Prévia do material em texto
OcupacaO ROGÉRIO SGANZERLA Ideias e imagens de um dos cineastas mais importantes do Brasil estão na Ocupação Rogério Sganzerla. Realizada pelo Itaú Cultural, a exposição é uma oportunidade de o público conhecer o universo criativo da obra de Sganzerla, por meio de seus filmes, documentos e roteiros originais datilografados, marcados, reescritos à mão. Anotações, referências aos artistas e aos personagens que o inspiraram, além de fotos e objetos pessoais, compõem a montagem. Parte da exposição, esta publicação traz textos atuais de críticos, pesquisadores e daqueles que compartilharam com Rogério Sganzerla sua energia, suas histórias de vida, afeto, trabalhos, ideias, filmes. Com uma obra enigmática, cuidadosa no que se refere ao som e à construção de poesia em imagens, Sganzerla reposicionou a história do cinema brasileiro no mundo. Os caminhos e os percalços dessa trajetória são contados nos relatos, na entrevista, nas fotografias de acervo e nos desenhos a seguir, numa homenagem afetiva ao cineasta que aos 22 anos realizou O Bandido da Luz Vermelha, considerado pela Unesco um Patrimônio Cultural da Humanidade. Instituto Itaú Cultural im ag em : f ra m e do fi lm e O B an di do d a Lu z V er m el ha Pré-OcuPaçãO de um visiOnáriO Joel Pizzini Rogério está no ar, na tela e no papel. A Ocupação Rogério Sganzerla pinta numa esquina de ponta da Avenida Paulista, evoca os signos do caos, atravessa o perigo negro do abismo e joga luz nas trevas através do mistério da criação. Não estava escrito em lugar nenhum qual o destino que aguardava aquele guri, que até os 5 anos não falava, aos 7 já lançava um livro de contos e aos 11 aprontava o primeiro roteiro de longa metragem. Conta sua mãe, Dona Zenaide, que Rogério, lá em Santa Catarina, quando criança, adorava brincar de mágica e hipnotizar os amigos. O que ela não adivinhava, contudo, é que seu filho ganharia o mundo, tirando “o cinema do quarto de brinquedos” e revelando, em quatro filmes, verdades e mentiras da passagem do mago Orson Welles pelo Brasil. A cinefilia de Sganzerla aflorou aos 13 anos, no Colégio dos Irmãos Maristas em Florianópolis, onde o padre Andreotti, ao perceber que seu aluno não tinha pendor para atividades físicas, o estimulou a frequentar o cineclube, que exibia um atrevido repertório de John Ford e Rene Claire a Rossellini. A escolha de Rogério pelo cinema se definiu em 1961, na mudança para São Paulo, após sobreviver a um trágico acidente de carro em Joaçaba. Decidiu se instalar numa pensão na Pauliceia aos 15 anos e virou rato da Cinemateca enquanto fazia direito no Mackenzie, curso que abandonou dois anos depois, ao ser convidado por Décio de Almeida para escrever no festejado Suplemento Literário do Estadão. Através da crítica, fez cinema com a máquina de escrever, não diferenciando o “escrever sobre cinema do escrever cinema”. Depois fundou, com Maurice Capovilla, uma página de cinema no Jornal da Tarde, tornou-se, ainda, redator da revista Visão, da Folha da Tarde e do Última Hora. Nesse período conheceu Andrea Tonacci e realizou seu primeiro filme de ficção, curiosamente chamado Documentário, que conquistou o disputado Prêmio JB Mesbla. Entregue pela atriz Helena Ignez, sua futura esposa e parceira, o prêmio lhe rendeu uma viagem para Cannes, que ele aproveitou para a cobertura do festival. Na viagem de volta, escreveu no navio o roteiro de O Bandido da Luz Vermelha. O resto é mar. A trajetória errática de Rogério desse ponto em diante todos conhecem: lançado em 1967, O Bandido provocou enorme impacto, arrebatou vários prêmios no Festival de Brasília, transformou-se em clássico outsider e, como não bastasse, virou fenômeno de público, autenticando a utopia de Oswald de Andrade – fabricar biscoito fino para o deleite das massas. Antes de tudo, o filme profetiza o AI-5 (“decretado o estado de sítio no país”, brada a locutora de rádio) e inova na incorporação do pop, do kitsch, de clichês, subgêneros e HQs. E, quando todos pensavam que estacionaria na sombra do próprio mito, Rogério apostou, em 1969, todas as suas fichas no popular e sofisticado A Mulher de Todos, um ousado modelo de indústria de Sganzerla para o audiovisual brasileiro – conforme o sócio e amigo Júlio Bressane. Um primor de roteiro, A Mulher de Todos escancara o talento de Helena Ignez, que revoluciona a arte de interpretar, explodindo os limites do enquadramento. Na sequência vem a radicalidade setentista da produtora Belair, que transpôs o deserto vigente no país e legou seis longas – marcantes viagens em apenas três meses de estrada. Da lavra de Sganzerla, três pérolas: Carnaval na Lama (desaparecido em mostra no Jeau de Paume, em Paris, em 1992), Copacabana Mon Amour e Sem Essa, Aranha. Enquanto filmavam com olhos livres e rompiam nós narrativos, o tempo se fechou e Rogério, Helena e Júlio se viram forçados a se exilar no Velho Mundo, onde concluíram parte dos filmes, que foram exibidos em Londres. Na volta ao trópico, no vácuo da contracultura, adotando seu singular método pré-colombiano, Rogério lançou com Helena o Abismu, salto no escuro que em 30 anos ainda reverbera com frescor sob a fuselagem sonora de Jimi Hendrix e a performance transcendental de Zé Bonitinho. O sonho acabou? No embalo dos esquisitos anos 1980, das aberturas políticas, da redemocratização e da globalização à vista, só um cidadão pode nos salvar: Welles. Ao lado, naturalmente, de três signos centrais do cinema de Sganzerla: Hendrix (desde Abismu), Oswald de Andrade (Perigo Negro) e Noel Rosa, inspirador de dois filmes: Noel por Noel (1980) e Isto É Noel Rosa (1990). Desse modo, Rogério Sganzerla dedica-se de corpo e alma a compor uma tetralogia sobre a passagem entre nós do cineasta norte-americano Orson Welles, nos anos 1940, quando It’s All True é abortado por contrariar interesses de políticos brasileiros e norte-americanos de suspeita vizinhança. Na primeira sessão do copião de O Signo do Caos em São Paulo foi que me aproximei mais de Rogério, que conhecia desde 1980, nos tempos de universidade, em Curitiba, quando apresentou seu filme Brasil, debatido, com a presença dele, em nossa turma de jornalismo. De lá pra cá, breves encontros, mas para mim intensos papos lunáticos. Que mistérios tem Rogério? Enfant terrible,internaciona- lista,cineasta com suingue que saiu determinado da província para desburocratizar mentes e desafinar o coro dos contentes com um corte cínico-utópico na cena audiovisual contemporânea. Para ser vista com olhos livres e sensibilidade atenta (parafraseando Oswald de Andrade), apresentamos pela primeira vez em nosso país parte significativa da vasta produção intelectual-criativa de Rogério Sganzerla, cuja memorabilia é revisitada e a vida-obra escancarada nos roteiros inéditos e nos caderninhos em que desde criança anunciava o crítico que se afirmaria na adolescência. A Ocupação Rogério Sganzerla é composta de nichos-sequência que compõem a trajetória do artista, homem e pensador. Sem cronologia rígida, a montagem espelha a lógica cinematográfica, onde coabitam livremente tempos, ideias, formas, sons. Por se tratar de um artista transgressor, que permanentemente rompeu esquemas, decidimos sinalizar, ao invés de demarcar, resguardando assim a dimensão enigmática de seus escritos e registros fílmicos. Os espaços da exposição evitam o tom saudosista e valorizam aspectos pictóricos e gráficos recorrentes na obra do autor. Uma projeção exibe em quatrotelas pequenos filmes que buscam conexões na filmografia de Sganzerla, evidenciando seu estilo, características dos personagens e diálogos marcantes. Trata-se de um eixo central expositivo que proporciona ao visitante uma experiência sensorial que pretende antes despertar o interesse pela retrospectiva do diretor. A exposição extrapola as fronteiras do espaço e se prolonga no plano virtual, criando uma rede de dezenas de relatos através do site (www.itaucultural.org.br/ ocupacao), que permitirá uma compreensão mais abrangente do universo existencial e inventivo de Rogério, amplificando o alcance de sua obra. Na fase de prospecção e pesquisa, cerca de 4 mil imagens foram digitalizadas do acervo familiar, de instituições e de companheiros e amigos profissionais, para consequente seleção da curadoria. Os personagens “sganzerlianos”, com respectivos verbetes, ganham destaque na mostra, que revelará cenas familiares e exibirá o material bruto de dois filmes do cineasta catarinense: um inacabado, Fora do Baralho (1971), rodado no deserto do Saara, e Carnaval na Lama (1970), desaparecido em uma mostra que homenageava Hélio Oiticica em Paris, em 1992. Outro achado precioso é A Alma do Povo Vista pelo Artista (1991), filme-ensaio sobre a arte de Newton Cavalcanti, cujos originais estão desaparecidos, mas uma cópia recém-encontrada sem som será exibida. Os três signos medulares na constelação de Rogério – Noel Rosa, Orson Welles e Jimi Hendrix – ganharão espaços específicos. Atenção para o canto dedicado a Hendrix, que é o experimento interativo da mostra: uma guitarra com dispositivo midi, disponível para qualquer visitante tentado a aguçar o imaginário musical inerente ao cinema de RG. A guitarra emitirá sons e imagens em inesperadas combinações. O mar, elemento significativo nos filmes de Rogério, inundará uma tela sob forma de projeção, que o espectador descortinará ao incursionar no ambiente. O público estará, então, no interior de uma sala-tela- caixa, onde o imaginário do gênio protagoniza a cena, os personagens divagam e a luz projeta signos e profecias que refletem o novo milênio. Concebida sob uma perspectiva contemporânea, a Ocupação Rogério Sganzerla persegue três linhas de fuga: luz, abismo e caos – nodais no universo do autor. Sua plenitude da poética poderá também ser compartilhada em retrospectiva completa do cineasta, debates com íntimos conhecedores de sua trajetória no Brasil e no exterior, por meio de portal eletrônico, livros e esta publicação: ecos do espírito da mostra. Através da mobilização da família, que generosamente abriu seu acervo, de amigos e colaboradores e entidades de preservação, e do envolvimento da equipe do Itaú Cultural, ocupa-se, enfim, um espaço privilegiado para a expansão da linguagem de Rogério Sganzerla. E justo na cidade que Rogério filmou compulsivamente com sua máquina de escrever desde adolescente e onde produziu as obras-primas, O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos, que agora voltam reconhecidas para inscrever sua luz própria. A Ocupação Rogério Sganzerla é uma iniciativa sem precedentes sobre um artista visionário que transita na terceira margem do cinema, intransigente em seu ideário e que finalmente recebe um tratamento à altura da contribuição para o cinema brasileiro com que sonhamos (neste caso, sua vida vale o sonho). Um evento de fôlego, que proporcionará a fruição de uma obra singular, radical e ainda pouco acessível ao público, por dificuldades de distribuição. Esperamos que em breve este esforço lance sólidas bases para a sistematização do inventário documental do artista, criando, assim, condições para um diagnóstico que desencadeie uma ação urgente e efetiva para a restauração desse patrimônio audiovisual sem limites. Autor de Glauces (2001) e Helena Zero (2006) – ensaio sobre Helena Ignez –, Joel Pizzini é casado com Paloma Rocha, enteada de Rogério Sganzerla. Ao lado da esposa, dirigiu Elogio da Luz (2003), sobre a vida e a obra do cineasta. Colaborou na montagem de Luz nas Trevas (inédito), de Helena Ignez, com roteiro de Sganzerla. Diretor de 500 Almas (2004) e vencedor de mais de 20 prêmios em festivais nacionais e internacionais, Joel Pizzini é o curador da Ocupação Rogério Sganzerla. im ag em : f ra m e do fi lm e O B an di do d a Lu z V er m el ha QuandO Palavra e imagem cOnvergem sObre O eixO dOs sentidOs Roberto Moreira S. Cruz Mais uma vez o cinema está exposto. No espaço e nas telas desta Ocupação. E nada mais apropriado que o escolhido fosse um realizador que em sua visão vertical da realidade brasileira construiu uma das mais originais e criativas filmografias do cinema nacional. Rogério Sganzerla é de uma geração de artistas que viraram do avesso os dogmas estabelecidos das regras de conduta da cultura brasileira. Realizou aos 22 anos, em plena época da ditadura, um filme improvável e revolucionário em sua forma e conteúdo. O Bandido da Luz Vermelha é atemporal e, aos olhos congestionados da cultura da imagem contemporânea, ainda brilha e ofusca pela sua originalidade. Em seguida produziu, em 1969, A Mulher de Todos, filme feito e perfeito para Helena Ignez, sua companheira por 34 anos e com quem teve Sinai Sganzerla e Djin Sganzerla. Ao lado de Júlio Bressane e da própria Helena Ignez na experiência Belair, uma produtora independente e anarquista, que em três meses produziu seis filmes, realizou Copacabana Mon Amour, Sem Essa, Aranha e Carnaval na Lama (filme desaparecido e cujos negativos estão parcialmente deteriorados). Cinema como resultado da força criativa de uma geração interessada antes de tudo no exercício da liberdade de criação. Exilado como tantos outros, viajou para a Europa e a África, onde filmou com a mesma intensidade criativa o material bruto do projeto inacabado Fora do Baralho. Ao regressar ao Brasil, retornou ao cinema com Abismu (1977), filme que reúne em atuações antológicas Wilson Grey, José Mojica Marins, Jorge Loredo e Norma Bengell. Foi nesse mesmo período que Sganzerla passou a se dedicar a uma vasta pesquisa sobre a presença de Orson Welles no Brasil, fato que ele referenciou nos filmes-ensaio Nem Tudo É Verdade, Linguagem de Orson Welles, Tudo É Brasil e O Signo do Caos. Com o mesmo olhar crítico e criativo, contou a história de Noel Rosa e celebrou Jimi Hendrix. Apesar do reconhecimento, a obra de Rogério Sganzerla está pouco preservada na memória audiovisual do país, e resgatá- la nesta exposição significa atualizar o que já se sabe sobre sua cinematografia, mas fundamentalmente o que pouco se mostrou e se pesquisou. Sganzerla era antes de tudo um homem da palavra e das ideias. Foi crítico de cinema, colaborou nos principais jornais do país,1 deixou escritos roteiros inéditos e refletiu de forma brilhante sobre a necessidade de pensar e de fazer um cinema que fosse genuinamente brasileiro. Quando começamos a trabalhar no projeto desta exposição, um tesouro foi imediatamente revelado. O acervo particular do cineasta estava intocado desde sua morte, em 2004. O interesse em descobrir o que estava guardado naquelas dezenas de caixas, pastas e arquivos de um cineasta da envergadura de Sganzerla motivou o convite para a família do cineasta se aventurar na construção coletiva desta exposição. Com a contribuição do curador Joel Pizzini, de Helena Ignez, Sinai Sganzerla, Djin Sganzerla e de uma equipe de pesquisadores, iniciou-se o processo de averiguação, manipulação e levantamento de milhares de páginas,anotações, manuscritos, 1 Com o apoio do Itaú Cultural, a editora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) prepara uma edição especial em dois volumes das críticas e dos artigos publicados por Rogério Sganzerla nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. roteiros, cadernos, fotografias e sequências de filme. À medida que todo esse material era mexido e remexido, foi então se descobrindo um conjunto de rascunhos e textos, muitos deles desconhecidos da própria família, com traços evidentes de que, para o cineasta, a escrita servia de guia para suas ideias e para a elaboração de suas imagens. O próprio Sganzerla reconhecia em seus depoimentos que a escrita era a primeira etapa para a constituição do enunciado audiovisual. Como ele próprio afirmava: “Fazer cinema é como descrever um movimento impetuoso numa folha em branco pegando fogo”. Perceber as características desses textos, a forma muitas vezes aleatória e repetida com que as ideias eram escritas e anotadas, leva a supor que uma análise mais detida e metódica desses arquivos poderia revelar, sem dúvida alguma, outra abordagem sobre a linguagem e a narrativa de seus filmes. Desconheço alguma argumentação crítica que tenha se debruçado sobre a obra do cineasta a partir da hipótese de aproximação de sua linguagem audiovisual com sua escrita. Nesse sentido, a Ocupação Rogério Sganzerla quer trazer ao público essa dimensão sinestésica de seu cinema, em que palavra e imagem convergem sobre o eixo dos sentidos e se cruzam no campo da ambiguidade. Não é difícil notar que essa confluência nebulosa e pouco elucidativa entre imagem em movimento, língua e fala está na própria atonalidade narrativa de seus filmes, carregados de maneirismos, irreverência e contrastes estilísticos. Ver e ler os roteiros e as anotações de filmes como O Bandido da Luz Vermelha, A Mulher de Todos e Nem Tudo É Verdade é um exercício prazeroso e ao mesmo tempo desafiador, uma aventura da leitura que evoca as imagens em movimento e vice-versa! Da mesma forma, reconhecer nos manuscritos os indícios de uma sequência ou a opção por uma fala específica de um personagem incita a percepção e a curiosidade de como tantas ideias viraram filmes! E que filmes! Roteiros inéditos, originais de seus artigos e críticas, fragmentos e material bruto de filmes inacabados, objetos e equipamentos utilizados na realização de seus filmes constituem-se em referências e signos de sua cinematografia. A Ocupação Rogério Sganzerla é uma experiência multissen- sorial, em que o cinema está expresso em sua dimensão plural de linguagens e sentidos. Em que as imagens, as palavras e os sons estão interpenetrados numa atmosfera sensorial e reflexiva, envolvidos pela força autoral e criativa de um cineasta com “C” maiúsculo. Roberto Moreira S. Cruz é gerente do Núcleo de Audiovisual do Instituto Itaú Cultural desde 2001, onde organiza e coordena projetos nas áreas de cinema e vídeo. É mestre em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorando em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), onde desenvolve pesquisa sobre cinema, narrativa e projeções no contexto da arte contemporânea. Foi professor assistente da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG) no curso de comunicação social entre os anos de 1989 e 2001. fo to : a rq ui vo d a fa m íli a de S ga nz er la FluxO ininterruPtO de energia criativa Djin Sganzerla João Gilberto, de quem meu pai tanto gostava, cantou a saudade de forma singular. É com esse sentimento que “não sai de mim”, misturado a uma grande alegria, que vivo este ano de 2010. Um ano de reencontros e expansão. Um ano que culmina nesta “ocupação”, iniciativa belíssima do Itaú Cultural, com curadoria do Joel Pizzini, em que o público terá a chance de conhecer melhor essa personalidade, esse grande artista, escritor, cineasta único, Rogério Sganzerla. Em abril estive com Helena Ignez e Sinai Sganzerla no 12o Festival de Cinema Bafici, em Buenos Aires, onde Rogério recebeu uma importante retrospectiva. Um festival instigante, de excelente curadoria, sua obra sendo “redescoberta” por um público encantado, interessantíssimas análises, salas lotadas, diversos convites internacionais – França, Alemanha, Áustria e uma retrospectiva completa no Lincoln Center, a convite do curador americano Scott Foundas, que disse que seus filmes eram absolutamente geniais. Tive a oportunidade de rever Nem Tudo É Verdade, uma poesia em movimento. Um filme magistral, com absoluta originalidade e liberdade, reconstrói a vinda do Orson Welles ao Brasil. Assistindo ao filme, me senti conversando com meu pai, vendo-o transformar em cinema tudo o que passava por suas mãos, fluxo ininterrupto de energia criativa. Depois da sessão, Quintin, crítico de cinema e ex-diretor do Bafici, veio emocionado conversar conosco. Contou que, em 2004, Roberto Turigliatto, então diretor do Festival de Turim, perguntou se ele conhecia a obra do Sganzerla, que em sua opinião era maior que Godard. Quintin respondeu que assistira apenas ao Bandido e achou que havia no comentário certo exagero. Mas agora, depois de acompanhar a retrospectiva de Sganzerla, percebia que Turigliatto estava certo, Rogério era maior que Godard. Assim tem sido seu reconhe- cimento. No ano passado, uma belíssima retrospectiva na Índia, e meses antes na Itália, em Trieste, entre tantas outras. Agora, em junho de 2010, Copacabana Mon Amour participa do 28o Festival de Munique. Os filmes seguem depois para a França e para Viena. fo to s: a rq ui vo d a fa m íli a de S ga nz er la No Brasil, o Itaú Cultural faz a mais completa das retrospectivas, como o próprio nome diz, uma Ocupação Rogério Sganzerla. Apresenta esse multiartista em sua completude: roteiros originais ainda não filmados, objetos pessoais, filmes, fotos de diversas fases de sua vida, debates sobre a obra etc. Somados a isso, o relançamento do CD da trilha original do Copacabana Mon Amour e a publicação de dois livros com artigos e críticas que escreveu no Suplemento Literário do Estado de S. Paulo, na Folha de S. Paulo e no Jornal da Tarde. Meu sincero e carinhoso agradecimento a Joel Pizzini, esse curador/artista. Lembrei-me das nossas últimas caminhadas pelo centro de São Paulo, ele falando como filmaria o Bandido 2 (Luz nas Trevas), percebia como tudo ao seu redor era motivo de inspiração. Vimos um rapaz que consertava uma porta com um maçarico e meu pai logo comentou que criaria uma cena do Bandido usando um maçarico para acender um cigarro... Pouco tempo depois, no final de sua doença, comentou que somente uma câmera poderia salvá-lo. Hoje, em paralelo ao que mais amo fazer na vida, que é atuar, administro junto com minha mãe e com Sinai a Mercúrio Produções (em São Paulo). Em paralelo aos projetos que criamos, vejo esse nosso trabalho de difundir, preservar e relançar sua obra como um serviço ao cinema brasileiro, mantendo vivo o legado de um dos seus principais artistas. E ao mesmo tempo um hino de amor aos dois, pais queridos, que tanto fizeram e fazem pela nossa cultura. Revendo o material que foi entregue ao Itaú Cultural para compor a Ocupação Rogério Sganzerla, encontrei cartas magistrais que não conhecia, como o cartão carinhoso que ele enviou de Firenze para o Júlio Bressane, mandando um beijo para a “linda Helena”, então namorada do Júlio; como a carta que enviou à Sinai,que na época tinha 9 anos, contando que estava em um festival e que iria encontrar ninguém mais, ninguém menos do que mister Welles... Quando me convidaram para escrever, pensei no que dizer. Lembro-me de um sonho que tive alguns meses depois de sua partida; ele filmava, filmava, com uma alegria, um contentamento enorme, como um menino em cima de uma árvore. O próprio sonho parecia ser enquadrado pela sua câmera. Senti que ele estava fazendo, onde quer que estivesse, o que sempre mais gostou. E as projeções de sua obra nós fazemos aqui. Djin Sganzerla é atriz, estreou no cinema no longa-metragem O Signo do Caos, de Rogério Sganzerla. Premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como Melhor Atriz de Cinema de 2008, pelo filme Meu Nome É Dindi, de Bruno Safadi. Também recebeu, entre outros, o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante do 39o Festival de Cinema de Brasília, pelo filme A Falsa Loura, de Carlos Reichenbach. Trabalha ao lado da sua mãe e da irmã na Mercúrio Produções, que lança neste ano o Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha, filme em que faz a protagonista feminina, Jane. foto: Marcos B onisson Cronologia 1946 Rogério Sganzerla nasce em Joaçaba, no interior de Santa Catarina, no dia 4 de maio. 1964-1965 Muda-se para São Paulo para cursar as faculdades de direito e administração. Inicia a atividade de crítico de cinema no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. 1967 Estreia na direção com o curta-metragem Documentário, que recebe o Prêmio JB Mesbla de Melhor Curta, o que lhe dá direito a ir ao Festival de Cannes. No retorno de navio ao Brasil, Rogério lê nos jornais brasileiros a bordo as notícias sobre um fora da lei conhecido como “Bandido da Luz Vermelha”, que agia em São Paulo. Como vinha escrevendo um roteiro sobre um criminoso de traços semelhantes, decide adaptar sua história à daquele personagem tão frequente na crônica policial da época. 1968 Realiza O Bandido da Luz Vermelha, seu primeiro longa-metragem, um dos mais premiados filmes brasileiros de todos os tempos. Posteriormente, na condição de clássico, é indicado pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. Na filmagem, inicia sua relação com Helena Ignez, atriz considerada musa do Cinema Novo e que se tornou sua parceira artística afetiva por toda a vida. 1969 Lança A Mulher de Todos, seu segundo longa- metragem, estrelado, entre outros, por Helena Ignez, Paulo Villaça e Jô Soares. Sucesso de bilheteria. Ao apresentá-lo no Festival de Cinema de Brasília de 1969, aproxima-se de Júlio Bressane, que exibia seu O Anjo Nasceu. Realiza dois filmes com a codireção de Álvaro de Moya: os curtas HQ e Quadrinhos no Brasil. 1970 Em parceria com Júlio Bressane e Helena Ignez, funda a produtora Belair – que em apenas três meses realiza seis filmes. Sganzerla dirige três deles: Copacabana Mon Amour (com trilha original de Gilberto Gil), Sem Essa, Aranha e Carnaval na Lama (ou Betty Bomba, a Exibicionista), filmado, em parte, em Nova York. Exilado, Rogério Sganzerla segue com Helena Ignez para Londres. Depois, para Marrocos, Argélia, Tunísia, Níger, Nigéria, Daomé (atual Benin) e Senegal, onde o casal se estabelece por algum tempo. 1971 No deserto do Saara, filma o documentário inacabado Fora do Baralho. 1972 Em 25 de outubro nasce Sinai, sua primeira filha com Helena Ignez. 1976 Em 27 de fevereiro nasce Djin, sua segunda filha com Helena Ignez. Realiza o curta-metragem documental Viagem e Descrição do Rio Guanabara por Ocasião da França Antártica (Villegaignon), premiado pela Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro. 1977 Dirige Abismu, primeiro longa após um considerável intervalo. Na verdade, é o único lançado entre 1971 e 1985. No elenco, Zé Bonitinho, Wilson Grey e José Mojica Marins. 1978 Realiza o curta-metragem Mudança de Hendrix. Participa como codiretor e montador do filme Horror Palace Hotel, de Jairo Ferreira. 1980 Realiza o curta-metragem Noel por Noel, primeiro filme seu sobre Noel Rosa. Edita Um Sorriso, Por Favor, filme de José Sette sobre o universo gráfico de Goeldi. 1981 Realiza o curta-metragem Brasil, com participação de João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil. 1984 O documentário O Petróleo Nasceu na Bahia é lançado e premiado nos Festivais de Caxambu e Gramado. 1986 Lança o longa-metragem Nem Tudo É Verdade. Trata- se do início de sua tetralogia sobre a vinda de Orson Welles ao Brasil (em 1942). 1990 Dirige o curta-metragem Isto É Noel Rosa. Realiza dois vídeos sobre artistas plásticos: A Alma do Povo Vista pelo Artista (sobre Newton Cavalcanti) e Anônimo e Incomum (sobre Antonio Manuel). 1991 Realiza o curta-metragem Linguagem de Orson Welles. 1992 Dirige o episódio Perigo Negro, que integra o longa-metragem Oswaldianas, baseado em Oswald de Andrade. 1998 Lança o ensaio documental em longa-metragem Tudo É Brasil. 2003 Após muitas dificuldades, conclui O Signo do Caos, o último da tetralogia sobre a vinda de Orson Welles ao Brasil, lançado e premiado no Festival de Brasília. É seu último filme. 2004 Falece no dia 9 de janeiro. Deixa uma obra extensa de filmes e muitos escritos, na qual há roteiros não filmados, como o do longa-metragem Luz nas Trevas – Revolta de Luz Vermelha. A partir desse roteiro, cinco anos depois se iniciam as filmagens da continuação da trajetória do Bandido da Luz Vermelha, sob a direção de Helena Ignez e Ícaro Martins. Atualmente, encontra-se em fase de finalização. Filmografia Documentário – 1967 O Bandido da Luz Vermelha – 1968 A Mulher de Todos – 1969 Histórias em Quadrinhos (Comics) – 1969 Quadrinhos no Brasil – 1969 Copacabana Mon Amour – 1970 Sem Essa, Aranha – 1970 Carnaval na Lama (ou Betty Bomba, a Exibicionista) – 1970 Fora do Baralho – 1971 Viagem e Descrição do Rio Guanabara por Ocasião da França Antártica – 1976 Ritos Populares, Umbanda no Brasil – 1977 Abismu – 1977 Mudança de Hendrix – 1977 Noel por Noel – 1980 Brasil – 1981 A Cidade do Salvador (Petróleo Jorrou na Bahia) – 1981 Irani – 1983 Nem Tudo É Verdade – 1986 Isto É Noel Rosa – 1990 Newton Cavalcanti: A Alma do Povo Vista pelo Artista – 1991 Anônimo e Incomum – 1990 Linguagem de Orson Welles – 1990 América: o Grande Acerto de Vespúcio – 1992 Perigo Negro – 1992 Deuses no Juruá –1997 Tudo É Brasil – 1998 B2 – 2001 Informação H. J. Koellreutter – 2003 O Signo do Caos – 2003 ZOnk! crash! bOOm! OrsOn, Oswald, nOel e JOãO na sganZerlândia ou tamanhO nãO é dOcumentO ou um POucO de lOucura Previne um excessO de tOlice Steve Berg im ag em : f ra m e do fi lm e B2 “Uma nação que negligencia as percepções de seus artistas entra em declínio e depois de certo tempo cessa de existir para apenas sobreviver.” Ezra Pound Rarissimamente exibidos e mais raramente ainda objetos de qualquer reflexão crítica ou teórica dentro ou fora do Brasil, não surpreenderá a ninguém que os 20 curtas e médias-metragens dirigidos por Rogério Sganzerla ao longo de 37 anos (quatro dos quais estão desaparecidos ou em estado de deterioração) constituam a parte menos conhecida de uma filmografia por si só (e por um período de tempo quase obsceno) quase secreta. De Documentário (1967) até Informação H. J. Koellreutter (2003), o que salta aos olhos quando assistimos a esses filmes é sua profunda coerência e inte(g)ração com o restante da obra cinematográfica do autor [Eliot: “Em meu princípio está meu fim”: dois anos antes da explosão do Bandido através da fórmula Urânio=Mercury e 37 antes de O Signo do Caos, Documentário já contém referênciasa Orson Welles – em cartaz afixado à porta de um cinema, como integrante do elenco de O Terceiro Homem (1949), e em portrait/ homage que ocupa toda a tela por um instante] – seja pela mestria com a qual o autor navega por vasta gama de gêneros, temas e formatos (ficção, documentário, biografias romanceadas, musicais, institucionais e didáticos em bitolas de 16 e 35 milímetros e em vídeo com uso particularmente inspirado e dinâmico do table top), seja pela autoria de um cinema que se INVENTA apesar e por causa da precariedade de recursos, constante exercício de profundidade reflexiva e verve criadora raras na história do cinema brasileiro. Por esses 20 curtas e médias-metragens desfilam todas as grandes e pequenas obsessões do cineasta (por enumeração caótica: a história do Brasil, Orson Welles, Oswald de Andrade, a questão da cultura, os quadrinhos, Noel Rosa, João Gilberto, o FAZER artístico, a umbanda e o próprio cinema). imagens: frames do filme O Bandido da Luz Vermelha A poética A) LOGOPOEIA (a dança do intelecto entre as palavras): se o revolucionário Sem Essa, Aranha levou quase 40 anos para chegar ao grande público por meio de lançamento em DVD, o Sganzerla absolutamente clássico e seco (em termos de vocabulário da imagem e do corte) de Perigo Negro (1992), magistral filmagem do único roteiro cinematográfico do imenso Oswald de Andrade, escrito para integrar um dos três volumes inacabados de seu romance mural Marco Zero (1943-1946), é uma OBRA- PRIMA totalmente desconhecida de todos a não ser dos mais devotos “sganzerlianos” – uma tragédia amarga e cômica que só dói quando a gente ri e reitera o tema da ascensão e queda do gênio precoce, encenada por um incrível elenco de estrelas trouvées, que inclui desde Helena Ignez até Abraão Farc, Paloma Rocha, Guará, Conceição Senna, Ruddy, Paulo Moura, Jorge Salomão, Antonio Abujamra e Sandro Solviatti, entre outros. B) MELOPOEIA (a ênfase no SOM): os dois filmes sobre Noel Rosa (Noel por Noel e Isto É Noel Rosa, de 1980 e 1990, respectivamente). João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia em Brasil (1981). Do começo de Helena surge mais um fim (o último curta) – da formação da atriz na Universidade Federal da Bahia (UFBA) ressurge o professor, compositor e esteta Koellreutter: depoimentos com música. MOTZ EL SON. C) PHANOPOEIA (a poesia de IMAGENS VISUAIS), o lado POP: metralhadora de imagens em table top e narração nonstop em Histórias em Quadrinhos (Comics), de 1969. O domínio total em que se fundem história e presente na estratégia-mor “sganzerliana” de SELEÇÃO e COMBINAÇÃO de imagens, quando a fotografia e o material de arquivo cinematográfico SE VOLTAM SOBRE SI MESMOS, obsessivamente, em eterno retorno, círculos concêntricos de informação e possibilidade provindos de pedras/ provocações atiradas no espelho d’água da imagem da memória nacional. Trechos de Umbanda no Brasil ressurgem em Brasil. Linguagem de Orson Welles (1990) e Isto É Noel Rosa dão sequência a um jogo de espelhos cósmico – as mesmas imagens de arquivo que neles aparecem reaparecerão, reordenadas, em Tudo É Brasil (1998). O anti-institucional pós-tropicalista A Cidade do Salvador (Petróleo Jorrou na Bahia) (1981) pertence a essa categoria, bem como o martelo nietzschiano e as urnas quentes de Antonio Manuel que integram Anônimo e Incomum (1990), nas quais NADA e PIGMENTOS e TINTA se somam às participações aforísticas de Helena Ignez e Nonatho Freire e à fotografia das TELAS de Antonio Manuel – comprovantes do olho colorístico do cineasta, bem como ocorre em Deuses no Juruá (1997), com suas máscaras gregas, seus índios e suas cores saturadas. No outro extremo do espectro imagético, as cores delicadas dos cartógrafos em Viagem e Descrição do Rio Guanabara por Ocasião da França Antártica (1976) e os focos de luz e fumaça de América: o Grande Acerto de Vespúcio (1992), com interpretações icônicas e antológicas dos brilhantes atores-fetiches Paulo Villaça, como Villegagnon, e Otávio Terceiro, como Américo Vespúcio. D) O cinema ESTILHAÇO de Irani (1983) coloca en robe de parade o messianismo e a guerra santa no fragmento do projeto não realizado sobre a Guerra do Contestado (como filmar o conflito armado entre a população cabocla e os representantes do poder estadual e federal brasileiro?). O misterioso e igualmente inacabado Ritos Populares – Umbanda no Brasil (1977-1986), no qual a câmera segue a figura do pai de santo Woodrow Wilson da Mata e Silva, o Mestre Yapacany da umbanda esotérica, narrando sua própria trajetória e a criação da umbanda esotérica em passeio por livraria e ruas do centro do Rio de Janeiro enquanto um plano do rosto de Cristo num altar torna e retorna e cenas de ritual na mata preparam seu próprio retorno mais adiante em Brasil (1981). Ações Plano de estudo: rever os curtas e médias-metragens de Rogério Sganzerla enquanto subsídios para investigação sobre narração paramétrica (repetição + imagem não significante + adição por subtração). O ESTILO alçado ao nível de força MODELADORA do cinema. Base do plano de estudo: geografia e (des)memória cultural – São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Santa Catarina, Brasil. A Urca. Plano emergencial “arqueologia do cinema”: localização e restauro de Quadrinhos no Brasil, Mudança de Hendrix e Newton Cavalcanti – A Alma do Povo Vista pelo Artista. Não há outro modo de dizê-lo: os curtas e médias- metragens de Rogério Sganzerla são simplesmente magistrais, os mais ricos jogos de imagem, música e significado. Visão, som e sentido. Procurem conhecer melhor. VEJAM como fez o artista pra andar pra frente e pensar em vertical. VER DE NOVO. MAIS LUZ. Steve Berg é tradutor e pesquisador. Fez sua estreia literária na Navilouca em 1972. Traduziu para o inglês o “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade e toda a produção textual de Hélio Oiticica já publicada em língua inglesa, e é autor de ensaios sobre Douglas Sirk, Helena Ignez e os filmes de Belair, entre outros. Organizou retrospectivas de recortes da obra de John Ford e Fritz Lang, e foi curador da mostra Rossellini TV Utopia. Também acredita que é preciso tirar o cinema do quarto de brinquedos. im ag em : f ra m e do fi lm e A M ul he r d e To do s Que mistérios tem Helena? Paolo Gregori e Pedro Jorge Tarde no centro de São Paulo, escritório da Mercúrio Produções. Entre cartazes de filmes, pastas vermelhas com páginas de roteiro e uma varanda repleta de plantas, a atriz e diretora de cinema Helena Ignez concede esta entrevista. Parceira criativa e companheira de Rogério Sganzerla, ela participou ativamente da concepção de sua obra. Agora, como resultado de seu trabalho (ao lado das filhas Sinai e Djin), o acervo do cineasta é cada vez mais ampliado e revelado ao mundo, como conta ela nesta conversa – um encontro entre três cineastas que, em comum, têm a paixão pela obra de Rogério Sganzerla e o desejo forte de transformar ideias em cinema. Antes de entrar nos temas bons, quero falar de um ruim: o cinema brasileiro. É o balcão de favores do cinema brasileiro. Como foi enfrentar 50 anos de cinema brasileiro? Um cinema dominado por políticas e não raro por pessoas egocêntricas e metidas a besta e, ao mesmo tempo, você conseguir fazer um cinema que é o oposto disso, um cinema revolucionário. O momento é bom, e muito próximo ao começo. Parece estranho, não é? Também é um momento de orgulho, de reunir forças. Realmente, é um momento extraordinário. Por um lado, que é o lado magnífico dessa história, trata-se do que está acontecendo em relação ao cinema de Rogério e o mundo. Há alguns anos atrás eu estive na Nova Zelândia, levei O Bandido da Luz Vermelha. Ao mesmo tempo, a Weelington Film Societydeu a O Bandido da Luz Vermelha o título de um dos 50 melhores filmes do século XX. Essa descoberta do mundo [em relação ao cinema de Rogério Sganzerla] realmente explodiu com a morte dele. É como se tivesse destampado uma panela de pressão e então o cinema de Rogério começou a ser distribuído pelo mundo. A minha filha Sinai Sganzerla veio realmente conhecer o cinema do pai em 2006, numa casa lotada em imagem: frame do filme A Mulher de Todos Turim, com pessoas sentadas no chão. Antes, ela não tinha podido conhecer a dimensão do trabalho do pai no Brasil, e tinha feito com ele a trilha sonora de O Signo do Caos. Então, é um momento extremamente radioso e importante. Ao mesmo tempo, esse cinema de Rogério se torna popular na juventude. Em alguns lugares, como no Bafici [Buenos Aires Festival Internacional de Cinema Independente, em abril deste ano], tivemos casas lotadas. Rogério é muito mais visto fora do Brasil. Desde junho do ano passado tenho feito constantes viagens para levar a obra dele. Temos ainda um trabalho difícil de recuperação e de preservação de seus filmes. Mas considero que, apesar de tudo, o momento é muito bom. O Nem Tudo É Verdade foi convidado para uma mostra, no ano que vem, no Lincoln Center [em Nova York] e ainda há mais dois convites internacionais para este ano. Foi preciso o Rogério morrer para acontecer tudo isso? De alguma forma ele previa isso. Você sabe que só Strindberg lia Nietzsche quando ele estava vivo? Isso é uma coisa doida e extremamente dolorosa. Mas a loucura tem lugar no mundo? Tem. Dos internacionais consagrados, por exemplo, um filme de que gosto muito é o Anticristo [de Lars von Trier, 2009], e aquilo não tem pé nem cabeça. im ag en s: fr am es d o fil m e A M ul he r d e To do s Mas O Bandido da Luz Vermelha nem chegou a ir para Cannes. O reconhecimento dessas genialidades precoces às vezes demora um pouco para acontecer. A própria trajetória do Orson Welles não foi muito diferente da do Sganzerla em termos de realização de filmes. Pelo tempo de carreira deles e pelo número de filmes realizados, tudo é muito proporcional. Será? Mas veja, Krzysztof Kieslowski foi descoberto em Cannes depois de praticamente 20 anos de carreira como documentarista. O Heneke [Michael Heneke] ganhou Palma de Ouro [pelo filme Das Weisse Band] no ano passado, sendo que o cara faz filmes desde a década de 1970. Mas esses caras conseguiram sobreviver. Pois é. Godard conseguiu. Mas ele é um atleta, ele tem uma coisa física por trás. E é suíço, o que sempre é melhor [risos]. Talvez se Glauber e Rogério fossem franceses, eles tivessem resistido mais. Como o Brasil trata mal seus verdadeiros artistas, não é? Eu posso falar porque eu não sou uma dessas pessoas, eu tenho outras porções. Mas tenho outra notícia muito interessante, o diretor do Festival de Locarno, Olivier Père, convidou O Bandido da Luz Vermelha para a edição do festival deste ano, em sessão especial. Isso foi muito bom. Locarno sempre gostou dos nossos marginais, não é? Acho Locarno realmente encantador. Como é que você vê esse encontro de duas pessoas excepcionais, você e o Rogério, que criaram uma obra tão voraz? No caso, você dando vida às personagens e ele escrevendo essas personagens. Não sei como dizer, talvez dizer não dizendo. Mas, bom, se trata de pessoas. Eu, ele e esse encontro. Uma paixão... Por aí. Tem essa força. A força também de uma atriz que vinha sete anos antes dele vivendo isso, começando um movimento, mas de uma forma muito fresh, com o Glauber, na Bahia. Na adolescência e na infância eu me alimentava do cinema brasileiro, das chanchadas. Mas eu não tinha grande tesão por esse cinema. Me divertia e tudo, mas não era o que eu queria fazer. Mas tinha uma força de uma criação ali que começou com O Pátio [o primeiro filme de Glauber Rocha, de 1959] e que depois foi distribuída em outros filmes, numa criação que tinha bastante autoria, mas que, de qualquer forma, era condicionada a um pensamento que nem sempre era o meu. Depois disso encontrei com Rogério exatamente a liberdade de me expressar completamente como artista. Tinha tido um vácuo muito grande talvez antes dele, porque essa adolescência com o Glauber foi adoravelmente fértil e louca, e estragada por um casamento. Éramos dois meninos, com 19 anos, na Bahia. O casamento estragou aquela coisa e foi curto. Mas teve um período antes dele em que eu encontrei essa efervescência toda. Então, quando eu encontrei Rogério, eu tinha já esse fogo, esse fogo dessa atriz e desse encontro com Glauber, uma forma glauberiana de ser artisticamente, e isso encaixou, se tornou no cinema que eu fiz como atriz com Rogério. No mais, foi uma imensa paixão, um grande amor extraordinário, e que fez inclusive com que eu me afastasse de tudo o que faria eu me afastar dele, talvez a carreira, talvez ambições nesse sentido. Eu queria estar ali, participar daquele momento de criação magnífico, que era a nossa presença com os filhos, isolados. Nós sempre fomos muito isolados. E então teve a ditadura, que nos baniu completamente, e depois a Embrafilmes, que nos deixou fora de produção. Enquanto isso o Rogério escrevendo. Ele tem uma produção literária extraordinária, que vai começar também logo a aparecer, assim como os roteiros. E agora será publicado um livro com os trabalhos [como crítico de cinema] que ele fez para o Estado de S. Paulo. Éramos muito afastados do cinema, graças a Deus. O que talvez tenha me permitido ter esse frescor de novo de retomar [o trabalho dele] após sua morte com a mesma intensidade de sempre. Retomar essa vontade de fazer cinema. Essa vontade já tinha vindo anteriormente, eu fiz um curta, A Reinvenção da Rua, fui movida por uma indignação pela situação da parte mais desprovida da sociedade, que são os moradores de rua. Então fiz a primeira coisa como diretora, diretora no sentido de ter uma ideia e me cercar de pessoas para fazer aquilo. Eu não sou exatamente uma cinéfila. Eu adoro completamente um autor de quem às vezes eu conheço apenas um filme só, apesar de ele ter uma obra inteira. Eu me interesso por poucas obras e me fixo nelas. O Rogério já tinha mais isso, não, de ser mais cinéfilo? Ele era completamente conhecedor de cinema, com 17 anos ele já conhecia todas as fichas de filmes clássicos, de todo o cinema. Esses são o Rogério, o Glauber e o Júlio Bressane. Esses são os três que eu conheço que são cineastas e são cinéfilos. E tem o Carlão [Reichenbach] também. Como foi, na realidade, para você, ver o Rogério vivendo obsessivamente o trabalho do Orson Welles? Como era para você essa grande paixão dele pelo Welles e pelos filmes, você entrou nessa história de peito aberto? Era um enigma, essa convivência com o Rogério era uma grande viagem em mar revolto. Quando eu vi pela primeira vez um fotograma de O Signo do Caos e na mala tinha It’s All True, eu pensei “puxa, de novo”. Não era mais uma trilogia. Era o quarto filme. Em Locarno, numa mostra sobre Welles, eu ouvi um curador dizer que sem os filmes de Rogério a obra de Welles não seria completa. Esse trabalho [de Rogério Sganzerla] é um enigma, e é um trabalho explosivo de alguém com um espírito extremamente cristão, um cristão trágico com essa concepção de saber que todo o trabalho dele só seria descoberto depois do trabalho final, fechando com O Signo do Caos, com o fogo da cremação. Um trágico total, desde A Mulher de Todos que ele trabalha com a tragédia. No final de O Signo do Caos tem-se uma repetição com a frase “acabou, acabou, acabou”. E parece que era o fechamento da própria obra do Rogério. Isso foi muito assustador para mim. Pois é, um fechamento dionisíaco, com fogo, com alegria, com vibração, “amém,amém”. Quando ele ganhou como Melhor Diretor e Melhor Montador com O Signo do Caos [no Festival de Brasília em 2003], ele ouviu da filha [Djin] esse anúncio. Sabe o que eu acho meio doido, Helena, é que nas mostras internacionais os curadores estão vendo os filmes do Rogério como se tivessem sido lançados hoje, com o olhar da novidade. É incrível isso, e mostra que são filmes modernos acima de tudo. E sobre a Belair, Helena, era inevitável esse encontro entre você, o Bressane e o Sganzerla, o trio Belair? Eu acredito que sim. Eu lembro que, quando vi o Copacabana Mon Amour, no Festival de Cinema Latino-Americana [2008, em São Paulo], com uma cópia restaurada, então a Djin apresentou o filme dizendo “Ah, eles usaram uma lente que foi do Fellini”. Vocês tinham essa magia que passa uma coisa que eu não vejo mais, uma coisa de ídolo, jovial. Era uma lente pesada, parecia um fundo de garrafa. Mas hoje é difícil manter essa jovialidade, não é? Mas eles conseguiam fazer os filmes deles assim. Na verdade era um cinema construtivo, que entrava na cabeça de seus ídolos. (Pausa para uma conversa entre os entrevistadores e Helena Ignez para falarem bastante sobre a nova geração de cineastas brasileiros, a exemplo do pernambucano Tião e seu filme O Muro.) Mas vamos voltar ao assunto da entrevista, que é falar do Sganzerla. É que falar da vida é muito interessante, e eu acho que foi isso o que me preservou, um interesse múltiplo forte que tenho. Você acha que o que aconteceu com o Rogério por dentro foi um pouco essa coisa obsessiva pelo cinema? Sim, essa obsessão artística nietzschiana das pessoas anormais. Claro, porque eu acho que um gênio não é normal. Em toda a obra dele, mesmo no mínimo está contida a mesma qualidade em todos os filmes. E para mim o que me preservou foi ter conseguido arejar, sair. E talvez, não sei, mas de alguma maneira com isso eu possa até ter preservado a vida de Rogério. Porque na família ele podia descansar, e talvez do contrário não tivesse sido assim, talvez tivesse sido ainda mais difícil, como pode ter sido para o Glauber. Mas o momento é este, é de reconhecimento da obra de Rogério. E dessa forma Luz nas Trevas [roteiro de Rogério Sganzerla, dirigido recentemente por Helena Ignez] é um filme que abraça toda a obra de Rogério, é um filme que devora, se apodera antropofagicamente – como é da nossa família espiritual – a obra de Rogério e devolve a ela outro filme. É um filme interessante, rico e contraditório. Porque é sobre a justiça, uma comédia criminal sobre a justiça, e um filme gay, imensamente gay. Como foi organizar esse roteiro? Foi uma loucura. Eu estou num momento muito forte também, porque várias decisões estão em volta desse filme e desse roteiro. Luz nas Trevas também foi convidado para o Festival de Locarno, em competição oficial. E é um filme que nasceu em 2003, pela descoberta que eu tive desse trabalho que está ali nas pastas vermelhas. E Rogério, que em toda a vida não deixou de perder o humor cáustico, um dia me disse “Você abriu demais esse baú”. Porque exatamente quando ele ia retomar esse trabalho, ele teve a notícia – apesar de estar com a saúde boa, normal – do câncer no cérebro. Então o médico disse “Eu não sei como o senhor está aqui, andando normalmente”. E ele perguntou “Quanto tempo de vida eu tenho?”. E o médico falou “15 dias”. Em vez disso ele viveu oito meses, e foi exatamente nesses oito meses que eu extraí força. E dentro daquele momento terrível era de onde vinha a alegria; ela vinha desse roteiro, da vida, das palavras dele, em um roteiro muito engraçado, de um humor muito interessante, com falas extraordinárias shakespearianas, tudo isso muito entrelaçado em mais de 700 páginas. E no final ele se virou e disse “Agora é Helena quem vai fazer”. E eu me vi com isso na frente, para organizar e criar e tudo isso dentro de um cinema brasileiro, sabendo de todas as dificuldades que temos para filmar. E enfim o filme está pronto. No mais, é uma produção familiar, a produtora executiva é a Sinai Sganzerla, a Djin é a atriz protagonista, em um elenco maravilhoso, com grandes atrizes e atores, a exemplo do André Guerreiro Lopes, que é também o meu genro, e do Ney Matogrosso, companheiro da minha geração, um ícone. Então tem essa estrutura familiar, com elementos que não são familiares, como a própria pessoa que eu convidei para codirigir o filme comigo [Ícaro Martins], que vem de uma concepção mais burocrática de cinema. E a grande vitória é que o filme não sofre essa influência burocrática que é fazer um filme no Brasil, em absoluto. É um filme radical, e radical na poesia. Pedro Jorge dirigiu três curtas-metragens, o último deles o documentário A Vermelha Luz do Bandido, sobre a obra de Sganzerla. Com a irmã, a diretora Mariana Jorge, codirigiu o documentário América Brasil, que acompanha a turnê nacional do cantor Seu Jorge. Atualmente é um dos montadores da série televisiva HiperReal (SescTV, dirigida por Kiko Goifman). Paolo Gregori dirigiu curtas-metragens como Atrás das Grades (1993) e Mariga (1995). Ganhador do Prêmio Glauber Rocha no 25o Festival Internacional de Cinema de Figueira da Foz, de Portugal (com o curta O Feijão e o Sonho, 1996). Seu curta-metragem Tropiabbas teve a première mundial em Valência em 2005 e foi exibido em mais de 20 países, enquanto O Bebê de Eisenstein foi exibido em Xangai, Hamburgo e Montevidéu. Atualmente finaliza seu longa-metragem Chuva. É professor na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e na Universidade Anhembi Morumbi. Edição | Mariana Lacerda fotos: arquivo da família de Sganzerla fo to : a rq ui vo d a fa m íli a de S ga nz er la investigações sObre O cinema (Ou seJa, O hOmem) mOdernO: sganZerla críticO Ruy Gardnier Observando o século XX, fica difícil afirmar que o crítico é um artista frustrado. São muitos os casos anteriores ao século passado – Stendhal, Diderot, Baudelaire e Machado de Assis, para mencionar apenas quatro –, mas este século viveu uma proliferação impressionante de artistas que exerceram a atividade crítica, como Georges Bataille, Ezra Pound, T.S. Eliot, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, todo o núcleo da nouvelle vague francesa (Godard, Truffaut, Rohmer, Chabrol, Rivette), Glauber Rocha, Jonas Mekas, além de incontáveis livros teóricos e manifestos que envolvem pensamento crítico (Schoenberg, Messiaen, Klee, Kandinski). Quando um grande artista exerce a atividade crítica, inevitavelmente ela se torna uma extensão de sua personalidade e de sua força criativa, selecionando as afinidades eletivas e afinando os processos de pensamento para lapidar as bases de sua arte. Como a crítica surge frequentemente nos períodos formativos dos cineastas, geralmente antecipando e/ou coincidindo com os primeiros roteiros, curtas e longa-metragem de estreia, observar o trabalho de um crítico-futuro- cineasta acaba sendo a mesma coisa que presenciar o retrato do artista quando jovem. Com os primeiros escritos de Rogério Sganzerla dá-se exatamente isso. No período mais brilhante de sua crítica, 1964-1967, Sganzerla é um jovem intelectual que tenta compreender as modificações que o cinema sofreu ao longo da década de 1950. Manifestando certamente uma série de mutações no globo, o cinema foi do certo ao incerto, do mastigado ao obscuro, do simples ao complexo. E o jovem Sganzerla criou para si mesmo a tarefa de mapear as características desses filmes que davam um sopro de renovação ao cinema daquele momento. Onde muitos viram gratuidades estilísticas, incoerências narrativas e hermetismo esnobe, Sganzerla viu um novo cinema que delineava uma nova relação com a imagem (e com os personagens, com as tramas,com a duração dos planos etc.) e que significava uma nova relação com o mundo. Em resumo, o empenho do jovem Sganzerla era explicar o cinema moderno. “Moderno”, para ele, não é uma questão de afetação ou de moda: é o cinema que exprime as inquietações de seu tempo, no conteúdo e na forma. Vários conceitos surgiram em artigos do Suplemento Literário do Estado de S. Paulo: “herói fechado”, “câmera cínica”, “cinema do corpo”, “tempo solto”, com recorrentes menções ao cinema de Fuller, Godard, Resnais, Losey, Antonioni e, como precursores, Welles e Hawks. Por trás dos nomes “herói fechado” e “câmera cínica” está a ideia de que o filme não tem mais a função de explicar o mundo e os personagens, e sim a de evidenciar esse caráter de incompreensão das coisas, em que tudo que o espectador pode fazer é olhar. Isso claramente já antecipa todo o fascínio dos personagens-ícones de Sganzerla, figuras intencionalmente opacas que funcionam como personagens de vaudeville num palco sem chão: no vazio do entretenimento, o pitoresco se apresenta em seu furor violento (e de cabo a rabo no cinema de Sganzerla há uma forte violência do signo ligada à caracterização/ caricaturização dos atores). Sganzerla memorialista Nos anos 1980, outro período particularmente prolífico de sua atividade crítica, certos questionamentos do cinema moderno são retomados, mas a tônica geral é a melancolia advinda do rompimento de laços do cinema brasileiro com seu braço mais experimental. São recorrentes – e altamente justificadas – as reclamações de que o cinema brasileiro se rendeu à telenovela e esqueceu o que havia de genial em sua tradição experimental, prestigiando o “pornosoft” e o naturalismo sem ousadias. Na ausência, a seus olhos, de um presente vigoroso, Sganzerla transforma-se num memorialista, evocando épocas do passado em que o Brasil tinha a bossa. Como Ulisses cantando sua longínqua Ítaca, o Sganzerla dos anos 1980 é um cineasta que olha para o Brasil e vê seu adorado cinema moderno muito longe, soterrado pela televisão. O antídoto? Dá-lhe Orson Welles, dá-lhe João Gilberto, dá-lhe Noel Rosa, na esperança da volta de modernidade e inteligência no cinema exercido no Brasil. no r astro de sganzerla uma antifotonovela Nasci em Joaçaba (SC). Até os 5 anos eu não falava e com 7 anos eu escrevi um livro de contos i nfantis... Eu era um menino barulhento, diferente dos padrões catarinenses... Com 10 anos comecei a fazer roteiro de cinema. Fazia um a trás do outro... Não tinha cineclube, não tinha nada. Não tinha meio nenhum de ir mais longe. Resolvi sair. Fui morar em São Paulo... A partir daí foi um momento de primeiro encontro com o cinema. Estudava no Mackenzie e de cara já não acompanhava as aulas. Meu interesse era me envolver com cultura. Com 17 anos comecei a fazer crítica de cinema no Suplemento Literário do Estado de S. Paulo... Nunca pensei em ser crítico. Sempre quis mesmo foi dirigir. Mas gosto do que faço porque, enquanto pude, fiz cinema com a máquina de escrever. Não diferencio o escrever sobre cinema do escrever cinema. Quando eu fui fazer cinema, tinha, apesar de uma grande ingenuidade, uma malícia que os outros caras não tinham. Fiz um curta-metragem e viajei para a Europa... Pedro Jorge e Alice Dalgalarrondo N es ta p ág in a: fo to s do a rq ui vo d a fa m íli a de S ga nz er la ; f ra m e do fi lm e D oc um en tá rio ; f ra m es d o fil m e O B an di do d a Lu z V er m el ha No retorno ao Brasil, li nos jornais sobre um bandido mascarado. A onda de violência estava crescendo em São Paulo. Comecei o argumento do filme na evolução de um garoto no mundo do crime... Fiquei pensando... E usei o título dos jornais: O Bandido da Luz Vermelha Meu filme é um far-west sobre o Terceiro Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma. Decretado hoje estado de sítio no país. O dispositivo policial reforça todos os seus órgãos de segurança... Ninguém sabe quantos assaltos, roubos, incêndios e atentados ao pudor ele já praticou. Janete Jane, a escandalosa! Outro dia tive que assistir o parto da minha cunhada. O bandido mascarado não respeita a mulher nem a propriedade privada. Tá falando com o campeão de tiro ao alvo de Cuiabá. Os jornais dizem que eu sou um gênio, um poeta adotado da Divina Providência, um santo... Um anjo anunciador... Sei lá... Eu sou um BANDIDO NACIONAL... O BANDIDO DA LUZ VERMELHA. Vivo de pequenos furtos, empréstimo dos amigos... Posso dizer de boca cheia: eu sou um boçal! E o Terceiro Mundo vai explodir e quem tiver de sapato não sobra! N es ta p ág in a: to da s as fo to s sã o fr am es d o fil m e O B an di do d a Lu z V er m el ha , e xc et o a fo to q ue S ga nz er la e st á co m a c âm er a (a rq ui vo d a fa m íli a de S ga nz er la ) Janete Jane, a namorada do Luz Vermelha, descobre a verdadeira identidade do pistoleiro mascarado. Que é que o secretário pensa da miséria? JB da Silva, o maior. Candidato à presidência da Boca do Lixo. Que miséria, meu filho? Um país sem miséria é um país sem folclore. O que é que a gente vai mostrar pro turista? Hahaha!! Até que saí bem no retrato falado. Prende esse anão boçal! Quem jogou a gatinha lá de cima? Fecha o cerco e manda bala nesse sacana! Estou esperando uma crítica inventiva, no nível do provável, e não da certeza idealista, das especu- lações sentimentais e das perspectivas do passado e do provinciano, principalmente... Definitivamente, queria esquecer de uma vez, já que O Bandido da Luz Vermelha foi feito para ser visto numa poeira... Em São Paulo tive de me manifestar porque picharam e elogiaram sem entender. N es ta p ág in a: to da s as fo to s sã o fr am es d o fil m e O B an di do d a Lu z V er m el ha , e xc et o a fo to q ue S ga nz er la a pa re ce e nc os ta do n a pa re de (f ot o: M ar co s Bo ni ss on ) Troquei a grande angular pela teleobjetiva. Meu novo filme é uma comédia inspirada na chanchada, onde Helena Ignez é a inimiga nº 1 dos homens. O que você quer, Flávio Asteca? Quer Angela Carne e Osso só pra você? Vamos passar o fim de semana na Ilha dos Prazeres? As aventuras sexuais de A ngela Carne e Osso, uma das dez mais megalom aníacas. Aquela depravação de novo? Antropófagos invadem a Guanabara! Sou o único negro milionário do Brasil! Vampiro, você é um bacana! Angela, meu amor, a minha paixão por você aumenta de 15 em 15 minutos. Me chama de bitolado. Vai, BI-TO- hahaha! Dr. Plirtz, proprietário do truste das histórias em quadrinhos do país, das minas de prata do Guarujá e da rádio emissora El Dólar. Sim, sou eu mesmo, Dr. Plirtz, o grande bitolado! Neste fim de sema- na vou me dedicar aos boçais. Será este o marido nacional do século XXI? Do XVI ou do XXI? Angela, meu amor, é uma pena que vocês não podem me dar nada porque eu tenho tudo! Não quero mais homem bacana. Só dá trabalho. Não dá pé! Mulheres, boa noite. Homens, goodbye. Alô, garotas, eu sou o Zé Bonitinho, pi- rigote das mulheres, e só entro em cena ao rufo de tambo- res!!! Não sou batom, mas estou em todas as bocas. Garotas,vou dar para vocês um fiapo do meu beijo! Engraçado, não, engraçado é um boi de dentadura postiça fazendo fiu-fiu para uma vaca no brejo! O trem que o mundo espera apita. Só me interessa a profecia. Tudo é uma coisa só e isso é tudo! Sobretudo de uma coisa só vem de tudo um pouco. Somos, fomos e criamos, que de tudo é uma só mente universal. Para chegar à mente livre, percorri um grande cinema estranho. N es ta p ág in a: fo to s de S ga nz er la (M ar co s Bo ni ss on ); de m ai s im ag en s sã o fr am es d os fi lm es A M ul he r d e To do s e A bi sm u vz Sinceramente, a solução mais adequada para você é o suicídio... Se mata, filho! O mundo é teu, boçal! De vosso recalque só pode vir a maior boçalidade possível... No abismo se desce ou sobe... Eu subo! Se a verdade estiver no fundo de um poço ou de um abismo, é preciso buscá-la, porque sem chute não há gol! Na caçapa de Joaçaba eu aprendi duas coisas em Tupi, firmeza e res- peito é uma coisa só! Primeiro mate o seu ego, depois venha falar comigo! Aqui no Brasil você não precisa dormir para sonhar! Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime. Para evitar perguntas cretinas, devo dizer a todos que continuarei a seguir minhas diretrizes fundamentais, que são, nada mais nada menos, dar ao cinema uma noção de tempo, espaço e profundidade. Não sou um gênio... Nem tudo é verdade! A máquina de filmar é o instrumento mais mentiroso inventado pelo homem, disse alguém e tava certo! Todos os maus filmes já foram feitos. Os burocratas vêm liquidando o cinema. Meus filmes são uma propaganda da alma e do corpo brasileiro. Eu acho que o Jimi Hendrix foi um pen- sador, o homem que colocou nas letras, concretamente, a frase “eu posso mudar a sua mente”. Isso é a revolução. N es ta p ág in a: fr am es d o fil m e Ab is m u; C re at iv e Co m m on s (fo to H en dr ix e W el le s) ; f ot o de S ga nz er la (M ar co s Bo ni ss on ) O primeiro livro que minha mãe me deu foi Sonhos de uma Noite de Verão, de Shakespeare. Eu tinha 6 anos. Sempre me considerei um vagabundo, um saltim- banco, um outsider em qualquer lugar do mundo. Mr. Welles, o que acha da crítica? Hahahaha! Detesto todo tipo de parasitas!!! Os astros são meus únicos aliados. O Brasil é o país que produz o melhor uísque falsificado do mundo! As pessoas são in- críveis, me aplaudem até quando estou sóbrio!!! O cara vem filmar o berço esplêndido, as mulatas... Respeito é manga de colete. To see or not to see, that’s the question! A imagem do caos é o próprio CAAAAOS! Para o fechamento, um antifilme. Podem recolher todo o material... O cinema não me interessa, mas sim a profecia! Os cinco sentidos são tão tolos como uma criança, não sabem distinguir ilusão da realidade, o verdadeiro do falso. Acabou, acabou. Podem jogar tudo fora. O cinema teria de ser escrito em uma folha em branco pegando fogo para poder registrar esse movimento de captação do pensamento de um filme durante sua realização. Por um cinema sem limite... FIM. Não deram nenhum tostão para Noel Rosa. N es ta p ág in a: fr am es d os fi lm es N em Tu do É V er da de , O S ig no d o Ca os , A bi sm u e O B an di do d a Lu z V er m el ha ; f ot o de S ga nz er la (M ar co s Bo ni ss on ) im ag em : a p ar tir d e fr am e do fi lm e H is tó ria s e m Q ua dr in ho s Álvaro de Moya O arOma de curry nO meu OlfatO O arOma de curry nO meu OlfatO Conheci Rogério Sganzerla como crítico do Jornal da Tarde, onde eu era colaborador, ainda na sede antiga, com aquele luminoso noticioso que filmaria em sua obra- prima, O Bandido da Luz Vermelha, em citação reverente ao anúncio da morte de Charles Foster Kane. Suas escritas eram ótimas e já revelavam seus diretores prediletos, como Samuel Fuller. Walter George Durst tinha feito um programa na TV Tupi focalizando Silki. Ficara impressionado com alguém que passava fome para comer. O faquir ficava num esquife de vidro na Praça da Sé, sem se alimentar e sem água durante dias, atraindo multidões dia após dia. Tencionava fazer um filme, mas alguém se antecipou e realizou um longa, para frustração de Durst, que não gostou da versão. Também entrevistara o Bandido da Luz Vermelha na prisão e queria fazer um longa. Ficou chateado quando foi anunciada uma versão. Quando, porém, viu o que Sganzerla realizara em seu Bandido da Luz Vermelha, engoliu, pois reconheceu que dessa feita resultara num grande filme. Na minha opinião, um dos maiores e melhores longas-metragens da história do cinema nacional, tal como A Margem, de Ozualdo Candeias. Sganzerla era extremamente criativo e seu filme representa uma ruptura na linguagem brasileira – equivalente ao que Jean-Luc Godard fez com o cinema francês em Acossado. Na montagem, viu um rolo em 35 milímetros que era um teste de projeção com efeitos de sons e imagens, achou legal e incluiu em seu filme. Contou-me que, na montagem do som, num estúdio no bairro do Sumaré, perto da casa de Hebe Camargo, ouviu tiros, estranhou. Ele e o editor notaram que os tiros tinham im ag en s: a p ar tir d e fr am es d o fil m e H is tó ria s e m Q ua dr in ho s filmáramos na véspera. Ele lia e achava ótimo, perguntava quem tinha escrito. “Eu”, respondia, candidamente. No dia seguinte, o mesmo diálogo, até ele acreditar que eu podia escrever sem citações. Quando filmamos uma vamp de Flash Gordon, de costas, com um longo vestido preto, ele se impressionou com a semelhança com uma mulher mais velha do que ele com quem tivera uma relação. A mesma imagem de Alex Raymond que Hector Babenco mostrou para Sonia Braga compor sua personagem em O Beijo da Mulher Aranha. Quando filmamos alguns quadrinhos nacionais, ele observou que era como filmar Rolls-Royce e misturar com um Aero Willys brasileiro. Vamos fazer dois curtas, um Comics e outro Quadrinhos no Brasil. Escolhi Orpheu Paraventi Gregori para fazer a locução. Fomos para a Cia. Cinematográfica Vera Cruz, ou o que sobrara dela, para juntar tudo. Ao entrar no terreno, o odor de curry vindo de uma planta ficou na minha memória. vindo de fora. Correram para a rua e viram um morto caído no chão e duas crianças ao lado, com gente correndo. Era um americano. Tinha sido fuzilado – depois de julgado pelos terroristas, segundo a imprensa – diante de seus filhos que iam para a escola. Mais tarde, a revista americana Time revelou que ele era um agente do governo norte-americano, a mulher dele não era sua esposa, mas uma agente também, e aqueles não eram seus filhos. Uma falsa família hollywoodiana para espionar a luta armada contra a ditadura militar brasileira. Continuamos amigos e em contato, mesmo quando não mais fez críticas escritas. Depois de algum tempo, procurou-me e revelou que tinha direito de usar a Oxberry da Jota Filmes, na Avenida General Olimpio da Silveira, para fazer um table top e que seu curta focalizaria os quadrinhos. Convidou-me para ser codiretor, redator e montar com ele a produção. Não tínhamos nenhuma experiência. Levei um monte de livros e revistas da minha coleção particular e filmamosO Fantasma. Ele me perguntou quantos fotogramas e chutei um número qualquer. Quando fomos ver as primeiras tomadas na Rex Filmes, tudo passou em frações de segundos. Como uma propaganda subliminar. Ficamos perplexos. E aprendemos... Escrevia em casa o texto, passo a passo, sobre o que Só falávamos de Orson Welles, de Cidadão Kane. Eram tempos de crise. Íamos comer algo na cidade de São Bernardo. Eu entrava numa loja de móveis vazia de fregueses e fingia interesse numa mesa Luiz XV e perguntava se dava para fazer sob medida aquelas pernas tortas com outro móvel incompatível. O vendedor aceitava absurdos, desde que concretizasse uma venda. Rogério se segurava para não rir e tirava sarro de mim, já na rua depois de prometer voltar mais tarde com a patroa. O curta Comics, por sorte, foi programado para acompanhar o filme de Pasolini Teorema e foi muito visto. Levei uma cópia para o Salão de Comics, em Lucca, foi bem recebido, o então diretor do Festival de Cinema de San Sebastian, Luis Gasca, sugeriu que eu mandasse uma cópia para a Espanha. Entreguei ao Consulado Brasileiro na Itália e chegou à península ibérica após o término do conclave. Gasca lamentou, pois teria recebido um prêmio internacional, seguramente. Além disso, a diplomacia brasileira perdeu a cópia. Ganhamos um prêmio em Manaus. Rogério, vivendo no Rio, me telefonava e prometia uma cópia 16 milímetros e esquecia. Saiu em vídeo e nada. Até hoje não tenho um Comics. Mas ficou na minha lembrança a felicidade daqueles momentos juntos e o aroma de curry no meu olfato. Álvaro de Moya é jornalista,pesquisador e escritor. Publicou o livro Shazam! (Perspectiva), considerado um clássico sobre a trajetória da HQ no Brasil. Foi curador de exposições sobre quadrinhos, dirigiu ao lado de Rogério Sganzerla os documentários História em Quadrinhos (Comics) e Quadrinhos no Brasil. im ag en s: a p ar tir d e fr am es d o fil m e H is tó ria s e m Q ua dr in ho s im ag em : f ra m e do fi lm e O B an di do d a Lu z V er m el ha cinema FOra da lei Manifesto de Rogério Sganzerla (escrito em 1968, durante as filmagens de O Bandido da Luz Vermelha) 1 – Meu filme é um far-west sobre o Terceiro Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west, mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett, Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann). 2 – O Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia, enquanto os tiras fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, ele avacalha. 3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime. 4 – Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço. 5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais. 6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da montagem. 7 – Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico. 8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima de todos os travellings. im ag en s: fr am es d o fil m e O B an di do d a Lu z V er m el ha 9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de Luís poeta e agitador Buñuel, anjo exterminador. 10 – Nunca se esquecendo de Hitchcock, Eisenstein e Nicholas Ray. 11 – Porque o que eu queria mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque entendi que tinha de filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás, como 80% do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à bobagem de Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos párias de Barravento. 12 – Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 1960. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo. 13 – Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse país tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento. im ag em : f ra m e do fi lm e Ca rn av al n a La m a FragmentOs de rOgériO Hernani Heffner Os filmes. Os filmes. Os filmes. Rogério sempre falou de tudo – do cinema, das pessoas do cinema, das sacanagens do cinema –, mas nada ficou acima dos filmes. Falava apaixonadamente, obsessivamente, dos seus e de todos os outros que considerasse instigantes, quer isso significasse Luís de Barros ou Samuel Fuller. Quase tudo era importante em alguma medida. Bastava começar uma conversa em torno do mais insignificante dos filmes, da mais banal das cenas, do mais reles dos planos, que a fala surgia num crescendo de frases rápidas, inacabadas, entrecortadas, com verbos no subjuntivo ou no pretérito imperfeito. O pensamento tinha de escoar, ganhar vida, apresentar-se de forma sugestiva, mas não como uma explicação ou uma lição de moral estético-histórica. A voz elevada, os braços agitados, a silhueta algo franzina agigantando-se num aparente corpanzil que dominava o pedaço, queria dar conta do que transformava o inerte, o monótono, em picada estimulante. Coisa de diretor de cinema atirado e incisivo que, diziam, ele era. Não nos conhecemos antes por causa dos filmes. Ou melhor, foi por causa de filmes, mas não os seus, que em geral levavam (poucos, no início) admiradores impactados a se aproximar dele. De certa forma, Rogério foi se tornando familiar para mim por causa de relatos de outras pessoas. Uma delas, José Marinho, ator “sganzerliano” de primeira hora, foi meu professor no curso de cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF) no começo dos anos 1980. “Tarzan” propagandeava a maestria do diretor de O Bandido da Luz Vermelha. Outra pessoa foi Remier Lion, o mais antigo entusiasta, enaltecedor e profundo admirador que conheci da obra e do artista por trás da obra que se erigira após o sucesso daquele primeiro filme. Ele era um garoto quando pirou com os filmes e foi atrás do realizador daquilo que considerava mais do que uma lição de cinema, uma lição de arte e de vida. Ficaram amigos e fui absorvendo um pouco dessa relação ao estreitar a minha com o futuro programador, pesquisador, realizador e globe- trotter de cinema. Já tinha uma pequena ideia de quem era Rogério. Conheci-o