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Ocupação Rogério Sganzerla


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OcupacaO
ROGÉRIO SGANZERLA
Ideias e imagens de um dos cineastas mais 
importantes do Brasil estão na Ocupação 
Rogério Sganzerla. Realizada pelo Itaú 
Cultural, a exposição é uma oportunidade 
de o público conhecer o universo criativo 
da obra de Sganzerla, por meio de seus 
filmes, documentos e roteiros originais 
datilografados, marcados, reescritos à mão. 
Anotações, referências aos artistas e aos 
personagens que o inspiraram, além de fotos 
e objetos pessoais, compõem a montagem. 
Parte da exposição, esta publicação traz 
textos atuais de críticos, pesquisadores 
e daqueles que compartilharam com Rogério 
Sganzerla sua energia, suas histórias de vida, 
afeto, trabalhos, ideias, filmes. Com uma obra 
enigmática, cuidadosa no que se refere ao som 
e à construção de poesia em imagens, Sganzerla 
reposicionou a história do cinema brasileiro 
no mundo. Os caminhos e os percalços dessa 
trajetória são contados nos relatos, na 
entrevista, nas fotografias de acervo e nos 
desenhos a seguir, numa homenagem afetiva ao 
cineasta que aos 22 anos realizou O Bandido 
da Luz Vermelha, considerado pela Unesco um 
Patrimônio Cultural da Humanidade.
 
 Instituto Itaú Cultural
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Pré-OcuPaçãO 
de um visiOnáriO
Joel Pizzini
Rogério está no ar, na tela e no papel. A Ocupação 
Rogério Sganzerla pinta numa esquina de ponta da 
Avenida Paulista, evoca os signos do caos, atravessa o 
perigo negro do abismo e joga luz nas trevas através do 
mistério da criação.
Não estava escrito em lugar nenhum qual o destino que 
aguardava aquele guri, que até os 5 anos não falava, aos 
7 já lançava um livro de contos e aos 11 aprontava 
o primeiro roteiro de longa metragem.
Conta sua mãe, Dona Zenaide, que Rogério, lá em Santa 
Catarina, quando criança, adorava brincar de mágica e 
hipnotizar os amigos. O que ela não adivinhava, contudo, 
é que seu filho ganharia o mundo, tirando “o cinema do 
quarto de brinquedos” e revelando, em quatro filmes, 
verdades e mentiras da passagem do mago Orson Welles 
pelo Brasil. 
A cinefilia de Sganzerla aflorou aos 13 anos, no Colégio 
dos Irmãos Maristas em Florianópolis, onde o padre 
Andreotti, ao perceber que seu aluno não tinha pendor 
para atividades físicas, o estimulou a frequentar o 
cineclube, que exibia um atrevido repertório de John 
Ford e Rene Claire a Rossellini.
A escolha de Rogério pelo cinema se definiu em 1961, na 
mudança para São Paulo, após sobreviver a um trágico 
acidente de carro em Joaçaba. Decidiu se instalar 
numa pensão na Pauliceia aos 15 anos e virou rato da 
Cinemateca enquanto fazia direito no Mackenzie, curso 
que abandonou dois anos depois, ao ser convidado por 
Décio de Almeida para escrever no festejado Suplemento 
Literário do Estadão. Através da crítica, fez cinema 
com a máquina de escrever, não diferenciando o “escrever 
sobre cinema do escrever cinema”.
Depois fundou, com Maurice Capovilla, uma página de 
cinema no Jornal da Tarde, tornou-se, ainda, redator da 
revista Visão, da Folha da Tarde e do Última Hora. Nesse 
período conheceu Andrea Tonacci e realizou seu primeiro 
filme de ficção, curiosamente chamado Documentário, 
que conquistou o disputado Prêmio JB Mesbla. Entregue 
pela atriz Helena Ignez, sua futura esposa e parceira, 
o prêmio lhe rendeu uma viagem para Cannes, que ele 
aproveitou para a cobertura do festival. Na viagem de 
volta, escreveu no navio o roteiro de O Bandido da Luz 
Vermelha. O resto é mar.
A trajetória errática de Rogério desse ponto em diante 
todos conhecem: lançado em 1967, O Bandido provocou 
enorme impacto, arrebatou vários prêmios no Festival de 
Brasília, transformou-se em clássico outsider e, como 
não bastasse, virou fenômeno de público, autenticando 
a utopia de Oswald de Andrade – fabricar biscoito fino 
para o deleite das massas. Antes de tudo, o filme 
profetiza o AI-5 (“decretado o estado de sítio no país”, 
brada a locutora de rádio) e inova na incorporação do 
pop, do kitsch, de clichês, subgêneros e HQs.
E, quando todos pensavam que estacionaria na sombra 
do próprio mito, Rogério apostou, em 1969, todas 
as suas fichas no popular e sofisticado A Mulher de 
Todos, um ousado modelo de indústria de Sganzerla para 
o audiovisual brasileiro – conforme o sócio e amigo 
Júlio Bressane.
Um primor de roteiro, A Mulher de Todos escancara o 
talento de Helena Ignez, que revoluciona a arte de 
interpretar, explodindo os limites do enquadramento. 
Na sequência vem a radicalidade setentista da 
produtora Belair, que transpôs o deserto vigente no 
país e legou seis longas – marcantes viagens em apenas 
três meses de estrada. Da lavra de Sganzerla, três 
pérolas: Carnaval na Lama (desaparecido em mostra no 
Jeau de Paume, em Paris, em 1992), Copacabana Mon 
Amour e Sem Essa, Aranha.
Enquanto filmavam com olhos livres e rompiam nós 
narrativos, o tempo se fechou e Rogério, Helena e 
Júlio se viram forçados a se exilar no Velho Mundo, 
onde concluíram parte dos filmes, que foram exibidos 
em Londres.
Na volta ao trópico, no vácuo da contracultura, adotando 
seu singular método pré-colombiano, Rogério lançou com 
Helena o Abismu, salto no escuro que em 30 anos ainda 
reverbera com frescor sob a fuselagem sonora de Jimi 
Hendrix e a performance transcendental de Zé Bonitinho.
O sonho acabou? No embalo dos esquisitos anos 1980, 
das aberturas políticas, da redemocratização e da 
globalização à vista, só um cidadão pode nos salvar: 
Welles. Ao lado, naturalmente, de três signos centrais 
do cinema de Sganzerla: Hendrix (desde Abismu), Oswald de 
Andrade (Perigo Negro) e Noel Rosa, inspirador de dois 
filmes: Noel por Noel (1980) e Isto É Noel Rosa (1990).
Desse modo, Rogério Sganzerla dedica-se de corpo e 
alma a compor uma tetralogia sobre a passagem entre 
nós do cineasta norte-americano Orson Welles, nos anos 
1940, quando It’s All True é abortado por contrariar 
interesses de políticos brasileiros e norte-americanos 
de suspeita vizinhança.
Na primeira sessão do copião de O Signo do Caos em 
São Paulo foi que me aproximei mais de Rogério, que 
conhecia desde 1980, nos tempos de universidade, em 
Curitiba, quando apresentou seu 
filme Brasil, debatido, com a 
presença dele, em nossa turma de 
jornalismo. De lá pra cá, breves 
encontros, mas para mim intensos 
papos lunáticos.
Que mistérios tem Rogério?
Enfant terrible,internaciona-
lista,cineasta com suingue que 
saiu determinado da província 
para desburocratizar mentes e 
desafinar o coro dos contentes 
com um corte cínico-utópico na 
cena audiovisual contemporânea. 
Para ser vista com olhos 
livres e sensibilidade atenta 
(parafraseando Oswald de 
Andrade), apresentamos pela 
primeira vez em nosso país 
parte significativa da vasta 
produção intelectual-criativa 
de Rogério Sganzerla, cuja 
memorabilia é revisitada 
e a vida-obra escancarada 
nos roteiros inéditos e nos 
caderninhos em que desde 
criança anunciava o crítico que 
se afirmaria na adolescência.
A Ocupação Rogério Sganzerla é 
composta de nichos-sequência 
que compõem a trajetória do 
artista, homem e pensador. 
Sem cronologia rígida, a 
montagem espelha a lógica 
cinematográfica, onde coabitam 
livremente tempos, ideias, 
formas, sons. Por se tratar de 
um artista transgressor, que 
permanentemente rompeu esquemas, 
decidimos sinalizar, ao invés 
de demarcar, resguardando assim 
a dimensão enigmática de seus 
escritos e registros fílmicos. 
Os espaços da exposição evitam 
o tom saudosista e valorizam 
aspectos pictóricos e gráficos 
recorrentes na obra do autor. 
Uma projeção exibe em quatrotelas pequenos filmes que 
buscam conexões na filmografia 
de Sganzerla, evidenciando 
seu estilo, características 
dos personagens e diálogos 
marcantes. Trata-se de um 
eixo central expositivo que 
proporciona ao visitante uma 
experiência sensorial que 
pretende antes despertar o 
interesse pela retrospectiva 
do diretor.
A exposição extrapola as 
fronteiras do espaço e se 
prolonga no plano virtual, 
criando uma rede de dezenas 
de relatos através do site 
(www.itaucultural.org.br/
ocupacao), que permitirá uma 
compreensão mais abrangente do 
universo existencial e inventivo 
de Rogério, amplificando o 
alcance de sua obra. Na fase 
de prospecção e pesquisa, 
cerca de 4 mil imagens foram 
digitalizadas do acervo 
familiar, de instituições 
e de companheiros e amigos 
profissionais, para consequente 
seleção da curadoria. Os 
personagens “sganzerlianos”, 
com respectivos verbetes, 
ganham destaque na mostra, 
que revelará cenas familiares 
e exibirá o material bruto 
de dois filmes do cineasta 
catarinense: um inacabado, Fora 
do Baralho (1971), rodado no 
deserto do Saara, e Carnaval 
na Lama (1970), desaparecido 
em uma mostra que homenageava 
Hélio Oiticica em Paris, em 
1992. Outro achado precioso é A 
Alma do Povo Vista pelo Artista 
(1991), filme-ensaio sobre a 
arte de Newton Cavalcanti, cujos 
originais estão desaparecidos, 
mas uma cópia recém-encontrada 
sem som será exibida. 
Os três signos medulares na 
constelação de Rogério – Noel 
Rosa, Orson Welles e Jimi 
Hendrix – ganharão espaços 
específicos. Atenção para o 
canto dedicado a Hendrix, que 
é o experimento interativo 
da mostra: uma guitarra com 
dispositivo midi, disponível 
para qualquer visitante tentado 
a aguçar o imaginário musical 
inerente ao cinema de RG. A 
guitarra emitirá sons e imagens 
em inesperadas combinações.
 
O mar, elemento significativo 
nos filmes de Rogério, inundará 
uma tela sob forma de projeção, 
que o espectador descortinará 
ao incursionar no ambiente. 
O público estará, então, no 
interior de uma sala-tela-
caixa, onde o imaginário do 
gênio protagoniza a cena, os 
personagens divagam e a luz 
projeta signos e profecias que 
refletem o novo milênio.
Concebida sob uma perspectiva 
contemporânea, a Ocupação 
Rogério Sganzerla persegue três 
linhas de fuga: luz, abismo e 
caos – nodais no universo do 
autor. Sua plenitude da poética 
poderá também ser compartilhada 
em retrospectiva completa do 
cineasta, debates com íntimos 
conhecedores de sua trajetória 
no Brasil e no exterior, por 
meio de portal eletrônico, 
livros e esta publicação: ecos 
do espírito da mostra. 
Através da mobilização da 
família, que generosamente 
abriu seu acervo, de amigos e 
colaboradores e entidades de 
preservação, e do envolvimento 
da equipe do Itaú Cultural, 
ocupa-se, enfim, um espaço 
privilegiado para a expansão da 
linguagem de Rogério Sganzerla. 
E justo na cidade que Rogério 
filmou compulsivamente com 
sua máquina de escrever desde 
adolescente e onde produziu as 
obras-primas, O Bandido da Luz 
Vermelha e A Mulher de Todos, 
que agora voltam reconhecidas 
para inscrever sua luz própria.
A Ocupação Rogério Sganzerla é 
uma iniciativa sem precedentes 
sobre um artista visionário que 
transita na terceira margem 
do cinema, intransigente em 
seu ideário e que finalmente 
recebe um tratamento à altura 
da contribuição para o cinema 
brasileiro com que sonhamos 
(neste caso, sua vida vale o 
sonho). Um evento de fôlego, 
que proporcionará a fruição 
de uma obra singular, radical 
e ainda pouco acessível ao 
público, por dificuldades 
de distribuição. Esperamos 
que em breve este esforço 
lance sólidas bases para a 
sistematização do inventário 
documental do artista, criando, 
assim, condições para um 
diagnóstico que desencadeie uma 
ação urgente e efetiva para a 
restauração desse patrimônio 
audiovisual sem limites.
Autor de Glauces (2001) e Helena Zero 
(2006) – ensaio sobre Helena Ignez –, 
Joel Pizzini é casado com Paloma Rocha, 
enteada de Rogério Sganzerla. Ao lado da 
esposa, dirigiu Elogio da Luz (2003), 
sobre a vida e a obra do cineasta. 
Colaborou na montagem de Luz nas Trevas 
(inédito), de Helena Ignez, com roteiro 
de Sganzerla. Diretor de 500 Almas 
(2004) e vencedor de mais de 20 prêmios 
em festivais nacionais e internacionais, 
Joel Pizzini é o curador da Ocupação 
Rogério Sganzerla. 
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QuandO Palavra 
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sObre O eixO 
dOs sentidOs
Roberto Moreira S. Cruz
Mais uma vez o cinema está 
exposto. No espaço e nas telas 
desta Ocupação. E nada mais 
apropriado que o escolhido fosse 
um realizador que em sua visão 
vertical da realidade brasileira 
construiu uma das mais originais 
e criativas filmografias do 
cinema nacional.
Rogério Sganzerla é de uma 
geração de artistas que 
viraram do avesso os dogmas 
estabelecidos das regras de 
conduta da cultura brasileira. 
Realizou aos 22 anos, em plena 
época da ditadura, um filme 
improvável e revolucionário em 
sua forma e conteúdo. O Bandido 
da Luz Vermelha é atemporal 
e, aos olhos congestionados 
da cultura da imagem 
contemporânea, ainda brilha e 
ofusca pela sua originalidade. 
Em seguida produziu, em 1969, 
A Mulher de Todos, filme feito 
e perfeito para Helena Ignez, 
sua companheira por 34 anos e 
com quem teve Sinai Sganzerla e 
Djin Sganzerla. Ao lado de Júlio 
Bressane e da própria Helena 
Ignez na experiência Belair, 
uma produtora independente e 
anarquista, que em três meses 
produziu seis filmes, realizou 
Copacabana Mon Amour, Sem 
Essa, Aranha e Carnaval na Lama 
(filme desaparecido e cujos 
negativos estão parcialmente 
deteriorados). Cinema como 
resultado da força criativa de 
uma geração interessada antes de 
tudo no exercício da liberdade 
de criação.
Exilado como tantos outros, 
viajou para a Europa e a 
África, onde filmou com a mesma 
intensidade criativa o material 
bruto do projeto inacabado 
Fora do Baralho. Ao regressar 
ao Brasil, retornou ao cinema 
com Abismu (1977), filme que 
reúne em atuações antológicas 
Wilson Grey, José Mojica Marins, 
Jorge Loredo e Norma Bengell. 
Foi nesse mesmo período que 
Sganzerla passou a se dedicar 
a uma vasta pesquisa sobre a 
presença de Orson Welles no 
Brasil, fato que ele referenciou 
nos filmes-ensaio Nem Tudo É 
Verdade, Linguagem de Orson 
Welles, Tudo É Brasil e O Signo 
do Caos. Com o mesmo olhar 
crítico e criativo, contou a 
história de Noel Rosa e celebrou 
Jimi Hendrix.
Apesar do reconhecimento, a 
obra de Rogério Sganzerla está 
pouco preservada na memória 
audiovisual do país, e resgatá-
la nesta exposição significa 
atualizar o que já se sabe 
sobre sua cinematografia, mas 
fundamentalmente o que pouco 
se mostrou e se pesquisou. 
Sganzerla era antes de tudo um 
homem da palavra e das ideias. 
Foi crítico de cinema, colaborou 
nos principais jornais do 
país,1 deixou escritos roteiros 
inéditos e refletiu de forma 
brilhante sobre a necessidade de 
pensar e de fazer um cinema que 
fosse genuinamente brasileiro.
Quando começamos a trabalhar 
no projeto desta exposição, 
um tesouro foi imediatamente 
revelado. O acervo particular 
do cineasta estava intocado 
desde sua morte, em 2004. O 
interesse em descobrir o que 
estava guardado naquelas dezenas 
de caixas, pastas e arquivos 
de um cineasta da envergadura 
de Sganzerla motivou o convite 
para a família do cineasta 
se aventurar na construção 
coletiva desta exposição. Com 
a contribuição do curador Joel 
Pizzini, de Helena Ignez, Sinai 
Sganzerla, Djin Sganzerla e de 
uma equipe de pesquisadores, 
iniciou-se o processo de 
averiguação, manipulação e 
levantamento de milhares de 
páginas,anotações, manuscritos, 
1 Com o apoio do Itaú Cultural, a editora da Universidade Federal de Santa Catarina 
(UFSC) prepara uma edição especial em dois volumes das críticas e dos artigos 
publicados por Rogério Sganzerla nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.
roteiros, cadernos, fotografias 
e sequências de filme. À medida 
que todo esse material era 
mexido e remexido, foi então 
se descobrindo um conjunto de 
rascunhos e textos, muitos 
deles desconhecidos da própria 
família, com traços evidentes de 
que, para o cineasta, a escrita 
servia de guia para suas ideias 
e para a elaboração de suas 
imagens. O próprio Sganzerla 
reconhecia em seus depoimentos 
que a escrita era a primeira 
etapa para a constituição do 
enunciado audiovisual. Como ele 
próprio afirmava: “Fazer cinema 
é como descrever um movimento 
impetuoso numa folha em branco 
pegando fogo”.
Perceber as características 
desses textos, a forma muitas 
vezes aleatória e repetida com 
que as ideias eram escritas 
e anotadas, leva a supor 
que uma análise mais detida 
e metódica desses arquivos 
poderia revelar, sem dúvida 
alguma, outra abordagem sobre 
a linguagem e a narrativa de 
seus filmes. Desconheço alguma 
argumentação crítica que tenha 
se debruçado sobre a obra do 
cineasta a partir da hipótese 
de aproximação de sua linguagem 
audiovisual com sua escrita. 
Nesse sentido, a Ocupação 
Rogério Sganzerla quer trazer 
ao público essa dimensão 
sinestésica de seu cinema, em 
que palavra e imagem convergem 
sobre o eixo dos sentidos e se 
cruzam no campo da ambiguidade. 
Não é difícil notar que essa 
confluência nebulosa e pouco 
elucidativa entre imagem em 
movimento, língua e fala está 
na própria atonalidade narrativa 
de seus filmes, carregados de 
maneirismos, irreverência e 
contrastes estilísticos. 
Ver e ler os roteiros e as 
anotações de filmes como O 
Bandido da Luz Vermelha, A 
Mulher de Todos e Nem Tudo 
É Verdade é um exercício 
prazeroso e ao mesmo tempo 
desafiador, uma aventura da 
leitura que evoca as imagens em 
movimento e vice-versa! 
Da mesma forma, reconhecer 
nos manuscritos os indícios 
de uma sequência ou a opção 
por uma fala específica de um 
personagem incita a percepção 
e a curiosidade de como 
tantas ideias viraram filmes! 
E que filmes!
Roteiros inéditos, originais 
de seus artigos e críticas, 
fragmentos e material bruto 
de filmes inacabados, objetos 
e equipamentos utilizados na 
realização de seus filmes 
constituem-se em referências 
e signos de sua cinematografia. 
A Ocupação Rogério Sganzerla 
é uma experiência multissen- 
sorial, em que o cinema está 
expresso em sua dimensão plural 
de linguagens e sentidos. Em 
que as imagens, as palavras e 
os sons estão interpenetrados 
numa atmosfera sensorial e 
reflexiva, envolvidos pela 
força autoral e criativa de um 
cineasta com “C” maiúsculo.
Roberto Moreira S. Cruz é gerente do 
Núcleo de Audiovisual do Instituto Itaú 
Cultural desde 2001, onde organiza e 
coordena projetos nas áreas de cinema 
e vídeo. É mestre em comunicação e 
cultura pela Universidade Federal do 
Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorando em 
comunicação e semiótica pela Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo 
(PUC/SP), onde desenvolve pesquisa 
sobre cinema, narrativa e projeções 
no contexto da arte contemporânea. Foi 
professor assistente da Pontifícia 
Universidade Católica de Minas Gerais 
(PUC/MG) no curso de comunicação social 
entre os anos de 1989 e 2001. 
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FluxO 
ininterruPtO de 
energia criativa
Djin Sganzerla
João Gilberto, de quem meu 
pai tanto gostava, cantou a 
saudade de forma singular. 
É com esse sentimento que 
“não sai de mim”, misturado a 
uma grande alegria, que vivo 
este ano de 2010. Um ano de 
reencontros e expansão. Um ano 
que culmina nesta “ocupação”, 
iniciativa belíssima do Itaú 
Cultural, com curadoria do Joel 
Pizzini, em que o público terá 
a chance de conhecer melhor 
essa personalidade, esse grande 
artista, escritor, cineasta 
único, Rogério Sganzerla. 
Em abril estive com Helena 
Ignez e Sinai Sganzerla 
no 12o Festival de Cinema 
Bafici, em Buenos Aires, onde 
Rogério recebeu uma importante 
retrospectiva. Um festival 
instigante, de excelente 
curadoria, sua obra sendo 
“redescoberta” por um público 
encantado, interessantíssimas 
análises, salas lotadas, 
diversos convites internacionais 
– França, Alemanha, Áustria e 
uma retrospectiva completa no 
Lincoln Center, a convite do 
curador americano Scott Foundas, 
que disse que seus filmes eram 
absolutamente geniais. 
Tive a oportunidade de 
rever Nem Tudo É Verdade, 
uma poesia em movimento. Um 
filme magistral, com absoluta 
originalidade e liberdade, 
reconstrói a vinda do Orson 
Welles ao Brasil. Assistindo ao 
filme, me senti conversando com 
meu pai, vendo-o transformar em 
cinema tudo o que passava por 
suas mãos, fluxo ininterrupto 
de energia criativa.
Depois da sessão, Quintin, 
crítico de cinema e ex-diretor 
do Bafici, veio emocionado 
conversar conosco. Contou que, 
em 2004, Roberto Turigliatto, 
então diretor do Festival 
de Turim, perguntou se ele 
conhecia a obra do Sganzerla, 
que em sua opinião era maior 
que Godard. Quintin respondeu 
que assistira apenas ao 
Bandido e achou que havia no 
comentário certo exagero. Mas 
agora, depois de acompanhar a 
retrospectiva de Sganzerla, 
percebia que Turigliatto 
estava certo, Rogério era 
maior que Godard.
Assim tem sido seu reconhe- 
cimento. No ano passado, uma 
belíssima retrospectiva na 
Índia, e meses antes na Itália, 
em Trieste, entre tantas outras. 
Agora, em junho de 2010, 
Copacabana Mon Amour participa 
do 28o Festival de Munique. Os 
filmes seguem depois para a 
França e para Viena. 
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No Brasil, o Itaú Cultural 
faz a mais completa das 
retrospectivas, como o próprio 
nome diz, uma Ocupação Rogério 
Sganzerla. Apresenta esse 
multiartista em sua completude: 
roteiros originais ainda não 
filmados, objetos pessoais, 
filmes, fotos de diversas fases 
de sua vida, debates sobre a 
obra etc. Somados a isso, o 
relançamento do CD da trilha 
original do Copacabana Mon Amour 
e a publicação de dois livros 
com artigos e críticas que 
escreveu no Suplemento Literário 
do Estado de S. Paulo, na Folha 
de S. Paulo e no Jornal da 
Tarde. Meu sincero e carinhoso 
agradecimento a Joel Pizzini, 
esse curador/artista.
Lembrei-me das nossas últimas 
caminhadas pelo centro de São 
Paulo, ele falando como filmaria 
o Bandido 2 (Luz nas Trevas), 
percebia como tudo ao seu redor 
era motivo de inspiração. Vimos 
um rapaz que consertava uma 
porta com um maçarico e meu 
pai logo comentou que criaria 
uma cena do Bandido usando 
um maçarico para acender um 
cigarro... Pouco tempo depois, 
no final de sua doença, comentou 
que somente uma câmera poderia 
salvá-lo. 
Hoje, em paralelo ao que mais 
amo fazer na vida, que é atuar, 
administro junto com minha mãe e 
com Sinai a Mercúrio Produções 
(em São Paulo). Em paralelo aos 
projetos que criamos, vejo esse 
nosso trabalho de difundir, 
preservar e relançar sua obra 
como um serviço ao cinema 
brasileiro, mantendo vivo o 
legado de um dos seus principais 
artistas. E ao mesmo tempo um 
hino de amor aos dois, pais 
queridos, que tanto fizeram e 
fazem pela nossa cultura.
Revendo o material que foi 
entregue ao Itaú Cultural 
para compor a Ocupação Rogério 
Sganzerla, encontrei cartas 
magistrais que não conhecia, 
como o cartão carinhoso que ele 
enviou de Firenze para o Júlio 
Bressane, mandando um beijo 
para a “linda Helena”, então 
namorada do Júlio; como a carta 
que enviou à Sinai,que na época 
tinha 9 anos, contando que 
estava em um festival e que iria 
encontrar ninguém mais, ninguém 
menos do que mister Welles...
Quando me convidaram para 
escrever, pensei no que dizer.
Lembro-me de um sonho que 
tive alguns meses depois de 
sua partida; ele filmava, 
filmava, com uma alegria, um 
contentamento enorme, como um 
menino em cima de uma árvore. 
O próprio sonho parecia ser 
enquadrado pela sua câmera. 
Senti que ele estava fazendo, 
onde quer que estivesse, o que 
sempre mais gostou.
E as projeções de sua obra nós 
fazemos aqui.
Djin Sganzerla é atriz, estreou no cinema no 
longa-metragem O Signo do Caos, de Rogério 
Sganzerla. Premiada pela Associação Paulista 
de Críticos de Arte (APCA) como Melhor Atriz 
de Cinema de 2008, pelo filme Meu Nome É 
Dindi, de Bruno Safadi. Também recebeu, entre 
outros, o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante 
do 39o Festival de Cinema de Brasília, pelo 
filme A Falsa Loura, de Carlos Reichenbach. 
Trabalha ao lado da sua mãe e da irmã na 
Mercúrio Produções, que lança neste ano o 
Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz 
Vermelha, filme em que faz a protagonista 
feminina, Jane. 
foto: Marcos B
onisson
Cronologia
1946
Rogério Sganzerla nasce em Joaçaba, no interior de 
Santa Catarina, no dia 4 de maio.
1964-1965
Muda-se para São Paulo para cursar as faculdades de 
direito e administração. Inicia a atividade de crítico 
de cinema no Suplemento Literário do jornal 
O Estado de S. Paulo.
1967
Estreia na direção com o curta-metragem 
Documentário, que recebe o Prêmio JB Mesbla de 
Melhor Curta, o que lhe dá direito a ir ao Festival de 
Cannes. No retorno de navio ao Brasil, Rogério lê nos 
jornais brasileiros a bordo as notícias sobre um fora 
da lei conhecido como “Bandido da Luz Vermelha”, 
que agia em São Paulo. Como vinha escrevendo um 
roteiro sobre um criminoso de traços semelhantes, 
decide adaptar sua história à daquele personagem 
tão frequente na crônica policial da época.
1968
Realiza O Bandido da Luz Vermelha, seu primeiro 
longa-metragem, um dos mais premiados filmes 
brasileiros de todos os tempos. Posteriormente, 
na condição de clássico, é indicado pela Unesco 
como Patrimônio Cultural da Humanidade. Na 
filmagem, inicia sua relação com Helena Ignez, atriz 
considerada musa do Cinema Novo e que se tornou 
sua parceira artística afetiva por toda a vida.
1969
Lança A Mulher de Todos, seu segundo longa-
metragem, estrelado, entre outros, por Helena Ignez, 
Paulo Villaça e Jô Soares. Sucesso de bilheteria. Ao 
apresentá-lo no Festival de Cinema de Brasília de 
1969, aproxima-se de Júlio Bressane, que exibia seu 
O Anjo Nasceu. Realiza dois filmes com a codireção de 
Álvaro de Moya: os curtas HQ e Quadrinhos no Brasil.
1970
Em parceria com Júlio Bressane e Helena Ignez, funda 
a produtora Belair – que em apenas três meses realiza 
seis filmes. Sganzerla dirige três deles: Copacabana 
Mon Amour (com trilha original de Gilberto Gil), Sem 
Essa, Aranha e Carnaval na Lama (ou Betty Bomba, a 
Exibicionista), filmado, em parte, em Nova York. Exilado, 
Rogério Sganzerla segue com Helena Ignez para 
Londres. Depois, para Marrocos, Argélia, Tunísia, Níger, 
Nigéria, Daomé (atual Benin) e Senegal, onde o casal 
se estabelece por algum tempo.
1971
No deserto do Saara, filma o documentário 
inacabado Fora do Baralho.
1972
Em 25 de outubro nasce Sinai, sua primeira filha com 
Helena Ignez.
1976
Em 27 de fevereiro nasce Djin, sua segunda filha com 
Helena Ignez. Realiza o curta-metragem documental 
Viagem e Descrição do Rio Guanabara por Ocasião 
da França Antártica (Villegaignon), premiado pela 
Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro.
1977
Dirige Abismu, primeiro longa após um considerável 
intervalo. Na verdade, é o único lançado entre 1971 
e 1985. No elenco, Zé Bonitinho, Wilson Grey e José 
Mojica Marins.
1978
Realiza o curta-metragem Mudança de Hendrix. 
Participa como codiretor e montador do filme Horror 
Palace Hotel, de Jairo Ferreira.
1980
Realiza o curta-metragem Noel por Noel, primeiro filme 
seu sobre Noel Rosa. Edita Um Sorriso, Por Favor, filme 
de José Sette sobre o universo gráfico de Goeldi.
1981
Realiza o curta-metragem Brasil, com participação de 
João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
1984
O documentário O Petróleo Nasceu na Bahia é lançado 
e premiado nos Festivais de Caxambu e Gramado.
1986
Lança o longa-metragem Nem Tudo É Verdade. Trata-
se do início de sua tetralogia sobre a vinda de Orson 
Welles ao Brasil (em 1942).
1990
Dirige o curta-metragem Isto É Noel Rosa. Realiza dois 
vídeos sobre artistas plásticos: A Alma do Povo Vista 
pelo Artista (sobre Newton Cavalcanti) e Anônimo e 
Incomum (sobre Antonio Manuel).
1991
Realiza o curta-metragem Linguagem de Orson Welles.
1992
Dirige o episódio Perigo Negro, que integra o 
longa-metragem Oswaldianas, baseado em 
Oswald de Andrade.
1998
Lança o ensaio documental em longa-metragem 
Tudo É Brasil.
2003
Após muitas dificuldades, conclui O Signo do Caos, o 
último da tetralogia sobre a vinda de Orson Welles 
ao Brasil, lançado e premiado no Festival de Brasília. É 
seu último filme. 
2004
Falece no dia 9 de janeiro. Deixa uma obra extensa 
de filmes e muitos escritos, na qual há roteiros não 
filmados, como o do longa-metragem Luz nas Trevas 
– Revolta de Luz Vermelha. A partir desse roteiro, cinco 
anos depois se iniciam as filmagens da continuação 
da trajetória do Bandido da Luz Vermelha, sob a 
direção de Helena Ignez e Ícaro Martins. Atualmente, 
encontra-se em fase de finalização.
Filmografia
Documentário – 1967
O Bandido da Luz Vermelha – 1968
A Mulher de Todos – 1969
Histórias em Quadrinhos (Comics) – 1969
Quadrinhos no Brasil – 1969
Copacabana Mon Amour – 1970
Sem Essa, Aranha – 1970
Carnaval na Lama (ou Betty Bomba, a Exibicionista) – 1970
Fora do Baralho – 1971
Viagem e Descrição do Rio Guanabara por Ocasião da 
França Antártica – 1976
Ritos Populares, Umbanda no Brasil – 1977
Abismu – 1977
Mudança de Hendrix – 1977
Noel por Noel – 1980
Brasil – 1981
A Cidade do Salvador (Petróleo Jorrou na Bahia) – 1981
Irani – 1983
Nem Tudo É Verdade – 1986
Isto É Noel Rosa – 1990
Newton Cavalcanti: A Alma do Povo Vista pelo Artista – 1991
Anônimo e Incomum – 1990
Linguagem de Orson Welles – 1990
América: o Grande Acerto de Vespúcio – 1992
Perigo Negro – 1992
Deuses no Juruá –1997
Tudo É Brasil – 1998
B2 – 2001
Informação H. J. Koellreutter – 2003
O Signo do Caos – 2003
ZOnk! crash! bOOm! 
OrsOn, Oswald, nOel e 
JOãO na sganZerlândia 
ou tamanhO nãO é 
dOcumentO ou um POucO 
de lOucura Previne um 
excessO de tOlice
Steve Berg
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B2
“Uma nação que negligencia as percepções de seus 
artistas entra em declínio e depois de certo tempo cessa 
de existir para apenas sobreviver.”
Ezra Pound 
Rarissimamente exibidos e mais raramente ainda objetos 
de qualquer reflexão crítica ou teórica dentro ou fora 
do Brasil, não surpreenderá a ninguém que os 20 curtas 
e médias-metragens dirigidos por Rogério Sganzerla ao 
longo de 37 anos (quatro dos quais estão desaparecidos 
ou em estado de deterioração) constituam a parte menos 
conhecida de uma filmografia por si só (e por um período 
de tempo quase obsceno) quase secreta. De Documentário 
(1967) até Informação H. J. Koellreutter (2003), o que 
salta aos olhos quando assistimos a esses filmes é sua 
profunda coerência e inte(g)ração com o restante da obra 
cinematográfica do autor [Eliot: “Em meu princípio está 
meu fim”: dois anos antes da explosão do Bandido através 
da fórmula Urânio=Mercury e 37 antes de O Signo do Caos, 
Documentário já contém referênciasa Orson Welles – em 
cartaz afixado à porta de um cinema, como integrante 
do elenco de O Terceiro Homem (1949), e em portrait/
homage que ocupa toda a tela por um instante] – seja 
pela mestria com a qual o autor navega por vasta gama 
de gêneros, temas e formatos (ficção, documentário, 
biografias romanceadas, musicais, institucionais e 
didáticos em bitolas de 16 e 35 milímetros e em vídeo 
com uso particularmente inspirado e dinâmico do table 
top), seja pela autoria de um cinema que se INVENTA 
apesar e por causa da precariedade de recursos, 
constante exercício de profundidade reflexiva e verve 
criadora raras na história do cinema brasileiro. Por esses 
20 curtas e médias-metragens desfilam todas as grandes e 
pequenas obsessões do cineasta (por enumeração caótica: 
a história do Brasil, Orson Welles, Oswald de Andrade, 
a questão da cultura, os quadrinhos, Noel Rosa, João 
Gilberto, o FAZER artístico, a umbanda e o próprio cinema). 
imagens: frames do filme O Bandido da Luz Vermelha
A poética
A) LOGOPOEIA (a dança do intelecto entre as palavras): 
se o revolucionário Sem Essa, Aranha levou quase 40 anos 
para chegar ao grande público por meio de lançamento 
em DVD, o Sganzerla absolutamente clássico e seco (em 
termos de vocabulário da imagem e do corte) de Perigo 
Negro (1992), magistral filmagem do único roteiro 
cinematográfico do imenso Oswald de Andrade, escrito 
para integrar um dos três volumes inacabados de seu 
romance mural Marco Zero (1943-1946), é uma OBRA-
PRIMA totalmente desconhecida de todos a não ser dos 
mais devotos “sganzerlianos” – uma tragédia amarga e 
cômica que só dói quando a gente ri e reitera o tema 
da ascensão e queda do gênio precoce, encenada por um 
incrível elenco de estrelas trouvées, que inclui desde 
Helena Ignez até Abraão Farc, Paloma Rocha, Guará, 
Conceição Senna, Ruddy, Paulo Moura, Jorge Salomão, 
Antonio Abujamra e Sandro Solviatti, entre outros.
B) MELOPOEIA (a ênfase no SOM): os dois filmes sobre 
Noel Rosa (Noel por Noel e Isto É Noel Rosa, de 1980 e 
1990, respectivamente). João Gilberto, Caetano Veloso, 
Gilberto Gil e Maria Bethânia em Brasil (1981). Do 
começo de Helena surge mais um fim (o último curta) – 
da formação da atriz na Universidade Federal da Bahia 
(UFBA) ressurge o professor, compositor e esteta 
Koellreutter: depoimentos com música. MOTZ EL SON. 
C) PHANOPOEIA (a poesia de IMAGENS VISUAIS), o lado 
POP: metralhadora de imagens em table top e narração 
nonstop em Histórias em Quadrinhos (Comics), de 1969. 
O domínio total em que se fundem história e presente na 
estratégia-mor “sganzerliana” de SELEÇÃO e COMBINAÇÃO 
de imagens, quando a fotografia e o material de 
arquivo cinematográfico SE VOLTAM SOBRE SI MESMOS, 
obsessivamente, em eterno retorno, círculos concêntricos 
de informação e possibilidade provindos de pedras/
provocações atiradas no espelho d’água da imagem da 
memória nacional. Trechos de Umbanda no Brasil ressurgem 
em Brasil. Linguagem de Orson Welles (1990) e Isto É 
Noel Rosa dão sequência a um jogo de espelhos cósmico 
– as mesmas imagens de arquivo que neles aparecem 
reaparecerão, reordenadas, em Tudo É Brasil (1998). O 
anti-institucional pós-tropicalista A Cidade do Salvador 
(Petróleo Jorrou na Bahia) (1981) pertence a essa 
categoria, bem como o martelo nietzschiano e as urnas 
quentes de Antonio Manuel que integram Anônimo e Incomum 
(1990), nas quais NADA e PIGMENTOS e TINTA se somam 
às participações aforísticas de Helena Ignez e Nonatho 
Freire e à fotografia das TELAS de Antonio Manuel – 
comprovantes do olho colorístico do cineasta, bem como 
ocorre em Deuses no Juruá (1997), com suas máscaras 
gregas, seus índios e suas cores saturadas. No outro 
extremo do espectro imagético, as cores delicadas dos 
cartógrafos em Viagem e Descrição do Rio Guanabara por 
Ocasião da França Antártica (1976) e os focos de luz e 
fumaça de América: o Grande Acerto de Vespúcio (1992), 
com interpretações icônicas e antológicas dos brilhantes 
atores-fetiches Paulo Villaça, como Villegagnon, e 
Otávio Terceiro, como Américo Vespúcio. 
D) O cinema ESTILHAÇO de Irani (1983) coloca en robe 
de parade o messianismo e a guerra santa no fragmento do 
projeto não realizado sobre a Guerra do Contestado (como 
filmar o conflito armado entre a população cabocla e os 
representantes do poder estadual e federal brasileiro?). 
O misterioso e igualmente inacabado Ritos Populares – 
Umbanda no Brasil (1977-1986), no qual a câmera segue a 
figura do pai de santo Woodrow Wilson da Mata e Silva, 
o Mestre Yapacany da umbanda esotérica, narrando sua 
própria trajetória e a criação da umbanda esotérica em 
passeio por livraria e ruas do centro do Rio de Janeiro 
enquanto um plano do rosto de Cristo num altar torna e 
retorna e cenas de ritual na mata preparam seu próprio 
retorno mais adiante em Brasil (1981).
Ações
Plano de estudo: rever os curtas e médias-metragens de 
Rogério Sganzerla enquanto subsídios para investigação 
sobre narração paramétrica (repetição + imagem não 
significante + adição por subtração). O ESTILO alçado ao 
nível de força MODELADORA do cinema. 
Base do plano de estudo: geografia e (des)memória 
cultural – São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Santa 
Catarina, Brasil. A Urca. 
Plano emergencial “arqueologia do cinema”: localização e 
restauro de Quadrinhos no Brasil, Mudança de Hendrix e 
Newton Cavalcanti – A Alma do Povo Vista pelo Artista. 
Não há outro modo de dizê-lo: os curtas e médias-
metragens de Rogério Sganzerla são simplesmente 
magistrais, os mais ricos jogos de imagem, música e 
significado. Visão, som e sentido. Procurem conhecer 
melhor. VEJAM como fez o artista pra andar pra frente e 
pensar em vertical. VER DE NOVO. MAIS LUZ. 
Steve Berg é tradutor e pesquisador. Fez sua estreia literária na 
Navilouca em 1972. Traduziu para o inglês o “Manifesto Antropófago” 
de Oswald de Andrade e toda a produção textual de Hélio Oiticica 
já publicada em língua inglesa, e é autor de ensaios sobre Douglas 
Sirk, Helena Ignez e os filmes de Belair, entre outros. Organizou 
retrospectivas de recortes da obra de John Ford e Fritz Lang, e foi 
curador da mostra Rossellini TV Utopia. Também acredita que é preciso 
tirar o cinema do quarto de brinquedos. 
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Que mistérios 
tem Helena?
Paolo Gregori e Pedro Jorge
Tarde no centro de São Paulo, escritório da Mercúrio Produções. Entre cartazes 
de filmes, pastas vermelhas com páginas de roteiro e uma varanda repleta 
de plantas, a atriz e diretora de cinema Helena Ignez concede esta entrevista. 
Parceira criativa e companheira de Rogério Sganzerla, ela participou ativamente 
da concepção de sua obra. Agora, como resultado de seu trabalho (ao lado das 
filhas Sinai e Djin), o acervo do cineasta é cada vez mais ampliado e revelado ao 
mundo, como conta ela nesta conversa – um encontro entre três cineastas que, 
em comum, têm a paixão pela obra de Rogério Sganzerla e o desejo forte de 
transformar ideias em cinema.
Antes de entrar nos temas bons, quero falar de um ruim: 
o cinema brasileiro.
É o balcão de favores do cinema brasileiro.
Como foi enfrentar 50 anos de cinema brasileiro? Um 
cinema dominado por políticas e não raro por pessoas 
egocêntricas e metidas a besta e, ao mesmo tempo, você 
conseguir fazer um cinema que é o oposto disso, um 
cinema revolucionário.
O momento é bom, e muito próximo ao começo. Parece estranho, não é? Também é 
um momento de orgulho, de reunir forças. Realmente, é um momento extraordinário. 
Por um lado, que é o lado magnífico dessa história, trata-se do que está acontecendo 
em relação ao cinema de Rogério e o mundo. Há alguns anos atrás eu estive na Nova 
Zelândia, levei O Bandido da Luz Vermelha. Ao mesmo tempo, a Weelington Film Societydeu a O Bandido da Luz Vermelha o título de um dos 50 melhores filmes do século XX. 
Essa descoberta do mundo [em relação ao cinema de Rogério Sganzerla] realmente 
explodiu com a morte dele. É como se tivesse destampado uma panela de pressão e 
então o cinema de Rogério começou a ser distribuído pelo mundo. A minha filha Sinai 
Sganzerla veio realmente conhecer o cinema do pai em 2006, numa casa lotada em 
imagem: frame do filme A Mulher de Todos
Turim, com pessoas sentadas no chão. Antes, ela não tinha podido conhecer a dimensão 
do trabalho do pai no Brasil, e tinha feito com ele a trilha sonora de O Signo do Caos. Então, 
é um momento extremamente radioso e importante. Ao mesmo tempo, esse cinema 
de Rogério se torna popular na juventude. Em alguns lugares, como no Bafici [Buenos 
Aires Festival Internacional de Cinema Independente, em abril deste ano], tivemos casas 
lotadas. Rogério é muito mais visto fora do Brasil. Desde junho do ano passado tenho feito 
constantes viagens para levar a obra dele. Temos ainda um trabalho difícil de recuperação 
e de preservação de seus filmes. Mas considero que, apesar de tudo, o momento é muito 
bom. O Nem Tudo É Verdade foi convidado para uma mostra, no ano que vem, no Lincoln 
Center [em Nova York] e ainda há mais dois convites internacionais para este ano.
Foi preciso o Rogério morrer para acontecer tudo isso?
De alguma forma ele previa isso. Você sabe que só Strindberg lia Nietzsche quando ele estava vivo? 
Isso é uma coisa doida e extremamente dolorosa.
Mas a loucura tem lugar no mundo?
Tem. Dos internacionais consagrados, por exemplo, um filme de que gosto muito é o Anticristo [de 
Lars von Trier, 2009], e aquilo não tem pé nem cabeça. 
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Mas O Bandido da Luz Vermelha 
nem chegou a ir para Cannes.
O reconhecimento dessas genialidades precoces às vezes 
demora um pouco para acontecer. 
A própria trajetória do Orson Welles 
não foi muito diferente da do 
Sganzerla em termos de realização de 
filmes. Pelo tempo de carreira deles 
e pelo número de filmes realizados, 
tudo é muito proporcional.
Será?
Mas veja, Krzysztof Kieslowski 
foi descoberto em Cannes depois de 
praticamente 20 anos de carreira 
como documentarista. O Heneke 
[Michael Heneke] ganhou Palma de 
Ouro [pelo filme Das Weisse Band] no 
ano passado, sendo que o cara faz 
filmes desde a década de 1970. Mas 
esses caras conseguiram sobreviver.
Pois é. Godard conseguiu. Mas ele é um atleta, ele tem 
uma coisa física por trás. E é suíço, o que sempre é 
melhor [risos].
Talvez se Glauber e Rogério 
fossem franceses, eles tivessem 
resistido mais. 
Como o Brasil trata mal seus verdadeiros artistas, não é? 
Eu posso falar porque eu não sou uma dessas pessoas, 
eu tenho outras porções. Mas tenho outra notícia muito 
interessante, o diretor do Festival de Locarno, Olivier Père, 
convidou O Bandido da Luz Vermelha para a edição do 
festival deste ano, em sessão especial. Isso foi muito bom. 
Locarno sempre gostou dos nossos 
marginais, não é?
Acho Locarno realmente encantador.
Como é que você vê esse encontro 
de duas pessoas excepcionais, 
você e o Rogério, que criaram uma 
obra tão voraz? No caso, você 
dando vida às personagens e ele 
escrevendo essas personagens.
Não sei como dizer, talvez dizer não dizendo. Mas, bom, se 
trata de pessoas. Eu, ele e esse encontro.
Uma paixão...
Por aí. Tem essa força. A força também de uma atriz que 
vinha sete anos antes dele vivendo isso, começando 
um movimento, mas de uma forma muito fresh, com 
o Glauber, na Bahia. Na adolescência e na infância eu 
me alimentava do cinema brasileiro, das chanchadas. 
Mas eu não tinha grande tesão por esse cinema. Me 
divertia e tudo, mas não era o que eu queria fazer. Mas 
tinha uma força de uma criação ali que começou com 
O Pátio [o primeiro filme de Glauber Rocha, de 1959] 
e que depois foi distribuída em outros filmes, numa 
criação que tinha bastante autoria, mas que, de qualquer 
forma, era condicionada a um pensamento que nem 
sempre era o meu. Depois disso encontrei com Rogério 
exatamente a liberdade de me expressar completamente 
como artista. Tinha tido um vácuo muito grande talvez 
antes dele, porque essa adolescência com o Glauber 
foi adoravelmente fértil e louca, e estragada por um 
casamento. Éramos dois meninos, com 19 anos, na 
Bahia. O casamento estragou aquela coisa e foi curto. 
Mas teve um período antes dele em que eu encontrei 
essa efervescência toda. Então, quando eu encontrei 
Rogério, eu tinha já esse fogo, esse fogo dessa atriz e 
desse encontro com Glauber, uma forma glauberiana de 
ser artisticamente, e isso encaixou, se tornou no cinema 
que eu fiz como atriz com Rogério. No mais, foi uma 
imensa paixão, um grande amor extraordinário, e que fez 
inclusive com que eu me afastasse de tudo o que faria eu 
me afastar dele, talvez a carreira, talvez ambições nesse 
sentido. Eu queria estar ali, participar daquele momento 
de criação magnífico, que era a nossa presença com 
os filhos, isolados. Nós sempre fomos muito isolados. E 
então teve a ditadura, que nos baniu completamente, e 
depois a Embrafilmes, que nos deixou fora de produção. 
Enquanto isso o Rogério escrevendo. Ele tem uma 
produção literária extraordinária, que vai começar 
também logo a aparecer, assim como os roteiros. E 
agora será publicado um livro com os trabalhos [como 
crítico de cinema] que ele fez para o Estado de S. Paulo. 
Éramos muito afastados do cinema, graças a Deus. O que 
talvez tenha me permitido ter esse frescor de novo de 
retomar [o trabalho dele] após sua morte com a mesma 
intensidade de sempre. Retomar essa vontade de fazer 
cinema. Essa vontade já tinha vindo anteriormente, eu 
fiz um curta, A Reinvenção da Rua, fui movida por uma 
indignação pela situação da parte mais desprovida 
da sociedade, que são os moradores de rua. Então fiz 
a primeira coisa como diretora, diretora no sentido 
de ter uma ideia e me cercar de pessoas para fazer 
aquilo. Eu não sou exatamente uma cinéfila. Eu adoro 
completamente um autor de quem às vezes eu conheço 
apenas um filme só, apesar de ele ter uma obra inteira. Eu 
me interesso por poucas obras e me fixo nelas.
O Rogério já tinha mais isso, 
não, de ser mais cinéfilo?
Ele era completamente conhecedor de cinema, com 17 anos 
ele já conhecia todas as fichas de filmes clássicos, de todo 
o cinema. Esses são o Rogério, o Glauber e o Júlio Bressane. 
Esses são os três que eu conheço que são cineastas e são 
cinéfilos. E tem o Carlão [Reichenbach] também.
Como foi, na realidade, para 
você, ver o Rogério vivendo 
obsessivamente o trabalho do Orson 
Welles? Como era para você essa 
grande paixão dele pelo Welles e 
pelos filmes, você entrou nessa 
história de peito aberto?
Era um enigma, essa convivência com o Rogério era 
uma grande viagem em mar revolto. Quando eu vi pela 
primeira vez um fotograma de O Signo do Caos e na 
mala tinha It’s All True, eu pensei “puxa, de novo”. Não 
era mais uma trilogia. Era o quarto filme. Em Locarno, 
numa mostra sobre Welles, eu ouvi um curador dizer 
que sem os filmes de Rogério a obra de Welles não 
seria completa. Esse trabalho [de Rogério Sganzerla] é 
um enigma, e é um trabalho explosivo de alguém com 
um espírito extremamente cristão, um cristão trágico 
com essa concepção de saber que todo o trabalho dele 
só seria descoberto depois do trabalho final, fechando 
com O Signo do Caos, com o fogo da cremação. Um 
trágico total, desde A Mulher de Todos que ele trabalha 
com a tragédia. 
No final de O Signo do Caos tem-se 
uma repetição com a frase “acabou, 
acabou, acabou”. E parece que era 
o fechamento da própria obra do 
Rogério. Isso foi muito assustador 
para mim.
Pois é, um fechamento dionisíaco, com fogo, com 
alegria, com vibração, “amém,amém”. Quando ele 
ganhou como Melhor Diretor e Melhor Montador com 
O Signo do Caos [no Festival de Brasília em 2003], ele 
ouviu da filha [Djin] esse anúncio. 
Sabe o que eu acho meio doido, 
Helena, é que nas mostras 
internacionais os curadores 
estão vendo os filmes do Rogério 
como se tivessem sido lançados 
hoje, com o olhar da novidade.
É incrível isso, e mostra que são filmes modernos acima 
de tudo. 
E sobre a Belair, Helena, era 
inevitável esse encontro entre 
você, o Bressane e o Sganzerla, o 
trio Belair?
Eu acredito que sim.
Eu lembro que, quando vi o 
Copacabana Mon Amour, no Festival 
de Cinema Latino-Americana [2008, 
em São Paulo], com uma cópia 
restaurada, então a Djin apresentou 
o filme dizendo “Ah, eles usaram 
uma lente que foi do Fellini”. 
Vocês tinham essa magia que passa 
uma coisa que eu não vejo mais, uma 
coisa de ídolo, jovial.
Era uma lente pesada, parecia um fundo de garrafa. Mas 
hoje é difícil manter essa jovialidade, não é? Mas eles 
conseguiam fazer os filmes deles assim.
Na verdade era um cinema 
construtivo, que entrava na 
cabeça de seus ídolos. 
(Pausa para uma conversa entre os entrevistadores 
e Helena Ignez para falarem bastante sobre a nova 
geração de cineastas brasileiros, a exemplo do 
pernambucano Tião e seu filme O Muro.)
Mas vamos voltar ao assunto da 
entrevista, que é falar do Sganzerla.
É que falar da vida é muito interessante, e eu acho que 
foi isso o que me preservou, um interesse múltiplo forte 
que tenho.
Você acha que o que aconteceu com 
o Rogério por dentro foi um pouco 
essa coisa obsessiva pelo cinema? 
Sim, essa obsessão artística nietzschiana das pessoas 
anormais. Claro, porque eu acho que um gênio não é 
normal. Em toda a obra dele, mesmo no mínimo está 
contida a mesma qualidade em todos os filmes. E para 
mim o que me preservou foi ter conseguido arejar, sair. 
E talvez, não sei, mas de alguma maneira com isso eu 
possa até ter preservado a vida de Rogério. Porque na 
família ele podia descansar, e talvez do contrário não 
tivesse sido assim, talvez tivesse sido ainda mais difícil, 
como pode ter sido para o Glauber. Mas o momento é 
este, é de reconhecimento da obra de Rogério. E dessa 
forma Luz nas Trevas [roteiro de Rogério Sganzerla, 
dirigido recentemente por Helena Ignez] é um filme que 
abraça toda a obra de Rogério, é um filme que devora, se 
apodera antropofagicamente – como é da nossa família 
espiritual – a obra de Rogério e devolve a ela outro filme. 
É um filme interessante, rico e contraditório. Porque é 
sobre a justiça, uma comédia criminal sobre a justiça, e 
um filme gay, imensamente gay. 
Como foi organizar esse roteiro?
Foi uma loucura. Eu estou num momento muito 
forte também, porque várias decisões estão em volta 
desse filme e desse roteiro. Luz nas Trevas também foi 
convidado para o Festival de Locarno, em competição 
oficial. E é um filme que nasceu em 2003, pela 
descoberta que eu tive desse trabalho que está ali nas 
pastas vermelhas. E Rogério, que em toda a vida não 
deixou de perder o humor cáustico, um dia me disse 
“Você abriu demais esse baú”. Porque exatamente 
quando ele ia retomar esse trabalho, ele teve a notícia – 
apesar de estar com a saúde boa, normal – do câncer no 
cérebro. Então o médico disse “Eu não sei como o senhor 
está aqui, andando normalmente”. E ele perguntou 
“Quanto tempo de vida eu tenho?”. E o médico falou “15 
dias”. Em vez disso ele viveu oito meses, e foi exatamente 
nesses oito meses que eu extraí força. E dentro daquele 
momento terrível era de onde vinha a alegria; ela vinha 
desse roteiro, da vida, das palavras dele, em um roteiro 
muito engraçado, de um humor muito interessante, com 
falas extraordinárias shakespearianas, tudo isso muito 
entrelaçado em mais de 700 páginas. E no final ele se virou 
e disse “Agora é Helena quem vai fazer”. E eu me vi com 
isso na frente, para organizar e criar e tudo isso dentro de 
um cinema brasileiro, sabendo de todas as dificuldades 
que temos para filmar. E enfim o filme está pronto. No 
mais, é uma produção familiar, a produtora executiva é a 
Sinai Sganzerla, a Djin é a atriz protagonista, em um elenco 
maravilhoso, com grandes atrizes e atores, a exemplo do 
André Guerreiro Lopes, que é também o meu genro, e 
do Ney Matogrosso, companheiro da minha geração, um 
ícone. Então tem essa estrutura familiar, com elementos 
que não são familiares, como a própria pessoa que eu 
convidei para codirigir o filme comigo [Ícaro Martins], que 
vem de uma concepção mais burocrática de cinema. E 
a grande vitória é que o filme não sofre essa influência 
burocrática que é fazer um filme no Brasil, em absoluto. É 
um filme radical, e radical na poesia.
Pedro Jorge dirigiu três curtas-metragens, o último deles o 
documentário A Vermelha Luz do Bandido, sobre a obra de Sganzerla. 
Com a irmã, a diretora Mariana Jorge, codirigiu o documentário 
América Brasil, que acompanha a turnê nacional do cantor Seu Jorge. 
Atualmente é um dos montadores da série televisiva HiperReal (SescTV, 
dirigida por Kiko Goifman). 
Paolo Gregori dirigiu curtas-metragens como Atrás das Grades 
(1993) e Mariga (1995). Ganhador do Prêmio Glauber Rocha no 25o 
Festival Internacional de Cinema de Figueira da Foz, de Portugal (com 
o curta O Feijão e o Sonho, 1996). Seu curta-metragem Tropiabbas 
teve a première mundial em Valência em 2005 e foi exibido em mais 
de 20 países, enquanto O Bebê de Eisenstein foi exibido em Xangai, 
Hamburgo e Montevidéu. Atualmente finaliza seu longa-metragem 
Chuva. É professor na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e na 
Universidade Anhembi Morumbi.
Edição | Mariana Lacerda
fotos: arquivo da família de Sganzerla
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investigações 
sObre O cinema 
(Ou seJa, O hOmem) 
mOdernO: 
sganZerla críticO
Ruy Gardnier
Observando o século XX, fica difícil afirmar que o 
crítico é um artista frustrado. São muitos os casos 
anteriores ao século passado – Stendhal, Diderot, 
Baudelaire e Machado de Assis, para mencionar apenas 
quatro –, mas este século viveu uma proliferação 
impressionante de artistas que exerceram a atividade 
crítica, como Georges Bataille, Ezra Pound, T.S. 
Eliot, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, 
todo o núcleo da nouvelle vague francesa (Godard, 
Truffaut, Rohmer, Chabrol, Rivette), Glauber Rocha, 
Jonas Mekas, além de incontáveis livros teóricos 
e manifestos que envolvem pensamento crítico 
(Schoenberg, Messiaen, Klee, Kandinski).
Quando um grande artista exerce a atividade crítica, 
inevitavelmente ela se torna uma extensão de sua 
personalidade e de sua força criativa, selecionando 
as afinidades eletivas e afinando os processos de 
pensamento para lapidar as bases de sua arte. Como a 
crítica surge frequentemente nos períodos formativos 
dos cineastas, geralmente antecipando e/ou coincidindo 
com os primeiros roteiros, curtas e longa-metragem 
de estreia, observar o trabalho de um crítico-futuro-
cineasta acaba sendo a mesma coisa que presenciar o 
retrato do artista quando jovem. Com os primeiros 
escritos de Rogério Sganzerla dá-se exatamente isso.
No período mais brilhante de sua crítica, 1964-1967, 
Sganzerla é um jovem intelectual que tenta compreender 
as modificações que o cinema sofreu ao longo da 
década de 1950. Manifestando certamente uma série de 
mutações no globo, o cinema foi do certo ao incerto, 
do mastigado ao obscuro, do simples ao complexo. E o 
jovem Sganzerla criou para si mesmo a tarefa de mapear 
as características desses filmes que davam um sopro de 
renovação ao cinema daquele momento. Onde muitos viram 
gratuidades estilísticas, incoerências narrativas e 
hermetismo esnobe, Sganzerla viu um novo cinema que 
delineava uma nova relação com a imagem (e com os 
personagens, com as tramas,com a duração dos planos 
etc.) e que significava uma nova relação com o mundo. 
Em resumo, o empenho do jovem Sganzerla era explicar o 
cinema moderno.
“Moderno”, para ele, não é uma questão de afetação 
ou de moda: é o cinema que exprime as inquietações de 
seu tempo, no conteúdo e na forma. Vários conceitos 
surgiram em artigos do Suplemento Literário do Estado 
de S. Paulo: “herói fechado”, “câmera cínica”, “cinema 
do corpo”, “tempo solto”, com recorrentes menções ao 
cinema de Fuller, Godard, Resnais, Losey, Antonioni e, 
como precursores, Welles e Hawks. Por trás dos nomes 
“herói fechado” e “câmera cínica” está a ideia de que 
o filme não tem mais a função de explicar o mundo e 
os personagens, e sim a de evidenciar esse caráter de 
incompreensão das coisas, em que tudo que o espectador 
pode fazer é olhar. Isso claramente já antecipa todo 
o fascínio dos personagens-ícones de Sganzerla, 
figuras intencionalmente opacas que funcionam como 
personagens de vaudeville num palco sem chão: no vazio 
do entretenimento, o pitoresco se apresenta em seu furor 
violento (e de cabo a rabo no cinema de Sganzerla há 
uma forte violência do signo ligada à caracterização/
caricaturização dos atores).
Sganzerla memorialista
Nos anos 1980, outro período particularmente prolífico 
de sua atividade crítica, certos questionamentos do 
cinema moderno são retomados, mas a tônica geral é a 
melancolia advinda do rompimento de laços do cinema 
brasileiro com seu braço mais experimental. São 
recorrentes – e altamente justificadas – as reclamações 
de que o cinema brasileiro se rendeu à telenovela 
e esqueceu o que havia de genial em sua tradição 
experimental, prestigiando o “pornosoft” e o naturalismo 
sem ousadias. Na ausência, a seus olhos, de um presente 
vigoroso, Sganzerla transforma-se num memorialista, 
evocando épocas do passado em que o Brasil tinha a 
bossa. Como Ulisses cantando sua longínqua Ítaca, o 
Sganzerla dos anos 1980 é um cineasta que olha para 
o Brasil e vê seu adorado cinema moderno muito longe, 
soterrado pela televisão. O antídoto? Dá-lhe Orson 
Welles, dá-lhe João Gilberto, dá-lhe Noel Rosa, na 
esperança da volta de modernidade e inteligência no 
cinema exercido no Brasil.
no r astro de sganzerla
 uma antifotonovela 
Nasci em Joaçaba (SC). Até os 5 anos 
eu não falava e com 
7 anos eu escrevi um livro de contos i
nfantis...
Eu era um menino barulhento, diferente dos padrões catarinenses...
Com 10 anos comecei 
a fazer roteiro 
de cinema. Fazia um a
trás do outro...
Não tinha cineclube, não tinha nada. Não 
tinha meio nenhum de ir mais longe. 
Resolvi sair. Fui morar em São Paulo...
A partir daí foi um momento de primeiro encontro com o 
cinema. Estudava no Mackenzie e de cara já não acompanhava 
as aulas. Meu interesse era me envolver com cultura.
Com 17 anos comecei a fazer crítica de cinema no 
Suplemento Literário do Estado de S. Paulo... 
Nunca pensei em ser crítico. Sempre quis mesmo foi 
dirigir. Mas gosto do que faço porque, enquanto pude, 
fiz cinema com a máquina de escrever. Não diferencio o 
escrever sobre cinema do escrever cinema. Quando eu fui fazer cinema, tinha, apesar de uma 
grande ingenuidade, uma malícia que os outros caras 
não tinham. Fiz um curta-metragem e viajei para a 
Europa...
Pedro Jorge e Alice Dalgalarrondo
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No retorno ao Brasil, li nos jornais sobre um 
bandido mascarado. 
A onda de violência estava crescendo em São Paulo.
Comecei o argumento do filme na evolução de um garoto no 
mundo do crime...
Fiquei pensando...
E usei o título dos jornais: 
O Bandido da Luz Vermelha
Meu filme é um far-west sobre o Terceiro Mundo. Isto é, 
fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma. 
Decretado hoje estado de sítio no país. O dispositivo policial reforça todos os seus 
órgãos de segurança... 
Ninguém sabe quantos assaltos, roubos, incêndios e atentados ao pudor ele 
já praticou. 
Janete Jane, a escandalosa!
Outro dia tive que 
assistir o parto da 
minha cunhada.
O bandido mascarado não respeita a mulher nem a propriedade 
privada. 
Tá falando
com o campeão 
de tiro ao alvo de 
Cuiabá.
Os jornais dizem que eu sou um gênio, um poeta adotado da 
Divina Providência, um santo... Um anjo anunciador... Sei lá... 
Eu sou um BANDIDO NACIONAL... O BANDIDO DA LUZ VERMELHA. 
Vivo de pequenos 
furtos, empréstimo dos 
amigos... Posso dizer de 
boca cheia: eu sou um 
boçal!
E o Terceiro Mundo vai explodir e quem tiver de sapato não 
sobra!
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Janete Jane, a namorada do Luz Vermelha, descobre a verdadeira identidade do 
pistoleiro mascarado. 
Que é que o 
secretário pensa 
da miséria?
JB da Silva, o maior. Candidato à presidência da 
Boca do Lixo. 
Que miséria, meu filho? 
Um país sem miséria é um 
país sem folclore. O que é 
que a gente vai mostrar 
pro turista? Hahaha!!
Até que saí bem no 
retrato falado. 
Prende esse 
anão boçal!
Quem jogou 
a gatinha lá 
de cima?
Fecha o cerco 
e manda bala 
nesse sacana!
Estou esperando uma crítica inventiva, no nível do 
provável, e não da certeza idealista, das especu-
lações sentimentais e das perspectivas do passado 
e do provinciano, principalmente...
Definitivamente, queria esquecer de uma vez, já que O Bandido da Luz Vermelha foi feito para ser visto 
numa poeira... Em São Paulo tive de me manifestar porque picharam e elogiaram sem entender.
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Troquei a grande angular pela teleobjetiva. Meu novo filme é uma comédia 
inspirada na chanchada, onde Helena Ignez é a inimiga nº 1 dos homens. 
O que você quer, Flávio 
Asteca? Quer Angela Carne 
e Osso só pra você? Vamos 
passar o fim de semana na 
Ilha dos Prazeres?
As aventuras
 sexuais de A
ngela Carne 
e Osso, uma 
das dez 
mais megalom
aníacas.
Aquela depravação de 
novo? Antropófagos 
invadem a Guanabara!
Sou o único negro 
milionário do Brasil!
Vampiro, você é um 
bacana!
Angela, meu amor, a 
minha paixão por você 
aumenta de 15 em 15 
minutos.
Me chama de 
bitolado. Vai, BI-TO-
hahaha! 
Dr. Plirtz, proprietário do truste das histórias em 
quadrinhos do país, das minas de prata do Guarujá e 
da rádio emissora El Dólar.
Sim, sou eu mesmo, 
Dr. Plirtz, o grande 
bitolado!
Neste fim de sema-
na vou me dedicar 
aos boçais. 
Será este o marido nacional do 
século XXI? Do XVI ou do XXI?
Angela, meu amor, 
é uma pena que 
vocês não podem 
me dar nada porque 
eu tenho tudo!
Não quero mais 
homem bacana. Só 
dá trabalho. Não 
dá pé!
Mulheres, boa noite. 
Homens, goodbye. 
Alô, garotas, eu sou 
o Zé Bonitinho, pi-
rigote das mulheres,
e só entro em cena 
ao rufo de tambo-
res!!!
Não sou batom, mas estou em 
todas as bocas. Garotas,vou dar 
para vocês um fiapo do meu beijo! 
Engraçado, não, engraçado é um boi 
de dentadura postiça fazendo fiu-fiu 
para uma vaca no brejo!
O trem que o mundo espera apita. Só me interessa 
a profecia. Tudo é uma coisa só e isso é tudo! Sobretudo de uma coisa só vem 
de tudo um pouco. Somos, fomos e criamos, que de tudo é uma só 
mente universal. Para chegar à mente livre, percorri um grande cinema estranho. 
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Sinceramente, a solução mais 
adequada para você é o 
suicídio... Se mata, filho!
O mundo é teu, boçal! De 
vosso recalque só pode vir a 
maior boçalidade possível... No 
abismo se desce ou sobe... Eu 
subo!
Se a verdade estiver no fundo 
de um poço ou de um abismo, 
é preciso buscá-la, porque sem 
chute não há gol!
Na caçapa de Joaçaba 
eu aprendi duas coisas 
em Tupi, firmeza e res-
peito é uma coisa só!
Primeiro mate o seu 
ego, depois venha falar 
comigo!
Aqui no Brasil você 
não precisa dormir 
para sonhar!
Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime. 
Para evitar perguntas cretinas, devo dizer 
a todos que continuarei a seguir minhas 
diretrizes fundamentais, que são, nada 
mais nada menos, dar ao cinema uma 
noção de tempo, espaço e profundidade.
Não sou um gênio... Nem tudo é verdade! 
A máquina de filmar é o instrumento mais mentiroso 
inventado pelo homem, disse alguém e tava certo!
Todos os maus filmes já foram feitos. Os burocratas vêm 
liquidando o cinema. Meus filmes são uma propaganda da alma 
e do corpo brasileiro.
Eu acho que o Jimi Hendrix foi um pen-
sador, o homem que colocou nas letras, 
concretamente, a frase “eu posso mudar 
a sua mente”. Isso é a revolução.
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O primeiro livro que 
minha mãe me deu foi 
Sonhos de uma Noite de 
Verão, de Shakespeare. 
Eu tinha 6 anos. 
Sempre me considerei um 
vagabundo, um saltim-
banco, um outsider em 
qualquer lugar do mundo. 
Mr. Welles, o que 
acha da crítica?
Hahahaha!
Detesto todo tipo de 
parasitas!!!
Os astros são meus 
únicos aliados. 
O Brasil é o país 
que produz o melhor 
uísque falsificado do 
mundo! 
As pessoas são in-
críveis, me aplaudem 
até quando estou 
sóbrio!!!
O cara vem filmar o 
berço esplêndido, as 
mulatas... Respeito é 
manga de colete.
To see or not to 
see, that’s the 
question!
A imagem do caos é 
o próprio CAAAAOS!
Para o fechamento, um antifilme. 
Podem recolher todo o material...
O cinema não me 
interessa, mas sim a 
profecia!
Os cinco sentidos são 
tão tolos como uma 
criança, não sabem 
distinguir ilusão da 
realidade, o verdadeiro 
do falso.
Acabou, acabou. Podem jogar tudo fora.
O cinema teria de ser escrito em uma folha em branco pegando fogo 
para poder registrar esse movimento de captação do pensamento de 
um filme durante sua realização. Por um cinema sem limite...
FIM.
Não deram nenhum tostão para 
Noel Rosa.
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Álvaro de Moya
O arOma de curry nO 
meu OlfatO
O arOma de curry nO 
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Conheci Rogério Sganzerla como crítico do Jornal da 
Tarde, onde eu era colaborador, ainda na sede antiga, 
com aquele luminoso noticioso que filmaria em sua obra-
prima, O Bandido da Luz Vermelha, em citação reverente 
ao anúncio da morte de Charles Foster Kane. Suas 
escritas eram ótimas e já revelavam seus diretores 
prediletos, como Samuel Fuller.
Walter George Durst tinha feito um programa na TV Tupi 
focalizando Silki. Ficara impressionado com alguém que 
passava fome para comer. O faquir ficava num esquife 
de vidro na Praça da Sé, sem se alimentar e sem 
água durante dias, atraindo multidões dia após dia. 
Tencionava fazer um filme, mas alguém se antecipou e 
realizou um longa, para frustração de Durst, que não 
gostou da versão. Também entrevistara o Bandido da 
Luz Vermelha na prisão e queria fazer um longa. Ficou 
chateado quando foi anunciada uma versão. Quando, 
porém, viu o que Sganzerla realizara em seu Bandido 
da Luz Vermelha, engoliu, pois reconheceu que dessa 
feita resultara num grande filme. Na minha opinião, um 
dos maiores e melhores longas-metragens da história do 
cinema nacional, tal como A Margem, de Ozualdo Candeias. 
Sganzerla era extremamente criativo e seu filme 
representa uma ruptura na linguagem brasileira – 
equivalente ao que Jean-Luc Godard fez com o cinema 
francês em Acossado. Na montagem, viu um rolo em 35 
milímetros que era um teste de projeção com efeitos de 
sons e imagens, achou legal e incluiu em seu filme. 
Contou-me que, na montagem do som, num estúdio no bairro 
do Sumaré, perto da casa de Hebe Camargo, ouviu tiros, 
estranhou. Ele e o editor notaram que os tiros tinham 
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filmáramos na véspera. Ele lia 
e achava ótimo, perguntava 
quem tinha escrito. “Eu”, 
respondia, candidamente. No 
dia seguinte, o mesmo diálogo, 
até ele acreditar que eu podia 
escrever sem citações. 
Quando filmamos uma vamp de 
Flash Gordon, de costas, 
com um longo vestido preto, 
ele se impressionou com a 
semelhança com uma mulher 
mais velha do que ele com 
quem tivera uma relação. A 
mesma imagem de Alex Raymond 
que Hector Babenco mostrou 
para Sonia Braga compor sua 
personagem em O Beijo da 
Mulher Aranha. Quando filmamos 
alguns quadrinhos nacionais, 
ele observou que era como 
filmar Rolls-Royce e misturar 
com um Aero Willys brasileiro. 
Vamos fazer dois curtas, um 
Comics e outro Quadrinhos 
no Brasil. Escolhi Orpheu 
Paraventi Gregori para fazer 
a locução. Fomos para a Cia. 
Cinematográfica Vera Cruz, ou o 
que sobrara dela, para juntar 
tudo. Ao entrar no terreno, 
o odor de curry vindo de uma 
planta ficou na minha memória.
vindo de fora. Correram para 
a rua e viram um morto caído 
no chão e duas crianças ao 
lado, com gente correndo. 
Era um americano. Tinha 
sido fuzilado – depois de 
julgado pelos terroristas, 
segundo a imprensa – diante 
de seus filhos que iam para a 
escola. Mais tarde, a revista 
americana Time revelou que 
ele era um agente do governo 
norte-americano, a mulher dele 
não era sua esposa, mas uma 
agente também, e aqueles não 
eram seus filhos. Uma falsa 
família hollywoodiana para 
espionar a luta armada contra 
a ditadura militar brasileira. 
Continuamos amigos e em 
contato, mesmo quando não mais 
fez críticas escritas. Depois 
de algum tempo, procurou-me 
e revelou que tinha direito 
de usar a Oxberry da Jota 
Filmes, na Avenida General 
Olimpio da Silveira, para 
fazer um table top e que 
seu curta focalizaria os 
quadrinhos. Convidou-me para 
ser codiretor, redator e 
montar com ele a produção. Não 
tínhamos nenhuma experiência. 
Levei um monte de livros e 
revistas da minha coleção 
particular e filmamosO 
Fantasma. Ele me perguntou 
quantos fotogramas e chutei um 
número qualquer. Quando fomos 
ver as primeiras tomadas na 
Rex Filmes, tudo passou em 
frações de segundos. Como uma 
propaganda subliminar. Ficamos 
perplexos. E aprendemos... 
Escrevia em casa o texto, 
passo a passo, sobre o que 
Só falávamos de Orson Welles, 
de Cidadão Kane. Eram tempos 
de crise. Íamos comer algo 
na cidade de São Bernardo. 
Eu entrava numa loja de 
móveis vazia de fregueses e 
fingia interesse numa mesa 
Luiz XV e perguntava se 
dava para fazer sob medida 
aquelas pernas tortas com 
outro móvel incompatível. O 
vendedor aceitava absurdos, 
desde que concretizasse uma 
venda. Rogério se segurava 
para não rir e tirava sarro 
de mim, já na rua depois de 
prometer voltar mais tarde 
com a patroa. O curta Comics, 
por sorte, foi programado 
para acompanhar o filme de 
Pasolini Teorema e foi muito 
visto. Levei uma cópia para o 
Salão de Comics, em Lucca, foi 
bem recebido, o então diretor 
do Festival de Cinema de San 
Sebastian, Luis Gasca, sugeriu 
que eu mandasse uma cópia 
para a Espanha. Entreguei 
ao Consulado Brasileiro na 
Itália e chegou à península 
ibérica após o término do 
conclave. Gasca lamentou, 
pois teria recebido um prêmio 
internacional, seguramente.
Além disso, a diplomacia 
brasileira perdeu a cópia. 
Ganhamos um prêmio em Manaus. 
Rogério, vivendo no Rio, 
me telefonava e prometia 
uma cópia 16 milímetros e 
esquecia. Saiu em vídeo e 
nada. Até hoje não tenho um 
Comics. Mas ficou na minha 
lembrança a felicidade 
daqueles momentos juntos e o 
aroma de curry no meu olfato.
Álvaro de Moya é jornalista,pesquisador 
e escritor. Publicou o livro Shazam!
(Perspectiva), considerado um clássico 
sobre a trajetória da HQ no Brasil. Foi 
curador de exposições sobre quadrinhos, 
dirigiu ao lado de Rogério Sganzerla 
os documentários História em Quadrinhos 
(Comics) e Quadrinhos no Brasil. im
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FOra da lei
Manifesto de Rogério Sganzerla (escrito em 1968, durante 
as filmagens de O Bandido da Luz Vermelha)
1 – Meu filme é um far-west 
sobre o Terceiro Mundo. Isto 
é, fusão e mixagem de vários 
gêneros. Fiz um filme-soma; 
um far-west, mas também 
musical, documentário, 
policial, comédia (ou 
chanchada?) e ficção 
científica. Do documentário, 
a sinceridade (Rossellini); 
do policial, a violência 
(Fuller); da comédia, o 
ritmo anárquico (Sennett, 
Keaton); do western, a 
simplificação brutal dos 
conflitos (Mann).
2 – O Bandido da Luz Vermelha 
persegue, ele, a polícia, 
enquanto os tiras fazem 
reflexões metafísicas, 
meditando sobre a solidão e 
a incomunicabilidade. Quando 
um personagem não pode fazer 
nada, ele avacalha.
3 – Orson Welles me ensinou a não 
separar a política do crime.
4 – Jean-Luc Godard me ensinou a 
filmar tudo pela metade do preço.
5 – Em Glauber Rocha conheci 
o cinema de guerrilha feito à 
base de planos gerais.
6 – Fuller foi quem me mostrou 
como desmontar o cinema 
tradicional através da montagem.
7 – Cineasta do excesso e do 
crime, José Mojica Marins me 
apontou a poesia furiosa dos 
atores do Brás, das cortinas 
e ruínas cafajestes e dos seus 
diálogos aparentemente banais. 
Mojica e o cinema japonês me 
ensinaram a saber ser livre 
e – ao mesmo tempo – acadêmico.
8 – O solitário Murnau me 
ensinou a amar o plano fixo 
acima de todos os travellings.
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9 – É preciso descobrir o segredo 
do cinema de Luís poeta e agitador 
Buñuel, anjo exterminador.
10 – Nunca se esquecendo de Hitchcock, 
Eisenstein e Nicholas Ray.
11 – Porque o que eu queria 
mesmo era fazer um filme mágico 
e cafajeste cujos personagens 
fossem sublimes e boçais, onde 
a estupidez – acima de tudo – 
revelasse as leis secretas da 
alma e do corpo subdesenvolvido. 
Quis fazer um painel sobre a 
sociedade delirante, ameaçada 
por um criminoso solitário. 
Quis dar esse salto porque 
entendi que tinha de filmar 
o possível e o impossível num 
país subdesenvolvido. Meus 
personagens são, todos eles, 
inutilmente boçais – aliás, 
como 80% do cinema brasileiro; 
desde a estupidez trágica do 
Corisco à bobagem de Boca de 
Ouro, passando por Zé do Caixão 
e pelos párias de Barravento.
12 – Estou filmando a vida do 
Bandido da Luz Vermelha como 
poderia estar contando os 
milagres de São João Batista, 
a juventude de Marx ou as 
aventuras de Chateaubriand. É 
um bom pretexto para refletir 
sobre o Brasil da década de 
1960. Nesse painel, a política e 
o crime identificam personagens 
do alto e do baixo mundo.
13 – Tive de fazer cinema fora 
da lei aqui em São Paulo porque 
quis dar um esforço total em 
direção ao filme brasileiro 
liberador, revolucionário também 
nas panorâmicas, na câmara fixa 
e nos cortes secos. O ponto de 
partida de nossos filmes deve 
ser a instabilidade do cinema – 
como também da nossa sociedade, 
da nossa estética, dos nossos 
amores e do nosso sono. Por 
isso, a câmara é indecisa; o 
som fugidio; os personagens 
medrosos. Nesse país tudo é 
possível e por isso o filme pode 
explodir a qualquer momento.
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FragmentOs 
de rOgériO
Hernani Heffner
Os filmes. Os filmes. Os filmes. 
Rogério sempre falou de tudo 
– do cinema, das pessoas do 
cinema, das sacanagens do cinema 
–, mas nada ficou acima dos 
filmes. Falava apaixonadamente, 
obsessivamente, dos seus e de 
todos os outros que considerasse 
instigantes, quer isso 
significasse Luís de Barros ou 
Samuel Fuller. Quase tudo era 
importante em alguma medida. 
Bastava começar uma conversa em 
torno do mais insignificante 
dos filmes, da mais banal 
das cenas, do mais reles dos 
planos, que a fala surgia num 
crescendo de frases rápidas, 
inacabadas, entrecortadas, 
com verbos no subjuntivo ou 
no pretérito imperfeito. O 
pensamento tinha de escoar, 
ganhar vida, apresentar-se de 
forma sugestiva, mas não como 
uma explicação ou uma lição 
de moral estético-histórica. 
A voz elevada, os braços 
agitados, a silhueta algo 
franzina agigantando-se num 
aparente corpanzil que dominava 
o pedaço, queria dar conta do 
que transformava o inerte, o 
monótono, em picada estimulante. 
Coisa de diretor de cinema 
atirado e incisivo que, diziam, 
ele era.
Não nos conhecemos antes por 
causa dos filmes. Ou melhor, foi 
por causa de filmes, mas não 
os seus, que em geral levavam 
(poucos, no início) admiradores 
impactados a se aproximar 
dele. De certa forma, Rogério 
foi se tornando familiar para 
mim por causa de relatos de 
outras pessoas. Uma delas, José 
Marinho, ator “sganzerliano” 
de primeira hora, foi meu 
professor no curso de cinema da 
Universidade Federal Fluminense 
(UFF) no começo dos anos 
1980. “Tarzan” propagandeava 
a maestria do diretor de O 
Bandido da Luz Vermelha. Outra 
pessoa foi Remier Lion, o mais 
antigo entusiasta, enaltecedor 
e profundo admirador que conheci 
da obra e do artista por trás 
da obra que se erigira após o 
sucesso daquele primeiro filme. 
Ele era um garoto quando pirou 
com os filmes e foi atrás 
do realizador daquilo que 
considerava mais do que uma 
lição de cinema, uma lição de 
arte e de vida. Ficaram amigos 
e fui absorvendo um pouco dessa 
relação ao estreitar a minha 
com o futuro programador, 
pesquisador, realizador e globe-
trotter de cinema. 
Já tinha uma pequena ideia de 
quem era Rogério. Conheci-o