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3. Conhecimento Neste capítulo daremos seguimento à investigação sobre os aspectos epistemológicos e metodológicos da ciência iniciada no capítulo anterior. Focar-nos-emos na estrutura, formação, confirmação e no papel explicativo das teorias científicas. No último capítulo, vimos as primeiras tentativas de caracterizar o método científico na obra de Bacon. A imagem indutivista simples da prática da ciência que sucintamente introduzimos põe em relevo os fundamentos empíricos das teorias científicas. Os cientistas esvaziam as suas mentes de toda a opinião preconcebida e abrem os olhos: recolhem dados com base em observações e experiências. Fazem abstracções a partir dos resultados destas observações e experiências, e formulam hipóteses cada vez mais gerais. Depois testam as previsões que podem fazer com base nestas hipóteses e realizam mais observações e experiências. A ideia é que, por meio do raciocínio indutivo, podemos chegar a uma generalização sobre um tipo de objecto que tem uma certa propriedade num certo contexto, se tiverem sido encontrados objectos desse tipo que tenham tal propriedade em contextos relevantemente semelhantes. Esta concepção do modo como os cientistas operam está fundamentada na fiabilidade das inferências indutivas, e considera as observações e as experiências como pedras angulares das teorias. Mas a relação entre a teoria e a observação tem de ser explorada com maior pormenor. É que, como é o caso de Popper, alguns autores levantam objecções à ideia indutivista da ciência, considerando que a fase da observação não pode ser anterior e independente da formação de uma hipótese específica. Quando os cientistas observam, têm sempre algumas expectativas para orientar e enquadrar as suas observações, alguma ideia do que vão ver. As nossas teorias científicas dão sentido às observações que fazemos de uma maneira sistemática, e um dos propósitos da teorização científica é a previsão de acontecimentos futuros. No entanto, muitas das observações não seriam sequer levadas a cabo se não fosse para testar uma hipótese particular ou um conjunto de hipóteses, e as observações que constituem indícios confirmantes das nossas hipóteses são muitas vezes mediadas por um equipamento sofisticado cuja fiabilidade depende de mais pressupostos teóricos. Alguns filósofos falam da subdeterminação teórica da observação, ou seja, o facto de os dados que adquirimos mediante a observação directa ou mediada não serem neutros no que respeita a todas as teorias, mesmo antes de serem interpretados. As teorias explicam e prevêem acontecimentos, mas como o fazem? Passaremos em revista diferentes modelos de confirmação e de explicação de teorias, e apresentaremos as duas principais concepções de teorias científicas: a concepção sintáctica e a concepção semântica. Ambas as concepções parecem ser postas à prova pelas teorias da confirmação e da explicação. As teorias explicam e prevêem acontecimentos, mas como o fazem? Passaremos em revista diferentes modelos de confirmação e de explicação de teorias, e apresentaremos as duas principais concepções de teorias científicas: a concepção sintáctica e a concepção semântica. Ambas as concepções parecem ser postas à prova pelas teorias da confirmação e da explicação. Ao longo da nossa curta introdução à noção de confirmação de uma teoria, veremos que é difícil caracterizar a forma como as observações sustentam as hipóteses científicas. Quando passarmos aos diferentes modelos de explicação, passaremos em revista as condições que tornam as teorias científicas capazes de proporcionar explicações adequadas dos fenómenos que nos interessam. Poderemos explicar um facto sem apelar a uma lei da natureza? Como é que decidimos entre hipóteses explicativas concorrentes dos mesmos fenómenos? No final deste capítulo estará habilitado a: Discutir e avaliar explicações filosóficas diferentes sobre a formação e a natureza de teorias científicas. Explicar a relação entre teoria e observação. Discutir e avaliar explicações filosóficas diferentes sobre a confirmação deteorias científicas. Discutir e avaliar modelos diferentes de explicação científica. Formar uma opinião sobre o que faz de um conjunto de afirmações uma teoriacientífica. 3.1 O que é uma teoria? O que esperamos de uma teoria num domínio específico é uma explicação coerente e sistemática da razão por que alguns factos ocorrem como ocorrem, e uma maneira fundamentada de prever os factos que ocorrerão no futuro. Por exemplo, uma teoria sobre o movimento dos objectos terrestres diz-nos com base em que princípios os objectos de uma certa dimensão se movimentam como se movimentam, e também nos permite prever como se movimentarão no futuro ou como se movimentariam em contextos não reais (se não houvesse inércia, por exemplo) Qualquer teoria científica implica uma série de afirmações, que variam entre afirmações empíricas sobre fenómenos particulares observáveis (quer a olho nu, quer mediante instrumentos científicos), valores que podemos medir e princípios gerais. Eis um exemplo de uma afirmação empírica sobre um acontecimento particular em física: «O corpo cai à velocidade de 40 km/h.» Um exemplo de um princípio geral é o princípio da inércia, segundo o qual um corpo conservará uma velocidade constante, a menos que sobre ele actue uma força cuja resultante não seja nula. Um exemplo de uma afirmação empírica sobre um acontecimento particular em psicologia social é: «Após terem desempenhado uma tarefa aborrecida como parte de uma experiência psicológica, as pessoas que não receberam incentivo algum classificaram a tarefa como positiva.» Um exemplo de um princípio é a hipótese da dissonância cognitiva: as pessoas tentam reduzir o conflito entre as atitudes de que estão cientes (crenças, decisões, preferências, emoções, por exemplo) e alteram o seu comportamento em conformidade. Nas ciências naturais como nas sociais, os princípios podem ser confirmados com base em afirmações empíricas sobre fenómenos particulares que pertencem ao domínio abrangido pelos princípios. Quando perguntamos como os cientistas formam teorias, muitas vezes interessa-nos a maneira como passam de afirmações observacionais sobre acontecimentos particulares, de agentes, objectos, etc., a princípios gerais, e, por último, a leis. Há muito que os filósofos da ciência tentam proporcionar uma reconstrução do que são as teorias científicas e de como a transição entre a observação de factos e a formulação de hipóteses ou princípios gerais pode ser descrita. Exercício: Consegue imaginar outras generalizações nas ciências naturais e sociais? O que têm todas em comum? 3.1.1 Concepções de teorias científicas De acordo com uma versão popular da concepção sintáctica das teorias científicas (de sintaxe, o estudo das regras que determinam como as frases são formadas), as teorias são compilações de afirmações que podem ter uma representação formal enquanto sistemas axiomáticos. A ideia fundamental é que podemos separar a estrutura lógica da teoria (calculus) do seu conteúdo factual (Carnap 1967; Hempel 1970). As frases não interpretadas ligam-se umas às outras pela lógica: por exemplo, os teoremas são derivados dos axiomas por dedução. Quando os axiomas e os teoremas são interpretados, obtemos as afirmações que formam o corpo da teoria. Tais afirmações contêm termos lógicos, observacionais e teóricos. Pode-se atribuir significado aos termos teóricos por correlação com termos observacionais por meio de regras de correspondência. Os termos lógicos são termos como «e» ou «ou», que significam uma relação lógica entre predicados ou proposições. Na frase «Tenho um carro velho e uma bicicleta de montanha nova», o termo «e» serve para exprimir a relação entre eu ter um carro velho e uma bicicleta de montanha nova (que é uma relação de conjunção). A frase exprime uma proposição verdadeira se for verdade quer eu ter um carro velho, quer eu ter uma bicicleta de montanha nova. Os termos observacionais são termos que podemos aplicar na experiênciadirecta. O termo «velho» na frase anterior é observacional, pois posso determinar por meio da observação e da experiência directas que o meu carro é velho (olhando para ele, ouvindo o barulho do motor, observando que demora a arrancar quando está frio, por exemplo). Os termos teóricos são aqueles que não são lógicos nem observacionais. O termo «diabetes» pode ser um exemplo. Não podemos definir se alguém tem esta doença por via da mera observação. Para se ver se uma pessoa tem as características típicas desta doença é necessária investigação adicional: têm de ser feitas análises adequadas, que têm de ser interpretadas por um médico. O método para descobrir se uma pessoa tem diabetes pode ser dividido numa série de observações, e portanto é em princípio possível estabelecer uma correspondência entre afirmações sobre a diabetes e afirmações que contêm termos exclusivamente observacionais. Exercício: Pense noutros exemplos de termos observacionais e teóricos. Consegue encontrar um termo que seja observacional nuns contextos e teórico noutros? O aspecto atractivo da concepção sintáctica é que em princípio se pode separar a estrutura lógica — ou esqueleto — de uma teoria (constituída pelos axiomas não interpretados e pelos teoremas) do seu conteúdo empírico e do seu significado. Porém, a dificuldade em distinguir com precisão os termos teóricos dos termos observacionais, juntamente com o problema de especificar regras de correspondência satisfatórias por meio das quais os termos teóricos adquirem o seu significado, levaram os filósofos a desenvolver uma explicação alternativa das teorias científicas, a chamada concepção semântica. Embora haja versões diferentes da concepção semântica (Van Fraassen 1980; Giere 1988; Suppe 1989), todas partilham a rejeição da abordagem sintáctica. Uma teoria científica não pode ser adequadamente apresentada como um sistema axiomático formal escrito na linguagem da lógica que, numa fase ulterior, é sujeito à interpretação semântica. Ao contrário, toda a teoria deve ser apresentada como um conjunto de definições teóricas e um conjunto de afirmações que defendem que diversas coisas no mundo satisfazem tais definições (hipóteses teóricas). De acordo com esta explicação, não é possível formular hipóteses sobre uma divisão precisa entre estrutura lógica e significado, pois as definições não são necessariamente expressas numa linguagem formal. Além disso, a relação entre as afirmações de uma teoria e o mundo da experiência já não está refém da identificação de regras de correspondência, assentando antes na criação pelos cientistas de réplicas ou modelos abstractos da realidade que se enquadrem nas definições teóricas fornecidas. Voltemos aos exemplos antes mencionados e vejamos como se chega às afirmações de uma teoria, e como estas são testadas nas duas concepções que apresentámos. Para o sintacticista, o princípio da inércia que pode ser derivado da observação de como os corpos se movimentam seria formulado como um princípio lógico, e funcionaria como um axioma num sistema. A partir dos axiomas derivar-se-iam e interpretar-se-iam teoremas, de modo a conterem termos teóricos, termos observacionais, assim como termos lógicos. Tornar-seiam afirmações sobre, por exemplo, o modo como os corpos de uma determinada massa se movimentariam sob a influência de determinadas forças num meio onde algumas variáveis eram controladas. Os termos teóricos contidos em tais afirmações («inércia», «força», aceleração», etc.) receberiam significado com base na sua correlação com termos observacionais. Tais afirmações estariam então prontas para receber um maior suporte empírico, mediante observações e experiências que visassem verificá-las (ou falsificálas). O suporte empírico para as afirmações transmitiria justificação empírica aos princípios de que são derivadas.
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