Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
CAPÍTULO IV Conhecimento do território, produção do território: França, séculos XIII-XIX k A França identifica-se aos nossos olhos com um territó- rio: oom um espaço delimitado por fronteiras de soberania, e também com uma extensão e uma forma que o mapa nos tornou familiar ou, melhor, veio pôr em evidência. Nem sem- pre foi assim, o que não se deve apenas ao facto de o ter- ritório se ter transformado profundamente durante o longo processo da sua formação. Entre meados do século IX e o século XI, o termo Francia serviu para designar realidades geográficas de natureza e importância variáveis antes de ser utilizado para designar o Reino Capeto. Foi necessário che- gar ao reinado de Philippe Auguste para que se afirmasse a noção de uma unidade e de uma territorialidade do reino que se imporá no decorrer do século XIII. Começa-se a fa- lar então de regnum Francia antes de, pela primeira vez em 1254, o rex Francia ter substituído o rex Francorum nos actos emanados pela chancelaria. A evolução parece ser um dado adquirido por volta de 1300: a França é então enca- rada como um espaço; pode ser evocada como o lugar de todas as perfeições; torna-se um território intocável, a pátria da defesa pela qual será necessário em breve aprender a morrer1./'' Com esta inflexão considerável começa um processo se- cular de conhecimento e de domínio do espaço nacional. Nada ou quase nada é dado à partida. A partir do imbricado com- plexo de terras e de direitos que é ainda, a nível de porme- nor, o reino, falta constituir um território unificado sob o 1 C. Beaunc, Naissance de la nation France, Par is , Ga l l imard , 1985 . Tribuna do Norte Typewriter REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa: DIFEL; nullRio de Janeiro: Bertrand, 1989. 104 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO controle de um soberano2. A conquista das fronteiras desem- penhou, como acabámos de ver, um papel determinante nes- ta longa empresa; é também o seu aspecto mais visível. Não podemos contudo negligenciar os esforços obstinados do po- der público para reunir e para tornar mais homólogos os espaços que, a pouco e pouco, foram compondo a França. Estes inscrevem-se numa muito longa duração, entre os sé- culos XIII e XIX, pelo menos, e a Revolução inscreve-se a este respeito bem mais numa linha de continuidade do que em ruptura com o Antigo Regime, como lembrou Tocque- ville num texto célebre. Estes esforços exercem-se simul- taneamente em várias direcções. Uns visam organizar, me- lhorar e uniformizar a gestão do território; evocá-los-emos no capítulo seguinte. Outros identificam-se com operações de conhecimento, que podem ser de natureza muito diferente, mas que têm todas em comum o facto de assegurar ao poder do Estado uma forma de domínio sobre o espaço que lhe está, em princípio, submetido. Cada uma delas fornece um tipo específico de informação, mas cada uma constrói simul- taneamente uma representação da França. Propomo-nos se- guir aqui estas três modalidades distintas e, afinal, conver- gentes: a viagem de Estado, o inquérito, o mapa. Todas elas sublinham que o conhecimento do território é, indissocia- velmente, uma produção do território. As viagens do soberano A soberania pública identifica-se para nós com um local central e estável: com uma capital que acolhe a autoridade política, o seu aparelho simbólico, o seu séquito, mas tam- bém, e sobretudo, as administrações que asseguram a gestão efectiva do país. Reputada como «cabeça do reino» caput re- gni desde o século XII, Paris beneficiou assim de um inves- 2 R. Fawtier, «Comment, au début du XIV' siècle, un roi de France pouvait-il se représenter son royaume?», Académie des Inscriptions et Bel- les-Lettres, Comptes renàus des séances de l'année 1959, Paris, 1960 , pp. 117-123- CAPÍTULO IV 105 timcnto excepcional. Num espaço circunscrito e visível, o Palais de la Cité, São Luís e depois Filipe, o Belo, principal- mente, reuniram a maior parte dos instrumentos do poder. Encontramos aí o ponto de partida de uma concentração e de uma centralização políticas e administrativas que são os traços principais da história da França. O rei poderá mais tarde multiplicar as residências ou, como Luís XIV, insta- lar-se resolutamente à margem da sua capital; o próprio cres- cimento desta poderá obrigar as repartições e os serviços a expandir-se: nada porá em causa, até aos nossos dias, o po- der de Paris. v ' /No entanto, devido a um paradoxo que é apenas apa- rente, esta centralização precoce e espectacular — não única: verifica-se também em Inglaterra na mesma época — acom- panha-se da preocupação nova de uma política do espaço. Tudo se passa como se procurasse ser compensada com um melhor domínio do território. A concentração do poder im- põe em troca que se conheça melhor a França, mas que se seja conhecido por ela. A constituição de administrações hie- rarquizadas, o desenvolvimento dos processos de recurso, a utilização do inquérito constituem outras tantas respostas a esta nova necessidade, tornada ainda mais urgente pela ex- pansão espacial do reino., São outros tantos indícios, de que voltaremos a falar, de uma transformação em profundidade das relações do poder com o território com o qual se identi- fica, a partir de meados do século XIII, o regnum Franciae. A viagem do soberano, cuja fórmula se define nesse momento, talvez ajude a compreender melhor ainda as implicações políticas e simbólicas de um domínio do espaço francês. A itinerância do rei não é novidade. Desde a Alta Idade , Média que o conduz de terra em terra para que consuma no local os seus produtos e rendimentos e ao mesmo tempo para que relembre aí os seus direitos. Mais tarde, quando nos séculos XIII-XIV, as transformações da vida econômica já não justificam esta política de presença e de predação, o so- berano não pára de se deslocar. «A errância é um modo de vida.» (J . Favier). Escoltado pelo hotel royal, passa de re- sidência para residência seguindo o acaso da caça, da reli- giosidade que o atrai aos grandes centros de pereg ri nação, 106 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO da guerra ou das contingências internacionais/ São Luís, Fi- i lipe, o Belo, encarnam bem essa peregrinação tradicional, complexa, que continuará a existir ainda durante muito tem- po depois deles. Com o segundo aparece no entanto uma modalidade nova da viagem: a viagem política, que faz da presença real do soberano um meio de governo e de apro- priação do território. Na viragem dos séculos XIII e XIV, as tensões políticas e religiosas exacerbam-se num Langue- doc mal controlado cuja integração no reino permanece precária. A luta encarniça ordens rivais, Dominicanos e Fran- ciscanos. No Outono de 1303, a situação parece suficiente- mente grave para que Filipe se decida a deslocar-se ao local com a rainha, os seus três filhos e o seu conselho alargado3. Instala-se em Toulouse durante algumas semanas antes de continuar a digressão por Carcassonne, Béziers, Montpellier, nos primeiros meses de 1304. A expedição reveste-se clara- mente de um aspecto guerreiro e punitivo no momento em que as elites locais se deixam tentar por vezes pela traição. Mas é inegável o predomínio de elementos novos. Na capi- tal do Languedoc, o rei recebeu solenemente os embaixado- res de várias cidades. Por toda a parte afirmou a vontade de ver com os seus próprios olhos exibindo, simultaneamente, o exercício da soberania. O discurso com que é recebido em Carcassonne, à entrada da cidade, mostra-o bem: «Rei de França! Voltai-vos e contemplai esta cidade miserável, que é reino vosso e que é tratada tão duramente [.. .] .» A viagem de Estado oferece assim um recurso que jamais será esquecido. A sua fórmula será afinada pouco a pouco, a montagem mais elaborada, as intenções mais complexas, mas é .a mesma estratégia de constituiçãoe de legitimação do poder soberano pelo território que irá a partir daí atravessar os séculos. O exemplo mais famoso, o mais acabado tam- bém, desta deambulação real é dado pela interminável di- gressão de Carlos IX4. Durante 27 meses, de 24 de Janeiro de 1564 a 1 de Maio de 1566, o jovem rei — que não tem } J . Favier, Philippe le Bel, Paris, Fayard, 1978, p. 335 e ss. 4 J . Boutier, A. Dewerpe, D. Nordman, Un tour de France royal. Le voyage de Charles IX (1564-1566), Paris, Aubier-Montaigne, 1984. CAPÍTULO IV 107 ainda catorze anos no início da expedição —, a rainha-mãe Catarina de Médicis, os seus principais conselheiros, as equi- pagens, bem como uma corte flutuante de dez a quinze mil pessoas, nomadizam dando a volta à França. A viagem faz sentido numa situação política dramática. Devastado pelos conflitos religiosos, torturado pelos particularismos periféri^. cos, em particular no Sudoeste, inquieto quanto às suas fron- teiras, o reino está ameaçado pela desintegração. O rei é uma criança cuja autoridade é posta em causa. A viagem é uma tentativa de resposta a estes perigos acumulados. Uma vez que o país deixou de ser controlado a partir da capital, faz-se uma aposta arriscada — mas amplamente ganha — para re- conquistar o território. De facto, o itinerário deste longo percurso permite compreender a sua lógica e intenções: a leste, consolida uma fronteira ameaçada antes de tranqüili- zar, ao longo do vale do Ródano, a vertente do Dauphiné; faz-se pacificador no Languedoc onde se esforça por reunir a província em torno do rei. Em Bayonne, a entrevista arran- jada na fronteira com os representantes de Filipe II, tenta pelo menos, provisoriamente, resolver as divergências pen- dentes entre o Rei Cristianíssimo e o soberano católico. No regresso escolhe-se, por fim, atravessar as províncias ganhas pela Reforma antes que a corte faça uma longa paragem de três meses em Moulins, no coração do território que se deci- dira reconquistar. Mas há mais. Em cada etapa da sua digressão, compete ao rei dar provas da sua soberania. Pertence-lhe claramente suscitar e satisfazer «um pedido de Estado localizado e ge- neralizado». A viagem assume deste modo o aspecto de uma «passagem em revista» para pôr em ordem o reino. Carlos torna-se magistrado supremo para receber a submissão dos parlamentos da província, mete na ordem as oligarquias ur- banas, estreita a vigilância sobre os seus próprios oficiais. L Por toda a parte, à sua passagem, arbitra os conflitos e es- V" força-se por verificar os contenciosos. Torna-se necessário. ,/ J- Esta pacificação do espaço francês seria contudo impossível r o s e a presença do rei não impusesse a todos o espectáculo ^ v ü físico da sua soberania. Minuciosamente ritualizada, desde as entradas nas cidades visitadas até ao toque milagroso das V ? A O-o- v > v i V J 1 108 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO escrófulas, a actividade real repete-se", de paragem em para- gem, vai unindo um por um todos os pontos do percurso/ Constitui como um todo o espaço que circunscreve. Em con- trapartida, constrói sobre a sua deambulação a sua própria l eg i t imidade . Catar ina de Médicis compreendeu-o bem: «Quanto mais adiante vamos, tanto mais a obediência ao Rei, senhor meu filho, se estabelece e a calma, a tranqüili- dade deste reino cresce e aumenta [.. .] .» A volta a França de Carlos IX é espectacular; é, de certa forma perfeita, mas não é única. Entre os séculos XIV e XVII, a prátic» da viagem de Estado verifica-se, com efeito, regularmente. Filipe IV em 1335-1336, Luís XI, o maior de todos os viajantes, em 1462-63, Francisco I por duas vezes, em 1517-1518 e depois em 1531-1534 lançaram-se também em grandes expedições. É interessante notar que de todas as vezes, ou quase, o rei tenta a aventura da viagem para resta- belecer um poder e um reino que parecem estar ameaçados. O jovem Luís XI põe-se a caminho imediatamente antes de subir ao trono, combinando a reconquista do Languedoc com uma intensa actividade diplomática internacional5. Francis- co I, por sua vez, começou a percorrer a França num período favorável. Passeia a sua jovem glória no regresso de Mari- gnan, em 1516, e ainda no ano seguinte quando, entre a Primavera de 1517 e Novembro de 1518, apresenta a rai- nha, Cláudia, e depois o «delfim» recém-nascido às províncias a norte do Loire. Mas a sua verdadeira digressão é efectuada em circunstâncias bastante mais dramáticas. Depois de Pa- via, do cativeiro e dos territórios que teve que abandonar, Francisco decidiu voltar a partir durante vinte e seis meses, acompanhado de uma nova rainha e de um novo «delf im», dos seus conselheiros e da corte, através da Picardia, Nor- mandia, Bretanha, vale do Loire, Champagne, províncias do centro e o vale do Ródano, a Provença, o Dauphiné e a Borgonha, para regressar enfim a Paris em Fevereiro de 15346. 5 Lettres de Louis XI, roi de France y publicadas por J . Volsen e Et. Charavay, tomo II (1461-1465), Paris, 1885. 6 J . Jacquart, François 1", Paris, Fayard, 1981, pp. 88-99, 112-114, 2 5 1 - 2 5 3 . CAPÍTULO IV 109 Rito de passagem e de reconhecimento a viagem pode, por- tanto, ser repetida quando a situação o exige. Catarina de Médicis e os conselheiros de Carlos IX saberão recordá-lo em 1564, tal como, cinqüenta anos mais tarde a regente Maria de0Mêdicis, que envia o jovem Luís XIII para percor- rer durante quatro meses as províncias ocidentais antes da proclamação solene da sua maioridade em Outubro de 1614. Quando se desloca, o rei delimita o seu território. Faz o seu reino existir e toma posse dele. Claro que nem todos os soberanos foram grandes viajantes e nem todas as viagens foram tão completas como as de Francisco I ou Carlos IX. Na charneira dos séculos XV e XVI, Luís XII, que efectuara aliás quatro grandes expedições a Itália, conhece apenas da França um espaço que se inscreve no triângulo Abbe- ville-Nantes-Gap7. Mas é provável que nem todas as situa- ções requeressem a grande Digressão; é sobretudo o princípio da deambulação — «ir em frente» é a litania da rainha-mãe em 1564-1566 — que está aqui em causa e não propria- mente o território percorrido de facto. A soberania deve ser móvel. Devemos evitar, contudo, reduzir a viagem a uma sim- y" .pies estratégia de autoridade. Podemos ver nela antes, uma ç ^ espécie de intercâmbio contratual implícito entre o rei e o Ç reino. Fazer um reconhecimento e fazer-se reconhecer: aqui ^ ; o modelo é o da entrada real, tantas vezes repetida durante o percurso, cujo ritual reitera simbolicamente o contrato que ^ V^^l iga uma cidade ao soberano ao mesmo tempo que delimita os respectivos direitos8. Da mesma forma que a cidade es- f colhe dar-se ao rei enquanto corpo, é toda a comunidade territorial que se oferece àquele que escolheu ir à sua desco- ber ta/ A última das grandes viagens reais é a que efectua o 7 F. Maillard, «Itinéraire de Louis XII, roi de France (1498-1515)» , Bulletin philologique et historique du Comitê des travaux historiques, 1972, pp. 171-206. 8 B. Guenée e F. Lehoux, Les entrées royales françaises de 1328 a 1515, Paris, Ed. do CNRS, 1968; L. M. Bryant, The French Royal Entry Ceremony, Genève, Droz, 1986. 110 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO jovem Luís XIV9. Mas as suas modal idades e significações são já ambíguas. Retoma dos seus predecessores a amplitude e a duração: um ano inteiro, de Agosto de 1659 a Agosto de 1660; inclui a digressão às fronteiras: o seu ponto alto é o casamento do rei com a infanta Maria Teresa, preparado pe- las intermináveis conferências da Bidassoa e celebrado em São João da Luz em 9 de Junho. Será bom não esquecer, finalmente, que alguns anos depois do drama da Fronda, o rei atravessa as províncias que tinham sido profundamente minadas pelas forçascontrárias à afirmação da monarquia absoluta. Portanto, a corte pôs-se de novo em movimento. Contudo, o que chama a atenção nesta viagem, é o facto de o rei desempenhar aí apenas parcialmente o seu papel. A admi- nistração central permanece, no essencial, na capital. Maza- rino, que se desloca ao seu próprio ritmo, encarrega-se da política. Quanto a Luís, distrai-se. Caça, joga, dança, en- quanto a mãe reza. Ostenta apenas a sua soberania em se- qüências descontínuas: quando entra na cidade pacificada de Bordéus antes de se instalar durante dois meses e meio em Toulouse, onde se certifica da submissão do Parlamento e dos capitouls. Em Aix, recebe o preito e a homenagem de Condé. Visita os restos mortais dos seus antepassados no san- tuário real de Sainte-Baume. Em Marselha, principalmente, entra como um vencedor depois de ter canhoneado as mura- lhas, para pôr fim duramente, às veleidades de independên- cia da cidade. Noutros lados, o rei é recebido, evidentemente, com as honras devidas. Mas, no dia a dia, a viagem está, segundo parece, menos preocupada em mostrar o espectáculo da eficácia monárquica ao país que atravessa. Este episódio marca também o fim provisório de uma longa história. A última entrada real em Paris tem lugar em 1660. Durante o seu reinado pessoal, Luís só sairá para a guerra e para reconhecer as províncias anexadas, antes de encerrar a realeza em Versai lies em 1682: Versailles, resumo 9 Journal contenant la relation véritable et fidelle du voyage du Roy, & de son Eminence pour le Traité du mariage et de sa Majesté, & de la Paix générale, Paris, 1659-1660. Agradecemos a Jean Boutier e a Daniel Milo que nos ajudaram a constituir este dossier. CAPÍTULO IV 111 da França e do mundo, mas lugar longínquo, lugar abstrac- to onde se estendem os laços fundadores instituídos entre o poder real e o território. Mais seguro, o soberano poderá daí em diante — contra o desejo de Colbert — ignorar um ter- ritório que domina melhor. A mais longo prazo, mé possível que o magnífico exílio do rei fora do seu reino tenha sido pago caro pela monarquia absoluta. De qualquer modo, se a centralização do poder é, em França, uma característica de muito longa duração, a sua imobilização completa é tardia e talvez mesmo anómica. 0 regresso ao território f Neste sentido, durante mais de dois séculos, o poder pa- rece ter-se tornado sedentário. É um facto que a partir desse 1/ momento a sua natureza muda. Outras formas de controle ptf do espaço vieram substituí-lo a pouco e pouco. Durante o Antigo Regime, até à Revolução e mesmo para além desta, a França foi obstinadamente dominada por uma série de ins- tituições, de equipamentos, de redes sobrepostas que des- multiplicaram, a partir do centro, a presença da autoridade soberana. Esta permanece una, mas passou a possuir meios de se fazer sentir em toda a parte. Pode dar-se ao luxo, pois, de prescindir da viagem. Ou pelo menos assim o crê. Porque basta que se sinta menos segura de si própria, menos legítima e mais desprote- gida, para que instintivamente reinvente a velha fórmula^-do regresso ao território. Em Dezembro de 1848, no fim de um ano de experiências e de aventuras políticas que terminaram na confusão e na divisão, Luís Napoleão Bonaparte foi eleito Presidente da República por sufrágio universal. Obtém quase três quartos dos votos mas o seu crédito permanece incerto; a sua pessoa e a sua função são postas em causa pela classe política. Precisa, portanto, de se afirmar. Fá-lo-á desenvol- vendo uma política cada vez mais autoritária, de controle e repressão. Mas também procurando no país a investidura que Paris parece regatear-lhe. Menos de um mês depois da vitória, «anuncia-se que o Presidente da República, assim 'que o seu 112 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO Governo esteja organizado, logo que o impulso dado aos as- suntos pendentes e o trabalho das combinações ministeriais e administrativas esteja terminado, fará aquilo a que chama a sua volta à França». Assim, tem que esperar até ao Verão de 1849 para inaugurar uma série de viagens, cuja cronolo- gia é estreitamente comandada pela conjuntura política. Um total de dezasseis saídas, dezasseis explorações do território que lhe permitirão, em quatro anos, visitar cinqüenta de- partamentos1 0 . Às visitas presidenciais são de natureza muito variável. Algumas são pontuais; outras constituem verdadeiras expe- iy |;í"dições que culminam com a viagem de trinta e dois dias ^ j / que, em Setembro e Outubro de 1852 — na véspera da res- Y^ .fc tauração do Império —, conduz Luís Napoleão a atravessar a França reticente do Sul, a Provença, o Languedoc e a Aqui- tânia. Apesar das suas diferenças, estas viagens apresentam um certo número de elementos comuns. Todas elas são for- t^ temente ritualizadas: a chegada pelo caminho-de-ferro, símbolo J 1 novo e duplo da modernidade e da coesão territorial, o ri- tual cívico da entrada, a missa, a revista às tropas e a apre- sentação da Guarda Nacional, o encontro com os dignitários por ordem hierárquica e o banquete final são os seus mo- mentos obrigatórios. Todos estes momentos reivindicam, uma função de conhecimento: àquele que aspira a uma verdadeira : l e g i t i m i d a d e , compete apropriar-se dos pormenores da Fran- ' ça. De caminho, «o Presidente da República vai dedicar-se a q. ^ Í efectuar um grande inquérito popular». Visita principalmente ^ cidades, fábricas, portos, oficinas, monumentos. A própria geografia destas deslocações é reveladora. Contrariamente aos seus predecessores reais, Luís Napoleão não tem fronteiras a defender. A integridade do território já não se encontra amea- çada. A França que ostensivamente descobre é a do número, da riqueza, do comércio e da indústria. Ignora pois as zonas mortas, as montanhas agrestes, os Alpes, os Pirenéus, o Maci- 10 Ut i l izamos aqui a dissertação de maitrise de Gil les Cosnier, «Le voyage présidentiel et sa mise en scène sous la Deuxième Répu- bl ique» , sob orientação de A. Corbin, Universidade de Tours, 1984. Agradecemos a Alain Corbin ter-nos comunicado este trabalho inédito. CAPÍTULO IV 113 ço Central. Descura a Bretanha, um beco sem saída. Des- loca-se sobre os grandes eixos da modernidade, com uma predilecção evidente pela metade setentrional do país.' A imprensa do regime entusiasma-se: «Há, nesta inicia- tiva, qualquer coisa de sincero, de honesto e de simpático ao mesmo tempo, que impressionará favoravelmente as mas- sas.» Mas a intenção da viagem vai, de facto, muito para além da simples propaganda. O que se procura a todo mo- mento, é uma entronização renovada que confirmará a do sufrágio universal. O ritual transforma-se em prova. O pre- sidente oferece-se à contestação dos gritos rebeldes — en- contrá-la-á por vezes —, não hesita em avançar perante zo- nas hostis. Precisa de reforçar a sua autoridade em contacto com aqueles que lha investiram. O governador civil que o recebe em Chartres na sua primeira saída, a 1 de Julho de 1849, compreendeu-o bem, e declarava: «O senhor não foi [...}, Senhor Presidente, o eleito de nenhum partido, mas o de toda a gente.» E é a essa «toda a gente» que, como no tempo dos Valois, compete reconhecer o novo soberano. Ins- tintivamente, reencontra-se o velho aparelho simbólico: as chaves, os pendões e as divisas, o arco de triunfo, os sinos e o Te Deum. Mas ele só é eficaz porque em cada etapa, o que se trata de assegurar é uma verdadeira tomada do poder terri- torial. Aquando da expedição de 1852, ela identifícar-se-á por fim com o projecto de uma «revista à população civil» que, centrada no povo urbano, «seria formada pelos habitan- tes do campo, tendo à cabeça os presidentes das Câmaras, os adjuntos e conselheiros municipais, com as bandeiras, divi- sas e pendões de cada comuna»11. Não écertamente indife- rente que no momento em que se prepara para tomar posse de um novo Império, Luís Napoleão tenha sentido a necessi- dade de se confrontar com a França das comunas. Oferece- -lhes o espectáculo da soberania, ao mesmo tempo que re- conhece a sua dívida. Deveremos considerar as viagens presidenciais de Luís Na- poleão Bonaparte como uma simples reminiscência, sobrevi- 11 Circular confidencial do ministro do Interior Persigny,, com data de 9 de Setembro de 1852; citada por Cosnier, op. cit., anexos. 114 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO vencia tardia de uma política secular do espaço? Nada é menos seguro. Sem dúvida que a partir de meados do século XIX, a morfologia, as modalidades e a própria tecnologia das via- gens se transformam. Na mesma época, o poder do Estado acaba de se laidzar, ao mesmo tempo que tende a tornar-se mais impessoal, mais abstracto. O espaço francês, fixado daí para o futuro, reduz-se espectacularmente: o caminho-de-ferro e depois o avião, a fotografia e depois a imagem animada, a imprensa escrita, a rádio, a televisão aceleram-no e unificam o seu conhecimento. Multiplicadas a partir daí, as desloca- ções podem tornar-se pontuais e quase instantâneas. Mas é curioso, por isso mesmo que, apesar destas grandes mudan- ças, a viagem tenha permanecido uma forma privilegiada que permite à soberania pública fazer-se reconhecer, construir a sua legitimidade e reforçar a sua autoridade em contacto com o território nacional. É o caso, como seria de esperar, de toda a tradição bona- partista, que assume como programa a mobilização, para além X ^ da hierarquia das instituições representativas e dos apare- p x ' lhos políticos, a adesão do maior número na sua máxima ex- ^ c V y „" tensão espacial. Napoleão III saberá recordar o êxito da expe- riência do príncipe-presidente e fazer das suas deslocações ò^ / província o meio de uma propaganda enérgica,/ Com o ^" ^ cr* triunfo dos bons tempos do Império autoritário, voltar-se-á a tentar, quinze anos mais tarde, reunir a França profunda J y f^ em torno de um soberano e de um regime em situação afli- V tiva. A exibição mostrar-se-á insuficiente. Mas nem por isso desvalorizará a viagem enquanto recurso político. Boulanger e os seus colaboradores tentarão construir uma ofensiva con- tra a Terceira República, iniciada em 1887-1889, recorren- do a uma série de campanhas regionais e mesmo cantonais. 'Mais tarde, De Gaulle continuará a pôr à prova o seu caris- ma bem perto da França real: do discurso de Bayeux (16 de \ Junho de 1946) ao lançamento nacional do Rassemblement u f du Peuple Français (1947-1948) e às viagens oficiais das ^ A v- quais se faz, uma vez chegado ao poder, um dos grandes ^ ^ rituais da nova República. Simples visitas, comícios de mas- 3- % y ^ sa, declarações solenes: o percurso do espaço quer-se, bem l. > entendido, mobilizador. Mas visa também alicerçar o reco- • ç f CAPÍTULO IV 115 • » nhecimento da autoridade na indispensável investidura do «país, em profundidade».' ' Contudo, a viagem de Estado não caracteriza, apenas, os empreendimentos políticos que se identificam com o êxito de um só indivíduo. Poderes divididos, personalidades mais indistintas, programas menos visíveis, podem também reco- nhecer-lhe as vantagens. É o caso de Vincent Auriol, pri- meiro presidente de uma Quarta República mal-amada desde o nascimento que cedo pareceu dar uma forma institucional às discórdias que dilaceravam o país a seguir à Segunda Guer- ra Mundial12. Este democrata exemplar não tem ambições pessoais. De qualquer modo, a Constituição aprisionava-o num papel de representação, de arbitragem no melhor dos casos, do qual não tencionava sair. A sua tarefa, tal como a conce- bia, consistia em defender o regime contra os ataques de que era alvo, e em reunir os Franceses no esforço urgente da Reconstrução. Significativamente, este presidente discreto confiava, em larga medida, à viagem, o próprio sentido da sua missão: «É absolutamente necessário ir até ao país.» Per- correu-o. E que viu nele? Cidades martirizadas, cemitérios, ruínas; províncias resistentes, desde a Savoie, ao norte e ao Languedoc, cidadelas socialistas, os altos dignitários da República; a juventude das escolas e dos ginásios. Durante os três primeiros anos do seu mandato, consola, encoraja, inaugura. Celebra Joana d'Are em Orléans, Salengro em Lille, Robespierre em Arras, Herriot em Lyon. Incansavelmente, prossegue através do país a improvável geografia de uma unidade nacional impossível de encontrar. Em toda a parte evoca a história, que reúne os homens em face da desgraça: «Também eu liguei o presente ao passado.» Apresenta a Fran- ça à França. Mas não se fica apenas por aí. Ao mesmo tem- po, reinventa a sua própria função e, através dela, dedica-se a acreditar, contra todos os obstáculos, o regime de que é o primeiro dignitário. O diário que redige dia-a-dia teste- munha incessantemente esta dupla preocupação. Em Junho de 1949, anota com satisfação: «Em todas as visitas que te- 12 Segundo V. Auriol, Journal du septennat (1947-1953K publicado sob orientação de P. Nora e J . Ozouf, Paris, A. Colin, 1970-1,980, 7 vols. 116 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO nho feito desde há quase três anos, foi possível verificar que a unidade nacional se afirmou com brilho e sem nenhum in- cidente, em torno da França e da República [. . .] .» No ano anterior, após três dias extenuantes passados na Alsácia, Robert Schumann confortara-o acerca do seu propósito: «Está canga- do, fez um grande esforço, mas é uma boa aposta.» O desti- no da nação, mas também a fadiga, o dom de si mesmo à multidão, mas também o sentido burguês do investimento: estes elementos não são contraditórios, e se as viagens de Auriol não os impõem, não se conclua que não têm impor- tância e grandeza. Num momento em que a autoridade do Estado, que ele encarna, está debilitada, a peregrinação pre- sidencial reencontra, como que por instinto, o velho recurso real do espaço. Este socialista, filho do povo republicano, terá ficado, sem dúvida, feliz com este comentário de um operário ao seu filho, durante a passagem do cortejo oficial em Calais: «Queres saber o que é um presidente? Leste na história que houve os reis de França? Ora bem o presidente, é o rei de uma República13.» A função da viagem perpetua- -se assim até aos nossos dias. Transformou-se, adaptou-se, empobreceu-se talvez. Os presidentes da Quinta República, aliás superinvestidos de poderes constitucionais, conservaram no entanto o hábito de percorrer em todos os sentidos um país que a partir de certa altura passou a estar reduzido à metrópole. Acentuaram-no, e é dos confins da província que gostam de divulgar, dramatizando-as, as suas opções e os seus grandes projectos. Destas visitas conduzidas a passo rápido, espartilhadas pelo protocolo, não retiram, claro está, nenhum conhecimento novo. Limitada ao essencial, a viagem do po- der enuncia-se hoje sob o signo de uma constatação recíproca. Ao soberano republicano compete verificar se tudo está em ordem em toda a parte; De Gaulle, combinando humor e retórica, teve o gênio destes truísmos esplêndidos — «Saúdo Fécamp, porto de mar que pretende continuar a sê-lo», ou ainda: «Lyon nunca foi tão lionês14.» Espera-se ainda do povo 13 A historieta é relatada por P. Nora, op. cit., vol. 1, p. LXIX. u Citado por J . Lacouture, Citations Ju Président De Gaulle, Paris, Ed. du Seuil, 1968, p. 152. CAPÍTULO IV 117 reunido que reconheça o regresso da soberania pública en- carnada num homem que vem refugiar-se nele. Assim se per- petuou até às sociedades laicas de hoje a união simbólica do poder e do território. 0 inquérito: da visita à estatística A eficácia da viagem é, em primeiro lugar, simbólica. Quando se desloca, o soberanoaprende, na maioria das ve- zes, muito pouca coisa; também não é esse o verdadeiro ob- jectivo da iniciativa. Terá outros meios de conhecer o seu reino em concreto? A esta pergunta Robert Fawtier, que re- flectia acerca do reinado de Filipe, o Belo, pensava poder responder pela negativa. O pormenor do reino era então cons- tituído por uma rede demasiado complexa de terras e de direitos de natureza diversa para que fosse possível identifi- car a área da soberania com um território claramente deli- mitado e para que esse território pudesse ser objecto de um conhecimento positivo. No melhor dos casos o rei consegui- ria ter dele uma percepção jurídica e, sobretudo, fiscal: «Só interessava o rendimento que daí podia retirar e isso podia ser-lhe comunicado pelos seus agentes financeiros15.» Ape- sar de documentada, não é totalmente convincente. Mede a experiência dos homens da Idade Média pela bitola da nossa. Hoje pensamos em termos de território, aprendemos a me- dir as nossas informações, a distribuí-las num mapa. Não era seguramente este o caso dos contemporâneos de Filipe, o Belo. Podemos contudo tentar compreender os primeiros es- boços de apreensão do espaço francês, entre os séculos XIII e XV, ou seja, durante o período decisivo que vê a territo- rialização progressiva da nação como uma prova de que o conhecimento do país se torna uma exigência explícita. Esta evolução não é específica da França, onde acontece até mais tarde do que noutros lugares — em Inglaterra, por exem- plo; mas assume aí uma amplitude e um poder excepcionais. 15 R. Fawtier, «Comment, au début du XIV* siècle, un roi de France pouvait-il se représenter son royaume», art. cit. " 118 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO No momento em que a existência da nação se impõe como uma «convicção» partilhada16, em que o poder real se constrói e inventa novas fontes de legitimidade, em que o espaço francês se dilata, o domínio do território adquire uma im- portância decisiva. Os inventários medievais Às anexações realizadas por Filipe Augusto — como Ar- tois em 1191 e, principalmente, a Normandia em 1204-1205, onde herdará práticas administrativas inglesas — seguiram- -se os primeiros inquéritos ( inquisit iones) acerca dos recursos das novas províncias. A intenção é transparente: trata-se de avaliar de forma clara aquilo que estes territórios são sus- ceptíveis de render, e a preocupação fiscal e orçamentai vai continuar a ser, durante muitos séculos, o motivo principal de um melhor conhecimento do reino. Acresce que, durante estes anos, se constitui um gênero. Recuperou-se cerca de uma centena de inquéritos, cuidadosamente arquivados, le- vados a cabo apenas durante o reinado de Filipe Augusto. São de importância variável. Alguns deles incidem sobre as aquisições recentes, outros sobre domínios mais antigos na França Setentrional; interessam-se também por uma vasta gama de problemas, com uma predilecção marcada pelo patrimônio florestal que se quer, conjuntamente, proteger e explorar melhor; requerem por vezes uma competência específica da parte do inquiridor. Estas visitas freqüentemente reiteradas, testemunham bem da vontade de reunir e manter actualiza- do um corpus de informações acerca do reino17. É com São Luís que a iniciativa adquire a sua maior am- plitude, Quando preparava a sua partida para a cruzada, em 16 B. Guenée, VOccident aux XIV et X V siècles. Us Etats, Paris, PUF, 1971; C. Beaune, Naissance de la nation France, Paris, Gallimard, 1 9 8 5 . 17 J . W. Baldwin, The Government of Philip Augustus. Foundations of French Royal Poiver, Berkeley, Univcrsity of Califórnia Press, 1986, em particular, pp. 248-258 . CAPÍTULO IV 119 1247, o rei quis deixar o reino em ordem e reparar os erros que poderia ter cometido. Decide então levar a cabo, desta vez à escala de todo o país, uma espécie de vasto «exame de consciência» que testemunha, para além da preocupação re- ligiosa, uma percepçãq, já clara dos perigos ligados ao cresci- mento do Estado, e a vontade de conhecer os abusos e de os corrigir. Mais, o processo é retroactivo e poderá retroceder, se tal for necessário, até ao tempo de Filipe Augusto. Os inquiridores, clérigos e laicos, partem freqüentemente em conjunto para recolher as queixas da França. Reúnem uma dezena de milhar de respostas, de natureza e importância muito variadas. Esta iniciativa espectacular tem uma tripla importância. Testemunha, em primeiro lugar, do domínio do soberano sobre boa parte do seu reino tanto por intermé- dio da administração normal (bailiado e senescalias), como por intermédio dos seus enviados especiais; começa a existir um grupo de indivíduos que possui competência e meios para a exercer, em quem também os súbditos mostram confiar. Mostra, em seguida, que este dispositivo permite, em mui- tos casos, um conhecimento preciso das situações locais e pode mobilizar uma espécie de memória administrativa e polí- tica. Liga por fim, de forma audaciosa, o trabalho de infor- mação com o de gestão do contencioso, antecipando uma fórmula que acabará por se impor muitos anos mais tarde (lembremos que no mesmo momento, o processo de apelo, que contrabalança o poder crescente dos oficiais locais, se torna mais freqüente). Trata-se de facto, como notou G. Si- véry, de «fazer aceitar o poder real» ao país, ao mesmo tem- po que se melhora a sua eficácia'8. A experiência de 1247 é excepcional tanto na sua inten- ção como nas suas modalidades. Conhecerá adaptações a par- tir do momento em que o rei regressa da Terra Santa, ao mesmo tempo que se institucionaliza. O inquérito tende ra- pidamente a tornar-se uma forma normal da actividade monárquica. As informações reunidas orientam a reforma 18 Cf. em último lugar G. Sivéry, «Le mécontentement dans le royaume de France et les enquêtes de Saint-Louis», Revue historique, 1, 1983, pp. 3-24. 120 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO administrativa levada a cabo por São Luís em 1254. Os in- quiridores, que a partir do início do século XIV se chamam «inquiridores-reformadores» ( e n qu ê t e u r s - r é f o rma t e u r s ) , passam a ser agentes regulares do soberano apesar de a duração e periodicidade das suas missões nunca terem chegado a ser fixadas. Entre 1270 e 1328, são assim levados a efeito cerca de uma centena de inquéritos por todo o país. Mas à medida que a tarefa se banaliza e se torna, aliás, mais complexa, o significado da missão altera-se. Os inquiridores são cada vez menos encarregados de corrigir os erros do Estado, e cada vez mais investidos de poderes coercivos. De Luís IX a Filipe, o Belo e mesmo depois, vão passando a ser progressivamente identificados com a defesa dos direitos e das prerrogativas — em primeiro lugar fiscais — da coroa. Por vezes brutal, a sua intervenção pode ser questionável e justificar um con- tra-inquérito, como é o caso do Languedoc, em 1297-1298. Acontece ainda que, mesmo quando a sua reputação se de- grada, exercem através do espaço francês uma vigilância monárquica que incide tanto sobre a administração local como sobre os simples súbditos19./ Os inquiridores estão encarregados de conhecer a França. O que é ela de facto? O território da sua missão pode ser de importância muito variável: é por vezes um bailiado, por vezes uma província inteira; o mesmo acontece com os meios postos à sua disposição. Contudo, prevalece a impressão de uma real — e por vezes assustadora — eficácia do trabalho efectuado no local. Sob Filipe, o Belo, Raimond de Poujoulat pode assim ser encarregado de delimitar a delicada fronteira entre as senescalias de Beaucaire e de Carcassonne e Filipe, o Converso dá provas de uma competência notável na gestão das florestas reais*0. Mas o documento que dá melhor a me- dida do domínio do espaço adquirido em algumas gerações, é o Estado das freguesiase dos fogos de 1328. Trata-se do primeiro documento deste tipo, chegado até nós, que resume e totaliza os resultados de uma quantidade de operações lo- 19 J. Glcnisson, «Les enquêteurs-réformateurs de 1270 a 1328» , Po- sitions de thises de /'Eco/e nationale des Chartes, Paris, 1946, pp. 81-88. 10 J . Favier, Philippe le Be/, op. cit., pp. 21-22. CAPÍTULO IV 121 cais e através de algumas delas podemos entrever a minúcia com que foram estabelecidos. No momento em que a mo- narquia entra numa guerra interminável, o projecto do in- quérito demográfico é estabelecer de forma mais exacta os recursos do reino. Os resultados, publicados e criticados por F. Lot, demonstram que, à excepção dos grandes feudos (Bre- tanha, Guyenne, Borgonha, Champanhe, Flandres) e dos pri- vilégios, que escapam à administração regular do rei, o rei- no pode ser conhecido de forma bastante satisfatória — pelo menos plausível21. É o que sucede localmente, no quadro lo- cal dos bailiados e das senescalias. É o que também pode acontecer através de uma recapitulação feita à escala de todo o território governado. Nascimento da estatística Neste sentido, o conhecimento do território tornou-se inseparável do exercício da soberania desde muito cedo. Foi tributário das necessidades e do desenvolvimento de uma administração pública que tendia a cobrir a França com uma rede simultaneamente mais apertada e mais regular. Mais centralizada também: Luís XI, a «aranha universal», é o seu símbolo, na segunda metade do século XV. «Nunca nenhum homem prestou tanta atenção às pessoas, nem se inteirou de tantas coisas como ele, nem quis conhecer tanta gente como ele» (Commynes). A sua teia, atentamente tecida, perma- nece no entanto inacabada e os meios do poder central per- manecem insuficientes, ao ponto de requerer deste soberano itinerante que se sirva • dos seus próprios meios para satisfa- zer a vontade de saber. No entanto, à medida que se avança em direcção à Idade Moderna, os processos de conhecimento tornam-se mais anônimos; a observação e recolha dos dados passam a ser cada vez mais asseguradas por instituições re- gulares e, pouco a pouco, sedentárias — o que não implica, aliás, que a qualidade da informação ou a sua exaustividade 21 F. Lot, «L'Etat des paroisses et des feux de 1328», Bibliothèque de /'Eco/e des Charles, XC, 1929, pp. 51-107 e 256-315- " 122 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO tenham sido proporcionais ao crescimento do equipamento administrativo do reino22, f O Antigo Regime é, assim, atravessado por uma longa gestação conduzindo da visita à estatística. Está ainda ina- 0 ' cabada quando surge a Revolução a qual, longe de interrom- per este processo secular, vai acelerá-lo e inflecti-lo23. Para além das suas diferenças, os momentos sucessivos desta evo- lução apresentam um certo número de características comuns. Muito antes que o termo «estatística» fosse utilizado, eles testemunham do papel preeminente do Estado nas operações de conhecimento, que desde muito cedo foram tidas como prerrogativa real. Este traço é, à partida, comum à maioria dos Estados europeus, mas é mais acentuado em França, e tem aí uma maior duração do que em qualquer outro lugar. " , É, evidentemente, o imperativo fiscal, a necessidade de pre- \> ver melhor os recursos e de determinar de forma mais eficaz " . J n>7os impostos, que explica o investimento precoce e constan- . T ^ v ,jv 'te da autoridade pública nestas matérias. Trata-se, neste ca- ' ò s o , de poder avaliar, especialmente nos momentos difíceis — guerras ou crises — as capacidades do país real. Do mes- mo modo esta medida é, em primeiro lugar, e durante mui- to tempo, de natureza prioritariamente demográfica/ Muito antes de terem começado, no último século do Antigo Re- gime, as interrogações e as polêmicas acerca do declínio ou do crescimento da população, o recenseamento dos homens deveria satisfazer as exigências do poder central, desde o Tri- bunal de Contas medieval ao Controle geral moderno. Daqui resulta uma tripla conseqüência. O saber assim constituído acerca da França é completamente tributário das necessida- des, dos meios e da eficácia de uma administração que, na prática, permanece subequipada até ao século XVIII. Iden- tificada às exacções dos agentes fiscais, a pesquisa da infor- 22 Estes problemas são desenvolvidos no segundo volume da His- tuire de la France, dir igida pelo autor e A. Burguière, Paris, Ed. du Seuil, 1989. 2i Pour une histoire de la statistique, publications de 1'INSEE, Paris, 1976, t. 1: vejam-se, em particular, as contribuições de J . Hecht, J . Dupâquier e E. Vilquin, J . -Cl . Perrot. CAPÍTULO IV 123 mação é, por outro lado, suspeita aos olhos dos súbditos e é freqüentemente objecto de recusa ou de tácticas de evasão que lhe limitam, o alcance — tanto mais que uma reticên- cia bíblica muito antiga se liga ao recenseamento cujo pro- jecto parece querer usurpar as prerrogativas divinas. Por fim, porque é um fenômeno que depende do rei, porque tem im- plicações políticas e militares evidentes, o conhecimento dos povos e do território participa essencialmente do segredo de Estado. Durante muito tempo, interessa apenas a um grupo restrito de gente com poder de decisão. «O que me enviais não deve tornar-se público», escreve o duque de Beauvilliers aos intendentes, em 1697. É preciso, com efeito, esperar pela Revolução para que a informação estatística seja proclama- da «um bem colectivo dos cidadãos e não um bem privado do monarca» e para que seja objecto de uma publicidade de- clarada. Nesta história que se estende durante séculos, a viragem do século XIII para o século XIV tinha constituído um pri- meiro momento importante. A afirmação da monarquia abso- luta apoiada num poderoso movimento de centralização admi- nistrativa marca um segundo momento nos séculos XVII e XVIII. As necessidades crescentes do Estado requerem uma apreensão mais exacta do reino. Determinam, pois, uma sé- rie de inquéritos a um ritmo constante24. Alguns são sim- ples recenseamentos que deverão ter tido precedentes, pro- vavelmente, no século XIV. Outros constituem verdadeiros trabalhos de estatística aplicando ao conjunto do território uma complexa grelha de leitura. O primeiro exemplo é, em 1630, o inquérito pedido pelo superintendente de Effiat aos comissários reais encarregados de introduzir os impostos nas províncias; é-lhes prescrito que contem, não apenas as fre- guesias e sua população, mas também o número de clérigos e oficiais, o valor dos ofícios e os recursos fiscais, a activi- dade dos mercados e o estado dos feudos. A experiência é repetida em 1634 e ainda em 1664, por Colbert, quando a vontade de conhecer melhor o funcionamento da administra- 24 E. Esmonin, Etudes sur la France des XV//' et XVI11' siècles. Paris, PUF, 1964. 124 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO ção real e de lhe corrigir os defeitos conduz o ministro a pedir aos intendentes toda uma gama de informações sobre a justiça, as finanças, certas infra-estruturas e trocas, sobre os governos militares e sobre a hierarquia eclesiástica. Col- bert desejava ainda dispor de mapas geográficos e adminis- trativos satisfatórios, de tal forma o inventário dos recursos do reino parecia inseparável do controle de um espaço unifi- cado que os dois aspectos apoiam, na mesma época, tanto o programa absolutista como o projecto mercantilista. Nos últimos anos do século XVII, talvez seja o inquérito decidido „por instrução do duque de Borgonha (1697) aquele que oferece a versão mais acabada da ambição estatística. Constitui também a ocasião mais carregada de significado simbólico: não é verdade que se trata de apresentar a França ao delfim, uma criança de catorze anos? Fénelon tinha-o exor- tado a conhecer o seu futuro reino num texto célebre: «Não bastasaber o passado; é preciso conhecer o presente; sabeis o número de homens que compõem a vossa nação? quantos homens, quantas mulheres, quantos trabalhadores, quantos artesãos {...]. Que se diria de um pastor que não soubesse o número do seu rebanho? É igualmente fácil para um rei sa- ber o número do seu povo: basta querer [...]. Deve saber os diversos tribunais estabelecidos em cada província, os direi- tos dos cargos, os abusos desses cargos, etc. Um rei que ignora todas estas coisas não passa de um semi-rei: a sua ignorân- cia incapacita-o de endireitar o que está torto, causa-lhe um mal maior do que a corrupção dos homens que governam em seu nome25.» Eis aqui enunciados simultaneamente as justificações e o programa de um inquérito cuja realização freqüentemente laboriosa, deveria prolongar-se por três anos. Os trabalhos que daí resultaram são de valor muito desigual e as informações procuradas muitas vezes decepcionantes. Mas, isso pouco importa afinal, uma vez que é o projecto pedagógico e político que conta antes de mais: «conhecer o estado pre- sente do reino», ou seja, apreender um corpo político e so- 25 Fénelon, «Examen de conscience sur les devoirs de la royauté, composé pour 1'éducation du duc de Bourgogne» (1697?), citado por Esmonin, Etudes, p. 119- CAPÍTULO IV 125 < ciai, funcionamentos administrativos e econômicos no inte- rior de um espaço. Mas que espaço? Convém distinguir, como faz J.-Cl. Per- 1 rot, dois ramos divergentes da estatística, cujas características r s * ^ próprias se irão acentuando no último século do Antigo Re- v v* gime26 . O primeiro, que se aproxima dos princípios da •/ 'f aritmética política à maneira inglesa, não tem relação cons- / ^titutiva com o espaço. Recolhe os dados em escalas variáveis mas propõe-se fundamentalmente inscrevê-los numa série ^ temporal; escolhe medir evoluções. Quando Vauban propõe, fl' c V c e r c a de dez anos antes de La Dime Royale, um Método geral e fácil para fazer o recenseamento dos povos (1686), delimita os > /V-' princípios de uma iniciativa que é precisamente geral e que pode ser levada a cabo, indiferentemente, à escala de uma cidade, de uma eleição ou da França inteira — como irá acontecer, pela primeira vez, em 1694 com o recenseamento por cabeça realizado para o estabelecimento da capitação nesse ano. Os resultados destinam-se a ser comparados com da- dos futuros e este confronto permitirá destrinçar regularida- des e tendências.,/ Este modelo de análise encontra-se em toda uma vasta gama de inquéritos que incidem, cada um, de Colbert à Revolução — e para além dela — sobre um tema único: o número de homens, a produção das minas e das manufacturas, os recursos agrícolas, o comércio, as subsis- tências, os preços ou os salários27. Constituem uma parte importante do enorme material estatístico reunido no último século do Antigo Regime pelos administradores, cada vez mais preocupados em dispor de avaliações globais para apoiar as suas opções, e por demógrafos como Expilly, Moheau ou Des Pomelles, que procuram fundar, sobre dados mais segu- ros, as suas reflexões acerca do destino da «populaça». /Existe uma segunda abordagem, oposta em tudo à pri- •r y* meira e na qual o espaço é, pelo contrário, o próprio objecto de análise. Remete para uma outra tradição, particularmente 'r V ^ 26 J . -Cl . Pcrrot, L'âge dor de la statistique régionale française (an IV- -1804), Paris, Société des études robespierristes, 1977. 27 Encontramos uma apresentação sumária em B. Gille, Les sourcu statistiques de 1'histoire de Trance, Genève-Paris, Droz, ' 1964, pp. 46-100. 126 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO florescente no mundo alemão, cujo modelo se propõe em Fran- ça com o grande inquérito de 1697. Ao número organizado em séries, esta estatística descritiva prefere o quadro mo- nográfico que tem em conta todos os aspectos de uma situa- ção local e procura reconstruir o sistema de relações que os une. À abstracção aritmética, opõe a fidelidade de uma cópia feita «a partir do real». Porque tudo pode e deve entrar na descrição explicativa: as condições naturais — um solo, um clima, uma vegetação, um regime de águas — como as con- dições sociais — o número de homens, o seu «temperamen- to», as suas actividades, o seu comportamento e a£ suas tra- dições. É a combinação variável destes diferentes factores que define as particularidades do lugar. O inquérito propõe-se como objectivo muito mais aquilo a que se chama por vezes no século XVIII, uma «história natural» baseada na analo- gia do que um inventário sociológico. O geógrafo Darluc exprime-o bem quando afirma, nos últimos anos do Antigo Regime: «A história natural de uma província que tivesse apenas como objectivo a simples enumeração dos seus fósseis, a descrição das suas montanhas, do seu clima e das suas pro- duções serviria, apenas, para satisfazer a curiosidade. Pelo contrário, aquela que ligasse todas estas diferentes partes entre si e tratasse de retirar daí induções relativas à espécie huma- na, e as trouxesse, tanto quanto possível, à utilidade públi- ca [ . . . ] seria muito mais preciosa28.» A lição é clara: para compreender as organizações sociais e para as gerir da melhor maneira, é preciso conhecer o conjunto das suas determina- ções, reconstituir-lhes ao mesmo tempo a gênese e o sistema. Um tal empreendimento requer necessariamente espa- ços restritos de observação. Põe em jogo um número dema- siado elevado de variáveis para poder ser alargado e, afinal, não é verdade que tem por finalidade identificar as proprie- dades de um lugar específico? Tende pois a justapor inqué- ritos monográficos onde a aritmética política propusera uma apreensão global do território. A estatística descritiva é tan- 28 Darluc, Histoire naturelle de la Provence..., 1782, p. VII, citado por N. Broc, La géographie des philosophes. Géographes et voyageurs fran- fais au XVIII' sièc/e, Paris, Ophrys, 1975, p. 407. CAPÍTULO IV 127 < to mais tendente a produzir este esboroamento do espaço ^quanto é, muito amplamente no século XVII, obra de um meio original. Os seus principais promotores já não são o Estado e os seus agentes mas a iniciativa privada: uma rede espontânea de viajantes e geógrafos, de economistas, de agrônomos e de médicos, de administradores de nível mo- desto e de dignitários locais. Todos são homens das Luzes e todos procuram o bem público./ A maior parte deles tem — ou adquiriu — uma experiência de campo cuja singulari- dade funda, aos seus olhos, a exemplaridade. Não duvidam que cada um dos seus inquéritos esteja vocacionado para se tornar uma peça de um vasto puzzle nacional; mas recusam- -se a extrapolar resultados que apenas têm valor pelo facto de serem específicos. Os dados que reúnem têm essa vocação para ser confrontados, no interior de uma combinatória gi- gantesca que é o verdadeiro fim — assimptótico, será ne- cessário dizê-lo? — da iniciativa. O inquérito que organiza, a partir de 1775, a Société Royale de Médecine por iniciativa do seu fundador, Vicq d'Azyr, pode aqui servir de modelo. Preparado pelas primeiras topografias médicas regionais, confia a uma rede de correspondentes, que esquadrinharão o terri- tório, a tarefa de um «plano topográfico e médico da Fran- ça». Em poucos anos acumula, assim, um enorme material, único e contudo de utilização difícil porque é demasiado díspar. Como as monografias dos acadêmicos de província, os rotei- ros dos viajantes ou as relações dos agrônomos, privilegia o espaço concreto. Mas desenha uma França resplandecente, apesar de inacessível. Descrever ou contar? Posto nestes termos, o debate atravessa o século das Lu- zes e culmina nos anos decisivos da Revolução e do Impé- rio29. O conhecimento do território — e de facto, o próprio 29 Perrot, Vage dor, op. «/.; M.-N. Bourguet,Déchiffrer la France. La statistique départementale à l'époque napoléonienney Paris, Editions des archives contemporaines, 1988. « 128 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO * território — tornam-se então, declaradamente, problemas i políticos que põem em causa o destino da nação. A mobili- zação contra as ameaças do interior e do exterior foi ne- cessária desde muito cedo. A crise econômica, a penúria, a guerra, mas também a vontade proclamada de realizar na Terra a felicidade dos homens, exigiam que o novo regime pudesse conhecer a todo o momento o estado da França, tan- to os recursos materiais e morais como o número de cida- dãos. Deveria providenciar os meios de responder às urgên- cias de curto prazo, precisava também de construir o espaço nacional e de demonstrar a sua unidade através da selecção sistemática da informação. Dupla exigência a que corresponde 3 uma dupla estratégia do inquérito. i Em primeiro lugar, efectua-se toda uma série de recen- seamentos parciais que, na tradição das estatísticas temáticas ^ da monarquia, têm por objectivo fornecer ao poder político * uma informação imediatamente utilizável na preparação das suas decisões. Estas operações multiplicam-se nos tempos de crise em função de necessidades imediatas. Os Comitês da Convenção dispõem assim, em dois anos, de um recensea- mento dos homens em idade de combater, de vários inquéri- tos sobre os meios e produtos da agricultura, sobre o estado das subsistências, sobre a actividade dos diversos ramos in- dustriais. Tal como já acontecera com as suas precursoras, estas operações centralizadas não conferem importância par- . ticular à distribuição espacial dos dados que reúnem. Expri- mem um jacobinismo «autárquico e veemente» (J.-Cl. Per- rot) cuja principal preocupação é mobilizar, sob a forma de números e de quadros, as possibilidades do país e pô-las ao serviço do governo e da República. É verdade que por vezes, este espaço de que se pensa poder ignorar a diversidade, os desníveis e até a existência, faz-se lembrado no espírito dos políticos parisienses: quando, por exemplo, os administrado- res locais sobrecarregados de circulares e de perguntas, reve- lam através das suas queixas — por vezes pelo seu silêncio — as desigualdades da França real. Para além das urgências, o esforço estatístico conhece, > contudo, outras motivações. A Revolução funda uma nação. Instaura uma nova ordem através de um território cujos por- CAPÍTULO IV 129 menores necessita conhecer para melhor integrar todos os pontos, para melhor os associar ao projecto político e social de que se quer portadora. Já não se trata aqui de contar para decidir, mas de apreender o verdadeiro estado da Fran- ça começando pelo inventário das suas diferenças. A prepa- ração da divisão departamental no Outono de 1789 foi oca- sião para uma primeira visão de conjunto, aliás largamente espontânea. Esta imensa reorganização do espaço adminis- trativo, levada a cabo em apenas alguns meses, põe a nu todo um leque de representações do território; torna sensíveis fenômenos atávicos e solidariedades, exclusões também, que até aí tinham tido apenas existência local. Ora, é porque a Revolução quer reunir os Franceses que faz da diversidade das suas situações um problema cujos dados necessita conhe- cer. A partir deste primeiro inventário deverá ser possível medir os progressos efectuados, as transformações benéficas do novo regime, os atrasos e as recusas: apresentar um ba- lanço, comparar um antes, e um depois. Amplos questionários interrogam as comunas ou os departamentos, já não apenas acerca dos recursos mas sobre todos os aspectos da vida so- cial e sobre o «espírito público», síntese da informação reco- lhida e verdadeiro objectivo destes inquéritos. Por fim dá-se o Termidor e o golpe desferido sobre o avanço da Revolu- ção. A França reencontra uma base mais estável, escapando durante um certo tempo à dupla pressão política e militar. Tentar descrevê-la é simultaneamente constatar um ponto de chegada e fixar uma nova origem. O primeiro-ministro do Interior do Directório, Bénézech, di-lo claramente na cir- cular que envia, nos finais de 1795, aos administradores dos departamentos: «Só desta maneira e através da comparação do estado ou inventário que vos peço com a situação em que se encontrará a França dentro de alguns anos se poderão co- nhecer as vantagens de um governo livre e o bem que tiver- mos feito30.» Começa então «a idade de ouro da estatística regional». Dura menos de um decênio, e caracteriza-se por um esforço excepcional de descoberta e de descrição da França. O in- J 0Citado por Bourguet, op. cit., cap. 1. 130 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO quérito torna-se sistemático, ou melhor, enciclopédico. Jus- tapõe capítulos habituais de informação estatística e «tudo aquilo que se encontra de útil, de interessante, de digno de nota, no departamento, seja qual for a relação que possa ter com ele». Associa as vantagens complementares de uma ini- ciativa centralizada e de uma realização decididamente lo- cal. Em Paris, há uma série de responsáveis inventivos, ex- cepcionais, que se sucedem no Ministério do Interior: Fran- çois de Neufchâteau, Lucien Bonaparte e por fim Chaptal, que acreditam todos no projecto de uma Estatística da República. As suas ordens são executadas em Paris por mi- nistérios especializados, na província por uma administração estabilizada e mais eficaz, mas também por membros de gran- des corpos públicos, engenheiros de «Obras Públicas» e de Minas, professores das Escolas Centrais, etc. Tende-se assim a constituir uma rede nacional. Na prática, o inquérito pode mobilizar os interesses e as competências destes dignitários cultos, industriosos e políticos cuja emergência, na segunda metade do século XVIII, evocámos; podem explorar também materiais longamente acumulados. François de Neufchâteau vê nesta colaboração a realização da nova ordem política e social: «Compete apenas a uma República submeter as ope- rações do seu governo ao exame dos seus administrandos, dar-lhes anualmente conhecimento do emprego dos dinhei- ros públicos, chamar todos os cidadãos à discussão dos in- teresses do seu país.» Daí o carácter particular da iniciativa. Esta propõe-se realizar uma cobertura nacional do território, mas inscreve-se num quadro departamental; obedece a um questionário co- mum, mas privilegia aquilo que a originalidade de cada si- tuação local tem de irredutível. Para retomar o título de um inquérito realizado na mesma época, diríamos que propõe uma «estatística geral e particular da França»31. Daí resultam uma série de descrições e de quadros departamentais — cons- tantemente retomados, remodelados — e, para terminar, as J1 P.-E. Herbin, J . Pcuchet e al, Statistique générale et particulière de la France et de ses colonies avec une nouvelle description topographique, physique, agricole, politique, industrielle et commerciale de cet état, Paris, 1803, 7 vols. e um atlas. CAPÍTULO IV 131 grandes monografias para o projecto estatístico dos governa- dores civis, incompletamente realizado sob a orientação de Chaptal entre 1801 e 1804. Estes textos oferecem uma ima- gem contraditória da França. São peças de um edifício em construção e inscrevem-se numa perspectiva unitária; esta- vam previstos suplementos anuais que deveriam, aliás, asse- gurar a sua actualização e permitir medir os progressos da coesão nacional. Mas estas peças estão, de momento, separa- das. Mesmo quando respondem a um questionário e a preo- cupações comuns, os governadores civis, autores das mono- grafias departamentais, parecem fascinados pela diversidade francesa, pela evidência opaca dos particularismos. O pro- jecto acaba por resvalar no sentido de uma antropologia do local. Símbolo destas tendências contrárias: o trabalho de observaçãoe recolha dos dados aceita, ou melhor, reivindica o novo quadro departamental para reinventar aí os velhos hábitos da província. Damo-nos conta de que as peças do puzzle encaixam muitas vezes mal umas nas outras. Apesar de se ter feito «topografia», como diz Chaptal, o quadro explicativo dos factos naturais e sociais, o conhecimento glo- bal da nação, parecia ser temporariamente, impossível. Ape- sar de ter optado pela precisão, observando directamente o espaço real, a estatística regional manifestará o estado inaca- bado do território. Esta iniciativa não teve futuro. A evolução autoritária do regime, sancionada pelo estabelecimento do Império em 1804, acompanhou-se de uma vontade afirmada de centralização e de unificação que já não deixa espaço para a iniciativa e para a experimentação locais. O projecto estatístico e os seus meios são revistos. Na época, esta mudança de orienta- ção pode ter passado por uma vingança das aritméticas políticas exercida sobre os detentores da estatística descritiva. Trata- va-se de facto do efeito de uma mutação bem mais profun- da, que mostrava que o território enquanto tal tinha deixa- do de ser um problema — ou, mais exactamente, que se tinha decidido que deixara de o ser e que se conformaria às expectativas do poder político. Escolha voluntarista, que ten- ta impor em toda a parte um mesmo olhar e um modelo único de recolha da informação e demonstrar ,a unidade admi- 132 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO nistrativa e política da nação através da constituição de um corpo de dados homogêneos. Ao governo central compete, segundo a fórmula de Duquesnoy, «orientar o fio que liga todas as partes e coordená-las para atingir um objectivo fcomum». A estatística deixa de ser um projecto global de conhecimento da França para se tornar um instrumento re- gular de informação. As distribuições espaciais, as particula- ridades já não tem aí lugar: conta apenas o orçamento na- cional que recapitula o total dos orçamentos departamen- tais. Os inquéritos regularizam-se ao ponto de se tornarem periódicos; multiplicam-se — principalmente quando a si- tuação econômica, com as conseqüências do Bloqueio Conti- nental e depois as dificuldades militares requerem uma nova mobilização dos recursos; mas tornam-se resolutamente uti- litárias, especializadas, tendo em conta apenas um tipo de dados de cada vez. A iniciativa estatística torna a ser, assim, um privilégio do Estado e regressa significativamente ao domínio do segredo. Deixa de haver lugar para as colabora- ções locais face às repartições parisienses*2. A França em números A reorganização napoleónica é o ponto de partida de uma tendência que conduzirá, trinta anos mais tarde, ao projecto de uma estatística geral da França. Inseparável de uma von- tade de organizar o espaço da Grande Nação, já não tem interesse nem tempo para se consagrar a nada que possa re- sistir à sua convicção unificadora. A unidade geográfica de base — np caso, o departamento — deixa de ser objecto de análise para se tornar no seu enquadramento neutro, que não é, aliás, o único possível33. Quando voltamos a encon- trar estatísticas departamentais, na primeira metade do século 32 St. Woolf, «Contribution à 1'histoire des origines de la statisti- que: France, 1789-1815» , in La statistique en France à Pépoque napoléo- nienne, Bruxelas, Centre G. Jacquemyns, 1981, pp. 45-126. 33 J . -P . Bachasson de Montalivet, Exposé sur la situation de 1'Empire, apresentado ao Corpo legislativo na sua sessão de 25 de Fevereiro de 1813, Paris, 1813. CAPÍTULO IV 133 XIX, a intenção é apenas reunir informações susceptíveis de se agregarem aos dados nacionais. Significaria isso que o domínio do território era uma operação acabada? Nada é menos certo, apesar de tantas provas de uma centralização e de uma integração imperiosas. Durante a Restauração e a Monarquia de Julho, a interrogação sobre a estrutura e homogeneidade do espaço francês, que se poderia pensar definitivamente abandonada, reaparece — de uma forma completamente di- ferente. J á não são as particularidades locais que a alimen- tam mas a identificação de contrastes acentuados que opõem uma à outra, duas Franças34. Sistematizando as intuições dos fisiocratas e dos aritméticos políticos do século XVIII, a nova estatística moral articula um domínio global do território e a recuperação de oposições espaciais irredutíveis. Foi o ba- rão Dupin que em 1826 primeiro traçou num mapa «a linha divisória e escura que separa o Norte do Sul», aquela que, de Saint-Malo a Genève, separa a «França esclarecida» da «Fran- ça obscura» baseando-se, à partida, na desigualdade maciça das taxas de escolaridade. O próprio Dupin, A.-M. Guerry, Bigot de Morogues, Villeneuve-Bargemont reforçarão esta divisão a partir de outros indícios nos anos que se seguem, e A. d'Angeville tentará fazer a sua descrição sistemática no Essai sur la statistique de la population française (1836)35. Com eles, segundo a expressão de R. Chartier, «o espaço francês torna-se o lugar de uma experiência». Para além do que pode separar estes autores, é possível discernir uma preocupação comum: confrontar o território voluntarista e abstracto dos administradores com a textura, os desníveis concretos da Fran- ça, os comportamentos, a riqueza e a desgraça. Quando finalmente se impõe nos anos 1830, o projecto de uma estatística geral da França é recebido como uma no- vidade radical. Contudo, em muitos aspectos é a realização ou o resultado de preocupações por vezes muito antigas às iA R. Chartier, «Les deux France. Histoire d'une géographie», Ca- hiers d histoire, 1978, 4, pp. 393-415. 35 A. d'Angeville, Essai sur la statistique de la population française, considérée sous quelques-uru de ses rapports physiques et moraux, Bourg-en- -Bresse, 1836, reed. com uma apresentação de E. Le Roy Ladurie, Pa- ris, Mouton, 1969. 134 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO quais dará forma e meios inéditos*6. A própria idéia de cen- tralizar os resultados dos diversos recenseamentos tinha sido retomada várias vezes no século XVIII e, nos últimos anos do Antigo Regime, Necker tinha proposto a criação de uma «Secretaria Geral de pesquisas e informações». Confrontados com a massa da informação acumulada, os homens da Revo- lução ressuscitaram o seu projecto; mas foi preciso esperar pelo Directório e, em particular, pelas iniciativas de Neuf- château, para que se decidisse reunir operações dispersas por diversos ministérios, e por diferentes repartições do Minis- tério do Interior. É pot fim em 1800 que os esforços conju- gados de L. Bonaparte e de Chaptal conduzem à criação de um Bureau de Statistique autônomo que terá, aliás, uma exis- tência agitada antes de ser suprimido por Napoleão em 1812, distribuindo de novo as tarefas. A monarquia restaurada não mostrará nenhum interesse por uma iniciativa que evocava a centralização revolucionária e as suas virtualidades inquisi- toriais: mas, na longa procura de unificação do conhecimen- to estatístico, a excepção talvez seja essa lacuna, uma vez que interrompe provisoriamente uma evolução secular. O problema não se coloca apenas em França. Nos primeiros decênios do século XIX, a Prússia, a Grã-Bretanha, a Bél- gica, a maioria dos países da Europa, vêem-se confrontados com ele e tratam-no de forma semelhante37. São aliás as pu- blicações do Board of Trade britânico que levam Thiers, em 1833, a pedir o restabelecimento de um serviço central en- carregado da «reunião e organização dos quadros estatísticos acerca do território, da população, da riqueza e de todos os serviços da França»; será, em 1840, a Estatística Geral da França. Este amplo movimento à escala europeia não obedece, . contudo, a uma lógica estritamente institucional e estatal. 36 P. Marietti, La Statistique générale de la France, Paris,PUF, 1947; R. Le Mée, La Statistique générale de la France de 1833 a 1870, Paris, Service de microfilms, 1975; H. Le Brás, La Statistique générale de la France, in P. Nora (éd.), Les lieux de mémoire, II, 2, Paris, Gallimard, 1986, pp. 317-353- 37 J . e M. Dupâquier, Histoire de la démographie, Paris, Perrin, 1985. CAPÍTULO IV 135 É apenas compreensível se for enquadrado por sua vez, na extraordinária efervescência estatística da primeira metade do século XIX. Não é, principalmente, fruto de iniciativas públicas ou centralizadas. O que chama a atenção durante estes anos, pelo contrário, é a multiplicação de experiências individuais e locüis. Dupin, Guerry, Villermé, d'Angeville ou os animadores dos Annales dhygiène publique et de médecine légale (criados em 1829) são particulares preocupados com a utilidade social e as aplicações práticas. Reunidos em tor- no de algumas grandes instituições e sociedades eruditas, não ficaram à espera das sugestões do Estado para tentar a aventura da estatística moral. Foram ainda estas pesquisas privadas que prepararam a publicação, a partir de 1827, da Compte général de /'Administration de la Justice criminelle. As iniciativas dos representantes do Estado inscrevem-se aliás no mesmo contexto e são muito mais um produto de inte- resses pessoais ou sectoriais do que o resultado de um pro- grama de conjunto: é o caso do governador civil do Sena, Chabrol, animador de quatro volumes de Recherches statisti- ques sur la vi lie de Paris et le département de la Seine (1821- -1829). Um pouco por toda a parte, se espera que a estatística forneça os elementos de um estudo geral da sociedade. «O estatístico, novo geómetra, torna-se com o médico, outro ros- to da ciência organizadora, o grande especialista social capaz de medir todas as coisas38.» A convicção nasce no momento em que se torna possível uma «física social», de que Quéte- let será o ambicioso teórico. Nas sociedades individualistas que nasceram da Revolução, o «homem médio» do estatístico torna-se a unidade base quer da observação, quer da gestão pol í t ica . É nestas condições que se reconstrói um serviço central de estatística que pode, simultaneamente, aproveitar as expe- riências acumuladas e empreender uma sistematização à esca- la do país. A criação é original, por um lado, porque edi- i8 M. Perrot, «Première mcsure des faits sociaux: les débuts de la statistique criminelle en France», in Pour une histoire de la statistique, op. cit., p. 125. Veja-se também, no mesmo volume, a contribuição de J . Ozouf (acerca do ensino) e de B. Lécuyer (sobre os flnnales efhygiène). 136 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO fica uma instituição que vai atravessar um século e seis regi- mes políticos até que, em 1946, o INSEE, que a continua, a substitua; a existência de um observatório econômico e social passa a ser inseparável do funcionamento do Estado moderno. É por outro lado, porque passa em revista as ambições da nova disciplina. A circular que expõe o projec- to aos governadores civis, em 1834, apresenta-o como uma «recolha de documentos estatísticos destinados a facilitar o estudo dos assuntos do país e a esclarecer as discussões legislativas». E Moreau de Jonnès, que será o seu primeiro animador, di-lo claramente: a Estatística Geral da França destina-se «aos homens de Estado, e aos homens de negócios cuja vida é demasiado ocupada para lhes permitir clarificar por si sós cálculos informes. Para poder atingir o seu objec- tivo é necessário que haja uma estatística acessível em todos os seus pormenores». A iniciativa apresenta-se assim como o vasto projecto de um inventário da França, s imultaneamente completo e manejável; é aliás exactamente contemporânea da imensa ope- ração do cadastro, levada a cabo entre 1828 e 1851. Contu- do, se consagra ao «Território» a primeira das catorze rubri- cas do seu plano inicial, não faz dele de forma nenhuma o objecto privilegiado da descrição, nem mesmo de uma reflexão particular. Os dados recolhidos continuam, é certo, a ser registados a nível de bairro ou, cada vez mais, do departamento. Mas o âmbito espacial permanece formal e vale sobretudo pela estabilidade e pela uniformidade as quais autorizam, a prazo, a constituição de séries cronoló- gicas coerentes. A observação local ou regional já não tem pertinência própria. Os dados que fornece têm apenas inte- resse porque estão vocacionados para serem agregados a nível nacional. Esta recapitulação global, que é o primeiro objec- tivo da Estatística Geral da França, pressupõe um espaço uniforme, e impõe em contrapartida uma «desterritorializa- ção da descrição do mundo social» (A. Desrosières). A evo- lução dos questionários confirma esta progressão: quanto mais se avança no século XIX, mais se enriquecem e se comple- xificam; mas as categorias de análise que desencadeiam eli- minam a diversidade espacial «em benefício de ligações cen- CAPÍTULO IV 137 tradas em códigos e estatutos de alcance nacional»39. Consta- tamo-lo, por exemplo, nas nomenclaturas socioprofissionais uni- ficadas que se impõem nos recenseamentos da população fran- cesa durante a segunda metade do século XIX. Mas não é possível reduzir o projecto da uniformização estatística da França à dimensão epistemológica. A Estatística Geral da França é, ao mesmo tempo, indissociável de uma afirmação política que considera como dados adquiridos a unidade e a homogeneidade do território nacional. Compete ao inquérito científico demonstrar, através das categorias e da organização de uma descrição, que se efectua um proces- so secular. A «ortopedia política», que Y. Lequin identifica de forma feliz com a iniciativa estatística40, não consiste ape- nas numa tomada de consciência por parte da instituição estatística de um número crescente de factos econômicos, sociais ou «morais». Dedica-se também a moldar o corpo colectivo da nação, a produzir um espaço contínuo e abs- tracto, em que qualquer ponto é, por definição, igual a qual- quer outro. Um século antes da contabilidade nacional, dá crédito à idéia de que uma medida global da França é não apenas possível, mas a única coisa verdadeiramente perti- nente. Situa-se aí, talvez, o verdadeiro êxito da Estatística Geral, cujo precoce embotamento no decurso do século XIX tem sido freqüentemente referido. Num momento em que as dispari- dades do espaço são contudo objecto de interrogações multi- plicadas, de d'Angeville a Michel Chevalier, de Le Play a Ch. Brun, consegue impor junto da maioria — e alimentar, apoian- do-se nos números — a convicção de um aperfeiçoamento do território41. É preciso esperar o período posterior à Segunda Guerra Mundial para que esta convicção seja de novo posta em causa profundamente e para que a preocupação com uma 59 A. Desrosières, «La tradition statistique de description du monde social», documento de trabalho INSEE, dactilog. 1986. Agradeço aqui ao autor ter-me comunicado este texto inédito. 40 Y. Lequin, Histoire des Français, XIX'-XX' siècles, t. I, Un peuple et son pays, Paris, A. Colin, 1984, pp. 102-103. 41 Estes problemas são retomados e desenvolvidos nos capítulos consa- grados ao ordenamento do território, no final do volume. (Cf. infra, nota 22). 138 CONHECIMENTO DO TERRITÓRIO política do espaço, marginalizada durante muito tempo, read- quira um lugar central nas prioridades do Estado. 0 mapa da França Pode parecer paradoxal que o mapa seja aqui abordado em último lugar: não é ele a representação que simboliza a apreensão do território, o instrumento que melhor a exprime e domina? A identidade da França é, aos nossos olhos, inse- parável de uma forma que aprendemos a reconhecer e a esti- lizar42. No mapa mural da escola, as crianças têm aprendido, há dezenas de anos, a ler os contornos do seu país, a perda insuportável da Alsácia
Compartilhar