficialmente uma edição ecumênica da Declaração Universal dos Direitos Humanos, comemorativa dos vinte e cinco anos de sua proclamação. 20 Novembro: 05 – Sai do ar a Rádio 9 de Julho, da Arquidiocese de São Paulo, por decreto suspendendo sua concessão. Encontro da Bipartite (21º) para discussão sobre as críticas da Igreja ao regime, a censura e os direitos humanos. Dezembro: 10 – Na comemoração dos vinte e cinco anos da Declaração dos Direitos Humanos, anuncia-se que D. Hélder Câmara será agraciado com o Prêmio Nobel da Paz Independente. 20 – Sancionado o novo Estatuto do Índio, com veto do Presidente ao item que reconhecia às missões religiosas e científicas o direito de prestar aos índios e às comunidades indígenas serviços de natureza assistencial, respeitadas a legislação em vigor e a orientação do órgão federal competente. 1974: Janeiro: 15 – Eleição pelo Colégio Eleitoral, do presidente Ernesto Geisel. 18 – Boletim da CNBB publicando carta do bispo de Viana, no Maranhão, comunicando atritos com as autoridades por estarem os clérigos defendendo os lavradores oprimidos. 23 – Na abertura do II Congresso da Confederação Anticomunista Latino-Americana (CAL), D. Sigaud denuncia o esquerdismo crescente do clero e do laicato católico. 31 – Divulgação de folheto elaborado pela Divisão de Segurança e Informação do MEC, Como Eles Agem, denunciando infiltração comunista no meio secundário e universitário, no MOBRAL e na própria Igreja. Fevereiro: 08 – Carta do Cardeal de São Paulo informa sobre prisões de elementos da Igreja vinculados à promoção humana e à Comissão Justiça e Paz. 21 28 – Em entrevista à Associated Press, D. Paulo Evaristo Arns afirma esperar que terminem as “torturas, intoleráveis e ineficientes”, e outras violações dos direitos humanos. Março: 15 – Assume o governo de Ernesto Geisel. 24 – Encontro da Bipartite (22º) para discutir suposta subversão na Igreja, direitos humanos e interesses institucionais da Igreja. Maio: 18 – D. Tomás Balduíno, bispo de Goiás, notifica que a rádio católica da diocese foi fechada por agentes do DENTEL. 29 – Encontro da Bipartite (23º) para discutir questão de subversão na Igreja, censura, direitos humanos e interesses institucionais da Igreja. Junho: 24 – Destaque na revista Time, para D. Hélder Câmara, pelo título de doutor honoris causa concedido pela Universidade de Harvard, por sua luta em favor dos direitos humanos. O título do artigo é: O Pastor dos Pobres. O prelado D. Moacyr Grecchi e doze missionários da Prelazia de Acre e Purus publicam uma “orientação sobre o problema de terras”, denunciando a expulsão dos pobres de suas posses, de maneira arbitrária e violenta. Agosto: 26 – Último encontro da Bipartite (24º) para discussão sobre direitos humanos e interesses institucionais da Igreja. Novembro: 22 19-27 – XIV Assembléia Geral da CNBB. IV - Panorama da época: a Guerra Fria A Guerra Fria que mobilizava o mundo após o término da 2ª Guerra Mundial, e opunha em âmbito planetário os Estados Unidos da América como principal representante do capitalismo, e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), do socialismo, teve como palco de atuação os mais variados lugares do planeta, e especialmente locais que se enquadravam ao que era conhecido como “Terceiro Mundo”. O processo acelerou como nunca os imensos negócios da tecnologia e das armas militares. Incentivada nos Estados Unidos desde Eisenhower (1953-1961), teve na América o “laboratório” para o liberalismo capitalista e as chamadas áreas de proteção. Intervenções militares diretas e indiretas foram constantes; caso da derrubada do governo nacionalista de Jacobo Arbens, na Guatemala (1954); invasão na República Dominicana (1965); apoio ao regime sanguinário dos Duvallier, no Haiti; lutas para desestabilização do governo revolucionário cubano de Fidel Castro; derrubada de Salvador Allende, no Chile (1973); apoio de guerrilha aos contras da Nicarágua; invasão e deposição de governo legitimamente eleito em Granada (1983); invasão, rapto e julgamento em território norte-americano do presidente do Panamá (1992); e várias outras ações. Vê-se, portanto, o quanto o período abrangido pela Guerra Fria foi um momento de pressão, interna e externa, para as populações do continente. O Brasil também não ficou impune. Aliando-se ao espírito da “Aliança para o Progresso”, tão bem defendida pelo então embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, o Brasil teve o seu modelo de defesa da “pátria e da família” inspirado pela Escola Superior de Guerra – ESG. Composta não só de membros das Forças Armadas em seu grupo de estagiários, a escola militar recebia elementos da indústria, parlamentares, juízes e outras figuras proeminentes da vida nacional. No seu intuito de combate à subversão comunista, os Estados Unidos não agiram unilateralmente, pois, sempre puderam contar com o apoio das oligarquias latino-americanas, temerosas de qualquer reforma e, mais ainda, de qualquer revolução que pudesse alterar o status quo. A total dependência das oligarquias em relação à burguesia monopolista norte-americana era proporcional ao seu temor do operariado e campesinato, politicamente organizados. Desde seu nascimento a ESG contou com um seleto grupo de pensadores militares e civis que esquematizaram as suas bases ideológicas norteadoras da Doutrina de Segurança 23 Nacional. Castello Branco e Golbery do Couto e Silva destacaram-se no grupo. A construção teórica sobre a realidade brasileira levava esses pensadores a considerar a elite nacional despreparada para governar o país e as massas ainda não preparadas para vivenciarem o regime democrático. A geopolítica era outro elemento-chave para a teorização da vida nacional. Para os ideólogos da DSN, o Ocidente democrático e cristão era identificado com os Estados Unidos, contrariamente à União Soviética identificada com o Oriente pagão, comunistae totalitário. A América passara por uma experiência alarmante para as cúpulas militares e as classes dominantes, com a passagem de Cuba para o bloco soviético. Os Estados Unidos assistiam em “seu oceano”, a vitória de Fidel Castro e seus combatentes, acenando para a possibilidade de trânsito na orientação política dos países da América Latina. O general Golbery defendia o engajamento do Brasil na luta contra o comunismo, criticando a neutralidade de alguns países do ”terceiro mundo”. Para o general, a civilização ocidental era conceituada em seus termos essenciais com a ciência, como instrumento de ação, com a democracia, como forma e organização política e com o cristianismo, como supremo padrão ético de convivência social. Pelas palavras do próprio general Golbery, um dos mentores principais da liberalização que se iniciaria com o governo de Geisel, vemos a importância que era dada à religião, por uma das alas militares, para a obtenção do estado ideal mentalizado para o Brasil. Ela servia como a “solda” que ligaria a concepção do governo à garantia de boa sobrevivência para a família, o cidadão e o Estado. Apesar do alinhamento claro do governo Geisel com o capitalismo pronunciado pelos Estados Unidos, na política externa houve também acordes autonomistas. Reconhecimento imediato da independência de Angola, apesar das tendências esquerdistas do partido governante, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA); abertura das relações comerciais com a China, aproximação com a Comunidade Européia, com as visitas de Geisel à Inglaterra e à França, resultando no acordo nuclear com a Alemanha e desagradando profundamente os Estados Unidos; denúncia do acordo militar com os Estados Unidos, firmado em 1952, que já não tinha tanta importância prática, e mostrava que havia uma vontade de enviar um recado e explicitar uma vontade política própria. A partir do governo de Figueiredo as relações com os norte-americanos voltaram para um ritmo de apaziguamento e reaproximação econômica. O advento do governo de Ronald Reagan destinava ao Brasil 24 tratamento superficial; idêntico à quase todos os demais países da América Latina, e mercados considerados “inferiores”. V – CONCLUSÃO O período de redemocratização do Brasil, que começou timidamente a partir do ano de 1973, não foi fruto de apenas uma ação coordenada que visasse esse objetivo. O mundo passava por um momento tenso de relações internacionais, com a divisão do globo sob duas influências, a capitalista capitaneada pelos Estados Unidos, e o socialismo sob controle da União Soviética. O Brasil, sempre considerado de suma importância geopolítica na região, era preocupação constante da diplomacia e dos serviços de inteligência norte-americanos. Qualquer luta interna por melhoria de condições de vida e liberdade de expressão e atuação era vista como um “passo em direção ao comunismo”. As lutas pela volta ao “estado de direito” envolveram várias instituições do poder civil: comunidades, entidades estudantis, frentes de trabalhadores, movimentos sociais de custo de vida, ordens e conselhos profissionais etc. Todos contribuíram, e todos sofreram pela defesa de suas convicções e de aspiração à liberdade. A Igreja Católica foi uma dessas instituições. Pelos seus passos podemos perceber como a luta foi árdua e dividida. No início do período ditatorial pós-64, a Igreja Católica respondendo apenas pela sua alta hierarquia, foi ponto basilar para a legitimação do golpe militar. O clero ligado diretamente aos seus fieis mais humildes “engoliu a seco” a supressão das liberdades e da busca por emancipação dos mais necessitados da sociedade brasileira. O recrudescimento do sistema, com torturas sistemáticas, tanto de leigos quanto de eclesiásticos, alertou a cúpula da instituição católica a repensar seu apoio inicial ao regime. A negociação e a contestação ao militarismo passaram a fazer parte do dia a dia da Igreja, que se uniu de vez aos opositores, e destacou-se pela sua luta pertinaz e pacífica na reconstrução do espaço democrático brasileiro. BIBLIOGRAFIA DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis-RJ. Vozes, 1981. MORAIS, João Francisco Regis de. Os Bispos e a Política no Brasil: Pensamento social da CNBB. São Paulo: Cortez, 1982. 25 MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a Política no Brasil 1916/1985. São Paulo: Brasiliense, 1989. SERBIN, Kenneth P. Diálogos na Sombra: Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Cia. Das Letras, 2001. SKIDMORE, Thomas. Brasil de Castelo a Tancredo: 1964-1985. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
Compartilhar