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Motivações para escrever a clínica na psicoterapia

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Ana Cláudia Santos Meira�
Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar as motivações pelas quais se escreve a clínica, ou seja, examinar as motivações externas e internas para que os profissionais envolvidos na atividade clínica – psicoterapeutas de orientação psicanalítica – dediquem-se à escrita de trabalhos científicos, do relato de casos clínicos e de sessões para a supervisão. Tomando como base uma citação de Lamanno-Adamo, desenvolve as diversas funções que o escrever cumpre na formação dos psicoterapeutas e em seu mundo interno.
Palavras-chave: Escrita científica, psicoterapia de orientação psicanalítica, formação do psicoterapeuta, casos clínicos.
Abstract
Este artigo tem como objetivo apresentar as motivações pelas quais se escreve a clínica, ou seja, examinar as motivações externas e internas para que os profissionais envolvidos na atividade clínica – psicoterapeutas de orientação psicanalítica – dediquem-se à escrita de trabalhos científicos, do relato de casos clínicos e de sessões para a supervisão. Tomando como base uma citação de Lamanno-Adamo, desenvolve as diversas funções que o escrever cumpre na formação dos psicoterapeutas e em seu mundo interno.
Keywords: Escrita científica, psicoterapia de orientação psicanalítica, formação do psicoterapeuta, casos clínicos.
Escrevemos sobre o que vivemos na intimidade 
com nossos [pacientes]; escrevo porque, 
se dói muito escrever, não escrever dói também mais. 
Por uma incapacidade de entender a vivência clínica, 
caso não utilizemos o processo da escrita. 
Para reproduzir o irreproduzível. 
Para sentir até o último fim o sentimento 
que permaneceria apenas vago e sufocador. 
Porque amamos e odiamos nossos [pacientes]. 
Porque amamos e odiamos ser [terapeutas]. 
Pela solidão. Pela dor da perda. 
Para aliviar o monstro que só nós vemos” 
(Lamanno-Adamo, 1998, p. 134).
Escrever a clínica já faz parte de nosso exercício profissional há muito tempo. Desde os estágios no curso de graduação, relatamos material para supervisão, evoluímos prontuários de pacientes, emitimos pareceres, laudos, relatórios de estágio, trabalhos teórico-práticos. No final do curso, ocupamo-nos dos tão conhecidos TCC (Trabalhos de Conclusão de Curso) que, de forma quase generalizada, vêm acompanhados – junto aos planos para a cerimônia de formatura – de angústias por ter que realizar uma produção científica. 
Formamo-nos e, contudo, nosso envolvimento com a escrita científica não pára por aí: depois de graduados, ingressamos no mestrado, em uma residência multiprofissional, em cursos de especialização ou de formação e, neles, estendemos o compromisso de redigir estudos de caso, trabalhos anuais, trabalhos de conclusão, dissertações ou teses. 
Além disto, quando seguimos nosso percurso profissional na clínica e nos ocupamos do atendimento de pacientes em psicoterapia, as sessões dialogadas para supervisão de casos clínicos ainda nos acompanharão por anos, até que nos sintamos confortáveis para vir a prescindir da troca com um colega mais experiente, nosso supervisor. Mesmo aí, sem supervisão oficial, continuamos registrando as sessões mais importantes, os sonhos mais interessantes, as revelações mais curiosas de alguns pacientes. E por aí vai...
A composição de tantos textos ao longo de nossa trajetória já pode ser suficiente para dar provas da importância da produção escrita. Logo, cabe-nos buscar compreender: por que escrevemos a clínica? Mais do que fazer parte de demandas curriculares, de uma obrigatoriedade acadêmica, de exigências externas ou de nossos compromissos profissionais, continuamos a escrever por razões que vão além disto.
A escrita da clínica cumpre várias funções em nosso mundo intrapsíquico e ainda, a partir disto, desempenha papel fundamental na consolidação da psicoterapia como técnica de tratamento dos pacientes que buscam dar conta de seus sofrimentos, crianças, adolescentes, adultos, idosos. 
Analisando as motivações para a escrita e para a apresentação de material clínico, Lamanno-Adamo (1998) faz uma paráfrase de um poema de Clarice Lispector; ela serviu como epígrafe para este artigo, mas vale repetir:
“Escrevemos sobre o que vivemos na intimidade com nossos pacientes, escrevo porque, se dói muito escrever, não escrever dói também mais. Por uma incapacidade de entender a vivência clínica, caso não utilizemos o processo da escrita. Para reproduzir o irreproduzível. Para sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Porque amamos e odiamos nossos pacientes. Porque amamos e odiamos ser terapeutas. Pela solidão. Pela dor da perda. Para aliviar o monstro que só nós vemos” (p. 134).
Lamanno-Adamo dá luz à intensidade do que vivemos na intimidade do consultório, tudo o que passamos, sofremos, experimentamos. Então, proponho detalharmos o que ela, com tanta maestria, compôs em sua citação. 
Escrevemos sobre o que vivemos na intimidade com nossos pacientes
Quando empreendemos com propriedade um tratamento psicoterápico de orientação psicanalítica, experimentamos junto ao paciente inúmeras sensações, produtos de nossa contratransferência, ou da própria transferência quando – em determinadas situações – tomamos ao paciente como substituto de nossos objetos primitivos. Bem, não poderia ser diferente: nosso trabalho é essencialmente provocador de vivências das mais intensas. Com efeito, podemos dizer que, quanto mais envolvidos estamos na clínica, mais acometidos por sentimentos de todas as ordens nós somos. 
Ser afetado por algo que transborde, que seja intenso ou que não se enquadre é sinal de que há um processo psicoterapêutico acontecendo. Se nada nos surpreende no setting, cabe cogitarmos: estamos realmente trabalhando analiticamente? Estamos permitindo o contato íntimo necessário para uma revivência e resolução?
A clínica é mister em provocar transbordamentos e abalar nossas certezas costumeiras. Se lidamos com uma matéria-prima que é essencialmente viva – o inconsciente –, não há como estarmos confortáveis com o saber até ali conquistado. 
Segundo Mezan (1998), uma vivência ordinária não tem força para colocar em marcha o processo de criação. Ele define que haja uma intensidade de afeto – seja alegria, tristeza, amor, medo, compaixão ou ódio – que extravase nossos limites e de nosso cotidiano, para agir como um disparador da necessidade de criar. “O decisivo parece residir no abalo infligido às certezas costumeiras, ao deslizar sem obstáculos da existência, à tranquilidade de estar no mundo e de nele conviver com outros seres humanos” (p. 113).
Quando a experiência de criação vem acompanhada de afetos intensos, estes nos tomam por completo, “e só aos poucos, dessa massa de sensações, de fragmentos de palavras e de sentimentos, é que vão se destacando simultaneamente o sentido e a forma” (Mezan, 1998, p. 116). Apoiados nesta massa, partiremos – como parte o artista – do que foi vivência para o que será escrita, um registro gráfico.
Na atividade clínica, um conteúdo mental é deflagrado pela experiência de sentimentos intensos com determinados pacientes. Com pacientes difíceis, é comumente uma vivência de desorganização, de caos, e sem representação na realidade. Quando nosso fazer tem como personagem uma criança ou adolescente, este aspecto é ainda mais evidente. Tanto um quanto o outro estão em desenvolvimento, em movimento, com pulsões em ebulição, posturas que nos desafiam, situações das mais inusitadas. 
Se olhado desta forma, será certo dizer que estamos a todo momento sofrendo um excesso que nos foge do domínio do plano mental, e demanda outros recursos. Não menos importante é a vivência com pacientes que, mesmo com um nível de funcionamento neurótico, como que nos roubam a capacidade de dar conta do que sentimos. É aqui que localizo a escrita.
Muitas vezes, somos assaltados por uma sensação de desordem interna, pela qual as idéias soltas não fazem sentidoalgum. Vemos instalada a desorganização psíquica com vivências das mais penosas. Quando, na sessão, a fala do paciente parece-nos absolutamente privada de significado, esta desorganização que é do paciente invade-nos e toma conta temporariamente de nossa capacidade de pensar. Enquanto inundados pela intensidade de alguma emoção ou evento, o pensamento parece não dar conta: pensamos de forma tão caótica quanto a própria vivência e, incapazes de dar uma ordem, até mesmo o pensamento angustia-nos (Meira, 2007). 
E como dar conta de tudo isto? Escrever é uma de nossas saídas. Arriscaria dizer que é uma das melhores saídas, pois utiliza para sua concepção elementos de alta complexidade em termos de funcionamento mental.
Nesta elaboração, escrevemos, sobretudo, acerca de nossas angústias: “testemunho da escrita, testemunho de feridas” (Green, 1992, p. 157) e, com a escrita, pela escrita, tratamos nossos ferimentos, dando resposta a nossas dúvidas e preenchendo nossos vazios. 
No artigo A Experiência de Escrever, Berry (1996) ilustra com um caso clínico a função de elaboração da escrita: “A emoção sentida ao escutar minha paciente encontrava aí uma via de descarga, o reviver que suas imagens me suscitavam encontrava aí uma expressão primária, condensada, deslocada. As imagens se ligavam em palavras, em frases” (p. 41). Com isso, nos desvela sua dor.
Escrevo porque, se dói muito escrever, não escrever dói também mais
É certo que escrever – se nos entregamos sem reservas a este exercício – dói, pois, após a sessão, nos preparamos para rever o que já julgávamos ser passado. Todavia, não escrever dói ainda mais, afirma Lamanno-Adamo (1998). Se não podemos imprimir no papel aquilo que sofremos, este sofrimento mantém sua existência dentro de nós, parecendo nos esmagar com conteúdos mentais que – tal qual propomos que o paciente faça – devem sair dos grilhões da vivência interna e ser postos em palavras.
Ao preparar material para a supervisão, nos dispomos a parar e pensar, em um movimento introspectivo, no instante prévio à escrita propriamente dita. Antes mesmo de colocar no papel, temos de recuperar do sistema pré-consciente a lembrança do que o paciente nos falou, do que lhe dissemos, como ele respondeu, mas especialmente – ainda mais do que isso – nos reportamos novamente à cena da sessão. Se foi uma sessão aparentemente tranquila (tenho medo das sessões tranquilas...), o exercício de escrever não nos oferece tanta resistência, e o relato parece fluir. No entanto, se realizamos uma sessão com um enfrentamento de sentimentos agressivos, erotizados, idealizados, primitivos ou psicóticos, aí este retrospecto não é tão simples. Uma autêntica sessão terapêutica terá esta qualidade, inevitavelmente: faz parte de nosso trabalho com o paciente, que estejamos inteiros e entregues às reações transferenciais e contratransferenciais, e – naturalmente – conscientes disto. 
Com esta volta, ao escrever, voltamos também a entrar em contato com os sentimentos que ali tivemos e sofremos. Isso não é fácil; é como viver mais uma vez. E é justamente neste viver de novo que temos oportunidade de mudar, não mais movidos pela compulsão à repetição, mas com a possibilidade de alcançar um novo domínio.
Partindo do que era dor pura, a escrita outorga um status de recurso para a compreensão da clínica.
Por uma incapacidade de entender a vivência clínica
No relato para supervisão ou na construção de um caso clínico, quando aquilo que era apenas uma idéia converte-se em signo, em letra, há um outro enfrentamento: com a materialidade – agora como produto concreto –, olhamos para a folha que nos oferta aquilo que fizemos, o que falamos, como falamos e – o que é mais sério e delicado – o que não falamos. 
O fato de colocarmos para fora como um produto nos propicia elaborar. Na medida em que nos permitimos e nos dispomos a reviver pela escrita o que se passou, damos uma saída de alto nível naquilo que tende a produzir angústia. Quando isso ocorre, servimo-nos do que alguns autores definem como a função autoanalítica da transcrição das sessões (Berlinck, 1994; Menezes, 1994; Ahumada, 1996; Berry, 1996) e que nos permite ver aspectos melhores e piores de nós mesmos, nossas condições e limitações, nossas criações e nossos lapsos.
Então, mais do que externalizar, a folha estará no lugar onde já esteve nosso terapeuta, fazendo-nos olhar para uma série de elementos de nossa dinâmica interna.
Como veremos no decorrer da descrição de Berry (1996), não se tratou somente de descarga, nem só de expressão primária. Quando ela utiliza a expressão descarga, refere-se a um produto bruto, que é exposto sem qualquer transformação. Sugiro que a escrita se constitua como uma transformação por si mesma, pois nos convoca a outro registro, outro momento, outro contato com o que vivemos. Já o constructo expressão primária nos remete a uma mudança de registro, mas – ainda como primária – como se não tivesse passado por um refinamento que o processo de escrita exige. Mas ela mesma amplia:
“O escrito, tal como me havia ocorrido, era o que havia aberto em mim esta nova via de acesso, este espaço reencontrado, esta nova forma de um vivido por muito tempo repassado. (...) O escrito havia sido, como a melodia cantada, como descarga, expressão libertadora de gratidão em relação a minha paciente, depois desprendimento em relação a uma situação transferencial de proximidade muito grande. Pondo minhas próprias palavras onde estavam as de minha paciente, seu relato articulava-se de outro jeito, surgiam outros sentidos, outros modos de expressão” (Berry, 1996, p. 41).
Com esta frase, ela indica que a escrita faz criar / nascer formas diferentes das mais tradicionais (da fala ou da supervisão), de transformar o que era vivência pura, crua, em outro nível de material passível de elaboração. Assistimos à escrita como um espaço onde derramamos o conteúdo ainda de matéria-prima bruta, mas que, ao passar pelo papel, é transformada em elementos capazes de serem positivamente assimilados.
“A presença de um terceiro, quer seja da escrita, da palavra, do pensamento, é vital para o desenrolar de um tratamento. O terceiro pode ser o próprio analista, escrevendo para outro e assim tomando distância” (Berry, 1996, p. 413).
Ao falar, mesmo colocando palavra no que era uma sensação difusa, ainda nos vemos misturados com o que nos mobiliza. Aqui, a escrita marca sua diferença: ao imprimir no papel a palavra falada, a idéia pensada, o sentimento sofrido, algo fora de nós se criou (Meira, 2007). Fazendo uso da escrita nesta tentativa de compreensão do que inicialmente aparentava não ser processável, começamos a dar um corpo ao que parecia informe.
Para reproduzir o irreproduzível
Neste processo de reprodução em um registro gráfico de elementos irreproduzíveis, a escrita transforma o que era da ordem do subjetivo em elementos objetivos, dando lugar ao que de novo pode inscrever-se como criação (Meira, 2007). 
A escrita, marcada por dimensão transferencial, ao criar condições de acesso a conteúdos psíquicos desconhecidos do sujeito, reinscreve a prática clínica (Mecozzi, 2003). Logo, ao escrevermos a clínica, não fazemos somente dar visibilidade, como uma “transcrição”; outrossim, naquilo que foi para o papel, processou-se uma transformação, pelo próprio ato de escrever. Consequentemente, como podemos prever que sairemos diferentes da experiência de nosso próprio tratamento pessoal e de uma supervisão, também da escrita não escapamos ilesos. Sujeitamo-nos a ser transformados por ela, em um primeiro tempo, por transformar pensamento em palavra, do subjetivo ao material; em um segundo tempo, pelo fato de que – texto na folha – inevitavelmente olhamos de outro jeito.
“O que aparece na consciência é o ‘sentimento de urgência’, a necessidade de colocar em palavras e de dar forma a alguma coisa ainda imprecisa, o que só se materializará através do processo de escrita” (Mezan, 1998, p. 109).
Por certo que o que foi para o papel será apenasuma síntese do que experenciamos, que é sempre mais rico. O mesmo ocorre quando, ao relatar um sonho, damo-nos conta da distância entre o que lembramos, o que está em nossa mente, e o que conseguimos narrar. A lembrança é invariavelmente mais rica e mais detalhada que a descrição dela.
Neste trânsito entre o que escutamos e o que registramos, Mezan (1998) identifica intersecções: 
“Escrever (...) ensina-me a formular idéias de modo preciso e com riqueza de imagens, a fiar os desdobramentos de uma metáfora, a utilizar a linguagem no seu avesso, a empregar um vocabulário em sintonia com o que estou escutando. Tenho notado que, enquanto me ocupo com a redação de um texto, fico mais sensível às nuances do que dizem os pacientes, aos matizes presentes nas dobras das palavras, e às ressonâncias disso em mim” (p. 109-110).
O exercício de relatar ou dialogar sessões nos permite exercitar também uma certa liberdade que temos de ter na clínica, ou seja, deixar que o material – do paciente em sua fala, e no relato deste – venha como vier, sem ter que obedecer uma ordem, sequência, encadeamento, e acreditando que, no fim, aquilo que parecia disperso será ligado, catexizado nos ponto certos.
Ao escrever, fazemos muito mais do que transcrever uma situação interna: até ali, não havia uma situação interna a que representar. É a própria escrita que, além de representar, cria o que será figurado nas laudas preenchidas. Traduz em palavras uma vivência viva, e esta é uma das razões para escrever a clínica, qual seja a de transmitir aquilo que parecia irrealizável, porque acontece no âmbito do privado e sob a égide do sigilo profissional. Com o registro do que sucede no espaço terapêutico, fazemos passar nossa experiência, nossos acertos e êxitos, e também nossos equívocos e fracassos. E, então, nos faz penetrar cada vez mais profundamente nesta experiência de sentir os sentimentos.
Para sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador
“Desta vez, se escrevi, é porque estava eu mesma envolvida, fechada, sufocada por palavras que não tomavam para mim nem vida nem sentido, palavras sem ressonância – porque faltava ar. E eu me emprestei às imagens que vinham como a um sonho, porque elas vinham povoar um deserto. Pondo minhas próprias palavras sobre as palavras ouvidas, eu me deixava ir ver: sempre grandes espaços, vazios, desertos, como num filme onde jamais aparece um personagem” (Berry, 1996, p. 44). 
A descrição de Berry é repleta de significados: quando nos apresenta um deserto como figura de linguagem, fala de algo que – antes do registro gráfico – carecia de uma existência. Podemos nos dar conta dos sentimentos, por mais contraditórios que eles sejam. Com a inscrição em laudas, o que nos asfixiava o pensamento ganha externalidade, e o que era impreciso toma forma. Aquilo que é concreto pode ser pensado.
“A escrita é a renovação desta experiência em que falo comigo mesma, antes de falar ao outro, antes de refletir utilmente. Ela é pôr confiança em mim mesma, luta contra as perseguições internas que me imponho: críticas, racionalizações, recusa” (Berry, 1996, p. 41). No ato de escrever para nosso supervisor, já nos tornamos supervisores de nós mesmos, pois nos postamos em um lugar de exterioridade, olhando um material que já não é mais nosso, que já habita outro espaço que não nosso mundo interno. Desgrudou-se. Então, ocupamos não mais o lugar de terapeutas com um paciente, mas aplicamos o mesmo olhar analítico sobre nós, como terapeutas ou como supervisores de nós mesmos. E isso só é possível porque o que era mental ganhou plasticidade. 
Entramos por brechas deixadas em aberto, em busca de vencer nossos próprios obstáculos. Enquanto lançamos mão da escrita, não precisamos buscar conforto no saber alheio, no que nos diria nosso supervisor, orientador ou professor. A escrita nos garante darmos conta disto por nós mesmos, com nossos próprios recursos internos. 
Porque amamos e odiamos nossos pacientes. Porque amamos e odiamos ser terapeutas
Lamanno-Adamo (1998) parece falar de sentir e viver o processo analítico de forma significativa e verdadeira, de não nos protegermos daquilo que o paciente já se defendeu e o levou a adoecer as emoções. Se nosso intento com ele é permitir-lhe viver ali conosco o que reprimiu ou o que negou, não haverá de sermos nós a reproduzir um sistema defensivo.
“Escrever correspondia a uma inversão narcísica deste vivido contratransferencial: o que eu escrevia era investido positivamente, como bom material para refletir, elaborar, descobrir. O interesse teórico precedia, pela intermediação da escrita e do diálogo imaginário com os colegas, o interesse pela paciente. Esta se beneficiava secundariamente desta pesquisa teórica: eu começava a ouvi-la, a esperar dela alguma coisa; eu me sentia alerta, em busca. Sem o trabalho da escrita, eu teria ficado fechada, sufocada, paralisada” (Berry, 1996, p. 45). 
Com este desafogamento promovido pela escrita, nos é possível prosseguir. A escrita serve de comunicação pelo relato que está impresso nas letras, mas também do que aparece nos erros de escrita, nos atos falhos e na sequência das falas. Desvelamos aos nossos olhos e aos do supervisor, o que antes ficava calado pelas defesas.
Ao realizar a leitura e ao avaliar o estilo de um autor, vamos percebendo minúcias nas entrelinhas do modo como se expressa. Para Freud ([1901]1981), a clareza e a inambiguidade na escrita mostra-nos um autor que está de acordo consigo mesmo; de outra forma, quando temos uma expressão forçada ou retorcida, que aponta para mais de uma direção, ali podemos reconhecer a interferência de um pensamento insuficientemente elaborado, ou escutar os ecos velados da autocrítica do próprio autor.
Frequentemente, deparamo-nos nos relatos com trocas de palavras que revelam ser mais do que erros de digitação. Tais equívocos ou trocas, bem como a associação que fazemos ao transcrever uma sessão dialogada dão notícia de coisas que se passaram na sessão, longe de nossos olhos e ouvidos, mas perto de uma linguagem inconsciente que se desvela por meios obscuros. E, assim, entramos em contato íntimo com nosso mundo interno.
Pela solidão. Pela dor da perda
A escrita leva-nos para fora de nós mesmos. Aquilo que era de patrimônio exclusivo ganha as ruas e pode se mostrar. Sai do território interno e está a postos para ser divulgado. Virou produto, produção, criação (Meira, 2007). 
Cramer (1995) indaga: O que nos leva a escrever sobre psicanálise? A necessidade de sairmos do isolamento. Somos muito sós e, ao escrever, entramos em contato com um público maior. Além disto, “a necessidade de fazer com que suas idéias sejam conhecidas. Há um esforço quase de publicidade das idéias e dos pontos de vista intelectuais e de conceitos que defendemos” (p. 169).
Nesta relação entre nós e o papel é que, de certa forma, ele nos tira da absoluta solidão da clínica. O papel já é um outro, com quem compartilhamos nossas primeiras impressões, transformando-as em expressões. Já não estamos sós.
“Tomar nota das imagens que me vêm, do sonho que vejo se desenrolar em mim é, então, utilizar minhas próprias reservas de energia, meus próprios investimentos libidinais. É investindo meu escrito como objeto que posso sair dessa posição de isolamento, de recolhimento, que suporto nesta análise” (Berry, 1996, p. 45). 
Para Green (1992), escrever é uma forma de dar materialidade e executar esta inscrição em um produto que pode circular. Quando escrevemos sobre o que fazemos no interior de nossa prática, damos vista ao que ninguém vê. Neste sentido, tornamos o outro testemunha – conforme define Green – daquilo que se passa entre nós e aquele que nos busca, exibindo um conteúdo que até então estava confinado às paredes do consultório.
Todavia, para além da supervisão, quando escrevemos trabalhos que serão apresentados ou publicados, cumprimos a função de transmissão da Psicanálise. 
Nasio (2001) identifica uma função didática no relatode caso: “transmitir a psicanálise por intermédio da imagem, ou, mais exatamente, por intermédio da disposição em imagens de uma situação clínica, o que favorece a empatia do leitor e o introduz sutilmente no universo abstrato dos conceitos” (p. 12). 
A fecundidade demonstrativa de um exemplo clínico é tão frutífera, que vemos proliferarem novas hipóteses que enriquecem e adensam a trama da teoria (Nasio, 2001, p. 17). Foi assim que a nossa ciência chegou até aqui: pelo crescer de uma idéia sobre outra; é o que devemos fazer prosseguir.
“Isolado em Viena, Freud serviu-se de seu gênio literário para fazer saber ao mundo que o inconsciente chegara para ficar. Em seguida, a difusão da psicanálise por vários países e a existência de analistas em muitos lugares tornou imperiosa a comunicação por escrito, visando tanto à propagação dos conhecimentos recém-adquiridos quanto à coesão política do movimento” (Mezan, 1998, p. 101). 
Quando pensamos em psicoterapia, temos o mesmo compromisso de Freud. Se entendemos que uma ciência só se firma pela transmissão de conhecimentos, temos a dimensão da importância de escrevermos. Uma outra linha, outra escola, outro corpo teórico, outra modalidade de atendimento, só marcam seu espaço se são legitimados pela publicação de seus ditames básicos. 
Para aliviar o monstro que só nós vemos
Às vezes, evitamos o enfrentamento, qual seja, o de ter que olhar de frente algo que já não podemos ou não conseguimos negar, nos cegar: é nos vermos com angústias, frustrações, dúvidas, desconhecimentos. “Sob o impacto de emoções estéticas, escrevemos, apresentamos, publicamos vivências clínicas, buscando reencontrá-la a partir de uma nova perspectiva, surpreendê-la, descobri-la (...) do outro lado do espelho” (Lamanno-Adamo, 1998, p. 131).
Logo, o que estava obscurecido por tudo o que nos dificulta um olhar e uma escuta terapêuticos, ganha luz. É possível re-afirmar que é exatamente no ato de escrever que a vivência e que o caos tomam forma, ordem e alguma clareza. Identificamos a folha de papel como um aparelho de processar sentimentos, na medida em que, através dele, o que estava errante em nossa mente é ligado, catexizado.
Nesse tempo de escrita, amarramos “presente, passado e futuro” (Mecozzi, 2003). Escrevemos sobre o que aconteceu, sobre o que pensamos agora e garantimos um porvir para este conteúdo que, concreto, não se perde mais. Isto dito, não estamos nos referindo à mesma proposta que fazemos para o paciente? Ligar passado e presente, para liberá-lo para um futuro distante da neurose?
“A expressão traduz em representações algo que, como matéria bruta, não pode ser representado, mas apenas sentido – e estas representações vão assumindo a forma de ‘palavras para recitar’” (Mezan, 1998, p. 116).
A escrita está no coração da aventura psicanalítica enquanto oportunidade para teorizar, tentar recolocar sua fantasia, para desenclausurá-la da relação ilusória mantida com suas questões mais profundas. Foi assim que Freud deu forma às suas vivências obscuras, rumorosas: pondo à prova seu pensamento. Escrever funcionou como um terceiro entre a fala e a escuta (Mecozzi, 2003). 
Escrever propicia nos construirmos como psicoterapeutas, já que nos faz movimentar processos mentais muito semelhantes aos que são acionados no contato direto com o paciente.
Escrevendo a psicoterapia
Green (1992) define o inconsciente como objeto tanto da psicanálise como de nossa escrita. Logo, é sobre isso que, em especial, devemos escrever: sobre aquilo que surge na sessão e que não tem muitos outros meios de se fazer ver. Da mente do paciente até a mente do terapeuta, o inconsciente se revela de formas diversas: atos falhos, sonhos, sintomas. Todavia, do terapeuta ao outro – os colegas de profissão – sua comunicação é possível por apenas duas maneiras, quais sejam: o verbal e o escrito. O primeiro carece de permanência; o segundo converte-se, então, no modo primordial de transmissão.
Neste contexto, como transmitir a psicoterapia, com uma teoria e uma prática específicas, registradas no papel? O empreendimento de escrever nos desacomoda dos cantos onde repousamos nosso saber. Amiúde, fazemos isso apoiados no saber do outro, tomando carona da psicanálise para usufruir do conforto de um saber milenar, mas sem nos darmos conta de que já podemos dirigir nossa própria condução!
Aqui podemos notar um gap: fazemos psicoterapia – já há muitos anos – mas ainda não desenvolvemos suficientemente uma teorização que a firme com a autoridade que já tem a psicanálise, em nosso meio. Não podemos nos isolar ou alojar dentro de um saber que deve seguir em frente.
A técnica psicoterápica originou-se da técnica psicanalítica. No entanto, muito tempo passou desde nossa origem. Não escrever ou não publicar sobre psicoterapia é perpetuar uma impressão de condicionamento servil ou de submissão da psicoterapia à psicanálise, como se faltasse à primeira uma existência própria. Por isso, é urgente alcançarmos um patamar mais elevado: o de um campo com uma prática própria, com um fazer particular, com uma técnica singular e com um corpus que lhe é específico.
Já somos capazes de renunciar à comodidade de nos apoiarmos na teorização da técnica psicanalítica, e fazermos arranjos ou adaptações. Deixamos de tomar emprestado. A escrita permite firmarmos este saber e – mais – nos apropriarmos deste espaço.
Temos inúmeras instituições de formação que formam em psicoterapia de orientação psicanalítica. Por longo tempo, utilizamos a psicanálise para sustentar nosso entendimento, mas também nossa prática, ou seja, a forma como aplicamos esta compreensão com o paciente à nossa frente. A proposta aqui é que a psicanálise siga sustentando nossa compreensão teórica, mas que possamos assumir e bancar a existência de uma técnica que é específica da psicoterapia.
Mezan (1998) fala de uma “caixa de ressonância” (p. 102), pela qual nossos textos – uma munição – são alardeados para toda a comunidade psi. Hoje, nossa produção escrita servirá como produtor de eco para além de fóruns mais tímidos de transmissão deste saber. Nossa escuta é psicanalítica – isso é ponto pacífico! – porém, nossa prática é outra. 
Portanto, devemos sair dos refúgios que nos protegem, mas também nos impedem de crescer. Devemos nos dar conta de que já crescemos. A psicoterapia já tem uma trajetória a ser contada; já está crescida e madura; agora pode se independizar. Vamos adiante!
Referências
AHUMADA, Jorge L. A função da escritura e os escritos psicanalíticos. Revista de Psiquiatria do RS, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 23-33, Jan./Abr. 1996.
BERLINCK, Manoel Tosta. Carta a um jovem psicanalista. Pulsional, São Paulo, n. 64, p. 7-16, Ago. 1994.
BERRY, Nicole. A experiência de escrever. Pulsional, São Paulo, n. 88, Ago. 1996. p. 40-51.
CRAMER, Bertrand. O escrever em psicanálise – Entrevista com Bertrand Cramer. Revista do CEP-PA, Porto Alegre, n. 3, p. 169-172, Ago. 1995.
FREUD, Sigmund. Psicopatologia de la vida cotidiana (1901). In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. p. 755-932.
GREEN, André. Transcrição da origem desconhecida à escrita do psicanalista: crítica do testemunho. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 26, n. 1-2, p. 151-187, 1992.
LAMANNO-ADAMO. Vera L. C. O material clínico e o ato criador: à guisa da compreensão de um pintor. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 31, n. 57, p. 129-136, 1998.
MECOZZI, Beatriz. O papel da escrita na psicanálise. Disponível na página http://www.beatrizmecozzi.com.br/textos/pes02_papel.htm, acessada em 12 de novembro de 2003. 
MEIRA, Ana Cláudia. A escrita científica no divã. Porto Alegre: Edipucrs, 2007.
MENEZES, Luis Carlos. Da escuta ao trabalho da escrita. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 27, n. 52, p. 37-44, Dez. 1994.
MEZAN, Renato. Entre as dobras do texto: aspectos da escrita psicanalítica. In: _____. Tempo de muda: ensaios psicanalíticos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.101-111.
MEZAN, Renato. Tempo de muda. In: _____. Tempo de muda: ensaios psicanalíticos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 112-138.
Ana Cláudia Santos Meira
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� Artigo publicado na Revista “Psicoterapia Psicanalítica”, do IEPP, Porto Alegre, v. 10, n. 10, p. 11-23, 2008.
� Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia (PUCRS), Psicoterapeuta de Orientação Psicanalítica (ESIPP), Docente do ESIPP e do Gaepsi, Membro Associado do CEPdePA, Coordenadora da “Oficina de Escrita Científica”, Autora do livro “A Escrita Científica no Divã: entre as possibilidades e as dificuldades para com o escrever”>

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