Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
··················· 4 História e natureza humana em Maquiavel ···················· Num informe que, em 1502 – na condição de Secretário do Conselho dos Dez da Guerra, cargo no qual era encarregado dos negócios e relações exteriores da República de Florença –, Maquiavel escreveu sobre a situação de Chiana, informe intitulado “Do modo de tratar os povos do Vale do Chiana rebelados”, ele diz: Ouvi dizer que a história é a mestra das nossas ações e máxime dos príncipes: e o mundo foi sempre, de certo modo, habitado por homens que têm tido sempre as mesmas paixões; e sempre existiu quem serve e quem manda, e quem serve de má vontade e quem serve de bom grado, e quem se rebela e quem se rende.1 Nesta passagem apresentam-se, de modo concentrado, as questões sobre as quais pretendo refletir neste ensaio. O seu ponto de partida aqui é a história: é ela a “mestra de nossas ações”; ao mesmo tempo, e por isso mesmo, ela parece nos permitir sentenças gerais sobre o comportamento humano: os homens tivemos sempre as mesmas paixões, alguns comandam, outros obedecem, alguns de bom grado, outros não... e assim por diante. _____ João Emiliano Fortaleza de Aquino 68 _____ 1. N. Maquiavel, “Do modo de tratar os povos do Vale do Chiana rebelados”. In: Maquivel. Col. Os pensadores. Trad. br. Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1987, pp. 322-323; “Del modo di trattare i popoli della Valdichiana ribellati”. In: Tutte le opere storiche, politiche e letterarie. A cura di Alessandro Capata. Roma: Grandi Tascabili Economici Newton, 1998, p. 381. À nossa consciência histórica soa estranho ouvir ao mesmo tempo de história e de generalizações acerca do comportamento dos homens. Poderíamos, quem sabe, tomar essa passagem de Maquiavel apenas como uma constatação: efetivamente, se voltarmos nossos olhos para a experiência histórica até aqui conhecida, talvez não cheguemos a conclusões muito distintas. Além disso, os pares opostos nos quais ali estão ordenadas as atitudes humanas (variáveis que são) indicam possibilidades que, verificadas alternadamente em experiências passadas, dizem também das atuais. Mas, mais do que isso, a relação entre história e comportamento humano presente nessa passagem – inclusive pela ausência de ênfase em qualquer um dos modos possíveis de agir dos homens – apresenta de modo privilegiado um problema que não é menor, precisamente o problema que, nas filosofias da história da modernidade, foi sempre central: o problema da existência ou não de uma substância na história, seja ela a Natureza, a natureza humana, o logos, a Razão..., substância que, nas filosofias da história, o tempo e as circunstâncias deveriam realizar.2 Seria também este o caso de Maquiavel? Ora, se na trajetória da filosofia da história não poucas vezes a natureza humana constou como sendo a substância da história,3 quando havemos de perguntar por esta categoria 2. Tomo aqui, como referência para essa breve caracterização da filosofia da história, o livro de Agnes Heller, Uma teoria da história (Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 1993). 3. Este seria o caso das filosofias da história iluministas, incluindo, por exemplo, também o iluminismo alemão com I. Kant, que mobiliza Memória e consciência histórica em Maquiavel, talvez tenhamos que percorrer um caminho inverso: não teremos, neste caso, que explicar a história pela natureza humana, mas sim buscar compreender em que sentido se pode ou não falar de uma natureza humana em Maquiavel refletindo sobre como a história é tematizada por este pensador.4 Assim, o caminho que percorreremos aqui será precisamente o de tematizar como a história aparece – como base de suas lições políticas – em suas reflexões históricas concretas, particulares. Percebendo que em boa parte dessas análises concretas, n’O príncipe, elas são articuladas com base nos conceitos de fortuna e virtù, centralizarei neles a tematização sobre a história, tematização que começará exatamente perguntando pela sua importância prática para Maquiavel, isto é, o seu papel estratégico; por este caminho, buscarei conjeturar naquela obra a presença e o significado da noção de natureza humana. Por que se interessar pelos fatos passados, pela história? Numa passagem de O príncipe, Maquiavel nos dá uma resposta em termos muito semelhantes àqueles presentes naquele texto de 1502, acima citado: _____ João Emiliano Fortaleza de Aquino 70 _____ Porque, caminhando os homens sempre pelas vias trilhadas por outros e procedendo em ações suas com as imitações [imitazioni], [ainda que] nem podendo as vias de outros ter ao todo, nem a virtude [virtù] daqueles que tu imitas [tu imiti] ajuntar, deve um homem prudente entrar sempre pelas vias trilhadas por grandes homens [uomini grandi], e imitar aqueles que foram excelentíssimos [quegli che sono stati eccellentissimi imitare] [...].5 Nesse conselho, que se poderia tomar como de um moralista,6 Maquiavel assume a posição de que o estudo da história, dos procedimentos e das razões dos acontecimentos e das ações humanas tem um significado estratégico: remete ao conhecimento do presente e da ação nele. Também no capítulo XIV de O príncipe, este conselho retorna nos seguintes termos, ampliando as exigências quanto ao estudo da história, das condições geográficas das ações de guerra, das ações dos grandes homens e de suas razões; tudo isso com o objetivo de melhor imitá-los. Assim, segundo Maquiavel, o príncipe deve ler histórias de países e considerar as ações dos grandes homens [uomini eccellenti], observar como se conduziram nas guerras, examinar as razões de suas vitórias e derrotas, para poder fugir destas e imitar [imitare] aquelas; sobretudo, deve fazer como teriam feito em tempos idos certos grandes homens, que imitavam [che ha preso a imitare] os que antes deles o conceito de Natureza tanto no sentido da Providência quanto no de natureza humana; já no caso de Herder, os conceitos de Natureza e “natureza humana” ligam-se ao de nação, aportando, assim, a determinação da particularidade que quase sempre faltava a outras filosofias da história, sem, no entanto, perder nem a centralidade do conceito de Natureza nem a referência em um discurso universal sobre a história da humanidade. 5. N. Maquiavel, “Il principe”. In: Tutte le opere, p. 14. (Optei aqui por uma tradução quase imediata, a fim de manter um certo estilo literário que, na tradução de Lívio Xavier, me parece sacrificada). 4. Esta também a opinião de M. L. Guide, em Maquiavel e os partidos (Tese de doutorado, USP, 1999), ainda que em determinados momentos ele substancialize e, portanto, afirme esse conceito, apesar de buscar, em outros momentos, argumentar pela sua relativização em Maquiavel. 6. Aliás, Baltasár Gracián, em sua A arte da prudência, dialoga diretamente com Maquiavel, neste e noutros pontos; precisamente neste ponto, ver a máxima 75 dessa obra. 69 Memória e consciência histórica haviam sido glorificados por suas ações, como consta que Alexandre Magno imitava a Aquiles, César a Alexandre, Cipião a Ciro.7 Na sucessão da sua exposição em O príncipe, essa questão da imitação das ações e da compreensão das razões dos uomini eccellenti do passado está relacionada, talvez intimamente, com o que, no capítulo XV (mas que, certamente, percorre todo o livro), ele anuncia como sendo o propósito de discutir “como deve um príncipe comportar-se com os seus súditos e seus amigos”.8 Considerando que esse é um problema já tratado anteriormente por outros, de cujos princípios ele não se propõe a afastar-se, Maquiavel afirma que, no entanto, irá se diferenciar de alguns deles no procedimento: já que busca ensinamentos que sejam úteis, só poderá buscá-los nosefeitos das anteriores ações humanas. “Como é meu intento”, diz ele, “escrever coisas úteis [utili] para os que se interessam, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade efeitual [verità effetuale] das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar [imaginazione di essa]”.9 Esse trecho, bastante esclarecedor de sua visão do conhecimento histórico, do seu modo de abordá-lo e de seus objetivos ao fazê-lo, é também bastante instrutivo quanto a nossa questão, isto é, o problema da natureza humana em seu pensamento. Ele quer se diferenciar, segundo diz, de muitos dos seus antecessores nesta matéria, aqueles que – para chegar a suas conclusões – imaginaram “repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros”.10 A verità effetuale, cujo caráter remete à história, às ações humanas e suas conseqüências (e cujas razões devem ser compreendidas para que sirvam ao aprendizado prático), opõe-se assim à constituição de princípios normativos abstratos (isto é, abstraídos da própria experiência histórica). Não estaria aqui uma luz necessária ao esclarecimento de sua posição quanto à natureza humana? Afinal, ele chama a atenção para o primado da experiência prática, cuja verdade está nos efeitos (compreendidas as razões das ações, bem como de seus sucessos e insucessos); como diz, “vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver”, sintetizando, assim, a diferença entre seu procedimento e o de certos antecessores seus. _____ João Emiliano Fortaleza de Aquino 72 Por outro lado, chama a atenção nessas passagens o termo “imitar”, porque também a natureza, segundo diz Maquiavel em outra carta a Vettori, deve ser imitada: “nós imitamos a natureza, que varia; e quem imita a natureza não pode ser repreendido” (noi imitiamo la natura, che è varia; et chi imita quella non può essere ripreso).11 Que aproximação poderíamos ter aqui entre “natureza” e “história”, enquanto coisas que devem ser imitadas? Quando fala aqui em “natureza”, Maquiavel está se referindo à natureza humana? _____ 7. N. Maquiavel, “O príncipe”. In: Maquiavel, p. 61; “Il principe”. In: Tutte le opere, p. 33. 8. Idem, p. 63; idem, p. 33. 9. Idem, ibidem, trad. modificada; idem, ibidem. Já na preocupação de Políbios com o caráter prático do conhecimento das “calamidades alheias” estaria prenunciada a verità effettuale que Maquiavel propõe. A história pragmática de Políbios – em sua utilidade – se aproximaria, assim, da verità effettuale de Maquiavel pela exigência, fundamental para que a história tenha capacidade de ensinar para o presente, de um “exame das conseqüências tanto remotas quanto imediatas dos eventos, e acima de tudo as suas causas” (Políbios, III, 32). 10. N. Maquiavel, “O príncipe”. In: Maquiavel, p. 63; “Il principe”. In: Tutte le opere, p. 33. 11. N. Maquiavel, “Lettere”. In: Tutte le opere, p. 944. 71 Memória e consciência histórica Segundo Ferroni, nessa passagem vê-se a reflexão maquiaveliana sobre a instabilidade da ‘natureza’ [natura] e da ‘fortuna’ [fortuna], sobre a necessidade de instituir uma relação ativa (‘conformação’) entre a natureza interna do indivíduo e as variações da natureza externa, de saber ‘mudar’ a própria natureza individual seguindo a mutação da fortuna.12 Se é assim, que conseqüências isso teria para a nossa questão? Segundo essa interpretação, Maquiavel não pensaria a natureza – no homem – como uma determinação fixa, mas em movimento; não apenas em movimento histórico, segundo as mudanças das circunstâncias e sua determinação sobre os homens, mas segundo a capacidade adquirida pelos homens de mudar sua própria natureza, em sintonia ou não com as circunstâncias. Essa será a hipótese que adotarei e que buscarei, a seguir, argumentar em favor. E, claro, como é visível, no centro dessa hipótese está exatamente o problema da relação entre virtù e fortuna, como sendo aquela relação entre a natureza interna e a natureza externa, a relação entre os indivíduos e as circunstâncias históricas com as quais se deparam. Essa relação, deste modo compreendida, vai ser indicada pelo próprio Maquiavel: referindo-se a Ciro, Rômulo e Teseu, ele afirma que “eles não receberam da fortuna [fortuna] mais que a ocasião [occasione] de poder amoldar as coisas como melhor lhes aprouve. Sem aquelas ocasiões, suas qualidades pessoais [virtù dello animo] se teriam apagado, e sem essas virtudes [virtù] a ocasião lhes teria sido vã”.13 A chave do sucesso histórico desses personagens estaria, assim, no encontro do que a fortuna possibilitou com o que foi capaz a virtù. É notável, nessa passagem, como na correspondência fortuna-virtù o termo que aparece não é o de natureza humana, mas a virtù dello animo, as qualidades pessoais das personagens históricas. Virtù dello animo diz aqui de um conjunto de características e potencialidades individuais que, em face de determinadas circunstâncias históricas, se tornam decisivas para os acontecimentos que irão causar; tanto quanto, aliás, tais circunstâncias históricas – a fortuna – o são em relação às possibilidades de realização daquelas potencialidades que se concentram na virtù, constituindo-a. _____ João Emiliano Fortaleza de Aquino 74 _____ Maquiavel diz também, em seguida, que “a natureza dos povos é vária [la natura de’ populi è varia], sendo fácil persuadi-los de uma coisa, mas sendo difícil firmá-los na persuasão”.14 Desse modo, sendo vária, mutável, não há, a rigor, nenhuma natureza fixa nos povos. Parece, assim, que a mutabilidade da natureza, mutabilidade presente nos indivíduos, também se manifesta no comportamento dos povos. Antes de prosseguir nessa linha de argumentação, é importante perceber que Maquiavel utiliza também o termo natura como recurso analógico para explicitar tendências dos fenômenos históricos, isto é, da fortuna. Assim, analisando os principados novos, no capítulo VII de O príncipe, ele diz que “os Estados que surgem de súbito, como todas as outras coisas da natureza [natura] que se 13. N. Maquiavel, “O príncipe”. In: Maquiavel, p. 24; “Il principe”. In: Tutte le opere, p. 15. 12. Ferroni, La “cose vane”, citado por Alessando Capata em rodapé. In: N. Maquiavel, Tutte le opere, p. 944. 14. Idem, p. 25; idem, p. 16. 73 Memória e consciência histórica desenvolvem muito depressa, não podem ter raízes ou membros proporcionados e, ao primeiro golpe da diversidade, aniquilam-se”.15 A fortuna, enquanto conjunto de circunstâncias (nesses casos, favoráveis), permanece como uma determinação central da análise de Maquiavel; no entanto, como uma categoria de análise histórica, ela mobiliza sempre a de virtù. Assim, nesses casos dos principados novos, em que há a tendência própria da natureza de não conseguir fincar raízes sólidas, Maquiavel concebe suas possibilidades históricas na dependência da virtù dos príncipes, na capacidade deste de aproveitar as vantagens da fortuna: “a menos que”, diz ele em continuidade à passagem acima citada, “aqueles tais, como dito, que de repente se tornaram príncipes, não sejam senão de tanta virtù quanto o que a fortuna lhe concedeu e saibam de repente preparar-se a conservá-lo, e aqueles fundamentos que os outros fizeram antes que eles se tornassem príncipes, estes os façam depois”.16 Quando analisa, ainda n’O príncipe, os casos dos principados eclesiásticos, Maquiavel sustenta que – do mesmo modo dos principados novos antes analisados – eles são conquistados ou pela virtù ou pela fortuna; e afirma que, entretanto, aqueles se sustentam pelas “ordens antiquadas na religião”, isto é, como propõe a tradução de Lívio Xavier, “pela rotina da religião”. Neste caso, certamente, é menor – para a manutenção do governo– a importância da virtù do príncipe. Também quando discute a conveniência ou não do uso das forças mercenárias, Maquiavel volta à questão da relação entre fortuna e virtù. Recusando radicalmente o uso de tropas mercenárias, ele afirma que “sem possuir armas próprias, nenhum principado está seguro, antes está à mercê da sorte [fortuna], não existindo virtude [virtù] que o defenda nas adversidades”.17 Neste caso, o poder de intervenção da virtù nas circunstâncias, poder este sempre constituído pelas qualidades pessoais dos indivíduos, torna-se impotente frente às circunstâncias, coloca-se “à mercê da fortuna” precisamente porque faltou, na ação, uma qualidade pessoal fundamental: a sabedoria do príncipe, o discernimento quanto à necessidade de possuir e contar com tropas próprias. Assim, esse poder de intervenção da virtù é aqui reafirmado negativamente; a ausência de um elemento chave para a segurança do Estado despotencializa a capacidade da virtù de intervir na fortuna, e isso, como já dito, pela própria ação do príncipe. _____ João Emiliano Fortaleza de Aquino 76 Ao lê-se O príncipe, tem-se a impressão de que – talvez pelo chamado político a Lorenzo de Médicis com que ele encerra a obra –, a cada passo, Maquiavel vai dando mais importância à discussão sobre as possibilidades da ação e, portanto, da virtù na história. E precisamente assim ele vai relativizando – historicizando – mais a determinação da fortuna. No capítulo XV da obra em questão, em que se propõe a examinar – como já dito antes – “como deve um príncipe comportar-se com os seus súditos e seus amigos”, Maquiavel diz que “todos os homens, máxime os príncipes, por estarem no mais alto, se fazem notar através das qualidades que lhes acarretam reprovação ou louvor”.18 E, a _____ 15. Idem, p. 27; idem, p. 17. 16. Idem, N. Maquiavel, “Il principe”. In: Tutte le opere, p. 17 (também neste caso tive que, sofrivelmente, fazer a minha própria tradução, a fim de manter os conceitos fortuna e virtù que, na tradução de Lívio Xavier, desapareceram completamente). 17. N. Maquiavel, “O príncipe”. In: Maquiavel, ed. citada, p. 57; “Il principe”. In: Tutte le opere, ed. citada, p. 32. 18. Idem, p. 63; idem, p. 34. 75 Memória e consciência histórica seguir, lista pares opostos de qualidades humanas possíveis (sempre, neste caso, referindo-se aos príncipes): liberais ou miseráveis, pródigos ou rapaces, cruéis ou piedosos, efeminados e pusilânimes ou truculentos e animosos, humanitários ou soberbos, lascivos ou castos, estúpidos ou astutos, enérgicos ou indecisos, religiosos ou incrédulos. A não-fixidez natural dessas qualidades manifesta-se não apenas nas oposições, mas também, como ele diz em seguida, no fato de que não é possível possuí-las coerentemente, isto é, ou apenas as boas ou apenas as más qualidades. E isto se deve, segundo Maquiavel, às “condições humanas” (condizioni umane): “as condições humanas são tais que não consentem a posse completa de todas elas, nem ao menos a sua prática consistente [non si possono avere tutte né interamente osservare]”.19 Precisamente por essa potencialidade antropológica, é que cabe a Maquiavel aconselhar aos príncipes serem “prudentes”, combinando de modo diverso – e sempre segundo as circunstâncias – qualidades que lhes permitam conservar a posse do governo: pois “encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes [virtù] e que, se praticadas, lhe acarretariam a ruína, e outras que poderão parecer vícios [vizio] e que, sendo seguidas, trazem a segurança e o bem-estar do governante”.20 Assim, nessa mesma lógica, quando discute, no capítulo XVII, se deve ou não o príncipe buscar ser amado ou temido, ele aconselha que “é mais seguro ser temido do que amado, quando se tenha que falhar numa das duas, posto que” – note-se – “é difícil reunir ao mesmo tempo as qualidades que dão aqueles resultados”.21 Somente após essa passagem, _____ na qual encontramos o que talvez pudéssemos chamar de abertura antropológica, é que vêm afirmações generalizantes (e, se tivermos em conta os pares opostos antes apresentados, unilaterais) acerca do comportamento dos homens: estes seriam, segundo Maquiavel, “geralmente [generalmente]... ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos por dinheiro [cupidi del guadgno]”, além de “pérfidos”.22 João Emiliano Fortaleza de Aquino 78 _____ Penso que é fundamental aqui observar algumas coisas. Primeiro é o uso, por parte do próprio Maquiavel, do termo generalmente, o que demonstra a sua consciência de que está, nessa passagem, fazendo uma generalização e que, portanto, nada diz de nenhuma análise concreta, particular. Segundo é que, se lida de modo isolado, como uma afirmação de uma natureza humana assim determinada, essa generalização não poderia ser explicada (senão admitida como contraditória), por exemplo, em relação ao que ele diz no capítulo XXI: “e os homens não são nunca tão maus que queiram oprimir a quem devem ser gratos”.23 Além disso, a anterior afirmação de que as condizioni umane determinam o modo como os indivíduos realizam (ou se apropriam, si possono) das possibilidades da virtù faz lembrar a sua crítica aos procedimentos de alguns seus antecessores, que partiriam da “imaginação”, à qual ele opunha precisamente a verità effettuale, os efeitos concretos das ações humanas; e também faz supor que essas condições humanas indicam aqui a importância das particularidades históricas. Com efeito, em outros momentos, Maquiavel recusa 19. Idem, p. 64; idem, ibidem. 22. Idem, ibidem; idem, ibidem. 20. Idem, ibidem; idem, ibidem. 23. Idem, p. 91; idem, p. 48. 21. Idem, p. 70; idem, p. 36. 77 Memória e consciência histórica juízos generalizantes, chamando a atenção para que sejam observadas as “particularidades” concretas a serem analisadas; este é o caso de um momento do capítulo XX, em que, referindo-se às diversas atitudes dos príncipes, afirma que não se pode nunca “julgar em definitivo se não se examinarem as particularidades dos Estados onde se tivesse de tomar alguma deliberação semelhante [non si possa dare determinata sentenza, se non si viene a’ particulari de quegli stati dove avessi a pigliare alcuna simile deliberazione]”.24 Esta atenção às particularidades é a mesma que mantém quanto à virtù dos indivíduos, tal como sugere a anterior discussão sobre os modos diversos de combinação das possíveis qualidades humanas que um príncipe deve buscar possuir. Um trecho deste mesmo capítulo é, aliás, muito esclarecedor da importância da particularidade e da variação das circunstâncias no procedimento Maquiaveliano de análise histórica; referindo-se às estratégias dos príncipes em certos aspectos de alianças, ele diz: “Mas de tal matéria não é possível estabelecer regras gerais, pois variam muito as circunstâncias de cada caso [Ma di questa cosa non si può parlare largamente, perchè la varia secondo il subietto]”.25 Mas, certamente, é o penúltimo capítulo d’O príncipe aquele em que a variação e a circunstancialidade da virtù são mais solicitadas, ao mesmo tempo em que as ações humanas (nuançadas pela virtù) nos acontecimentos é mais valorizada. Neste passo, Maquiavel reconhece que há motivos para que muitos acreditem que a fortuna e Deus (de la fortura e da Dio) – aliás, um tema polibiano – determinem o curso das coisas do mundo, de modo que os homens nada podem fazer quanto ao seu destino, cabendo-lhes _____ apenas deixar-se governar pela sorte (sorte); e isso se explica pela existência, realmente, de uma grande quantidade – em seu tempo (nostri tempi, diz ele) – de coisas “fora de toda conjuntura humana” [fuora di ogni umana coniettura].26 No entanto, diz ele, João Emiliano Fortaleza de Aquino 80 penso que a fortunaseja árbitra [arbitra] da metade [metà] de nossas ações, mas que, ainda assim, ela nos deixa governar quase a outra metade [l’altra metà, o presso]. Comparo-a a um desses rios impetuosos que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores, os edifícios, arrastam montes de terra de um lugar para outro: tudo foge diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder obstar-lhe [ostare] e, se bem que as coisas se passem assim, não é menos verdade que os homens, quando volta a calma, podem fazer reparos e barragens, de modo que, em outra cheia, aqueles rios correrão por um canal e o seu ímpeto não será tão danoso. Semelhante acontece com a fortuna, a qual demonstra a sua potência onde não é ordenada a virtù para resisti-la...27 Observemos nessa passagem, primeiramente, o esforço de Maquiavel em diferenciar a experiência particular de seu tempo, em que grande parte dos acontecimentos históricos escapa ao cálculo humano, e o que devemos pensar em geral da relação fortuna-virtù na história. Segundo, a sua equação dessa relação, apresentada inicialmente nos termos metafóricos de uma relação entre quantidades (“metade” e “quase metade”), mas melhor definida na posição de resistência da virtù frente à fortuna. Claro que a _____ 26. Idem, p. 103; idem, p. 51. 27. Idem, p. 103; idem, p. 52 (itálicos meus, assinalando também que nesse trecho a tradução foi minha, para manter a presença do conceito de virtù, que na tradução de Lívio Xavier está ausente). 24. Idem, p. 87; idem, p. 45. 25. Idem, p. 57; idem, p. 46. 79 Memória e consciência histórica resistência da virtù aqui não significa, nem poderia, que Maquiavel a toma como única determinação do curso dos acontecimentos; mas sim que, em face do enorme peso da fortuna, das circunstâncias e mesmo das adversidades, é possível à virtù, através da experiência adquirida no passado, obstar-lhes: “os homens, quando volta a calma, podem fazer reparos e barragens...” Assim, em sua preocupação com pensar a história a com base no critério de utilidade para a ação política, para a intervenção no presente, é fundamental a Maquiavel pensar essa possibilidade de oposição da ação à fortuna, pensar, como diz, “acerca dos obstáculos que se podem opor à fortuna, em geral [quanto allo opporsi a la fortuna, in universali]”.28 Mas o que lhe interessa, diz ele, é restringir-se aos “casos particulares” (particulari); e pensando essas questões com bases nas possibilidades das particularidades, ele constata que se costumam ver “hoje o sucesso de um príncipe e amanhã a sua ruína, sem ter havido mudança na sua natureza, nem em algumas de suas possibilidades [senza avergli veduto mutare natura o qualità alcuna]”.29 Mudança de natureza (mutare natura)? Mas a natureza humana não é a essência humana, não é, segundo a tradição filosófica, aquilo que substancialmente (e universalmente) determina o homem? Como, então, pensar na possibilidade (e, mais ainda, necessidade) de mudar individualmente o que somos universalmente (como gênero)? Sem dúvida, já não estamos mais, quando se toma Maquiavel, na antiga (clássica) posição metafísica da antropologia filosófica (ou “psicologia”, no dizer de Aristóteles). Creio que é exatamente aqui nessa relação entre virtù e fortuna, entre o _____ esforço individual de fazer frente às circunstâncias (ou opondo-se a elas ou adequando-se a elas, conforme lhe for mais favorável) e essas mesmas circunstâncias (quase nunca escolhidas pelo indivíduo) em que aparece de modo nítido o problema da natureza humana em Maquiavel. João Emiliano Fortaleza de Aquino 82 _____ Efetivamente, segundo ele diz na seqüência da passagem citada há pouco, “quando um príncipe se apóia totalmente na fortuna [fortuna], arruína-se segundo as variações delas”, sendo, portanto, “feliz aquele que combina o seu modo de proceder com as particularidades dos tempos, e infeliz o que faz discordar dos tempos a sua maneira de proceder”.30 Mas o que significa precisamente aqui o combinar/conformar (riscontrare)? Significa a necessidade de agir de acordo com, segundo sejam as necessidades particulares dos tempos, segundo precisamente as circunstâncias que, ao se alterarem, tornam necessário que também se alterem a “natureza” e o “modo de proceder dos indivíduos”. Assim, diz ainda Maquiavel, “se um se conduz com cautela e paciência e os tempos e as coisas lhe são favoráveis, o seu governo prospera e disso lhe advém a felicidade. Mas se os tempos e as coisas mudam, ele se arruína, porque não alterou o modo de proceder”.31 Pessimista quanto à possibilidade de o homem ter a prudência de efetivar essa adequação às circunstâncias, Maquiavel afirma que, quando afortunado, “se mudasse de natureza, conforme o tempo e as coisas, não mudaria de fortuna [si mutassi natura com e’ tempi e com le cose, non si muterebbe fortuna]”.32 30. Idem, ibidem; idem, ibidem. 31. Idem, ibidem; idem, ibidem. 28. Idem, p. 104; idem, ibidem. 32. Idem, ibidem; idem, p. 53. 29. Idem, ibidem; idem, ibidem. 81 Memória e consciência histórica Observo, assim, que Maquiavel se refere, nessas passagens, muito mais a uma natura dos indivíduos do que a uma “natureza humana” in universalis. E mesma essa singular natureza, essa singular virtù necessita mudar diante da mudança das circunstâncias, sob o risco, precisamente, de submeter-se aos insucessos. O caráter prático de todo esse discurso é evidente: trata-se de saber melhor agir em situações históricas muito concretas; em outras palavras, a mutabilidade da natureza dos indivíduos é requisitada, com base na compreensão das experiências históricas do passado, para uma melhor intervenção prática nas situações vividas. O que faz, assim, fragilizar e relativizar a representação de uma natureza humana no pensamento de Maquiavel (tal como se apresenta n’O príncipe) é a função histórica das referências ao comportamento humano nessa obra: histórica, porque pensado a partir das experiências do passado, nas quais ele se apresenta vário, mutável; e histórica também porque essa reflexão busca a intervenção prática no presente.33 _____ 33. De qualquer modo, a leitura da tradução brasileira de O príncipe não ajuda nesse discernimento: pelo menos em duas passagens, apresenta-se ora a palavra “natureza”, ora “natureza humana” que substituem completamente outros termos que estão no original italiano. A primeira dessas passagens é: “Somente esses principados, portanto, são, por natureza, seguros e felizes” (capítulo XI, p. 45); no original esse trecho é: “Solo adunque questi principati sono sicuri e felici...” (p. 26). A segunda passagem é: “No entanto, os enganos sempre lhe correram à medida dos seus desejos, pois ele conhecia muito bem este lado da natureza humana” (cap. XVIII, p. 74); no original esse trecho se encontra assim: “...nondimeno sempre gli succederno gl’inganni ad votum, perchè conosceva bene questa parte del mondo” (p.38). Pode ser também que a interpretação corrente de uma natureza humana em Maquiavel tenha terminado por influenciar a própria tradução. 83
Compartilhar