Buscar

Loucuras discretas Graciela Brodsky

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 104 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 104 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 104 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

LOUCURAS DISCRETAS: 
UM SEMINÁRIO SOBRE AS CHAMADAS PSICOSES ORDINÁRIAS 
GRACIELA BRODSKY 
facebook.com/lacanempdf
LOUCURAS DISCRETAS: 
UM SEMINÁRIO SOBRE AS CHAMADAS PSICOSES ORDINÁRIAS 
GRACIELA BRODSKY 
B 
sc~JPTUM 
1111111111 1h1 1:11l11çftu CLIN-n 
l 1111 rurnnmlo Cmrijo da Cunha 
li 111111:rlçfto, trndm;ilo e estabelecimento do texto 
Maria Josefina Sota Fuentes 
ll11vl1Ao final 
Holofsa Rodrigues da Silva Telles 
Prnduçllo 
Silvano Moreira 
C1111n, 11rojeto gráfico e diagramação 
Fernanda Moraes 
Imagem da capa 
Thereza Salazar, stand sti/1, recorte em papel, 2010 
Livraria e Editora Scriptum 
Rua Fernandes Tourinho, 99 
Savassi J Belo Horizonte J MG 
131 J 3223-1789 
E-mail: scriptum@scriptum.com.br 
~.livrariascriptum.com.br 
....... 
Brodsky, Graciela 
Loucuras discretas: um seminário sobre as chamadas psicoses 
ordinárias / Graciela Brodsky. 
Belo Horizonte. Scriptum Livros, 2011. 
116p. 
1. Psicamllise. 
ISBN 978-85-89044-37-D 
• CDU: 616.89 
L CDD: 616.8917··············· .. ••··············•····•····•····•····· ........ . 
.1 IMAIIIII 
1\1'111 :il NTAÇÃO 07 
IIM 1:/\MPO DE INVESTIGAÇÃO PARA OS CASOS RAROS 11 
INIIIGIOS DA PSICOSE ORDINÁRIA 31 
1'1 IISPECTIVAS DO ÚLTIMO ENSINO DE LACAN 51 
li PARADIGMA JOYCE 71 
PSICOSE ORDINÁRIA E DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL: 
CONVERSAÇÃO 97 
APRESENTAÇÃO 
Este livro é produto de um trabalho concebido a partir da 
necessidade, detectada pelo Conselho Técnico e pela Comissão de 
l •'.nsino do CLIN-a, de criar um programa de ensino que privilegiasse 
a formação continuada e a pesquisa - momento de reflexão acerca 
do ensino no CLIN-a, para o qual contamos com a valiosa colabo-
ração de alguns colegas da AMP com experiências diversas em Institutos 
do Campo Freudiano. 
Gradeia Brodsky foi um dos motores desse debate entre 
nús e, seguindo a orientação que ela mesma nos transmitiu, decidi-
mos convidá-la para administrar o primeiro daqueles que passaram 
a ser denominados "Cursos Avançados". Inaugurou-se, assim, uma 
série flexível em relação a temas e funcionamento - não há um mo-
delo pré-estabelecido; cada curso é pensado de maneira isolada a fim 
de desenvolver uma questão compartilhada no coletivo. 
Gracicla Brodsky compartilha suas elaborações com o 
CLIN-a há algum tempo, trazendo sua experiência como docente do 
Instituto Clínico de Buenos Aires onde está desde sua fundação. 
O conteúdo desde livro , como o leitor verá, traz o vivo de 
um debate inaugurado por Jacques-Alain :i\1iller na Conversação de 
Antibes, cuja repercussão ultrapassa as fronteiras do Campo Freudiano. 
As psicoses ordinárias tornaram-se tema de investigação para muitos 
de nossos colegas da Associação Mundial de Psicanálise; muito se 
tem publicado sobre o assunto e, como observa a autora no início 
de sua exposição, inúmeras vertentes e recortes foram feitos para 
avançar nessa pesquisa. 
O interesse do CLIN-a em produzir um curso avançado com 
esse tema surgiu de um debate entre a própria autora e nosso colega 
Rômulo Ferreira da Silva - testemunhamos na ocasião uma conversa 
apaixonante que nos instigou a colocá-la a público por meio de um 
curso. Ademais, nos interessou por ser um programa de investigação 
com questões fortemente capazes de sustentar o entusiasmo entre nós. 
A clareza e a simplicidade em expor temas complexos 
fazem a marca de Gradeia Brodsky. O leitor que acompanha seus 
09 
..... 
11.d ,all ll ,s, l'scrit:os ou de transmissão oral, pode comprová-lo aqui. 
t l jtl'l'l'll l'S<> por ela empreendido tem o mérito singular de expor as 
dil1't'c11tcs formulações acerca do tema como de expor suas próprias 
11 H lai;aç<"ícs. 
l ~mbora as intervenções de nosso colega Rômulo Ferreira 
da Silva não estejam aqui compiladas, podemos recolher o produto 
de uma interlocução que se mantém até o final. Agradecemos a ele 
p< >r ter acatado o desafio de se dedicar a um tema como este, não 
sem sua paixão que inspirou a todos nesse trabalho. 
Contamos com o trabalho minucioso e ágil, que lhe é ca-
racterístico, de Maria Josefina Sota Fuentes, responsável pela trans-
crição, tradução e estabelecimento do texto. Expressamos a ela 
nossos agradecimentos, e também a Heloisa Prado Rodrigues da 
Silva Telles que se ocupou da revisão final. 
E, por fim, agradecemos, de forma especial e afetuosa, Gra-
deia Brodsky por compartilharmos esse intenso trabalho, e pela au-
torização e colaboração efetiva em transformá-lo em um escrito. O 
primeiro de uma série que nomeamos Coleção CLIN-a. 
Boa leitura! 
10 
Luiz Fernando Carrijo da Cunha 
novembro de 201 O 
UM CAMPO DE INVESTIGAÇÃO PARA OS CASOS RAROS1 
Graciela Brodsky: O projeto destes seminários surgiu de uma 
, 11·,rnssão com Rómulo que evidenciava diferentes perspectivas que 
1 ti II lcm ser tomadas para abordar o tema da psicose ordinária, não 
.,, 1111cnte entre Rómulo e eu, mas, praticamente, entre aqueles que se 
l t1 H'lll a trabalhar este tema. 
Por exemplo, o programa de investigação sobre a psicose 
, ,1. linária que Éric Laurent lançou em Roma em 2006, cm uma ple-
11.11it2, foi consequência de um trabalho apresentado por um colega 
, l.1 l •'.C)L3,Juan Carlos Indart, que trabalhava o tema há algum tempo 
, , ,m uma hipótese muito definida: pensá-la a partir do discurso uni-
, nsitário. Esta hipótese não tem nada a ver com a maneira com que 
;1.larie-Hélene Brousse trabalha na revistaQuarto4, onde o faz a partir 
, lc, discurso do mestre. Então, aí já se veem perspectivas distintas 
11,1ra se orientar em um terreno que não é firme. 
Jacques-Alain Miller retoma a questão, também nessa 
111l'sma revista, destacando que se trata de um termo suficientemente 
e ll'mocrático para permitir que cada um diga como o entende, e que 
p1'.;tamente aí está sua virtude. Ter ele apresentado o tema não como 
11111 conceito permite orientações diversas. 
Depois de alguns anos de investigação, pode-se ver, por 
c·s.cmplo, que se tomamos o eixo do declínio do Nome-do-Pai na 
e nntemporaneidade, a investigação de Indart, que busca localizar o 
c·ldto do declínio geral do Nome-do-Pai nos próprios discursos, 
.1plica-se muito bem. Isso é muito distinto de tomar a perspectiva 
e I< >s nós no caso Joyce e verificar o que mantinha sua amarração. 
,\ssim, algumas perspectivas tentam extrair as consequências do de-
dínio do Nome-do-Pai na clínica e nos sintomas contemporâneos, 
e· 11quanto outras extraem as consequências da inoperância da função 
11atcrna em um sujeito, tal como, por exemplo, verificou-se a carência 
e la função paterna no Homem dos Lobos. 
Outras perspectivas consideram o nó como o elemento que 
I« ,rnece a chave da psicose ordinária. Muitos vão nessa direção e eu 
111csma tenho uma ideia de que aí pode haver uma saída melhor do 
13 
que outra. Pude veriticar, no entanto, especialmente em um artigo 
de Pierre Skriabinne5 e em um curso de Jean-Claude Maleval6 que é 
totalmente diferente pensar a psicose ordinária a partir do "nó de 
três,, do seminário RSI7, ou nos apoiarmos no "nó de quatro,, do se-
minário posterior, O sinthoma8. 
No "nó de três" de RSI, a hipótese de Lacan é que o nó 
tem em si mesmo uma maneira de enodamento borromeano, caso 
do nó do neurótico, enquanto que no.caso Toyce9, na psicose, o nó 
n~o.o.da...de..modo..borrom.ea,no ~- é. pr~d.SJLutn __ r_~mencjo., _algo 
que venha sanar Çfil,JLfalha._Então, Lacan mostra como, no caso 
Joyce, o real e o simbólico estão bem enodados, mas não enlaçam o 
imaginário, que fica solto. Localiza onde está o erro, que uma parte 
do nó não se enlaçou bem, e onde seria preciso colocar o remendo. 
No seminário seguinte, a tese mais firme de Lacan é que o real, o 
simbólico e o imaginário estão soltos, inclusive na neurose - esta já 
não sendo mais um enodamento estável entre os três registros, mas 
um enodamentoque se dá por meio de um quarto elemento. Co-
loca-se aí a questão sobre a diferença deste quarto elemento na neu-
rose e na psicose, sendo que em todos os casos este elemento 
chama-se sinthoma. 
Assim, as consequências clínicas do nó de RSI e do nó de 
O sinthoma são distintas. É diferente pensar para todos a necessidade 
de um quarto nó para sustentar a estrutura e que o Nome-do-Pai é 
um dos nomes do sinthoma que enoda os três registros, apenas um 
nome do sinthoma entre seus infinitos nomes. No caso Joyce, por 
exemplo, o sinthoma não se chama Nome-do-Pai, mas ego. Algo to-
talmente inédito em relação ao fato de considerar o remendo como 
necessário apenas na psicose e não na neurose. Produz-se, desta ma-
neira, uma generalização, não apenas da psicose e da foraclusão, já 
propostas anteriormente, mas daquilo que sustenta um endoamento, 
que é sempre um sinthoma. Isto leva à questão sobre o que especifica 
a estrutura psicótica em relação à neurótica, dirigida a Jean-Claude 
Maleval, precisamente no ano passado em Buenos Aires10• Ele sus-
• ·li;( 
14 
l('llla que é preciso manter a estrutura- com o que estou plenamente 
• li- acordo -, mas que a perspectiva final implica uma prudência do 
1 lí11ico na direçãÕdo tratamento mesmo no caso da neurose, quando 
•, 11uarto elemento não está definitivamente estabelecido. Na própria 
111·ut~)se não se pode mexer em tudo com uma confi;_nça cega no 
Nome-do-Pai, pois, precisamente, e~t-~ sinthoma funciona ca9-~ v~z 
11i1 ir, sem que isto implique que haja_~da vez maispsicóticos. 
Com estas distintas perspectivas, indico que não precisamos 
1 H ,s inquietar e buscar a definição da psicose ordinária, mas consi-
, l<-rnr que se trata de um programa de investigação que esclarece a 
1 línica dos casos raros, dos casos inclassificáveis, de todo esse terreno 
e talvez haja mais casos assim, seja por dispormos de uma ferra-
rncnta que permite identificá-los como parte de um conjunto hete-
1úclito, seja por termos saído da clínica do consultório e circulado 
1 il'los hospitais, pelos centros de saúde, onde entramos em contato 
1 ·1 ,m uma classe de casos que não chegam frequentemente nos con-
:; ultórios. Enfim, é uma noção que permite uma orientação na dire-
1;:ío do tratamento da psicose, mas também adotar uma perspectiva 
111ais prudente na neurose. Assim, ainda que tenhamos pontos de 
vista distintos, Rómulo tem razão, e eu também! 
Posto isto, nada elimina que a localização da estrutura cons-
1 i tua uma das principais apostas das entrevistas preliminares. Seja 
11ual for nossa perspectiva neste terreno - continuísta ou a favor da 
11curose, psicose e perversão; das psicoses desencadeadas ou não de-
sencadeadas; das psicoses que correspondem ao nó de três ou ao nó 
l>orromeano etc. -, as entrevistas preliminares devem permitir uma 
I< ,calização da estrutura. Não por um espírito classificatório, mas por-
11ue as intervenções do analista que têm como meta limitar_ o_gozo 
11 i f ere!_Il d~las que têm como meta a análise da repressão. 
Um dos axiomas de Lacan ~ãmos--erepeti.füos é o 
1 lc não retroceder diante da psicose. O que parece um imperativo ca-
1 cgórico, ético, é finalmente uma discussão de Lacan com Freud, para 
tJucm era evidente que certos casos não deveriam ser tomados em 
15 
análise. Havia, para ele, várias contra-indicações. Por exemplo, sujei-
tos que não têm uma posição ética que lhes permita enfrentar a ver-
dade como corresponde. Certamente conhecem a carta de Edward 
\'feiss11, na qual pergunta a Freud o que ele deveria fazer com um pa-
ciente que era um canalha. Freud recomenda: coloque-o em um 
navio e mande-o a Buenos Aires! (risos). Talvez tenha dito à América 
Latina ... O problema principal não eram os canalhas, porque para 
Lacan a única contra-indicação a uma análise seriam os canalhas, pois 
a psicanálise torna-os bobos ao retirar-lhes o único que têm para ar-
ranjar-se na vida. O que aqui nos interessa é que, para Preud, a psi-
cose - que era uma enfermidade narcisista, ou seja, sem transferência 
- não seria abordável pela psicanálise. Quando Lacan diz para não 
retroceder diante da psicose, significa não retroceder como Freud o 
fazia frente a entidades clínicas que não têm uma maneira de estabe-
lecer a transferência equivalente à transferência neurótica. A partir 
daí, Lacan procura definir a particularidade da transferência psicótica. 
Assim, não retroceder diante da psicose quer dizer que as entrevistas 
preliminares não devem deixar os psicóticos de fora, mas tomá-los 
em análise sabendo que são psicóticos. 
Esse problema deu origem a um artigo muito conhecido 
de Jacques-Alain 11iller12, onde diz que não há contra-indicação ao 
tratamento psicanalítico e o que decide é a demanda do paciente: se 
é falsa, o paciente não deve ser tomado em análise. Mas não é uma 
contra-indicação estrutural. 
Uma vez que a função das entrevistas preliminares não de-
sapareceu com o passar dos anos no ensino de Lacan, e a ideia de 
ver um paciente pela segunda vez e colocá-lo no divã não se aconse-
lha em nenhum momento do seu ensino, a necessidade de fazer tais 
distinções estruturais se impõe antes de iniciar cada análise. 
No momento em que a questão estrutural coloca-se para o 
praticante, há episódios francamente psicóticos que não apresentam 
dificuldades. Escutava em supervisão o caso de um jovem que entra 
em um período obscuro, com a suspeita de escutar vozes através das 
16 
1111,1 las, e que pouco tempo depois estava sofrendo de uma kirk-
,1,tl"',tl(r7o: olhava-se no espelho e via-se cada vez mais parecido com 
tlt ,r Kirk Douglas, o que para ele não era nenhuma alegria, como 
p1 nl •ria ser para muitos, mas produzia-lhe o horror de ver que seu 
,,, l ll transformava-se. Quando alguém, com uma formação, é claro, 
•fl ·ontra com um paciente nessas condições, não fará muitas per-
wllas sobre a estrutura, pois facilmente poderá dizer que é o início 
h 11111a esquizofrenia. A idade coincide, ele tem dezoito anos, apre-
, 111 :l fenômenos estranhos de transformação do corpo etc. 
No entanto, quando o Homem dos Lobos acredita ter um 
l 111 rn o no nariz, não é evidente o diagnóstico de psicose. Ou seja, 
t, 11 l:1 a discussão que durou um ano na Seção Clínica de Paris, foi 
J 11lta saber se poderia ocorrer o caso de <I>o, mas não Po. Pela primeira 
z aparece no Campo Freudiano a ideia de que haja <I>o sem Po e 
ip 1v, se isto fosse possível, estaríamos de volta ao bordedine. Para 
l .. ran, o materna da psicose, que se depreende do não funciona-
1, 1 ·11to da metáfora paterna (Po à <I>o), quer dizer que, se a função pa-
ltt•rna está reduzida a zero, a função fálica está reduzida a zero. A 
discussão do Homem dos Lobos na Seção Clínica de Paris abriu a 
1 1 lssibilidade de que haja Po, mas com a função fálica preservada, 
, ,u, então, ao contrário, que a função fálica esteja preservada, mas 
1m n a função paterna. Isto introduz algo que não é nem a neurose 
11 ·m a psicose e, pela primeira vez no Campo Freudiano, abriu-se 
i•s t estatuto intermediário. Miller, na revista Quarto, diz que se di-
v ·rtia muito naquele momento ao ver como seus colegas puxavam 
1 · um lado ou de outro, do <!>o e do Po, para entender o caso do 
1 lomem dos Lobos, que apresenta alguns índices e dois episódios -
um dia se assusta ao pensar que tem um buraco no nariz e, certa vez, 
j, >gado em um banco na praça, pensa que perdeu um dedo. De resto, 
·rn um pouco desconectado, era necessário sustentá-lo - o movi-
mento psicanalítico deu-lhe de comer até o final. 
Ou seja, não é suficiente uma transformação do corpo, 
'< >mo no caso do jovem de quem lhes falei, mas é certo que fenô-
17 
menos deste tipo nos deixam em alerta em relação ao diagnóstico 
de psicose, ao menos não esperamos encontrá-los na neurose. 
Quando não há grandes episódios, e são pacientes sem antecedentes 
psiquiátricos,que não apresentam alucinações ou delírios, e tam-
pouco são melancóli~os, mas, por outro lado, o diagnóstico de neu-
rose não se impõe, abre-se o problema de que as entrevistas 
preliminares não definem o diagnóstico. 
Frequentemente, esse é o momento em que recebemos pe-
didos de supervisão, que deveria ser uma prática regular. Lamenta-
velmente perdemos essa exigência de regularidade e podemos 
comprovar que, nos casos de neuroses, as supervisões eventuais 
ocorrem ou porque o analista tem a impressão de que a análise não 
anda, e há um sentimento compartilhado entre o paciente e o analista 
de que não se avança, ou porque há iminência de acting out ou passa-
gem ao ato, geralmente iminência de interrupção do tratamento. 
Quando se procura a supervisão nestes casos, esta não cumpre uma 
função epistêmica, mas de salvamento. Normalmente, quando se leva 
casos em entrevistas preliminares, é muito frequente que não se en-
contre nem a neurose nem a psicose, mas casos raros. 
Apesar de termos trabalhado o Homem dos Lobos há 
quinze anos aproximadamente na perspectiva de uma clínica que 
todo analista conhece, dentro do Campo Freudiano, essa outra pers-
pectiva não foi levada em consideração até 1997, em Arcachon13• 
No entanto, se quisermos ver o que há, não dentro da psi-
quiatria onde formam detectados estes problemas clínicos, como 
dizia Rômulo, mas na própria psicanálise, é preciso voltar à leitura 
do que Melanie Klein localizava como o núcleo psicótico da perso-
nalidade. Com suas referências e enquadre teórico, para ela valia o 
axioma "todos psicóticos". Se eles tivessem se encontrado ao final 
da vida de Lacan, poderiam ter tido uma boa conversa, mas Lacan 
se cruzou com ela em um mau momento, quando ele procurava a 
diferença entre a neurose e psicose através da metáfora paterna, en-
quanto Melanie Klein tinha uma clínica onde havia uma mistura de 
. ·-.:. 18 
períodos esquizoparanoides, ansiedades precoces etc. Seria impossí-
vel entenderem-se. Mas, em um programa de investigação sobre a 
psicose ordinária, seria interessante voltar a Melanie Klein e ver o 
que ela havia intuído sobre algo que estamos debatendo. 
Outro alvo ainda mais relevante, que não deve ser deixado 
de lado no programa de investigação das psicoses ordinárias, são as 
personalidades "como se" de Helene Deutsch. O_que podemos ch~-
mar de "personalidade como se" é um dos índices mais nítidos que 
temos para suspeitar uma psicose ainda não desencadeada. --
Recentemente, escutei o relato de um jovem, também em 
supervisão. Nele há uma duplicidade amorosa, tem duas mulheres: 
ama para sempre a mulher que será a mãe dos seus filhos, mas com 
< >utra experimenta um prazer sexual desconhecido anteriormente. A 
pessoa que o atende pede supervisão por causa disto. Não entendo 
< > caso. Peço que me fale do acontecimento mais importante da in-
f:1ncia e ela conta o seguinte: o jovem, que é de uma familia muito 
pobre, mas cujo pai o colocou numa escola de ricos, no momento 
< la despedida, antes de partir a uma viagem da escola, percebe que o 
pai não tem o mesmo status social dos demais, sendo de outra pro-
cedência. Então, ele, profundamente envergonhado, diz aos seus ami-
gos que se trata do seu tio. Quando o paciente consulta a analista, 
vive com uma tia-proprietária de uma imobiliária-, com quem tra-
i ialha e graças a quem leva uma vida compatível com a vida imagi-
nada na infância. Mas ele briga muito com essa tia, que o sustenta 
< '< >mpletamente. Procura análise por se dar muito mal com ela. Certo 
1 lia decide romper com a tia colocando um anúncio na internet, onde 
•;e dizia corretor de imóveis. Consegue um sócio que investe muito 
e linheiro e com quem compra a franquia de uma imobiliária. É muito 
1·stranho: como passou da tia que lhe tornava a vida impossível a 
1 ·1 inseguir um sócio por internet que investe 150.000 dólares em uma 
11cssoa totalmente desconhecida? Ele tem um modo de ser muito 
<·ncantador, muito simpático, frequenta a alta sociedade e, para ele, 
, , 1 nais importante na vida é o status social. Fala, nas sessões, do amigo 
19 
com um status x, do outro que .t;ião tem o mesmo status, que ele usa 
óculos escuros e se faz passar por alguém que tem grande status 
social, as if. Não entendo o caso, não vejo nada de obsessivo nem de 
histérico. Pergunto um pouco mais sobre a noiva. Não tem desejo 
sexual por ela e, sobretudo, não pode beijá-la. Penso na histeria, no 
nojo, elucubro na supervisão. Não pode beijá-la, pois, em uma oca-
sião quando mergulhava, travou a mandíbula e, desde então, não 
pode beijar a noiva. E por que travou a mandíbula? Porque antes co-
mera alho. Isso faz quinze anos, e ele não pode beijar a noiva porque 
tem a mandfüula travada por ter comido alho. Apresenta outro pe-
queno fenômeno: quando vai ao banheiro, não consegue terminar 
de urinar, tem uma sensação estranha. 
Naquele momento da supervisão, pensei tratar-se de um 
psicótico, embora não pudesse demonstrá-lo. O status social, o lugar 
que ocupa na sociedade, presente desde o início, parece ser o que or-
dena sua vida - o que faz pensar no fenômeno "como se". l\fas, so-
bretudo, o sem-sentido causal que existe entre o alho, o mergulho, a 
mandJbula travada e a relação sexual, ou seja, o beijo, isto faz pensar 
na psicose. Que a causa da impossibilidade de se aproximar de uma 
mulher - que faz parte da consulta de qualquer homem - leve a um 
acontecimento do corpo, enlaçado causalmente com a comida, isto 
não faz parte do que a significação fálica permite a um neurótico, 
que tem outras versões. Por exemplo, não posso beijar uma mulher 
porque tenho nojo, porque tem mau hálito, porque não gosto de 
tocá-la, porque meu pai, que andava sempre com mulheres, não me 
ensinou as coisas fundamentais, enfim, as mil e uma versões; ou seja, 
as razões que cada um tem de encontrar para verificar que, aproxi-
mar-se de uma mulher, é um problema. C,ada paciente tem a obri~-
ção de inventar urg_delítia qne explique p.orqu(;-.\J~~é..alg_o 
tãojnabordável. Anotem.__o delírio _de __ cad~~--~-euspacientes 
C<?_m o qual explicam a it?-_e::zj_s_tência d~ relaçªp _sexual~Va_çês ~nço_n-
trarão os delírios obsessivos, as delírios histéricos, os delírios fóbicos, 
"""--- ------·- -
mas este _delírio - da mandíbula travada depois de comer alho - é 
20 
um delírio1 Por ~ é mais delírio que outros? É _e_i:eciso entender 
qu_e_ cada um tem um delírio, mas est~ ~_rnyito mais original que .. os 
outrQ§.e. Ele não diz "porque meu pai não me ensinou" ou "porque 
meu pai me obrigou a sair com as putas desde pequeno e então 
adquiri um nojo total de todas as mulheres" - o que seria pouco ori-
ginal, porque muitos encontraram tal delírio -, mas este delírio é ver-
dadeiramente original. Nunca o havia escutado. Nenhum déficit, 
puro mérito para ele. 
Na mesma categoria, das tentativas no interior da psicaná-
lise de localizar estes fenômenos, posso ler Otto Fenichel. Em 1945, 
diz que há personalidades neuróticas que, sem desenvolver uma psi-
cose completa, têm uma predisposição psicótica. Ou ainda, o con-
ceito que nos amedronta tanto, de borderline ou organização limite. 
No entanto, quero destacar algo que me interessa especialmente: 
quando Kogut e Kernberg, ilustres colegas da IPA, ambos vivos, 
falam do borderline ou dos casos lirrútrofes, indicam - e para eles isto 
t'.: muito importante - que o estado limite é estável e duradouro. Não 
pensam que esse estado se transforme em uma psicose ou neurose, 
\mas fazem dele uma categoria própria. #" · Para vermos como o Campo Freudiano recupera este fe-
'nômeno que existe na clínica - cada um pode dar um exemplo e eu 
tenho uns dez exemplos que trouxe para ilustrá-lo-, é preciso passar 
:'ts três Conversações - Angers, Arcachon e Antibes - e, depois, à úl-
tima revista Quarto. Mas antes, é preciso retroceder, como o fez 
Rômulo, à clínicalacaniana dos anos 50, que delimita a psicose a par-
tir do conceito de foraclusão do Nome-do-Pai. 
Uma vez estabelecido que a psicose seja correlativa à fora-
dusão do ~orne-do-Pai, abrem-se, já nos anos 50, os modos de com-
pensação desta falta. Por exemplo, naqueles anos, surge, para Lacan, 
a discussão com Katan. Ele dedicou-se a pesquisar o caso Schreber, 
procurando os estados precoces na sua biografia que poderiam dar 
conta da estrutura psicótica antes do desencadeamento, ou seja, antes 
( los cinquenta e dois anos. Com Katan aparece o termo pré-psicose, 
21 
que é usado por Lacan unicamente no Seminário J14• Depois desapa-
rece do vocabulário lacaniano e não volta a aparecer na "Questão 
preliminar ... "15• Ou seja, Lacan abandona a ideia da pré-psicose. 
O segundo termo, que forma parte do contexto da pers-
pectiva lacaniana da psicose nos anos 50, é o fenômeno elementar. 
Temos a foraclusão do Nome-do-Pai como dado de estrutura e seu 
correlato clínico, o fenômeno elementar. Na sua tese16, Lacan escreve 
o que entende por fenô~eno elementar: inte~pretações, ilusões da 
memória, problemas da percepção, postulados passionais. e ~-s-~~d~s 
o~rotdes. Na maioria dos casos, fenômenos pontuais acompanhados 
d~e chama significa_s:ão pesso_al. o{·{~~,ap;~~~e1,;:-~m O c~-
ráter de serem significantes, quer dizer; a eles uma significação é ~u-
p~sta, mas é desconhecida;_há_..fil) mesmo tempoa-~~rt~~l}e 
significam algo e a susp~J,ão do gue significatl}, Mas há, aind~,,Ji_ma 
segu~~teza: aq~lilo_q_~ sigrúfi~a. algo e n~~ se sabe o ~-é re-
fere-se ao sujeito. T~ata-se do fenômeno quando S1 e S2 n_ão formam 
uma cadeia. A significação enigmática de um S1, res2.Qnds:~e-
. gundo significante ~}-ª--Partir do___ggª1Q .S.Ladquire_umasignificação. 
É o esqu~m~ de_s._a.µss_y.re. Mas, não existindo o S2, .~~ .fiJ.:a..ç.ar~ado 
de uma-significação eventual que não che~ Este fenômeno, S1 se-
paradO de S2, é o que Lac~n cha~ava '~~adeia quebrada". 
.... E a mesma estrutura do piso inferior do discurso do analista, 
onde Lacan retoma a mesma ideia: a união de S1 e S2, a cadeia signifi-
cante, está quebrada, e surge para o sujeito um sentimento de alívio -
que falta ao psicótico - quando cessa na análise a necessidade de in-
terpretar cada um dos fenômenos da vida: O que significa o sonho? 
O que significa a briga? Por que fiquei doente? Por que não durmo? 
O final de análise também produz um efeito de cadeia quebrada, que 
põe fim ao empuxo interpretativo-que a própria análise alenta. 
O problema, na investigação que faço sobre a psicose ordi-
nária, é eternizar e atualizar o fenômeno elementar e a pré-psicose sem 
contextualizar que a noção da pré-psicose é pontual no ensino de 
Lacan. Ainda, quando Lacan abandona um conceito, devemos consi-
22 
derar que este não lhe serve mais, tornou-se insuficiente para dar conta 
do que pretendia abordar, e devemos procurar o que o substituiu. 
O problema do fenômeno elementar, que teve tanto destaque 
no Campo Freudiano, consiste naquilo que o próprio Lacan introduz, 
já no Seminário 3, quando diz que o delírio é também um fenômeno ele-
mentar. Ou seja, não se tratam dos pequenos indícios, que ele mostrava 
na tese, que antecedem o delírio, mas que o próprio delírio é um fenô-
. meno elementar. Não se vê a vantagem de chamar algo de fenômeno 
elementar quando a manifestação mais exuberante da psicose é um fe-
nômeno elementar. Ou seja, ao se confundir com o delírio, o fenômeno 
elementar perde seu interesse de ser considerado como antecipatório 
do delírio, passando a ser uma categoria pouco precisa. 
Lacan refere-se à pré-psicose em duas aulas do Seminário 3. 
No dia 11 de abril de 1956, faz a mesma pergunta que se coloca com 
_loyce: "A partir de que momento vamos decidir que o sujeito trans-
pôs os limites, que ele está no dclírio?"17• No caso Joyce, pergunta: 
"A partir de quando se é louco?"18 Então, no Seminário 3, diz: "To-
memos o período pré-psicótico. Nosso presidente Schreber vive al-
guma coisa que é da natureza da perplexidade"19• Ou seja, o estado 
que corresponde a ter de enfrentar um S1 sem um S2. Lacan consi-
.-dera que toda interpretação analítica deve ter esta mesma forma: 
, nunca .deve incluir o S2, promovendo o efeito de perplexidade. Ou 
i,cja, o paciente deve saber que isso significa algo, que está dirigido a 
de e não a todo mundo, mas sem saber o que significa. Esta é a es-
1 rutura mesma da interpretação analítica. Prossegue a citação: 
/ 
Ele nos dá, em estado vivo, essa questão sobre a qual eu lhes dizia que 
está no fundo de toda forma neurótica. Está atormentado [ ... ] com es-
tranhos pressentiment(lS, é bruscamente invadido por essa imagem [ ... ], 
segundo a qual deveria ser muito bonito ser uma mulher sendo copu-
lada. É um período de confusão pânica. Como situar o limite entre esse 
momento de confusão e aquele em que seu delírio terminou por cons-
truir que ele era efetivamente uma mulher, e não qualquer uma, a mu-
lher divina, ou mais exatamente a prometida de Deus? Estará aí algo 
que basta para situar a entrada na psicose? Certamente que não.20 
23 
Então, Lacan cita Katan e comenta um caso, que não é 
Schreber: "Trata-se de um rapaz na puberdade, cujo período pré-psi-
cótico o autor analisa muito bem, dando-nos a noção que, naquele 
sujeito, nada ali é da ordem do acesso a algo que possa realizá-lo no 
tipo viril"21• Ou seja, ct>o. 
Faltou tudo. E se ele tenta conquistar a tipificação da ati-
tude viril, é por intermédio de uma imitação, de um atrclamento, na 
esteira de um de seus companheiros. Ele se entrega às primeiras ma-
nobras sexuais da puberdade, à masturbação especialmente; renun-
cia a isto logo depois por injunção do dito companheiro, e passa a 
identificar-se a ele por uma série de exercícios denominados de con-
quista sobre si mesmo. E comporta-se como se estivesse nas mãos 
de um pai severo, que é o caso de seu companheiro. Como este, in-
teressa-se por uma menina, a qual, como por acaso, é a mesma por 
quem seu companheiro se interessa. E quando ele tiver ido bastante 
longe nessa identificação com o colega, a menina lhe cairá prontinha 
nos braços. 
,,',. 
v' 
/ ~" Aí se encontra manifestamente o mecanismo do como se que a Sra. 
/J ,~ . ~ ' Helene Dcutsch avaliou com? uma dimensão significativa da sintoma-
.., •. ~, / tologia dos esquizofrênicos. E um mecanismo de compensação imagi-
i' ,/ nária.22 
~V (l 
'.f 
,. Sublinhemos isto: ao mesmo tempo em que Lacari diz ct>o, 
ou seja, não há Nome-do-Pai, diz que o único que existe é a perso-
nalidade "como se", já indicando aí uma maneira de compensação -
que é de extremo interesse nisto que estamos desenvolvendo-, "de 
compensação imaginária do Édipo ausente, que lhe teria dado a vi-
rilidade sob a forma, não da imagem paterna, mas do significante, 
do Nome-do-Pai".23 
Mas, na falta disto, funciona uma identificação imaginária 
qu_e faz com que todo o :f:dipo esteja representado no plano ima-
ginário, não em sua forma simbólica, mas um "como se" fosse 
Édipo. 
24 
Quando a psicose eclode, o sujeito vai se comportar como antes, como 
homossexual inconsciente. Nenhuma significação emerge que seja basi-
camente diferente do período pré-psicótico. Todo o seu comportamento 
em relação ao amigo, que é o elemento piloto de sua tentativa de estru-
turação no momento da puberdade, vai se encontrar no seu delírio.24 
Podem observar a continuidade que Lacan estabelece entre 
os componentes do período pré-psicótico e o delírio. 
·r 
.~ j 
)"'. { A partir de que momento ele delira? A partir do momento em que ele 
}'.~/. 'diz que seu pai o persegue para matá-lo, para roubá-lo, para castrá-lo. 
' } ,. '· / Todos os conteúdos implicados nas significações neuróticas estão ali. 
• ~ (\'1' f .1' '1 ~.:~ o po3to ess~ncial? q~~ n~o se _p0e e!Il d~sEaque, é,_ci,u<:_~~f!!:~? :()~. 
J Pmeça a partir do momento em que a iniciativa vem do Outro.25 
\'' ~ 
:i.. .r 
,)" 
A outra coisa que quero ler, que me parece incrível, está na 
aula quinze do Seminário 3. Estamos no contexto dos anos 50: 
l.'m mínimo de sensibilidade que nosso ofício nos dá nos faz ver cla-
ramente algo que se encontra sempre no que se chama de a pré-psicose, 
a saber, o sentimento de que o sujeito chegou à beira do buraco. Isso 
deve ser tomado ao pé da letra. Não se trata de compreender o que se 
passa ali onde não estamos. ~ão se trata de fenomenologia. Trata-se 
de conceber, não de imaginar, o que se passa para um sujeito quando a 
questão lhe vem dali onde não há significante, quando é o buraco, a 
falta que se faz sentir como tal. 
Repito isso para vocês, não se trata de fenomenologia. Não se trata de 
bancar os loucos - fazemos isso de modo bastante habitual, em nosso 
diálogo interno. Trata-se de determinar as conseqüências de uma situa-
ção assim determinada.26 
Na sequência, o parágrafo que quero destacar. Por saber-
mos que iremos em direção ao "nó de três", "de quatro", é incrível 
vermos coisas que Lacan podia dizer naquela época sem sabê-lo: 
l• ]\;em todos os tamboretes têm quatro pés. Há os que ficam em pé com l .três. Contudo, não há como pensar que venha a faltar mais um só senão 
25 
/ 
~" .-t· â.f a coisa vai mal. Pois bem, saibam que os pontos de apoio significantes 
1 
~\ .<!) '/ que sustentam o mundinho dos homenzinhos solitários da multidão 
:-, .1;',J ./ moderna são em número muito reduzidos. É possível que de saída não 
f ,t'), haja no tamborete pés suficientes, mas que ele fique firme assim mesmo 
5' .. Il1!"'·1· até certo momento, quando o sujeito, numa encruzilhada de sua história 
1_.,.. , biográfica, é confrontado com esse defeito que existe desde sempre. Para 
:i" · designá-lo, contentemo-nos até o presente com o termo T énn,jit1{1;, 21 
A ideia de que a estrutura se sustenta em quatro, que se fal-
tar um elemento ela se sustenta em três, mas que não pode susten-
tar-se em dois, poderia aplicar-se perfeitamente à clínica do nó. Com 
dois não há nó possível; é preciso três, e para que os três se mante-
nham é preciso quatro. Como nada disso deve ser casual - como 
veem tenho meu ponto delirante, penso que nada é casual (risos)-, 
::\.1iller fez um seminário que se chamou "1, 2, 3, 4"28, onde demons-
tra como Lacan sempre considera que a estrutura necessita de quatro: 
o pai, a mãe, a criança e o falo; os quatro discursos. E:fetivamente, 
para Lacan, o tamborete é de quatro, o de três é problemático e,_c:o~ 
dois; es_ta11:1~s no pior - o qu~ sempre Considerou ce>mo as _pj_o_!~S 
co~~tltções dadãs péla'relação espe~~lar. Ou seja, há uma lógica que 
faz com ele fale disto, mesmo no início de seu ensino. 
Por que desaparece o conceito de pré-psicose na "Questão 
preliminar ... "? Como entendê-lo? :Minha ideia é que o conceito de 
pré-psicose implicaria a existência, na estrutura psicótica, de um me-
canismo atuante dentro da própria estrutura psicótica que tenderia à 
psicose declarada. Uma vez que se fala de pré-psicose, o próprio 
termo coloca primeiramente a psicose desencadeada e, retroativa-
.mente, busca o que houve antes. É impossível perguntar-se pelo 
"pré" sem um ponto de referência. Antes de quê? Ou seja, a palavra 
psicose pressupõe a psicose desencadeada e a expressão implica uma 
dimensão temporal que é sempre retroativa e não antecipatória. Só 
podemos falar da pré-história se existe a história. Não quero dizer 
que os fenômenos desaparecem; trato de explicar por que o termo 
pré-psicose é limitado, por sempre supor o desencadeamento. 
26 
Para pensar a psicose ordinária, tal como nós a entendemos, 
ou seja, como uma psicose não desencadeada, deixo de lado a ques-
tão fatal (risos) do "vai desencadear ou não?", pois, como veem, es-
tamos ainda numa dimensão temporal que se dirige ao futuro, sobre 
a qual vou falar depois. ::\fas agora estou no "pré". Por que este termo 
desaparece no ensino de Lacan para ser substituído por outras coisas? 
É minha leitura. O "pré" supõe que já houve o desencadeamento, 
que nunca vamos encontrar o "pré" sem a psicose desencadeada -
o que leva Lacan a dizer que nada é mais parecido com o nor_mal que 
.º pré-psicótico. ~Somente quando a psicose se d;;encadeou podemos 
dizer '~A.h, isso era porque se tratava de uma psicose!", mas sempre 
estamos atrasados, chegamos depois do episódio. E dizemos que de-
veríamos ter reparado nessa mandíbula travada, nessa maneira de 
imitar o amigo que era um pouco frágil etc., mas somente depois, 
quando o sujeito já delira, podemos dizer isso. Toda nossa intenção 
é buscar os fenômenos antes do desencadeamento, pois nossa preo-
cupação não é epistêmica, mas prática. S~ conseguimos encontrar os 
fenômenos antes, va~os _dirigjr o tratamento no_ sentido de evitar o 
desencadeamer{°t~.----- · · --- --
-:-- Posto isto, podemos entrar nos anos 90 do ensino de Lacan. 
/ • A/. 1 ~- . ·,.;p,'.71,..;'~) /1,11 (1:':) 1:,.,, )Xi t,1,lé:;-'1-IY~/1-C),'rJMi f.,;'l/n,1 zrm V / ~fl'- . . _ /H .A·nJJYl/'.r,i,1-::;) 
.. , .1, .,( .l.~,1-n.,'1- /,,' 1/l--;,.Cr-. .,1. o 
A , • , . 1111, J,·,,• ,'}!;. ( , ' ,u ., ·.,-7..,_•(,J,?.,./yv.~ . 
11/-/,1~· /~? ·' , ~· :-·/J'}'t t/ r~;""}v7/,l ., 
.; < L.,,..;r? ~,;:. 1.,( E /,; · Primeiro seminário 
São Paulo, 25 de julho de 2009 
27 
NOTAS 
1 < >s cinco seminários aqui publicados foram revisados por Graciela Brodsky. 
2 < :< ,ngrcsso da Associação Mundial de Psicanálise, realizado em julho de 2006 em 
R<,ma. 
3 Escuda de la Orientación Lacaniana, Argentina. 
4 Brousse, Marie-Hélene. "] ,a psychose ordinaire à la lumiere da la théorie laca-
niennc du discours ».Quaito. Rez•ue de p[ychana/yse p11bliée à Bmxelles, 1994-95, Rctour 
sur la psychose ordinaire. Janvier, 2009, pp. 10-15. 
5 Skriabine, Pierre. "La psychose ordinaire du point de vue borroméen". Qttaito. 
Rel'tle de P{ychana/yse publiée à Bruxelles, op. cit., pp. 18-23. 
6 Maleval, Jean-Claude. "Elemcnts pour une apprehension clinique de la psychose 
ordinaire". Séminaire de la Découverte freudienne. 18-19 janvier 2003. Cniversité 
de Toulouse - Lc 1firail. 
7 Serninário inédito de Jacques Lacan, 1974-1975. 
8 Lacan,Jacques. O seminá1io, Lizoro 23: O sintho111e (1975-197 6). Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar Editor, 2007. 
9 Conforme Seminário 23. 
10 Vascheto, Ernilio y Yeyatti, Elena Levy. "Conversaci(m com Jean-Claude Maleval". 
I 'i,tualia - Rel'ista Digital de la hsmela de la Onentación Lacaniana. EOL: Buenos Aires, 
n. 18, octubre/noviembre 2008. Conversação ocorrida no dia 25 de abril de 2008 
por ocasião do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise em Buenos Aires. 
11 Freud, Sigmund; \X'ciss, Edward. Problemas de la práctica psicoanalítica. Barcelona: 
Gedisa, 1979, p. 49. Carta de 3 de outubro de 1920. 
12 Miller, Jacques-A1ain. ''As contra-indicações ao tratamento psicanalítico". Opção 
Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eolia, outu-
bro de 1999, n. 25. 
13 Miller, Jacques-Alain et ais. Os casos raros, inclassificáz•eis da clínica psicanalítica: a 
Conversação de Archacho11. São Paulo: Biblioteca freudiana Brasileira, 1998. 
14 Lacan,Jacques. O seminário, Lizro 3: As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar Editor, 1988 
15 Lacan, Jacques. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psi-
cose." (1958). Esc,itos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998. 
16 Lacan, Jacques. Da psicose paranóica em s11as relações cotn a personalidade. Rio de Janeiro, 
Forense Cniversitária, 1987. 
17 Lacan,Jacques. O Semi11á1io, Livro 3: as psicoses. Op. cit., p. 219. 
18 Lacan, Jacques. O Seminário, Litro 23: o sinthoma. Op. cit., p. 75. 
19 Lacan,Jacques. O Setllinátio, Litro 3: as psicoses. Op. cit., p. 219. 
20 Ibid., p. 219. 
21 Ibid., pp. 219-220 . 
• 
22 Ibid., p. 220 . 
. -.;( 
2823 Ibi<l., p. 220. 
24 Ibid., p. 220. 
25 Ibid., p. 220. 
26 Ibid., pp. 230-231. 
27 Ibid., p. 231. 
28 11iller, Jacques-Alain. «1, 2, 3, 4». Orientation Lacanienne II, 4. Curso inédito, 
1984-1985. 
INDÍCIOS DA PSICOSE ORDINÁRIA 
Graciela Brodsky: Para retomar a questão da pré-psicose, ima-
ginemos que, em vez disso, tratam-se dos habitantes da América na 
época pré-colombiana, antes da chegada de Colombo na América. 
Entende-se que não poderíamos falar de época pré-colombiana se 
Colombo não tivesse chegado à América. Quando dizemos pré-psi-
cose é exatamente o mesmo: falamos disto porque a psicose chegou. 
1fas não chamamos de psicose unicamente os fenômenos que se 
produzem na psicose, mas uma estrutura que está desde o início. 
Então, o termo pré-psicose faz equivaler psicose ao desencadea-
mento, e o pré-psicótico não seria psicótico. Ao passo que nosso 
ponto de vista é que a psicose, com ou sem desencadeamento, está 
lá desde sempre. Por isso, é um termo que carece de sentido por ser 
incompatível com a clínica estrutural, e certamente foi por isso que 
Lacan o abandonou. 
O termo pré-psicose não esclarece em nada a questão da 
psicose ordinária; ao contrário, obscurece-a. É melhor deixá-lo de 
lado e considerar a psicose como estrutural. Não há pré-psicose, o 
que não impede que se localizem na psicose distintos momentos. O 
interesse para o clínico não é encontrar, depois do desencadeamento, 
o que havia antes, como o fez Katan, mas encontrar, antes de desen-
cadeamento, indícios que permitam uma orientação no tratamento 
numa direção e não em outra. É antecipatório e não retroativo, pois 
o retroativo é muito interessante, porém tardio. 
Comecemos pela parte descritiva. A partir dos anos 90, es-
pecificamente em 1997, estabelece-se, dentro da comunidade do 
Campo Freudiano, um termo que não é o "desencadeamento", mas 
o "desenganche". É um bom termo; embora em francês seja debran-
chement- como quando um galho ~e separa da árvore -, traduzimo-
lo por desenganche, que está muito bem, pois o desencadeamento 
orienta cm relação à cadeia, é algo que se solta de uma cadeia, en-
quanto que o desenganche remete ao gancho que, por sua vez, re-
mete, em espanhol, ao ganchilo. Hacer ganchillo significa fazer crochê. 
Isto orienta em. relação ao nó, pois o croché é um sistema de enoda-
'"' .;~ 1 ·~~ f "~~ . ~~~ .. 
"" 'J ,. '~ ., 33 
' \ t-;' ~.._,t 'O.V {f 
mento, de unir nós até formar um cachecol, uma rede. Então 1-filler, 
de modo descritivo, propõe, em 1997, o termo desenganche. 
Muitos anos depois, na retrospectiva sobre a psicose ordi-
nária que está na revista Quarto, Miller diz que é uma expressão bem 
formada e que foi acompanhada de outros termos, sobre os quais 
não valeria a pena deter-se demasiado, como pseudodesencadea-
mento, ncodcscncadeamento. O importante é que P~!II?-ite ao clínico __ 
or!~!ltar o_tratamento no sentido de preçisar o que mantinhª-º en-
ganche, e pensar cm um neoenganchc, um novo enganche. Na minha 
época, quando se usavam meias, os pontos se desfiavam e era preciso 
levá-las a uma senhora para "levantar o ponto", e assim a meia ficava 
usável, embora não ficasse nova. Permanecia uma pequena cicatriz, 
mas ficava passável para o uso diário. E~ta é -ª-ideia do enganche e 
do }es~ngª11che: cncontra_r_o popto que se soltou e v<1ltar a tec&-lo, 
embora não fique perfeito. 
· -------o- marcó--zer~ disto é o caso apresentado na Conversação 
de Arcachon por Jean-Pierre Deffieux, um dos diretores da Seção 
Clínica de Bordeau, cujo título é "Um caso nem tão raro"29 O título 
é importante porque dá precisão ao sentido de "ordinário", que sig-
nifica "nem tão raro". A partir deste caso, começa a elucubração 
sobre a psicose ordinária, que está já incluída no próprio título: "nem 
tão raro". É preciso lembrar que a Conversação de Arcachon tinha 
como título "casos raros" e, naquela Jornada, Deffieux apresenta um 
caso nem tão raro. 
A partir daí, retomemos um problema que havia ficado nas 
mãos dos kleinianos, dos bordelines da IPA, que não entrava muito 
bem na nossa clínica - essencialmente binária - que reduzia os casos 
nem tão raros a psicose ou a neurose. Desde então, começa a inves-
tigação dos casos que se colocam mais próximos da linha divisória 
entre neurose e psicose e que obrigam a sair da clínica binária - ainda 
que Miller esclareça que não era totalmente binária, pois havia neu-
rose, psicose e perversão. 1-fas, a_ verdadeira perversão, não a vemos 
no consultório; o que mais vemos sao fantasma_s pe!v_et;~os-ern-neu-
'·ta:.. 34 
róg~_o.u_suplê~~r-\ce!SaS...L.,.tn..2_Sicóticos. Mas já tínhamos uma 
clínica de três dimensões se levarmos cm conta a perversão. Com 
efeito, na famosa classificação de Pierre Skriabinne, diferencia-se neu-
rose, psicose e perversão a partir dos mecanismos de defesa de 
Freud. Quer dizer, considera-se que há na clínica freudiana - que 
não se baseia na psiquiatria, embora dela empreste seus termos -
uma diferenciação a partir dos mecanismos de defesa. Assim, 
Skriabinne não emprega os termos neurose, psicose e perversão pro-
positadamente, e utiliza os termos em alemão correspondentes aos 
mecanismos de defesa: T TerdrdngunJ!, para o recalque na neurose, 
T édeulun,g para a denegação na perversão e T énvetfun,_!!, para a foraclu-
são na psicose. 
Então, podemos ler o caso de Deffiuex: 
Apresentado a Freud, B. poderia ser considerado como afetado por 
neurose narcísica. Com Bergeret, sem dúvida seu lugar estaria na cate-
goria borderline. Tivesse ele encontrado a psiquiatria americana adepta 
do DSM I\: seria classificado provavelmente nos distúrbios do humor. 
l' m analista da lnternational P[rchoan/ytic Association embora deixando de 
-/~ · j é v- ' lado a classificação estrutural para não comprometer a escuta, teria po-
r·Í ( <lido entendê-lo como histérico. l ( <:i · E o analista lacaniano? Isso ainda depende de qual o momento do en-
sino de Jacques Lacan onde ele buscaria apoio. Se ele se apoiasse uni-
camente no ensino de Lacan dos anos 50, sobre a clínica do N orne-do-Pai, 
não seria garantido que ele aí encontrasse o caminho certo. 
É bem mais a uma clínica do sintoma que deverá recorrer, para fazer 
deste caso um caso nem-tão-raro e assim encontrar com certeza o seu 
justo lugar. 
Muitos casos não classificados, ou mal classificados, atualmente, lÜzem 
respeito a essa clínica à espera de polimento, após as preciosas contri-
buiçôes teóricas de Jacques Lacan, nos anos 70, e de Jacqucs-Alain 
Miller, em seguida em seu Curso, repetidas vezes. 
Esta clínica do sintoma em nada vem contradizer a barreira estrutural 
neurose-psicose estabelecida pelo doutor I ,acan nos anos 50. Pelo con-
trário, ela permite dispor do lado das psicoses toda uma categoria de 
sujeitos até então classificados cm todas aquelas categoria que acabei 
de citar, excetuada a psicose. 
35 
Estamos porém nos referindo a uma psicose igual àquelas bem conhe-
cidas nossas, paranoia delirante e/ ou com alucinações, e esquizofrenia 
dissociada? Não deveríamos criar um novo termo? São tão tÜferentes 
estes sujeitos! Certamente não, se de fato está se falando em termos de 
estrutura, tal como Lacan a definiu no fim de seu ensino - a estrutura 
dos nós R.S.I. Estes sujeitos acharam um modo de enlaçar sintomático 
que se mantém geralmente bastante bem, até por toda a vida, e sem o 
apoio do !'some-do-Pai. Estes sujeitos trazem uma verdadeira subversão 
à clínica da psicose, ao retirar dela toda referência a qualquer noção de 
déficit, mesmo significativa. 
Acrescentamos que uma clínica do sintoma não é uma clínica dos sin-
tomas, que sempre foi, a justo título refutada por Lacan. 
Em compensação, conseguir distin!,>uÍr, a partir da fenomenolot,ria clí-
nica, os critérios da amarração sintomática l'sDP30 daqueles que depen-
dem de outros tipos clínicos de dar o nó, é uma aposta importantepara 
o futuro da clínica analítica. Isto vem também subverter a hierarquia 
1 das estruturas. Não seria tão, ou até, legitimo empenhar-se em demons-
trar em quê um sujeito neurótico é neurótico, do que se contentar em 
procurar em que ele não o é? 
Estes sujeitos, freqüentemente, trazem uma queixa, um sofrimento, que 
eles dirigem ao analista para que este os alivie. Seu discurso pode, du-
rante tempo bem longo, passar por um discurso de neurótico. Ficar 
1 pendurado no Outro é suficiente para lhes permitir identificações aos 
: modelos sociais que dependem <lo funcionamento edipiano. Isto porém 
/ não basta para justificar uma neurose, e por isso é útil prender-se aos 
ínfimos detalhes clínicos que podem chamar a atenção para o lado da 
, psicose. 
Esses detalhes não concernem os distúrbios <la linguagem, mas os efei-
tos clínicos a mínima de algo destoante na amarração R.S.I. Por exemplo, 
num sujeito, uma premência do imaginário, próxima <le uma fixação 
simbólica bem leve ou então uma relação <le estranheza entre o eu e o 
corpo. Ou ainda, num outro, a exercício desenfreado da pulsão, desco-
nectada de toda tomada na dialética de discurso. Muitos outros exem-
plos poderiam ser dados. 
O sujeito não deixará entrever o que faz a singularidade de suas amar-
rações sintomáticas a não ser que o analista o estimule nisso, se o acom-
panha nesse desvendamcnto. 
Se o analista acredita na neurose deste sujeito, ele manterá "sua vesti-
menta" de neurótico; no melhor, nada vai acontecer, não sendo possível 
nenhum domínio sobre o inconsciente; no pior, uma interpretação irá 
36 
tocar desastradamente na amarração precária que o analista descobrirá 
então. 
Para expor o caso presente, decidimos nos limitar a duas visadas: mos-
trar nas primeiras entrevistas o que permitiu ao analista a psicose; indi-
car brevemente o que foi possível assinalar das tentativas de amarraçôes 
sintomáticas do sujeito, e entre elas, a expressão discreta de uma metá-
fora delirante. 
B. tem 36 anos, vem de uma família numerosa da alta burguesia do 
norte da Europa. O pai é industrial. Ele me é dirigido por um colega, 
com o diagnóstico de neurose histérica. ] á na primeira entrevista, ele 
se mostra simpático, encantador, bem à vontade - na segunda sessão, 
ele se apresenta ao porteiro pelo seu prenome - e ao mesmo tempo 
usando ostensivamente os modos de polidez. 
Ele se apresenta com uma queixa repetida. Não tem vontade nenhuma, 
é incapaz, está parado na vida, não deseja nada, não se decide sobre 
nada, "cuida dos negócios correntes" etc. No seu discurso volta sempre: 
"falta-me energia". 
Desde a idade de 17 anos, quando numa cabeçada boba interrompeu 
seus estudos - alguns anos depois, fez o seu bacharelado como candi-
dato independente, e teve brilhante sucesso -, ele montou três modestas 
empresas, onde sempre trabalhou sozinho, a última sendo uma empresa 
artesanal de marcenaria. Seu pai acompanhava sempre de perto seus 
negócios. No total, suas empresas funcionaram bem. 
Ele decidiu, em maio de 93, cessar a atividade, logo depois de lhe terem 
feito numa revista de decoração, um artigo elo6>Íoso. Já há muitos anos, 
ele queria "romper com a sociedade de consumo" e com o comporta-
mento rígido e social de preservação social num país do Terceiro 
Mundo. Obteve em 94 um diploma de ecologia, tendo sido o primeiro 
de sua turma. 
Em março de 94, outra reviravolta, desta vez, de caráter afetivo. Ele ti-
vera, até então, muitas aventuras femininas: "'.As mulheres se interessa-
vam por mim", dizia ele, mas cada ve:,; que havia a menor questão de 
compromisso, ele as largava imediatamente. Em março de 94, quando 
acabara de deixar uma mulher jovem, ele fa:,; um encontro homossexual 
apaixonado, que vai durar três anos. Para superar esta separação, ele se 
mete numa construção muito difícil, que ele rapidamente leva a bom 
cabo, trabalhando fora do comum. Ele admite ter tido na vida atração 
por homens, com alguma regularidade, mas a moral paterna o tinha im-
pedido até então. A partir desse momento ele só teve aventuras com 
homens, múltiplas e efêmeras. 
37 
Desde 95, nada dá certo. Inscreveu-se na faculdade para continuar seu 
cursos, mas não aprende nada, e custa-lhe seguir os cursos. Está à toa 
na vida, vive com o R.,_\fl. Não está isolado socialmente, sai muito, passa 
as noites nos clubes. Liga-se facilmente, mas são ligações efêmeras e 
bem superficiais. 
Ao chegarmos ao fim da primeira entrevista, já não estou muito con-
vencido de uma neurose, pois, de um lado, choca-me o paradoxo entre 
sua imediata familiaridade, e sua polidez acentuada de jovem bem edu-
cado, de outro lado, seu laço social me parece bem mínimo, seu enga-
jamento afetivo, em uma vida profissional artesanal sob a dependência 
<lo pai, com mudanças cujas causas não se percebe bem, a não ser uma 
certa instabilidade. Também é de surpreender a radicalidade com a qual 
ele rompe brutalmente com a férula do pai aos 35 anos, quase cortando 
a partir daí todos os vínculos familiares. 
Enquanto minha atenção é voltada para estes poucos elementos que 
nada têm de decisivo, tendo constatado sua magreza e pensado, desde 
sua entrada rto consultório, numa eventual dimensão depressiva, cu lhe 
pergunto se teve sempre esse peso. Ele responde pela negativa, em toda 
sua juventude ele cuidava da disciplina do corpo, foi campeão de nata-
ção na adolescência, e em 1990, brutalmente, cm três semanas, perdeu 
doze quilos. Embora eu tenha insistido, com perguntas objetivas, ele 
não ptide explicar esse brutal emagrecimento, aliás o mesmo acontece 
com os médicos por ele consultados. 
Aí eu paro a primeira sessão, muito interessado no funcionamento 
desse corpo que, ele, não obedece a ninguém. 
Vou portanto orientar as entrevistas segi.úntcs a partir de minhas primeiras 
dúvidas sobre a estrutura. Estas dúvidas vão condu7.i-lo a fazer transpa-
recer mais a particularidade de seus modos de enlaçamento R.S.I. 
Quando do começo do segundo encontro, eu lhe faço reparar que os 
seus dois momentos marcantes desses últimos anos, aconteceram, os 
dois, em março. 
Ele aí então, depois de uma breve hesitação, evoca uma lembrança "a 
qual ele nunca pensa" e da qual lembrou-se pela primeira vez no mo-
mento da separação dolorosa do primeiro homem que ele encontrou: 
era na primavera, ele tinha 8 anos e se dirigia a um treino de natação; 
um homem ofereceu conduzi-lo cm sua bicicleta, e B. aceitou sem he-
sitar; este homem o levou a um terreno arborizado e lá lhe bateu em 
todo o corpo com um bordão, depois, sacou uma faca e quis lhe cortar 
o sexo; B. conseguiu então escapar. Dois comentários desta cena, longe 
de evocar o trauma da cena primitiva no neurótico, só fazem aumentar 
38 
minhas dúvidas sobre a estrutura. Ele diz destas bordoadas: "Nem sei 
se doeu muito". Regressando a sua casa, ele conta tudo ao pai, "que 
não o acreditou". Esta falta de afeto, totalmente discordante, virá es-
clarecer o emagrecimento inexplicado. Ao que ele diz, a posição ado-
tada pelo pai, nesse momento particular, combina com a atitude por 
'ele assumida cm geral, que se pode resumir em duas palavras: pai le,gistador. 
ele sabe o que convém para seu filho, mas não atende a seu apelo. 
Os dois momentos, de março 93 e março 94, logo me pareceram ter li-
gações com esta cena de primavera nos seus 8 anos: 
- em março 93 ele rompe com a vida profissional e social ditada por 
seu pai; depois de uma revista de decoração ter acreditado nele - o sig-
nificante 111adeim da primeira cena, "num terreno arborizado" e o bordão 
provavelmente terão uma ligação com a escolha do artesanato de ma-
deira que ele fará mais tarde; 
- em março 94, nessa nova ruptura com a moral sexual do pai, a cena 
do encontro com o homem o remete precisamente às circunstâncias 
da cena infantil; ele vem da praia, atravessa uma floresta, de automóvel, 
pega o homem numa parada.Mais tarde, no decurso das entrevistas, 
fica-se sabendo que sua relação sexual com o homem era baseada es-
sencialmente sobre o exibicionismo, misturado a jogos sádicos. 
Diante da importância dos laços que me aparecem entre essas três 
cenas - primavera de seus 8 anos, primavera 93 e primavera 94 - eu 
lhe peço que me narre esta cena infantil o mais precisamente possível. 
Ele me conta que, quando começou a ser batido por aquele homem, 
ele tem lembrança de ter abandonado seu corpo, de distanciar-se dele, 
de desaparecer: "Em dado momento vi um meninozinho, era eu, foi aí 
que eu fugi. O abandono de seu corpo como vestimenta velha, vem 
confirmar o "nem seii se doeu muito", e relembrar de maneira impres-
sionante a história de Joyce, menino, batido por um de seus colegas. 
A partir deste segundo encontro com B., fiquei com a quase certeza de 
não estar diante de um neurótico. A orientação que pude depois im-
primir às entrevistas lhe permitiu entregar pouco a pouco o que lhe 
permitia agüentar-se na vida, sem o amparo da metáfora paterna. 
Até os 35 anos ele teve dois apoios, a regra paterna, e o artesanato, que 
tinha para ele muita importância: a preocupação de fazer bem e belo. 
Acrescento que ele praticamente nunca fala de sua mãe, e sobretudo, 
que ele descreve uma família de treze filhos, na qual nunca os pais es-
tavam juntos. 
Nas entrevistas ele nos fará conhecer um outro apoio essencial em sua 
vida. Sua sexualidade está basicamente fundamentada na exibição de 
39 
seu corpo nu, e do corpo do outro, seja homem ou mulher. Quando 
tinha 12 anos, houve intervenção da polícia, porque ele exibia seu sexo, 
andando de bicicleta no parque da cidade. Continuou a fazer isso na 
bicicleta, e depois no automóvel. 
Dos 15 aos 25 anos ele fazia regularmente sessões de fotos de seu 
corpo nu no espelho, que ele mesmo revelava. Isto terminava sempre 
com uma masturbação. 
Esta prática perversa manifestamente lhe serve para emendar o llJ!,O com 
o corpo e não deixa de ter ligação com a tentativa de secção do pênis 
aos 7 anos. 
A partir de 95 pode-se dizer que ele foi parcialmente largado, devido 
ao corte da regra paterna e ao fim daquele, paixão amorosa narcísica, 
baseada no exibicionismo, que ele havia estabelecido, um ano apc'is a 
ruptura com o pai. 
Vê-se agora aparecerem duas amarrações novas: inscrição sobre o 
corpo de um fenômeno psicossomático; e uma metáfora delirante dis-
creta. 
Com efeito, é muito mais freqüente do que se pensa, que uma metáfora 
delirante oriente a vida, pensamentos, atos e laços de um sujeito aos 
outros, sem chamar atenção, e sem que pareça a alguém como patoló-
gico. 
Isto não deixa de evocar a função do fantasma na pantomima do sujeito 
neurótico. 
Disso B. fornece um belo exemplo, que não posso aqui desenvolver. A 
frase capital de seu delírio foi mencionada na primeira sessão: "Falta-
mc energia". Esta frase suporta uma metáfora delirante cósmica, que 
aos poucos ele irá devagar, e da qual não tardará que cu seja o centro 
na figura de "Déf(icr)ieu". li. 
B. não volta ao consultório. Ele me remete um cartão de Boas Festas 
no Natal, no qual ele me participa discreta - e alusivamente dali, como 
ficamos na reconciliação com nossa "centelha da vida". Ele leva o que 
se chama vida normal (DEFFIEUX, 1998, 13-18) 
o v° Í'. 
IÍ'ti ' ,,,< ~ r,iJ 1'"' Deffieux diz que desafiar Deus é uma construção que se 
apoia na escrita do nome do analista, Deffieux. 
O que predomina neste caso é certo exercício da pulsão, 
ainda que não se possa dizê-la desenfreada, como em alguns casos. 
O ponto central é o estranhamento entre o eu e o corpo, presente 
no acontecimento aos oito anos, quando ele apanha. Esta referência 
• ·o.( 
40 
, , , ,ca Joyce. Sabem que Joyce apanha na escola e diz que seu corpo 
1, ,1 l'mbora. Há dois episódios na vida de Joyce: ele tem uma afecção 
, 111 um olho que não trata e por isso o perde; e uma segunda doença, 
1.1111 hém não tratada, que o leva à morte precocemente. 
No caso apresentado por Deffiux, nunca houve um desen-
' .,dcamento da psicose. Além da falta de dor, quando o corpo é ex-
1 ll'rimentado como alheio, chama a atenção que alguém brilhante, 
•,, ·m dificuldades de outra ordem, deixe suas atividades nas quais era 
11 niito bem sucedido. Mesmo ganhando o primeiro lugar nos estudos, 
.d iandona-os, bem como seu trabalho com a marcenaria, apesar de 
· ,, · r reconhecido em uma revista de decoração. Ao contrário de Schreber 
desencadeia-se a psicose quando da sua nomeação como chefe do 
'l 'ribunal -, neste caso, ele se desengancha, retira-se no momento de 
•;cr nomeado, sem causas aparentes que pudessem explicar o fato. 
Isto coloca a questão de identificar quais indícios Deffiuex 
1 >crcebe nas duas primeiras entrevistas que o levam a suspeitar do 
diagnóstico de psicose. Entende-se que a psicose ordinária é uma 
psicose. 1\fantemos nossa distinção estrutural: nunca será uma neu-
n ise, nem outra coisa, senão uma psicose. i\fas, em vez de situarmo-
11< >s no desencadeamento e olharmos retrospectivamente procurando 
, >s indícios da psicose, coloquemo-nos antes do desencadeamento 
para buscar tais indícios. 
Para insistir na perspectiva estrutural que não abandona-
mos, na Conversação de Arcachon é perguntado a Miller se haveria 
uma continuidade entre neurose e psicose. Ele responde: "Não é exa-
tamente assim. A questão é mais a respeito de uma gradação no ~e_-
te.rior do grande capítJJlo d~ psic.us..e."31 E se em algum momento 
l ,acan pôde dizer que todo mundo delira - e, então, poderíamos pen-
sar que a neurose forma parte da psicose e que somos todos psicó-
ticos à maneira kleiniana -, minha resposta é que Lacan o diz com 
fins irônicos. 
Na busca dos indícios anteriores ao desencadeamento, 
Miller dá uma perspectiva pragmática da psicose ordinária, dizendo 
41 
que é ':!.!TIª questão de intensidade dentro do próprio cam~si-
~- Indica-o com o início de um parágrafo de "Uma questão pre-
liminar ... ", dizendo que"[ ... ] se trata aí je uma desordem pr~a 
na junção mais íntima da scntimen~ida no sujeito J. .. ]."32 
---- Então, que tipo de desordem é essa? Como localizar isto 
que não é nem um delírio, nem uma alucinação, nem um neologismo, 
ou seja, nenhum dos indícios prévios a um desencadeamento que 
tradicionalmente buscávamos para dizer que se tratava de uma psi-
cose? 
Há uma intervenção de ;i\,1iller33 que interroga a respeito de 
como se criou, dentro do campo psicanalítico e na Orientação La-
caniana, a ideia de que o neologismo seria o transtorno a procurar, 
necessariamente, na psicose. Pode haver ou não um neologismo, mas 
considerá-lo como o indício do transtorno na linguagem que asse-
gura a psicose é uma leitura equivocada, em determinado contexto 
do ensino de Lacan, que é preciso afastar. Transtorno de linguagem 
não equivale a neologismo. 
Miller34 desdobra essa desordem, que seria o indício, em 
três fenômenos, aos quais acrescenta um quarto, que não desenvolve 
naquele momento. É uma síntese que ele faz na conversação com os 
anglo-fônicos, onde recolhe o que considera permanecer das Con-
versações de Arcachon e Antibes. Trata-se de um~desordem na ma-
nei~como o sujeito sente: 
a) o mundo que o rodeia; 
b) o corpo; 
e) as ideias; 
d) a sexualidade. 
Em relação ao primeiro ponto, 1fi!Ier §!a da exterioridade 
social em dois aspectos: ou o sujeito fica solto, separado do OutrQ_ 
social, como no desenganche, ou demasiado identificado ao Out~? 
s,~~1ã11 como no caso do pa~nte_g~faz tudo 2ara ter o status social. 
Quando falamos de desenganche, de que falamos? De um desengan-
che em relação ao Outro ou cm relação a uma argola do nó? Quando 
42 
:\liller fala do desenganche está se referindo ao desenganche do 
1 >11lt<;-social. Na falta do enganche com o Outro, que tipo de iden~ 
11 I icação tem o sujeito com uma função social? - pergunta11iller35• 
Podem-se ver duas maneiras, a partir das quais temos um 
111dício de que algo está afetado. A primeira delas é uma relação ne-
i•,ativa, o que conhecemos como desenganche ou desconexão, que 
1 ·aracteriza o caso de Deffiucx. Apesar de ter um bom laço com os 
· e ,utros, há um desenganche de dois pilares que funcionaram bem até 
l't1tão, o laço ao estudo e o laço com o trabalho, que se desconecta. 
Tenho uma paciente a quem vejo regularmente há alguns 
anos. Durante muitos anos exerceu suas tarefas de médica relativa-
mente bem; num dado momento, começa a apresentar problemas 
de insatisfação com seu marido e um amor por um amigo do casal. 
:\s sessões com o analista anterior giravam em torno disto, do can-
saço com seu marido e do enamoramento por esse amigo do casal. 
O analista, um pouco cansado das idas e vindas, disse-lhe que era 
preciso tomar uma decisão. Se ele não a aborda, ela pode abordá-lo 
e lhe dizer que algo acontece entre eles. Ela então se dirige ao amigo 
e se declara, perguntando por que não iniciam algo, já que teriam 
uma atração mútua irresistível. Ele não entende do que ela está fa-
lando, nunca a viu senão como a mulher de seu amigo, e recusa seu 
pedido. Ela volta à análise totalmente desconsolada pelo fracasso de 
· sua tentativa. Quer tentar uma segunda vez e o analista lhe diz que 
não, que agora é a vez dele. Pouco tempo depois, decide separar-se 
do marido, posteriormente deixa sua análise e, mais tarde, abandona 
toda sua atividade profissional. Como me conhecia pela EOL, vem 
me ver alguns anos depois. Separada, vive só, deixou de trabalhar e 
fala do amor como um momento completamente decisivo em sua 
vida, desse amor pelo homem que, por covardia, não se animou a 
vivê-lo. 
Esse desencanto amoroso vem acompanhado de outro de-
sencanto. Seus filhos começam a praticar a religião como nunca o fi-
zeram, fato que ela não pode aceitar. O casamento de seu filho maior 
43 
ocorre numa cerimônia religiosa muito ortodoxa, dentro da religião 
judaica, em cuja festa homens e mulheres não podiam estar no 
mesmo salão. Ela então teve de dançar na cozinha. 
O desencanto amoroso e o fato de ter de dançar com as 
mulheres na cozinha são os dois acontecimentos mais importantes 
na sua vida, que remetem a uma cena infantil. Seus pais a deixam 
num acampamento de férias e partem de viagem a Europa. Ela se 
lembra do sentimento de abandono e de perda de toda referência 
nessa cena infan.til, de tal modo que qualquer coisa que acontece na 
sua vida e nas conversas comigo remetem a essa cena infantil de 
abandono e de ter perdido totalmente o laço com o outro. Ela foi 
deixada, por ocasião desta viagem dos pais, com suas irmãs, primos, 
mas nada disso conta para ela, senão o sentimento de ter ficado solta 
no mundo. 
Tinha um pai famoso, não pelo melhor, mas por ser um fa-
moso estelionatário. É alguém que, durante toda a infância dela, apa-
recia nos jornais e, de tempos em tempos, era preso, voltava a sair 
da cadeia, e andava sempre nos mais altos níveis sociais. Seu sobre-
nome é conhecido por toda uma geração. Seu casamento foi com 
um escrivão - ou seja, com alguém que reconhece uma assinatura 
como verdadeira, a encarnação de que a lei e a verdade existem. Con-
sidero que seja uma psicose. Nada me faz pensar por que deixou sua 
profissão; nunca mais voltou a ser algo, abandonou sua profissão há 
quinze anos. É bonita, veste-se nas melhores lojas da cidade onde 
vive, frequenta a academia de ginástica e vem ver-me duas vezes por 
semana. Isto é tudo que faz. Nem com a medicina, nem com a arte, 
ela não voltou a se enganchar com nada. O que lhe preocupa é não 
fazer nada. J\finha estratégia tem sido refazer o casamento, sustentá-
lo de todas as maneiras possíveis, de modo que ela voltou a viver 
com seu marido; continua queixando-se dele, sonha com um amor 
que a libere do casamento. Mas se vê que tudo que a libera desse 
homem que encarna a lei, entra na dimensão do abandono na colônia 
de férias e da dança na cozinha quando fora excluída de tudo. 
·-~ 44 
Ninguém poderia dizer que é uma psicose, eu também não! 
{ :, >tn uma precaução diagnóstica, noto coisas estranhas: é muito cau-
1 l'losa em relação a que ninguém descubra o nome do seu médico, o 
l11gar de sua academia, pois as pessoas são muito invejosas e podem 
, ·, ,locar mau-olhado. É um pequeno traço paranoico de suspeita do 
, 1utro. Preocupa-se muito em ser assaltada, roubada; não dá seu en-
, lcreço, seu e-mail e não responde nunca ao telefone. Quando chega 
e I marido, recolhe todas as mensagens acumuladas no dia. Trou.xe-
me uma longa investigação sobre a origem de seu sobrenome, que é 
nobre, o que dá uma dimensão megalômana, mas que compensa a 
falta radical desse pai. Portanto, os fenômenos são: a megalomania, 
a paranoia, a exaltação amorosa, e seu ponto de amarração é esse 
homem que encarna uma lei. 
Se alguém me perguntasse se penso que uma psicose vai 
desencadear-se, duvidaria. Penso que ocorreu um desenganche no 
episódio com o Sr. G., o amigo pelo qual se enamorou. Ela mesma 
o diz: há um antes e depois do Sr. G. A partir daí, nada mais se sus-
tentou em sua vida e um dia disse: vou ver Jacques-Alain :Miller. Seu 
marido a levou a Europa, Miller a escutou e disse que ela deveria 
ficar tranqüila, que já fora longe demais em muitas coisas e que tinha 
de preservar duas: seu marido e a mim. Veio muito desencantada, 
pois esperava que J\liller a tomasse em análise. Ele não a tomou. Sua 
interpretação, o marido e a analista, permite entender que ao menos 
duas pessoas pensam em uma psicose, e que ela se sustenta apenas 
em dois pés. Não há três, são apenas dois pilares e não há nenhuma 
outra coisa possível. Tentei tudo que vocês possam imaginar, desde 
a arte, o turismo, as viagens, interesso-me por cada coisa que traz, 
mas nada dura. Porém, vem regularmente, duas vezes por semana, e 
diz que tinha muita necessidade de vir. E começa a falar de algo sem 
se entender aonde vai e passa a outra coisa ... 
Não foi por um contexto transferencial que ela procurou 
i\1iller, mas por uma pendência que ficara para trás. Ela fala, como 
se fosse ontem, de acontecimentos que ocorreram há vinte anos. O 
45 
tempo ficou detido para ela. Tem a ideia de que, no momento da 
crise de 1998 no Campo Freudiano, deveria ter deixado sua análise 
para continuá-la com 1\1iller; não o fez e isto explicaria tudo que lhe 
aconteceu depois. 
Trago isto como exemplo clínico do que considero ser um 
caso no qual o sentimento mais íntimo da junção da vida para um 
sujeito tem a forma de desenganche do laço social. 
O segundo ponto, dentre os indícios da psicose ordinária 
destacado por 1\filler36, refere-se à ex.~rioridade corporal. Ele indica 
qu~ aqui se verific~<:!._gue diúaLacan;_o corpu..e....oü.ur.r.o. T_!ata-se 
do desCnganche do corpo como Outr~. Para todo sujeito o corpo é 
Outro e é preciso inventar uma maneira de se dar bem com esse 
corpo. A maneira obsessiva é discipliná-lo; a histérica consiste em 
não se dar bem com o corpo que sempre fala à sua maneira. Esta 
exterioridade do corpo é a do caso apresentado por Deffieux: no 
momento em que é golpeado, vê um menino que sai correndo pelo 
campo. O sujeito_ vai embora, fica o corpo e o eu es~~o 
s!= desfaz (::~Q s_uj.eito._s_~ __ vê obrigado a ~~~ntar laços arti~ra 
apropriar-se novamente do corpo. 
"· - Há um caso, que escutei em supervisão, de uma mulher 
obesa que, ao longo dos 14 anos com a analista, usa o mesmo suéter, 
uma capa suja, gasta, enorme. A função deste suéter é desviar o olhar 
para que ela não seja vista como mulher, pois as mulheres são uin 
conjunto ao qual ela não pertence, não porque se considere um 
homem, mas porque as mulheres são essas que aparecem na Tv, que 
exibem tudo - o traseiro, os seios - e a única coisa que fazem é bus-
car homens para transar. Este não é seu mundo,mas é o mundo das 
outras que querem atrair o olhar. Enquanto da, vestindo essa roupa, 
consegue não ser olhada, e assim o gozo fica à distância. O suéter 
constitui uma barreira em relação a um olhar libidinal, pois ela é vista 
como dejeto. No entanto, não se importa em ser olhada como dejeto; 
ao contrário, é o olhar de desejo que a perturba. É uma das formas 
com a qual se arranja para fazer um laço com o corpo, afastando o 
..... 46 
corpo como objeto do desejo. Ela inventa um semblante, o sem-
blante de vestir esse suéter. 
O terceiro ponto é o que :Miller chama de exterioridade sub-
jetiva, que dá conta de todos os fenômenos de vazio, de vacuid~d-~ ~-
de relação perturbada com as ide.ias.. O caso que tenho para transmitir 
é de um paciente meu que vem ver-me há pelo menos dezessete anos, 
de quem não sei nada, absolutamente nada de sua histc'>ria nem do 
c.1ue faz. Apenas sei que tem um problema: ele não pode falar. Há 
dezessete anos me diz: "Oi, como você está?" "Bem, e voct:? Conte-
me." - lhe digo. "l\fas como posso contar se não posso falar." Temos 
este mesmo diálogo há dezessete anos, interrompido apenas se ele 
fala de \X'alter Benjamim, da filosofia, da arte, da música, de <.Jualquer 
coisa, mas é completamente impossível obter uma só palavra na qual 
ele esteja implicado como sujeito. Por exemplo, ele só pode falar sem 
substantivos. Trata-se de um fenômeno de linguagem. Por exemplo: 
"As coisas são difíceis." "Que coisas?" "O mundo". Ou um pouco 
mais: "Todos sabem como o mundo está difícil". "O que é?" I ~m 
algum momento apresentei-o como um caso de autismo. () que 
tenho são coisas escritas por ele, maravilhosas, onde tudo isto desa-
parece. Ele escreve sobre sua vida, anedotas, tudo o que poderia exis-
tir na fala, mas que não está. Creio que é um caso onde a 
exterioridade subjetiva, o vazio, está colocada em primeiro lugar. 
Com isto, concluo este seminário sem ainda avançar sobre 
as consequências teóricas que podemos extrair desse subconjunto 
do conjunto da psicose, que chamamos psicose ordinária, e que se 
caracteriza por tais indícios. Quero trabalhar da próxima vez tais con-
sequências, para retomar a discussão com Rômulo, de que a psicose 
ordinária quando considerada do ponto de vista do seminário O 
sinthoma, desde Joyce, não é uma psicose que captamos em um tempo 
prévio ao desencadeamento. Ao contrário, a psicose ordinária tem 
um modo de enodamento que não implica o desencadeamento. Esta 
é minha ideia, meu delírio pessoal. É uma psicose que não desenca-
deou nem vai desencadear. 
47 
Em um comunicado que circulou pela internet, Rômulo faz 
a seguinte objeção, impossível de responder: "Se, como diz Graciela, 
uma psicose ordinária é uma psicose que não desencadeia, somente 
podemos dizer que é uma psicose ordinária após o sujeito morrer!" 
(risos). É um argumento tão irrefutável... - o que na filosofia seco-
nhece como o argumento do cético. Este é o argumento de Hume 
que diz: efetivamente, pensa-se que amanhã será de dia, mas ninguém 
diz que amanhã voltará a sair o sol. É simplesmente uma questão de 
hábito, mas não há nada que permita afirmar que, porque hoje saiu 
o sol, amanhã sairá novamente. R com esse argumento, que é do cé-
tico, derruba-se o princípio de causalidade. Para Hume, não existe o 
princípio de causalidade senão como metafísica; é apenas hábito. Efe-
tivamente, como saber se não vai desencadear até que se morra? E 
podemos ser extremos: se tivesse vivido um pouco mais ... (risos), se 
o sujeito morre aos 103 anos, como ter certeza que aos 104 anos não 
teria desencadeado (risos)? 
Estamos em um terreno impossível que só permite uma 
elucubração teórica; não permite passar à prática, pois o argumento 
de Rômulo é irrefutável! Vou apresentar meu delírio ao lado desta 
~-
'~objeção fundamental para a hipótese: o que chamamos psicose or-
dinária é uma psicose que consegue uma amarração tão estável como 
a da _ne~!<?§~_.flli!§_§_çm a Nome oo~Ea.i.,.-Cüill.Q esse home_?l ~ªor-
dinário que foi Joyce - para mim, o paradigma da psicose ordinária. 
Mas, se vejo a questão a partir de RSI, é necessária outra perspectiva. 
A teoria dos nós, que Lacan construiu como pôde, fornece duas pers-
pectivas da psicose ordinária, que dependem da função do sinthoma 
e do Nome-do-Pai. l:"ma vez descrito o fenômeno, como o fiz hoje, 
posto o problema, iµiciarei a próxima reunião a partir disto. 
f 
;' .'t:" 
~·, r[Jj' 
t ·Í.~. ;§ 
~- 1"{ J l f 
\ . " .\, " '.J }' f \ (~ i ~ \J t ~ ~ 
' '\: ::' <~ R. 
il }7 " 1 
"-' •J 
48 
Segundo seminário 
São Paulo, 25 de julho de 2009 
NOTAS 
wDeffieux,Jean-Pierre. «Um caso nem tão raro». Os casos mros, inc!assificáceis, da 
clínica psicanalítica: a Conversação de Arcachon. Op. cit., pp. 13-18. 
30 Abreviação para "Nome-do-Pai" ç-.;.d.T). 
31 Miller, J acques-Alain et als. Os casos rarns, inclassificát•eis, da clínica psicanalítica: a 
Conversação de Arcachon. Op. cit., p.171. 
32 Lacan, Jacques. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da 
psicose." csaitos, op. cit., p. 565. 
u ::\Iillcr, Jacques-Alain et ais. La psicosis ordinmia. Buenos Aires: Paidc'>s, 2005, p. 
211. 
34 l\Iiller, Jacques-A..lain. "Effct sur la psychose ordinaire". Q11arto, op. cit., pp. 40-
51. 
·'
5 Ibid., p. 45. 
36 Ibid., p. 46. 
PERSPECTIVAS DO ÚLTIMO ENSINO DE LACAN 
Retomo o ponto inicial deste percurso para que nos orien-
11 ·111os. Eu colocava uma questão de método sobre o modo de entrar 
11.1 investigação. Então, me propus a não sobrepor as novidades do 
1 d I i mo ensino de Lacan aos elementos clássicos, mantendo a ideia 
1 I(' lJUe o último ensino busca resolver problemas não enfrentados 
1
.1111criormente, para os quais os elementos clássicos seriam insufi-
1 it'ntes. Portanto, o ~~timo ensino de Lacan traz novos recursos para 
111 >vos problemas e convém evitar, em termos metodolúglQ.h~ o vício 
1111dectual de que tuc!o já estava dito e agora há uma reformulação 
1 I« > mesmo~-Eu fal~:;; do meu incômodo intelectual, que seri; consi- , 
dct:ar a psicose ordinária como o que em 1953 chamávamos de pré-
! 1sicose. É um modo de dizer que não há nada de novo, que apenas 
mudamos os nomes das coisas: pensando que falamos sempre de 
l'oisas novas, veremos que, se formos atentos, já foi dito anterior-
mente ... Isto é um vício intelectual. 
Isto se faz muito em relação às novidades que :'.\filler aporta. 
( ~raças a um efeito de transferência negativa - presente em todo ensino 
-, sempre haverá alguém que dirá que isso já foi dito por Lacan cm tal 
ano. A ideia de que tudo está escrito anteriormente é, precisamente, o 
que Lacan critica na "Nota italiana", quando fala da suposição da ciên-
cia de que o saber já está aí, à espera de mãos hábeis para desenterrá-
lo. Trata-se, afinal, de uma crítica à própria hipótese do inconsciente 
como um saber que já está, e que seria necessário torná-lo manifesto; 
neste texto, Lac3n_c!iz que o ~abcr 11ãq estiaí_,_ que não há nenhum 
saber depositado à espera para emergir. Isto contra a ideia antropoló-
hrica de Freud e suas metáforas arqueológicas das cidades escondidas, 
como Pompéia, por camadas de pó etc. O inconsciente não é uma 
doutrina das profundidades; inventa-se o saber e nesta invenção ena-
se a suposição de que já estava aí. Assim entendemos o inconsciente 
na psicanálise: o saber se cria ao ~esmo tempo em que se avãn~ 
associação livre. E uma sub:Y..ersão-da-icl.,úa de.saber. _- ·-·----·-·--
Entrei na investigação com esta precaução metodológica, 
proibindo-me do vício intelectual. O passo seguinte seria, então, datar 
53 
e, 1·i11 i1110 ensino de Lacan e procurar o novo problema. Seguindo 
,\li Iler, de o procurou no Seminário 20 com o estabelecimento de um 
rn ivo para<ligma, que se desdobra em dois: por um lado, não há relação 
.r1'.\.'th1i e, por outro, há Um; o que não há, e o

Continue navegando