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Dignidade da pessoa humana na midia artigo

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Dignidade da pessoa humana na mídia e reality shows: previsões constitucionais e direitos da personalidade
Human dignity in the media and reality shows: constitutional provisions and rights of personality
Resumo: Aborda-se a preservação dignidade da pessoa humana na mídia e o fenômeno dos reality shows. A dignidade da pessoa humana é um conceito amplo e indeterminado que desde sua concepção, sofreu transformações e abordagens que dificultam um norte específico e após transformações culturais tão intensas, sofreu prejuízos e corrosão diante de uma sociedade muito mais interessada em consumo e exposição da própria intimidade. Neste sentido os programas de reality shows evidenciam alguns impasses na sociedade contemporânea. De um lado, vivencia-se um alargamento da proteção jurídica conferida aos direitos da personalidade, e, de outro, a consolidação das liberdades artísticas, de imprensa, expressão e comunicação. Não obstante, esses programas evidenciam como as pessoas tem perdido progressivamente a vergonha de exporem ao público fatos íntimos de sua vida, renunciando a prerrogativas intrínsecas à dignidade humana com o fito de obter dinheiro ou alguns momentos de fama. Nesse contexto, os direitos da personalidade, vistos anteriormente como uma proteção do indivíduo contra a incursão indevida nas atividades que dizem respeito tão somente a ele, passam a ser tidos como justificativa para um exercício irrestrito e absoluto da liberdade individual, numa compreensão que não mais se amolda à concepção atual de Estado Democrático de Direito. O problema maior reside no fato de que há uma ausência de sólida proteção jurídica aos direitos que promovem a personalidade, a intimidade e preservação do princípio da dignidade da pessoa humana, ao lado da prevalência do interesse meramente econômico, que converte a liberdade individual em fundamento para a própria banalização do núcleo essencial desses direitos.
Palavras chaves: dignidade de pessoa humana; reality show; direitos da personalidade; estado democrático de direito; liberdade de expressão.
Abstract: Approaches the preservation of human dignity in the media and the phenomenon of reality shows. The dignity of the human person is a broad and undefined concept that since its inception, has been transformed and approaches that hinder a specific north and cultural transformations after so intense, suffered damage and corrosion before a lot more interested in consumer society and exposure own intimacy. In this sense reality TV programs show some impasses in contemporary society. Otherwise, experiences a broadening of the legal protection afforded to the rights of personality, and on the other, the consolidation of artistic freedoms of press, speech and communication. However, these programs show how people have gradually lost the shame of exposing the public intimate facts of his life, renouncing the prerogatives intrinsic to human dignity with the aim of obtaining money or a few moments of fame. In this context, the rights of personality, previously seen as a protection of the individual against the improper incursion in activities that relate solely to him, are now taken as a justification for an unrestricted exercise of individual freedom and absolute, an understanding that no more conforms to the current conception of democratic rule of law. The most problem lies in the fact that there is a lack of solid legal protection of the rights that promote personality, intimacy and preservation of the principle of human dignity, next to the prevalence of purely economic interests, which converts individual freedom in foundation for the very banality of the essential core of these rights.
Keywords: dignity of the human person; reality show; personality rights; democratic state of law; freedom speech.
1. Introdução:
A comunicação, no atual contexto histórico, sofreu grandes transformações com o advento da internet e todas suas convergências com os sistemas comunicacionais já existentes como o rádio, a televisão, etc. O entretenimento, o consumo e a imagem também sofreram modificações diante desta chamada “sociedade do espetáculo” promovendo importantes significações para a formação da chamada “opinião pública”. 
As instituições democráticas, como garantidoras da preservação da dignidade de pessoa humana, necessitam de novas políticas para a interpretação desta realidade informacional que tem no uso da imagem e expressão humanas seu principal objeto.
A dignidade da pessoa humana é um conceito amplo e indeterminado que desde sua concepção, sofreu transformações e abordagens que dificultam um norte específico e após transformações culturais tão intensas, sofreu prejuízos e corrosão diante de uma sociedade muito mais interessada em consumo e exposição da própria intimidade.
Colisão de direitos frente a liberdades possibilitadas por novos instrumentos tecnológicos e programas midiáticos de caráter duvidoso são os desafios que se apresentam como objeto desta pesquisa que se voltará para perspectivas constitucionais frente a preservação dos direitos da personalidade.
1.1 Raízes histórico-filosóficas e jurídicas do conceito de dignidade da pessoa humana
A ideia do valor intrínseco e distintivo da pessoa humana tem raízes no pensamento clássico e no ideário cristão, porém não parece correto reivindicar apenas para a religião cristã a exclusividade e originalidade quanto à elaboração de uma concepção de dignidade humana.
Na China, por volta do século IV a.C, o sábio confucionista Meng Zi afirmava que cada homem nasce com uma dignidade que lhe é própria, atribuída por Deus e indisponível para o ser humano e os governantes. No pensamento clássico ocidental o conceito não fica adstrito apenas ao mundo clássico greco-romano, pois na Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, podemos encontrar referências no sentido de que o ser humano foi criado a imagem e semelhança de Deus, premissa da qual o cristianismo extraiu a consequência de que o ser humano, e não apenas os cristãos, é dotado de um valor próprio e que lhe intrínseco. [1: SARLET, Ingo Wolfgang in Dignidade da Pessoa Humana. BARRETO, Vicente de Paulo coordenador Dicionário de Filosofia do Direito.. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 212.]
No pensamento filosófico e político da Antiguidade clássica, verifica-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana relacionava-se com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, daí se falar em um quantificação e modulação da dignidade, admitindo-se neste sentido a existência de pessoas mais dignas ou menos dignas.[2: SARLET, Ingo Wolfgang in Dignidade da Pessoa Humana. BARRETO, Vicente de Paulo coordenador Dicionário de Filosofia do Direito.. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 212. ]
No pensamento estóico, a dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção que se encontra por sua vez, intimamente ligada à noção de liberdade pessoal de cada indivíduo (o homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem como a ideia de que todos os seres humanos, no que diz respeito à sua natureza, são iguais em dignidade.[3: ibid. ]
Na Roma Antiga, a partir das formulações de Cícero, desenvolveu-se uma compreensão da dignidade desvinculada do cargo ou posição social, ou seja, surgia um sentido moral, em respeito as virtudes pessoais do mérito, integridade, lealdade, e também, sociopolítico de dignidade, considerada aqui no sentido da posição social e política ocupada pelo indivíduo. Cícero conferiu um sentido mais amplo à dignidade da pessoa humana e na posição superior ocupada pelo indivíduo no universo, sustentando, entre outros aspectos, que é a natureza que prescreve ao homem a obrigação de levar em conta os interesses dos semelhantes, pelo simples fato de serem também humanos, razão pela qual todos estão sujeitos as mesmas leis que regem anatureza e que proíbem que uns prejudiquem aos outros, estava aí a questão da “ordem cósmica” retirada da filosofia aristotélica. [4: SARLET, Ingo Wolfgang in Dignidade da Pessoa Humana. BARRETO, Vicente de Paulo coordenador Dicionário de Filosofia do Direito.. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 213.]
No medievo, Tomás de Aquino retoma os conceitos estóicos e une aos conceitos de inspiração cristã de dignidade fundada na circunstância do ser humano ser a imagem e semelhança de Deus. Afirmava que a dignidade também reside na capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana, uma vez que o ser humano nasce livre por natureza e tal existe em função da sua própria vontade (livre arbítrio). 
Já no Período Renascentista o destaque fica para Giovanni Pico della Mirandola ao afirmar a ideia de grandeza e superioridade do homem em relação aos demais seres, capacidade que foi conferida por Deus. Afirmava, ainda, que ao homem foi outorgada uma natureza indefinida para que fosse seu próprio árbitro, soberano e artífice, dotado da capacidade de ser e obter aquilo que ele próprio quer e deseja.[5: ibid. ]
No âmbito do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana, assim como a idéia do direito natural em si, passou por um processo de racionalização e secularização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade. Samuel Pufendorf afirmava que o monarca deveria respeitar a dignidade da pessoa humana, considerada esta como a liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razão e agir conforme o seu entendimento e sua opção.[6: SARLET, Ingo Wolfgang in Dignidade da Pessoa Humana. BARRETO, Vicente de Paulo coordenador Dicionário de Filosofia do Direito.. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 212. ]
Mas foi por Immanuel Kant que o conceito de dignidade da pessoa humana entrou num momento particularmente significativo. Kant afirma que a concepção de dignidade parte da autonomia ética do ser humano, e sustenta que o ser humano (o individuo) não pode ser tratado – nem por ele próprio – como objeto. Kant racionaliza o conceito de dignidade e a faz despir-se de suas vestes sacrais.[7: ibid. p. 213.]
Kant concentra seu interesse numa questão prática “Que devo fazer?”. Trata-se de refletir quais os princípios a priori pelos quais o ser humano deve conduzir a sua ação. Seu questionamento quanto à razão, não esta no uso teórico onde ele encontra a grandeza do homem, mas no seu uso prático.[8: WEYNE, Bruno Cunha. O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de Kant. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 83]
Construindo sua concepção a partir da natureza racional do ser humano, Kant assinala que a autonomia da vontade, entendida como faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, construindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana.
A dignidade humana não concerne ao saber ou à ciência e, portanto, não reside simplesmente no domínio sobre a natureza, como muitos modernos sustentaram; antes a dignidade do ser humano reside precisamente na sua razão prática, isto é, na sua capacidade moral de se autodeterminar livremente, de apenas se submeter às leis que a sua própria razão estabelece como legisladora universal. E é por ser sujeito da razão que o ser humano tem dignidade, um valor íntimo, superior a todas as coisas, que tem somente um preço e, portanto, um valor relativo e por isso ele é também o único dos seres que existe não como simples meio para o uso arbitrário da vontade, mas como fim em si mesmo que limita todo o arbítrio pelo respeito que infunde em sua humanidade. [9: WEYNE, Bruno Cunha. O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de Kant. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 84.]
Afirma Immanuel Kant:
(...) o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim...Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja a existência depende, não em verdade, da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meio e por isso chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).[10: KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003, p. 134.]
Uma das maiores dificuldades no uso do conceito de dignidade da pessoa humana reside na sua ambiguidade e porosidade, pois diversamente do que ocorre com as demais normas jus fundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade etc.), mas, sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade, pelo menos na sua condição jurídico-normativa.[11: SARLET, Ingo Wolfgang in Dignidade da Pessoa Humana. BARRETO, Vicente de Paulo coordenador Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 217.]
Mas é pelas instituições jurídicas de poder, como o Judiciário, que o conceito acaba por se definindo como jurídico e seus contornos são traçados nos casos em concreto. Sarlet chama atenção para a dimensão ontológica (a que reside na natureza do ser) e não apenas biológica da dignidade:
A dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogita na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe concedida como qualidade integrante e, em princípio, irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que existe em cada ser humano como algo que lhe inerente. Não se pode olvidar que a dignidade independe das circunstancias concretas, já que é inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em princípio todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna nas relações com seus semelhantes.[12: SARLET, Ingo Wolfgang in Dignidade da Pessoa Humana. BARRETO, Vicente de Paulo coordenador Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 218.]
O elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa humana continua sendo reconduzido primordialmente à matriz kantiana, centrando-se na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (de cada pessoa).
Mas o conceito de dignidade encontra-se não de forma fixa e estática no momento histórico-cultural, os limites estão continuamente em construção e desenvolvimento e é nestas searas que as instituições democráticas e para que não dizer, a própria sociedade no contexto muito amplo, acabam formando suas bases para considerar o que se deve considerar como algo “digno e humano”. 
Nos termos do entendimento formado pelo Tribunal Constitucional de Portugal, no âmbito do Acórdão nº 90.105-2 de 29 de março de 1990:
A ideia de dignidade da pessoa humana, no seu conteúdoconcreto – nas exigências ou corolários em que se desmultiplica – não é algo puramente apriorístico, mas que necessariamente tem de concretizar-se histórico-culturamente (Acórdão 90.105-2).
Destaca-se a dimensão dúplice da dignidade, na ideia de autodeterminação no (que diz respeito às decisões essenciais como relação à própria existência), bem como a necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo – e principalmente – quando ausente a capacidade de autodeterminação. Ainda, no que diz respeito à tentativa de clarificação do sentido da dignidade da pessoa humana, importa considerar que apenas a dignidade determinada (ou de determinadas) pessoa(s) é passível de ser desrespeitadas, inexistindo atentados contra a pessoa em abstrato. A dignidade constitui atributo da pessoa humana individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, razão pela qual não se deverá confundir as noções de dignidade da pessoa e de dignidade humana, quando esta for referida à humanidade como um todo. [13: ibid.]
Para Jürgen Habermas a dignidade da pessoa, numa acepção rigorosamente moral e jurídica, encontra-se vinculada à simetria das relações humanas, de tal sorte que a sua intangibilidade resulta justamente das relações interpessoais marcadas pela recíproca consideração e respeito, de tal sorte que apenas no âmbito do espaço público da comunidade da linguagem o ser natural se torna indivíduo e pessoa dotada de racionalidade. Nessa linha de entendimento, parece situar-se o pensamento de Ronald Dworkin que, ao sustentar a existência de um direito das pessoas de não serem tratadas de forma indigna, refere que qualquer sociedade civilizada tem seus próprios padrões e convenções a respeito do que constitui essa indignidade, critérios que variam conforme o local e a época. [14: SARLET, Ingo Wolfgang in Dignidade da Pessoa Humana. BARRETO, Vicente de Paulo coordenador Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 222.][15: DWORKIN, Ronald. El domínio de la vida: Uma discusíon acerca del aborto, la eutanásia y la liberdad individual. Barcelona: Ariel, 1998. p. 305.]
1.2 Dignidade da pessoa humana e liberdade de expressão-informação na mídia
Destaca-se na atualidade o desenvolvimento tecnológico alcançado e o consequente o acesso à informação. Após o advento da internet, a qual permite transmissões em tempo real e com amplitude de alcance, ficou cada vez mais fácil para a população tomar conhecimento do que está acontecendo do outro lado do mundo em questão de segundos. Combinado a isso, a maior parte dos países constituídos na forma de Estados Democráticos de Direito detêm em seus ordenamentos jurídicos a liberdade de expressão como um direito fundamental. A dignidade de pessoa humana é o fundamento de muitas democracias, alias é o fundamento do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, nos termos da Constituição Federal de 1988 em seu inciso III do art. 1º. Porém deve haver um equilíbrio na interpretação dos fundamentos acima exemplificados. 
Nas palavras de Gilmar Mendes: 
Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes. Há o desrespeito ao princípio, quando a pessoa é tratada como objeto, como meio para a satisfação de algum interesse imediato. O ser humano não pode ser exposto – máxime contra a sua vontade – à mera curiosidade de terceiros, para satisfazer instintos primários, nem pode ser apresentado como instrumento de divertimento alheio, com vistas a preencher o tempo de ócio de certo público. Em casos assim, não haverá exercício legítimo da liberdade de expressão.[16: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martins; et al. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 450.]
Nesse sentido, conforme apresentado anteriormente, o Brasil é um Estado que possui em sua Lei Maior, diversos direitos e garantias fundamentais, dentre os quais a liberdade de expressão, que “é condição necessária ao pleno desenvolvimento da natureza humana assim como à integridade e dignidade do indivíduo”.[17:  MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: RT, 2009. p. 27.]
Samanta Ribeiro Meyer-Pflug define liberdade de expressão como sendo a exteriorização do pensamento, ideias, opinião, convicções, bem como de sensações e sentimentos em suas mais variadas formas, quais sejam, as atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação. Continua, a mesma autora ainda, afirmando que no direito de cada indivíduo pensar e abraçar as ideias que lhe aprouver sem sofrer qualquer restrição ou retaliação por parte do Estado. O homem é livre para pensar e manifestar seus pensamentos.[18:  ibidem. p. 66.][19: ibidem. p. 67.]
 Entretanto, esse conceito se refere à liberdade de expressão sob um aspecto amplo. Por isso, visando fazer uma análise ao enfoque aqui pretendido, toma-se como referência maior de estudos o direito à informação, contido no inciso XIV, do art. 5º, da CF/88, e a liberdade de imprensa, expressa no Art. 220 da Lei Maior. Nestes termos:
Art. 5º
[...]
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
[...]
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
 Sob esse prisma, Samantha Ribeiro Meyer-Pflug leciona que a liberdade de informação consiste no direito que o indivíduo possui de ter acesso a notícias e dados sem quaisquer restrições por parte do poder público ou da sociedade.[20: MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: RT, 2009. p. 42.]
Por outo lado, no tocante à liberdade de imprensa, a autora alerta para a importância desse direito para a preservação de um Estado democrático, devido a sua contribuição significativa ao fomentar o debate público e a discussão de ideias.Assim, visando garantir essa cooperação é que o § 1º do art. 220 da CF/88 preceitua:[21: MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: RT, 2009. p. 49.]
Art. 220 omissis
§1º. Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
No entanto, essa liberdade não pode ser considerada como absoluta, da mesma forma que os demais direitos fundamentais. Por isso que na própria CF/88 encontram-se limites às liberdades de expressão, dispostos nos incisos do art. 5º citados ao final do § 1º do art. 220 acima. Logo, o uso e gozo desse direito deverá respeitar o não anonimato (IV); ser assegurado o direito de resposta além de indenização por danos (V); a inviolabilidade da honra, imagem, vida privada e intimidade (X); os requisitos para o exercício de profissão (XIII); e o direito ao sigilo da fonte (XIV).[22: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martins. et al. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 458.]
A limitação que a Constituição faz ao impor restrições à liberdade de expressão com respeito à honra, à imagem, à vida privada e à intimidade, encontra amparo, de acordo com o STF, no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Nestes termos:
O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito a incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.[23: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual penal. Habeas-Corpus. Constrangimento Ilegal. Habeas Corpus nº 82.424/RS de 17 de agosto de 2003. Disponívelem ˂www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2052452˃. Acesso em: 16 out. 2014.]
 Nessa mesma linha, Gilmar Mendes ensina que o respeito à dignidade pessoal e também o respeito aos valores da família são erigidos à condição de limite da liberdade de programação de rádios e da televisão. [24: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martins; et al. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 450.]
Nas palavras de Noemi Mendes Siqueira Ferrigolo:
O homem, como ser racional, existe como um fim em si mesmo e não simplesmente como meio, ou instrumento cujo valor é relativo e condicionado ao seu contexto, motivo por que a racionalidade diferencia a pessoa humana de outros seres vivos. Ademais, o que existe como meio tem valor relativo, tem preço de mercado que pode ser negociado. O que existe como fim tem um valor interno, é inegociável, não tem preço, é dignidade.[25: FERRIGOLO, Noemi Mendes Siqueira. Liberdade de Expressão: direito na sociedade da informação: mídia, globalização e regulação. São Paulo: Editora Pilares, 2005. p. 27. ]
A dignidade só é devidamente cogitável quando há a consideração do “outro”, a comunicação de massa é ou pode vir a ser veículo de corrosão continua desta dignidade. Ser digno, ter vida com dignidade, é respeitar-se a si mesmo, respeitar o outro e se fazer respeitar. O homem é um ser aberto que tem por natureza a vida social e a comunhão. A comunicação e seus fenômenos como a mídia, impressa ou eletrônica e ainda na atualidade, mídia de convergência, surgiram com o uso aperfeiçoado da tecnologia. Porém sua necessidade de comunicação é algo inerente e diz respeito a sua natureza social. [26: MARITAIN, Jacques. Les droits des’Homme et les Loi Naturelle. New York: Ind. 610, 1942. p.18 apud FERRIGOLO, Noemi Mendes Siqueira. Liberdade de Expressão: direito na sociedade da informação: mídia, globalização e regulação. São Paulo: Editora Pilares, 2005. p. 56]
A opinião pública surge desta comunicação estabelecida de forma coletiva e resultado das diversas opiniões existentes no público em continuo processo de formação e em direção a um consenso completo, sem nunca alcançá-lo. O indivíduo na coletividade não perde seu poder de crítica, age racionalmente através de sua opinião, mas dispõe-se a fazer concessões e compartilhar de experiência alheia. No atual contexto, a humanidade tem como seu alicerce a opinião pública cuja importância é de tal ordem que, dependendo de ampla e democrática comunicação, pode determinar a paz do mundo.[27: FERRIGOLO, Noemi Mendes Siqueira. Liberdade de Expressão: direito na sociedade da informação: mídia, globalização e regulação. São Paulo: Editora Pilares, 2005 p. 59.][28: ibidem. p. 60.]
Porém, há muito, autores como Guy Debord já atentaram para a corrosão na qualidade dos conteúdos produzidos nos meios de comunicação e toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção e tal se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se representação. Na opinião do autor francês, a teatralidade e a representação tomaram totalmente a sociedade. Para ele o natural e o autêntico se tornaram ilusão. O conceito de espetáculo adotado por Guy Debord é que este não se trata de um conjunto de imagens, mas sim de uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens. Salienta, ainda, que o desaparecimento da opinião pública na sociedade do espetáculo traz importantes consequências para a política, para as ciências aplicadas, para a justiça e para o conhecimento artístico. Comenta que o espetáculo organiza com habilidade a ignorância do público, a qual foi gerada por ele mesmo, e logo em seguida proporciona o esquecimento de tudo o que conseguiu ser conhecido. Afirma ainda que o discurso espetacular faz calar vozes que não lhe convêm, e só faz vir ao público um discurso descontextualizado, sem história.[29: DEBORD, Guy. A sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 13][30: ibidem. p. 14.][31: NEGRINI, Michele; AUGUSTI, Alexandre Rossato. O legado de Guy Debord: reflexões sobre o espetáculo a partir de sua obra. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/negrini-augusti-2013-legado-guy-debord.pdf.]
Nas palavras de Noemi Mendes Siqueira Ferrigolo:
A opinião pública é quem governa o mundo, é uma potência indivisível, vaga e móvel, mas forte, verdadeira e caprichosa, é árbitro, uma consciência, poderíamos mesmo dizer que é um tribunal certamente destituído de poder jurídico, mas um tribunal temido.[32: FERRIGOLO, Noemi Mendes Siqueira. Liberdade de Expressão: direito na sociedade da informação: mídia, globalização e regulação. São Paulo: Editora Pilares, 2005 p. 61.]
Os meios de comunicação desempenham uma função determinante para a politização da opinião pública. A imprensa é capaz de exercer um controle crítico sobre os poderes legislativo, executivo e judiciário. O problema que interessa ao direito, e sobretudo, sobre a chamada garantia da preservação da dignidade de pessoa humana é a classificação dos meios de comunicação não somente para a formação da opinião pública, mas também a capacidade de influenciar a capacidade de conduzir ideias, gostos, costumes e a cultura de alguns, ou da sociedade na sua complexidade.[33: FERRIGOLO, Noemi Mendes Siqueira. Liberdade de Expressão: direito na sociedade da informação: mídia, globalização e regulação. São Paulo: Editora Pilares, 2005. p. 63.][34: FERRIGOLO, Noemi Mendes Siqueira. Liberdade de Expressão: direito na sociedade da informação: mídia, globalização e regulação. São Paulo: Editora Pilares, 2005. p. 66.]
Para Noemi Mendes Siqueira Ferrigolo:
O modo como o destinatário usa a mensagem, salvo raros casos, é de difícil controle, uma vez que a mídia transmite mensagens que o receptor recebe com códigos que nascem e dependem da situação social em que vive, da educação recebida e das disposições psicológicas do momento. Dessa forma infere-se que, a defesa da dignidade, em plena era da informação, não depende apenas do emissor, dos meios através dos quais as mensagens são transmitidas. Estão afetos também a que a recebe, como a recebe, da formação cultural, da consciência e da capacidade de discernimento que possui. Em síntese, os meios de comunicação são uma força quase incontrolável na sociedade. Depende de quem a recebe a mensagem, do poder econômico e das leis do mercado a que estão subordinados. Os veículos de comunicação de massa dessa forma, tem poder de destruir ou construir mitos e atribuir valores, interferindo na consciência do indivíduo, embotando, por conseguinte, o exercício da cidadania.[35: Ibidem. p. 70.]
1.3 Liberdade de comunicação e censura prévia
A censura nos registros históricos sempre existiu. Em Roma, o censor era responsável por cobrar os impostos dos considerados “cidadãos”, indivíduos estes que participavam da vida política romana. O censor decidia do ponto de vista moral quem participava dos valores comuns daquela comunidade. Porém, a questão da censura é atualmente pensada na esfera da proibição estatal, quanto ao fluxo das mídias e o que poderá ser divulgado pelos meios de comunicação. A censura pode incidir sobre cada um dos elementos que compõem o processo de comunicação: na emissão da mensagem, na recepção da mensagem, a mensagem em si mesma, o código empregado, no canal ou médium, no contexto.[36: SILVA, Paulo Thadeu Gomes da. Sistema Constitucional das liberdades e das igualdades. São Paulo: Atlas, 2012. p. 51. ][37: ibidem. p. 52.]
Nas palavras de Paulo Thadeu Gomes da Silva: 
Numa ordem democrática, que é a que na qual se insere no sistema constitucional das liberdades do Brasil, cogita-se, intuitivamente, da existência de uma instância que proteja e promova os direitos fundamentais, não que os viole. Assim é que não há campo para que o conceito de censura prévia, naquilo que tem em sua essência mesmo um conteúdo de proibição, i.e, a palavra “censura”, em si mesma considerada, permite que se infira umato proibitivo de seu significado, no sistema constitucional das liberdades, e de outro lado, a ideia de controle da ameaça de lesão a direito não permite que se conclua, só pela leitura da expressão, que o controle será proibitivo da manifestação da ameaça de lesão a direito, pois controlada será apenas a ameaça de lesão, que bem pode ser rechaçada por decisão obtida em processo aberto de exposição de ideias.[38: SILVA, Paulo Thadeu Gomes da. Sistema Constitucional das liberdades e das igualdades. São Paulo: Atlas, 2012. p. 54. ]
A censura prévia, compreendida como o poder estatal de previamente estabelecer o que poderá ser veiculado na mídia, sem direito de defesa é algo banido do sistema constitucional pátrio, salvo melhor juízo, pois é o que dispõe dos artigos 5º, incisos IV e IX, e 220, caput e §§ 1º e 2º. Ao mesmo tempo em que bane a censura, a Constituição Federal prevê, em seu artigo 220, § 3º, incisos I e II:
§ 3º - Compete à lei federal:
I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;
II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
O dispositivo constitucional não significa censura, mas permite a participação da sociedade para estabelecer critérios classificatórios com o objetivo de se defender de programação ou mídia considerada abusiva e atentatória ao principio da dignidade da pessoa humana. Cabe às instituições democráticas garantir por meio dos mecanismos de representação ou ainda pelo poder jurisdicional, assegurar o desempenho positivo da comunicação voltada a trazer conhecimento no melhor sentido do termo, sem cercear o sistema constitucional das liberdades e das igualdades.
2. Direito a Intimidade e os Reality Shows
Nunca a conhecida frase atribuída a Andy Warhol foi tão verdadeira. Parece que o mundo todo busca, hoje, a celebridade instantânea, seus quinze minutos de fama, nem que para isso tenha que fazer as coisas mais loucas. Os programas televisivos conhecidos como reality show são um bom exemplo dessa busca desesperada por “aparecer”, criando e alimentando, em contrapartida, o voyeurismo televisivo, a invasão oficial e permitida – para não dizer incentivada – à intimidade alheia. E é nesse ponto que surge questão interessante: será que esses programas constituem em si lesão a direito da personalidade, já que a pessoa expõe sua intimidade? 
É válido o contrato celebrado entre o participante e a emissora, em que o primeiro renuncia a eventual direito de indenização em decorrência de edição de imagens?
Segundo o professor Miguel Reale, a pessoa “é o valor-fonte de todos os valores, sendo o principal fundamento do ordenamento jurídico” e, dentro dessa ótica, os direitos da personalidade podem ser definidos como os poderes que a pessoa exerce sobre si mesma, tendo como objeto do direito a própria pessoa, seus atributos físicos e morais. Por serem intrínsecos à pessoa, os direitos da personalidade possuem como características a irrenunciabilidade, a inalienabilidade e a imprescritibilidade, seja qual for a vontade de seu titular, integrando o patrimônio da pessoa de modo absoluto – vez que são oponíveis erga omnes – e necessário – pois, se não existissem os direitos da personalidade, a própria pessoa não existiria como tal.
Mesmo antes de 2002, quando o Código Civil ainda não contemplava a tutela aos direitos da personalidade, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III, já elevara a dignidade humana ao centro do sistema jurídico, tutelando, de forma enfática, os direitos e garantias individuais. Tal proteção, após 2002, firmou-se ainda mais, pois os direitos da personalidade passaram a ser tutelados também no Código Civil, em seu Livro I, Capítulo II, artigos 11 a 20.
Dentro desse contexto, entendemos que os reality shows, ao exporem a imagem e a intimidade do participante, não constituem em si uma lesão a direito da personalidade, pois, da leitura do artigo 20 do Código Civil, se depreende que é possível a pessoa autorizar a utilização de sua imagem.
No caso do programa, o participante está plenamente ciente que seus atos serão registrados, o que, a princípio, não permite que ele alegue violação da intimidade ou privacidade, sendo importante frisar, entretanto, que não cabe limitação permanente e geral de direito da personalidade, conforme reconhece o enunciado nº 4 aprovado na I Jornada CJF (Conselho da Justiça Federal), o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral.
Dentro dessa linha de raciocínio, não é válido o contrato celebrado entre o participante do reality show e a emissora de televisão, em que aquele renuncia a eventual direito de indenização em decorrência da edição de imagem, pois o artigo 11 do Código Civil é bem claro ao estabelecer que os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. Assim, se a imagem do participante for utilizada com finalidade diversa ou de forma a acarretar injustificado dano à dignidade humana, pensamos ser possível que ele busque reparação por eventuais danos materiais e/ou morais. Caberá, nesse caso, ao juiz avaliar as circunstâncias do caso concreto, lembrando que, diante da culpa concorrente da própria vítima, o valor da indenização deve ser reduzido, conforme dispõem os artigos 944 e 945 do Código Civil.
A indenização é um instrumento para reparar o dano causado pelo desrespeito aos direitos da personalidade. Assim, pode a vítima deixar de exigir indenização, o que não implica renúncia ou alienação de seu direito personalíssimo, pois tal indenização não é uma contraprestação e, sim, uma reparação de um dano, reparação esta que a vítima, em determinada situação, pode considerar desnecessária ou ineficaz para sua finalidade e dela dispor livremente.
2.1 Os Direitos da Personalidade 
Os direitos da personalidade, na lição de Pablo Stolze e Pamplona Filho (2011, p. 179) são “aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais”. A ideia central desses direitos gira em torno do dever do Estado em tutelar uma série indeterminada de valores essenciais à pessoa humana e que não podem ser reduzidos pecuniariamente, ou seja, dotados de caráter extrapatrimonial, tais como a vida, a privacidade, a intimidade, a integridade física e a honra.[39: GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 179.]
Cabe ressaltar que a personalidade não é um direito, mas consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa humana, de forma que serve de apoio aos diretos e deveres dela decorrentes.[40: DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 120]
 O surgimento da proteção aos direitos da personalidade é relativamente recente na história da humanidade, ganhando destaque a partir do século XX, em razão das atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial, momento em que surgiu a necessidade de serem criados mecanismos que pudessem coibir a repetição desses horrores.
 Falar em direitos da personalidade sem se referir aos direitos humanos é praticamente impossível, já que seu objeto é símile. Todavia, a doutrina nos ajudar a diferençá-los no sentido de que os direitos humanos comumente se referem a garantias do indivíduo frente ao poder estatal, e os direitos da personalidade às relações travadas no âmbito privado.[41: BERTI, Silma Mendes. Direitos da Personalidade. Âmbito Jurídico, Rio Grande, 39, 31/03/2007. p.01.]
3. O reality show como devassada intimidade
É indiscutível que a reality TV é uma febre na televisão brasileira e o formato associado a ela é o reality show. Este chegou ao Brasil em 1992, quando a emissora MTV Brasil apresentou um programa de nome “Na real”. Entretanto, foi em 2000 que a modalidade tomou grandes proporções na televisão brasileira, com o surgimento do programa Global “No Limite”, inspirado no reality norte americano “Survivor”. Quanto a isso, Hillesheim e Melo (2010) argumentam que o termo reality show sugere um novo modelo televisivo. Dessa forma, a vida real se transforma em espetáculo e o que outrora era privado torna-se agora público e propenso a todos os julgamentos e olhares. 
Os protagonistas dessa história são pessoas comuns que abdicam de seus direitos fundamentais por uma promoção de si mesmos e uma premiação em dinheiro. E este é o segredo do sucesso desse gênero televisivo e por serem os personagens pessoas reais, cujas vidas vão além das fronteiras da série, os espectadores são levados a sentir que há muito mais coisas que poderiam saber sobre eles. 
No palco contemporâneo, o espetáculo em cartaz é a vida. Os ingressos na bilheteria dão direito a entrar na intimidade dos atores, formar alteridades e idealizar heróis, mas a plateia não está satisfeita e quer ela mesma encenar o espetáculo. E na esquizofrenia de ser ao mesmo tempo personagem e espectadora, ela tenta ler o letreiro em néon que anuncia o título da obra: realidade.
Logo, a espetacularização da mídia rouba a atenção dos telespectadores e toma o lugar das tradicionais formas de entretenimento. A partir disso, podemos definir o fenômeno reality show como sendo um tipo de programa televisivo baseado na vida real. Ou seja, se trata de um reality show sempre que os acontecimentos nele retratados forem fruto da realidade e os visados da história forem pessoas do cotidiano e não personagens de um enredo ficcional. No entanto, para apesar da suposta realidade, os personagens dos realities shows têm que interpretar papéis pré-definidos pela produção. Isto é, eles não são eles próprios, apenas interpretam a si mesmos, o que é bem diferente. O mocinho, a carente, o malvado, o ignorante, a sensual, o arrogante, a mal-educada, o inteligente e outras tantas caracterizações carregam o enredo da trama, sustentando conflitos e gerando identificações por parte do público. Identificações essas que podem seguir roteiros mimetizados da ficção: a vida imitando a arte.
3.1 Problemáticas
Entretanto, apesar de consolidados em nosso ordenamento jurídico, nunca tais direitos foram tão violados. É que a evolução tecnológica, na mesma medida em que abre diversas perspectivas de desenvolvimento, possibilita diversas formas de ingerências na vida dos indivíduos, a exemplo das gravações audiovisuais e fotográficas não autorizadas decorrentes da atuação sem pudores dos paparrazi, dos abusos cometidos pela imprensa televisiva e, sobremaneira, via Internet, a qual é considerada por muitos um terreno sem lei, fértil para violação de direitos como a imagem, a honra e a vida privada.
Segundo Diogo Leite de Campos, outro problema verificado atualmente é que os direitos da personalidade parecem ter tido sua natureza adulterada, pois, de instrumentos de defesa do ser humano contra a onipotência do soberano e contra a agressão dos outros, estão sendo transformados em expressão da onipotência do indivíduo, de sua soberania absoluta sobre o eu e os outros.[42: CAMPOS, Diogo Leite apud BERTI, Silma Mendes. Direitos da Personalidade. Âmbito Jurídico, Rio Grande, 39, 31/03/2007. p.01.]
Observa-se que a evocação exagerada do princípio da dignidade da pessoa humana tem desvirtuado seu relevo e eficácia jurídica, ocasionado sua banalização. 
Nos dizeres da professora Silma Berti, o princípio da dignidade da pessoa humana está sendo utilizado:
(...) como verdadeira arma de argumentação por pessoas totalmente descomprometidas com sua verdadeira afirmação e proteção. Muitos são os que invocam tal princípio para justificar, por exemplo, a suposta liberdade ilimitada de se fazer o que quiser com seu corpo, com sua vida, sua intimidade.[43: CAMPOS, Diogo Leite apud BERTI, Silma Mendes. Direitos da Personalidade. Âmbito Jurídico, Rio Grande, 39, 31/03/2007. p. 02.]
Nesse contexto, insere-se a problemática da autolimitação de direitos da personalidade verificada nos reality shows, em que a permissão para ser filmado em todo e qualquer ato da vida privada é invocada para eximir a emissora da responsabilidade civil por veiculação de conteúdos vexatórios, assim como para transgredir a irrenunciabilidade desses direitos.
Visando aclarar a problemática em comento, teceremos breves considerações acerca dos direitos da personalidade mais pertinentes a sua solução, a saber: a intimidade e a vida privada ou privacidade.
4. AUTOLIMITAÇÃO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE E OS REALITY SHOWS
Diante do aludido contexto, é indagado se seria permitido ao cidadão, por meio de contrato particular, renunciar a tais direitos, assunto sobre o qual têm se debruçado algumas correntes que invocam os mais diversos argumentos para defender ou atacar esse tipo de programa. Uma análise superficial acerca da possibilidade de renúncia a direitos fundamentais pode levar à conclusão equivocada de que a limitação voluntária desses direitos é aceitável em quaisquer hipóteses.
Com efeito, existem permissivos constitucionais que, em determinadas situações, autorizam expressamente a limitação voluntária – como aquele que viabiliza a doação de órgãos – e, em outras, atribuem à legislação infraconstitucional a previsão dessas hipóteses, a qual deverá resguardar a área de proteção do direito, assim como observar os demais dispositivos do texto magno.
Nesse sentido, seria possível, em tese, alegar a inconstitucionalidade dos contratos firmados entre as emissoras e os participantes de reality shows, em razão da inexistência de permissivo constitucional. Tal raciocínio poderia servir de lastro para que ações de indenização por danos morais eventualmente impetradas pelos participantes após o término do programa fossem julgadas procedentes. 
Alguns defendem, entretanto, que essa conclusão não parece aceitável, haja vista que os próprios participantes aceitam, de forma voluntária, os termos do contrato. Converge para tanto o pensamento do doutrinador Canotilho, que admite haver a possibilidade de autolimitação de um direito fundamental diante de um caso concreto, afastada a renúncia absoluta (geral). De acordo com o autor português, a Constituição vedaria apenas a limitação absoluta e perene de direitos fundamentais, o que não ocorre nos reality shows, pois a constrição à intimidade e à vida privada seria tão só temporária. Esse contrato estaria permanentemente, pois, sob reserva de revogação, podendo ser cancelada de modo unilateral a qualquer tempo. [44: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Reality Shows” e Liberdade de Programação. Portugal: Coimbra, 2003. p. 56-57.][45: ibidem.]
Andou nesse sentido os enunciados 4 e 139, respectivamente, da I e IV Jornada de Direito Civil, que estabeleceram que:
Enunciado 4: O exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral.
Enunciado 139: Os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercido com abuso de direito do seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes.
Por fim o autor português explica seu pensamento no trecho que segue:
Do ponto de vista jurídico-constitucional, uma pessoa que decide tornar públicos comportamentos geralmente protegidos pela reserva de intimidade da vida privada não está, por esse motivo, a renunciar desse direito, mas sim a exercê-lo autonomamente de acordo com suas próprias preferências. O direito à intimidade é compatível com diferentes modos de utilização. [...] É que, numa sociedade composta por milhões de indivíduos portadores das mais diversas, incomensuráveis e antagônicas concepçõesmundividenciais e valorativas, e frequentemente portadores de interesses e objetivos completamente diferentes, é impossível e indesejável impor a todos eles uma determinada concepção de privacidade e muito menos transformar unidimensionalmente o direito à privacidade num dever de privacidade.[46: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Reality Shows” e Liberdade de Programação. Portugal: Coimbra, 2003. p. 56-57.]
O doutrinador evidencia, dessa forma, que além do caráter temporário da renúncia, a razão de ser dos direitos envolvidos poderia legitimar a exposição de imagens consideradas, a priori, íntimas, visto que o titular não se importaria com sua divulgação.
4.1 A dignidade humana como limite
À guisa de conclusão, é importante ressaltar que apesar da dificuldades inerentes ao estabelecimento de limites aos programas de reality show, a dignidade da pessoa humana, núcleo gerador de direitos irrenunciável pela humanidade, pode constituir uma baliza a tais programas. É o que defende Silma Mendes Berti, no texto a seguir:
São casos que nos convidam à reflexão (...) cumpre observar que a possibilidade de exposição da própria imagem e da intimidade deve ser limitada, pois os direitos da personalidade não podem nunca ser considerados ou exercitados de forma egoística. Na verdade, quando uma pessoa se degrada dessa forma, está, de certa maneira, ferindo a dignidade de todo o gênero humano. Assim, se não podemos cercear a liberdade dos exibicionistas, podemos pensar se não é o caso de reagirmos a essa campanha pela coisificação do ser humano, que nos torna meros objetos de escárnio alheio. Quando alguns seres humanos se colocam nesse papel, e os outros aceitam, passivamente, ou até estimulam, assistindo a esses programas, na verdade estão todos compactuando com a degradação geral.[47: BERTI, Silma Mendes. Direitos da Personalidade. Âmbito Jurídico. Rio Grande, 39, 31/03/2007. p.01.]
A professora destaca, assim, o papel que tem o público na problemática, evidenciando que, antes mesmo de se cogitar em restrições legais, a principal imposição de limites, diante dos males da censura, deve partir da reprovação dos expectadores, ao demonstrar que não compactuam com determinadas ofensas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dignidade da pessoa humana, valor intrínseco e distintivo da pessoa, conforme demonstrado, denota diversas conotações filosóficas e jurídicas e tem um tratamento diferenciado em cada caso, em especial, pelas instituições investidas nos poderes estatais, como o Poder Judiciário. No sistema constitucional brasileiro o respeito à dignidade da pessoa humana é alçado como fundamento do Estado Democrático de Direito. A comunicação e a liberdade de expressão adquiriram contornos diferenciados no atual contexto informático, com o advento da internet e todas suas funcionalidades. 
A opinião pública e a sua formação sempre tiveram importância para a formação da sociedade e os meios de comunicação desempenham uma função determinante para a politização desta opinião. A imprensa é capaz de exercer um controle crítico sobre os poderes legislativo, executivo e judiciário. O problema que interessa ao direito, e sobretudo, sobre a chamada garantia da preservação da dignidade de pessoa humana, é a classificação dos meios de comunicação não somente para a formação da opinião pública, mas também a capacidade de influenciar a capacidade de conduzir ideias, gostos, costumes e a cultura de alguns, ou da sociedade na sua complexidade. A censura prévia é algo banido do sistema constitucional pátrio, porém a definição dos contornos da classificação indicativa das programações é algo indefinido e sua regulamentação, no atual momento, encontra-se em discussão.
Neste sentido os programas de reality shows evidenciam alguns impasses na sociedade contemporânea. De um lado, vivencia-se um alargamento da proteção jurídica conferida aos direitos da personalidade, e, de outro, a consolidação das liberdades artísticas, de imprensa, expressão e comunicação.
Não obstante, esses programas evidenciam como as pessoas tem perdido progressivamente a vergonha de exporem ao público fatos íntimos de sua vida, renunciando a prerrogativas intrínsecas à dignidade humana com o fito de obter dinheiro ou alguns momentos de fama.
Nesse contexto, os direitos da personalidade, vistos anteriormente como uma proteção do indivíduo contra a incursão indevida nas atividades que dizem respeito tão somente a ele, passam a ser tidos como justificativa para um exercício irrestrito e absoluto da liberdade individual, numa compreensão que não mais se amolda à concepção atual de Estado Democrático de Direito.
Do analisado, verifica-se que a renúncia temporária a direitos da personalidade encontra amparo na doutrina, e a exibição de reality shows respaldasse, aparentemente, nas liberdades de comunicação, artística e de criação (arts. 5º, inc. IX e 220, caput da CF/88).
Todavia, é preciso que a discussão em torno da autolimitação aos direitos à intimidade e vida privada verificada nos reality shows seja amadurecida, haja vista que a própria Constituição Federal consagra direitos da personalidade como limites às liberdades acima mencionadas (art. 220, § 1º), de modo a viabilizar-se, futuramente e de modo democrático, alguma orientação normativa a tais programas.
O problema maior reside no fato de que há uma ausência de sólida proteção jurídica aos direitos que promovem a personalidade, a intimidade e preservação do princípio da dignidade da pessoa humana, ao lado da prevalência do interesse meramente econômico, que converte a liberdade individual em fundamento para a própria banalização do núcleo essencial desses direitos.
Referências
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BERTI, Silma Mendes. Direitos da Personalidade. Âmbito Jurídico, Rio Grande, 39, 31/03/2007. 
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Reality Shows” e Liberdade de Programação. Portugal: Coimbra, 2003, p. 56-57.
DEBORD, Guy. A sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
DWORKIN, Ronald. El domínio de la vida: Uma discusíon acerca del aborto, la eutanásia y la liberdad individual. Barcelona: Ariel, 1998. p. 305.
FERRIGOLO, Noemi Mendes Siqueira. Liberdade de Expressão: direito na sociedade da informação: mídia, globalização e regulação. São Paulo: Editora Pilares, 2005
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2003.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martins; et al. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. 
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: RT, 2009. 
SILVA, Paulo Thadeu Gomes da. Sistema Constitucional das liberdades e das igualdades. São Paulo: Atlas, 2012. 
WEYNE, Bruno Cunha. O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de Kant. São Paulo: Saraiva, 2013. 
Internet:
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NEGRINI, Michele; AUGUSTI, Alexandre Rossato. O legado de Guy Debord: reflexões sobre o espetáculo a partir de sua obra. Disponível em ˂http://www.bocc.ubi.pt/pag/negrini-augusti-2013-legado-guy-debord.pdf˃. Acesso em 16 out 2014.

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