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FACULDADE SALESIANA DOM BOSCO−FSDB Alfredo Costa Andrade Neto Liberdade de escolha? Um estudo sobre o aborto à luz da bioética e da filosofia. Manaus−AM 2017 Alfredo Costa Andrade Neto Liberdade de escolha? Um estudo sobre o aborto à luz da bioética e da filosofia. Manaus−Amazonas 2017 Trabalho submetido à qualificação da banca examinadora, como parte dos requisitos para Avaliação Individual de Trabalho de Conclusão de Curso, sendo delimitada como problemas relativos à educação e ensino de Filosofia, sob a responsabilidade do Prof. Dr. Joaquim Hudson de Souza Ribeiro, do Curso de Licenciatura em Filosofia da Faculdade Salesiana Dom Bosco, Unidade Leste (FSDB−Leste). LIBERDADE DE ESCOLHA? UM ESTUDO SOBRE O ABORTO À LUZ DA BIOÉTICA E DA FILOSOFIA Alfredo Costa Andrade Neto1 Resumo: O aborto é uma realidade que manifesta existência desde a mais tenra presença da espécie humana na terra. A própria história sugere diversas abordagens de acordo com as exigências do contexto histórico. Em meados do século XX o tema voltou ao mérito da discussão atrelado à discussão a respeito da liberdade de escolha da mulher. O objetivo desta pesquisa é compreender o fenômeno do aborto a partir da bioética e da filosofia, tendo presente o posicionamento de um grupo de 10 universitários de filosofia e pedagogia com posicionamento pró ou contra o aborto. Este trabalho sustenta-se pelo método hermenêutico- dialético. A pesquisa de campo é de natureza quantitativa com finalidade exploratória. Ao considerar o posicionamento dos entrevistados, unindo-os ao pensamento filosófico, religioso e bioético, pode-se compreender que assumir uma postura a respeito do aborto não é algo a ser restrito somente ao universo feminino. As diversas ciências bem como o senso comum em muito contribuem para o conhecimento a respeito da problemática. Palavra-chave: Aborto. Filosofia. Bioética. Liberdade. Resumen: El aborto es una realidad que manifiesta existencia desde la más tierna presencia de la especie humana en la tierra. La propia historia sugiere diversos enfoques de acuerdo con las exigencias del contexto histórico. A mediados del siglo XX el tema volvió al mérito de la discusión vinculada a la discusión acerca de la libertad de elección de la mujer. El objetivo de esta investigación es comprender el fenómeno del aborto a partir de la bioética y la filosofía, teniendo presente el posicionamiento de un grupo de 10 universitarios de filosofía y pedagogía con posicionamiento pro o contra el aborto. Este trabajo se sustenta por el método hermenéutico-dialéctico. La investigación de campo es de naturaleza cuantitativa con fines exploratorios. Al considerar el posicionamiento de los entrevistados, uniéndolos al pensamiento filosófico, religioso y bioético, se puede comprender que asumir una postura respecto al aborto no es algo que se restringe sólo al universo femenino. Las diversas ciencias así como el sentido común en mucho contribuyen al conocimiento acerca de la problemática. Palabra clave: Aborto. Filosofía. Bioética. Libertad. 1 Acadêmico concludente da Faculdade Salesiana Dom Bosco-Leste: Manaus - AM. E-mail: alfredonetodiocesano@gmail.com Introdução O aborto é uma realidade que sempre existiu, ao mesmo tempo em que é tida como uma prática proibida desde as mais antigas civilizações. Fatores histórico-culturais em muito influenciaram o olhar das sociedades em relação à prática. Atualmente a discussão ressurge atrelada a mais um elemento: o exercício da liberdade da mulher. Defendido por diversos movimentos, a legalização do aborto é tida como garantia de que a liberdade da mulher não será cerceada por nenhum fator autoritário civil ou religioso. A mulher então recorre livremente à própria consciência. O aborto tem história. Provoca opiniões a favor e contra, sustentadas ou não pela religião, política ou cultura, além de demonstrar que as diversas formas de conhecimento possuem métodos de abordagem e podem dizer algo sobre o aborto. Ao tratar deste fenômeno, o presente trabalho tem como objetivo compreender o fenômeno do aborto a partir da bioética e da filosofia, tendo presente o posicionamento de um grupo de universitários pró ou contra o aborto. Dar-se-á com a apresentação do posicionamento de um grupo de acadêmicos, seguida da comparação dos dados coletados com os argumentos apresentados pelas vertentes pró-vida e pró-escolha, que possibilitará uma reflexão a respeito das implicâncias morais e éticas da prática abortista. A pesquisa de campo apresentada neste trabalho contou com a participação de 10 acadêmicos da Faculdade Salesiana Dom Bosco – Leste, dos cursos de filosofia e pedagogia, com idade superior a 18 anos e de ambos os sexos, sendo que o período de coleta de dados ocorreu no período de 25/08/2017 a 28/09/2017. A mesma é de natureza aleatória e não probabilística. Os participantes foram escolhidos por conveniência, o intuito desta é unicamente a análise dos argumentos apresentados pelos participantes. O artigo por sua vez é de natureza quantitativa, ao considerar os dados da pesquisa de campo, e possui finalidade exploratória e descritiva ao analisar os resultados da pesquisa de campo e confrontá-la com a produção teórica disponível. O método de análise usado é o hermenêutico-dialético. A pesquisa foi submetida à aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), atendendo às prerrogativas enunciadas na Resolução CNS nº 466/201 (ainda aguardando aprovação). Esta pesquisa justifica-se pela presença constante no cenário hodierno, na esfera religiosa, movimentos sociais de luta feminista, e sobretudo no debate político e jurídico. Ao mesmo tempo em que ampara-se pela necessidade de discutir esta temática - possibilitando um olhar da bioética e da filosofia -, este trabalho propõe-se a colaborar na discussão e formação do conhecimento a respeito da problemática em torno do aborto, contemplando diversas formas de abordagem, numa perspectiva transdisciplinar. 1. O Aborto: tópicos ao longo da história O aborto é um fenômeno que remonta às antigas civilizações. No Oriente, há registros do terceiro milênio a. C., e no Ocidente, em torno do século XVIII a. C. (SOUZA, 2009). A ética médica possibilitou a percepção de um caráter mau na prática abortiva. Hipócrates (460- 370 a.C.) - ao formular o juramento do médico - diz “não dar a nenhuma mulher uma substância abortiva” (GAARDER, 2012, p. 69). Na Filosofia Clássica, Platão e Aristóteles abrem espaço para uma “permissividade” da prática abortiva, considerando-a como um instrumento de controle populacional. Aristóteles entende que deve-se respeitar o período de 40 dias após a concepção em que a alma seria introduzida no corpo (SOUZA, 2009). Na filosofia de Parmênides, “ou o ser é, ou não é” (GAARDER, 2012, 47). Não há possibilidade de transformação, ou sempre existiu, ou nunca será. Nesse sentido, é possível relacionar tal pensamento com o início da vida como um fator biológico, e não relativo. A vida só começa uma vez, depois deste início, ela se propaga. Não se pode negar que aquele ser “é”. Com a insurgência do Cristianismo, no século IV, houve uma releitura do fenômeno a partir do olhar cristão. O aborto passa a ser considerado um crime igualando-se ao homicídio. Rosado-Nunes (2006) nos afirma que a controversa discussão a respeito do aborto perdurou o período medieval, onde prevaleceu o pensamento de Santo Tomásde Aquino, cuja filosofia foi determinante para definir a postura da Igreja Católica em relação à pratica abortiva. A alma humana é elemento determinante para que aconteça a passagem de “potência” para “ato”. No que diz respeito à essência, Oertzen (2015) diz que a alma humana se une ao corpo, como forma, e possibilita vida ao homem, e, através desta unidade substancial, o corpo - em comunhão com a alma -, se torna mais elevado, por ser sujeito da alma, e por tê-la como princípio. Na Idade Moderna, o processo vigente traz o homem para o centro da produção científica. Com o iluminismo ainda permanecia a severidade das penas relativas ao aborto, no entanto começou a distanciar-se a equiparação desta prática com o homicídio. A pena da gestante começava a ser atenuada, sendo a prática às vezes indicada por motivo de honra (TESSARO, 2006). No século XVIII a maioria das legislações já comparam o aborto ao homicídio, até a emergência da Revolução Francesa com a Declaração dos Direitos do Homem. No século XIX, o papa Pio IX declara que o aborto é pecado em qualquer situação e em qualquer momento da gravidez. Tal afirmação é resultado do abandono da concepção de hominização / pessoalização “retardada” para assumir uma hominização / pessoalização “imediata”. Em resposta à postura conservadora da Igreja, surgiram muitos movimentos de cunho feminista, com pensamento próprio e posturas diversas. Castro (2016) percebe que o movimento feminista contemporâneo é diversificado teoricamente, cada qual com uma reinvindicação específica, e muitas vezes produzindo embates conflitantes. No entanto, a bandeira do direito ao aborto é uma reinvindicação comum. A mesma autora nos permite compreender que o movimento feminista chega a assumir uma postura de reação às imposições de uma postura tradicional/conservadora que se impõe sobre a moral e as leis, além de também impor-se sobre uma postura passiva diante das problemáticas que se apresentam, sejam elas quais forem. Os movimentos de reação surgem justamente em momentos em que a sociedade trata o problema como elemento natural da existência humana. 1.1 Conceito A palavra aborto tem sua origem no latim abortus, derivado de aboriri (perecer), ab significa distanciamento e oriri nascer (KOOGAN & HOUAISS, 1999). No entanto, é possível abstrair outras definições das literaturas pró e contra a prática abortiva. Ao conceituar o aborto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) o classifica como um procedimento que busca por fim a uma gravidez indesejada, na maioria das vezes levado a cabo por pessoas sem habilidades necessárias, ou ainda em ambiente desfavorável às normas médicas (THE ALAN GUTTMACHERINSTITUTE, 1999, p.32). Da mesma forma, a bioética possibilita-nos um conceito de aborto como sendo “a expulsão ou a extração de toda e qualquer parte da placenta ou das membranas, sem um feto identificável, ou com um recém-nascido vivo ou morto que pese menos de quinhentos gramas.” Ou ainda “uma estimativa da gestação de menos de vinte semanas completas contando desde o primeiro dia do período menstrual normal” (PESSINI & BARCHIFONTAINE, 1995, p. 225). No entanto, para Alves (1982), o aborto deve ser entendido como morte ou mesmo expulsão do ser concebido, antes mesmo de sua capacidade de sobreviver fora do útero materno. A prática pode ser classificada como: Aborto provocado (resultante de ato direto e deliberado), constituindo a morte do feto ou sua expulsão do útero materno. A morte do feto é o objetivo a ser alcançado, ainda que este mal tenha objetivo bom. Aborto espontâneo (morte natural do concepto) em decorrência de fatores alheios à vontade humana e superiores aos seus desígnios. Ao nos apresentar sua definição de aborto, Boff (CAVALCANTE & XAVIER, 2006) trata-o como uma possibilidade no processo de formação do ser humano. O aborto é o rompimento de um processo que tendia à plenitude humana, mas que não foi alcançada. Thomson (2005), por sua vez, possibilita ao leitor a abstração do conceito de aborto, que seria: ato de retirar o apoio vital. E sobre ele, Schwarz (2005) disserta alegando que o ato de abortar, antes de qualquer definição é “primariamente um ato de matar” (p. 54). 1.2 Os dados O Ministério da Saúde divulgou dados a respeito do número de mulheres que morreram em 2015 por conta de abortos mal realizados: são exatas 121 vítimas. Quanto aos dados a respeito do número de abortos praticados no Brasil, a única coisa apresentada são estimativas. Ora, se o aborto é proibido no Brasil, quem o faz, o faz em segredo, de forma clandestina, sendo assim, não é possível oferecer precisamente o número de abortos praticados no Brasil. A única pesquisa a apresentar dados científicos é a PNA (Pesquisa Nacional de Aborto) 2016, que nos expõe os seguintes números: Das 2.002 mulheres entrevistadas, pelo menos 13% já realizou pelo menos um aborto. Entre as mulheres de 38 a 39 anos, o índice chega a 18%. Entre as mulheres com 12 a 19 anos, o índice atinge 29%, sendo possível considerar que a frequência do aborto tem mais incidência no período mais intenso de atividade reprodutiva das mulheres. Quanto aos métodos, 48% diz ter recorrido a medicamentos. Quanto aos efeitos pós-aborto, 48% das mulheres entrevistadas que já abortaram, tiveram de recorrer a serviços de saúde para reparar danos causados pela prática. (DINIZ, 2017) Muito se discute a respeito dos índices de aborto praticado no Brasil, ao mesmo tempo em que muito se valoriza os mesmos, muitos argumentos são construídos baseados nesses dados. No entanto, problemas reais discutem-se com argumentos baseados em realidade concreta. E os números acima apresentados aproximam-se da realidade, sendo assim, são passíveis de crédito para este artigo. A legalização do aborto é tida como a solução para um problema partilhado por ambas as partes: a erradicação da clandestinidade. No entanto, mesmo nos países em que o aborto é legalizado sem restrições, ainda há a presença do aborto clandestino. A diminuição do aborto voluntário através de informação contraceptiva melhor efetuada nas estruturas às quais a mulher se dirige para abortar, pode ser um argumento razoável. No entanto, a contracepção se mostra ineficiente para evitar se chegar ao aborto. 2. Pesquisa de Campo: Resultados e discussão Ao adentrarmos na pesquisa de campo, é importante saber que a mesma tem por objetivo elencar opiniões e confrontá-las com os mais diversos pensadores da bioética e da filosofia. Quanto aos participantes da pesquisa por sexo/curso acadêmico, temos os seguintes dados: Gráfico 1.1: Participantes por curso/faculdade Fonte: Pesquisa de Campo Os dados expostos no gráfico 1.1 expressam o número equilibrado de participantes por sexo. A predominância de homens entrevistados encontra-se no curso de filosofia. Em contraposição, a participação das mulheres entrevistadas encontra-se em maioria no curso de Pedagogia, o que também reflete a predominância dos sexos (feminino e masculino) nos cursos supracitados. Quanto à opinião a respeito da prática abortiva, pode ser expressada no seguinte gráfico: 0 1 2 3 4 5 PEDAGOGIA FILOSOFIA Mulheres Homens Gráfico 1.2: Aborto: Opinião dos entrevistados Fonte: Pesquisa de Campo Os dados expostos no gráfico 1.2 nos esclarecem sobre uma predominância da posição de que o aborto não deve ser praticado. 60% dos entrevistados entendem, de diversas formas, que o aborto não é uma opção a ser considerada. A pesquisa contabilizou um número considerável de 30% dos entrevistados a posicionar-se a favor do aborto apenas em alguns casos, mostrando consonância com o Código Penal Brasileiro vigente. Emcontraposição, uma minoria de 10% expressa sua opinião a favor da prática abortiva, sem exceções ou interferência dos juízos cíveis e religiosos. No entanto, se olharmos por outro viés, é possível compreender que, na verdade, 40% dos entrevistados posicionam-se a favor da prática abortiva, com ou sem restrições. Isso acontece ao considerarmos a postura “sim, em alguns casos” como sendo a favor, o que de fato pode ser classificado desta forma. Tal problemática só abre espaço para duas possibilidades de resposta: ou “sim”, ou “não”. Se pode com exceções, então, a resposta é “sim”. Os dados possuem certa aproximação com os apresentados pelo Instituto Vox Populi que em 2010, ao entrevistar 2.200 pessoas, coletou um número expressivo de 82% com opinião contra a legalização do aborto (MARTINS, 2010). A organização não-governamental CDD (Católicas pelo Direito de Decidir) nos apresenta seus números. Na pesquisa feita em parceria com o IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) também no ano de 2010, o número de opinantes era de 2002 pessoas. 65% entende que o aborto pode ser permitido em caso de baixa expectativa de vida após o nascimento. 52% dos entrevistados entende que se for em decorrência de estupro, a decisão pelo aborto deve ser algo exclusivo da mulher. Da mesma forma 96% dos 10% 30% 60% SIM Alguns casos Não entrevistados entende que as instituições governamentais ou religiosas não devem influenciar na escolha da mulher. Quanto à opinião feminina, temos o seguinte: Gráfico 1.3: Aborto: Opinião feminina Fonte: Pesquisa de Campo O gráfico nos infere que: a maioria das mulheres entrevistadas posiciona-se totalmente contra a prática abortiva. Ao passo que 20% entendem que é possível abrir exceções em casos extremos. É possível identificar que mesmo as mulheres, em sua maioria, consideram que o aborto é um mal a ser desconsiderado do âmbito da escolha. O que pode-se dizer é que tal postura é comum não somente neste grupo de entrevistadas. Também nas sociedades primitivas, o aborto era objeto de reprovação, mesmo nas sociedades em que sua prática é frequente. Ao mesmo tempo era possível afirmar que não era uma postura predominantemente masculina, também as mulheres manifestam o mesmo horror quando esse ato é evocado (BOLTANSKI, 2012). Quanto às repostas, temos o seguinte gráfico: Gráfico 1.4: Posicionamento acerca do aborto 20% 80% SIM A. casos Não 10% 20% 10% 20% 40% Religião e legislação não podem cercear a decisão da mulher Abuso sexual / risco de vida impossibilidade sócio-financeira Opção a ser desprezada / vai contra a liberdade humana Humanidade do feto Fonte: Pesquisa de campo Neste gráfico é possível observar mais claramente as opiniões que estavam sob as respostas de SIM e NÃO. Que são, em tese, muito parecidas com os argumentos sustentados pelas vertentes pró-vida e pró-escolha. 2.1. Religião e legislação não podem cercear a decisão da mulher No Brasil, O Código Penal (1940) trata da prática abortiva classificando-a como “crime contra a vida”, estando esta no mesmo patamar do homicídio. - Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos. - Aborto provocado por terceiro Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos (BRASIL, 1940). Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Por outro lado, a religião (aqui mencionamos a Igreja Católica) posiciona-se da seguinte forma: “A vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do momento da concepção. Desde o primeiro momento de sua existência, o ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo ser inocente à vida” (CIC, 1992, § 2270). Com uma postura inalterada, desde o século I a Igreja já afirmava que há maldade moral em todo aborto provocado. Da mesma forma que o Código Civil brasileiro, o Código de Direito Canônico da Igreja Católica coloca o aborto como sendo classificado “delito contra a vida e a liberdade do homem”. Condenando o praticante do aborto com a pena mais alta da instituição, “excomunhão latae sententiae” (CDC § 1398). Acontece que, no Brasil, a influência da religião - nos seus 500 anos de história, desde a colonização Portuguesa - foi muito grande sobre a moral e as leis. O que fortalece o argumento de que o Estado deve ser laico. Afirmar que o Estado é laico significa que indivíduos possuem a liberdade de escolher qualquer religião ou mesmo nenhuma religião. Isso implica que um não religioso não deve ser conduzido a praticar leis formuladas a partir de base religiosa e que não dizem respeito à escolha por ele feita de não aderir aos posicionamentos religiosos vigentes. Quando se argumenta que a religião não pode cercear o direito da mulher reger o próprio corpo, argumenta-se que há influência da vertente religiosa a conduzir os poderes civis. E, ao proibir a legalização do aborto, o fazem por convicções estritamente religiosas. Para responder a isso, sustentamo-nos na fala do então Cardeal Católico Joseph Ratzinger: “Não é tão fácil, naturalmente – e agora isto pode ser, talvez, um argumento para nós – distinguir bem entre valores tipicamente cristãos, que só podem ser escolhidos com a liberdade da fé e não podem ser impostos [àqueles que não acreditam], e valores na realidade humanos, que afetam o fundamento da dignidade humana” (RATZINGER, 2009, p. 54). O direito à vida, portanto, não é uma reinvindicação estritamente religiosa. Na verdade, não são valores exclusivamente cristãos, mas a manifestação evidente de valores estritamente humanos. Afinal, o que está em jogo é o direito de “ser” que vem antes mesmo de qualquer outro. “Se deixo de ter o direito de viver, que outro direito posso ter?” (RATZINGER, 2009, p. 54). Ao falar sobre as posturas das demais igrejas cristãs, Mortari (2010, p. 44) destaca que seus posicionamentos são semelhantes aos da Igreja Católica ao se pronunciarem alegando a existência de vida, sendo o aborto uma prática pecaminosa e escandalosa ao não permitir a evolução de um ser vivo. No entanto, a autora identifica que tal postura não é algo universal entre as religiões. Sendo possível destacar o posicionamento adquirido pela Igreja Batista em 1968 na convenção Batista da América. O aborto seria então um problema “dependente de uma decisão pessoal responsável” (MORTARI, 2012, p. 44). A mesma salienta que outras grandes religiões não assumem a mesma postura que o Cristianismo. No Judaísmo, o aborto é considerado crime, havendo restrições ao período gestacional a ser praticado, não colocando restrições ao aborto praticado nos primeiros 40 dias. Já no Islamismo, jurisprudências baseadas no Alcorão levam a interpretação de que é possível a prática até o término da 2ª semana de gestação. Nessa discussão também encontra-se a legislação ao dizer que “a proteção do direito à vida é garantida constitucionalmente, inclusive consubstanciada na proteção à dignidade da pessoa humana” (SCALQUETTE, 2010, p. 43). Ao mesmo tempo em que, no art. 5º da Constituição demonstra a clareza da garantia de existência como primeiro de todos os direitos, está implícita, também a exigência de um “não fazer”, ou seja: “Não basta não matar e imputarpena a quem o faz, tem de se garantir o direito à vida desde o direito de nascer, viver, e morrer com dignidade” SCALQUETTE, 2010, p. 45). Nesse viés, os estudos de Boltanski interpreta que o aborto não é algo desconhecido em sociedades primitivas, e, ao mesmo tempo, não é algo permissível ou que tenha sua prática acolhida por homens e mulheres. Ele diz: “A possibilidade de tirar os fetos do ventre antes de seu nascimento com a intenção de destruí-los parece, portanto, fazer parte dos quadros fundamentais da existência humana em sociedade” (BOLTANSKI 2012, p. 209). Ao mesmo tempo em que o aborto era conhecido, atitudes de reprovação eram comuns mesmo com sua prática frequente. O aborto é adjetivado como proibido, horrível ou vergonhoso, pelos próprios elementos que a ele são acrescentados: alimentos ou misturas usadas nos processos de abortamento são tidas como proibidas, bem como objetos ou rituais tidos como mágicos. A esses repousa a realização de um ato transgressivo. Assim, o aborto não é tido somente como pecado ou juridicamente errado. É antropologicamente inaceitável. Com isso o autor nos permite conhecer que, aceitar tal prática seria ir contra a própria tendência da espécie. Seria um desrespeito cultural e antropológico (BOLTANSKI, 2012, p. 209). 2.2. Abuso sexual / risco de vida Há quem considere que tal recurso só deve ser usado em caso de abuso sexual ou em risco de vida da mulher. O que não deixaria de ser considerado crime, apenas isentaria de punibilidade a vítima de violência sexual que quisesse recorrer a esse meio. A considerar a gravidade e sensibilidade diante de tão delicado tema, a maioria esmagadora também admitiria tal recurso nesses casos. E de fato, quando se argumenta em defesa do aborto em caso de estupro, é comum recorrer a elementos que recorram à sensibilidade. Aqui podemos elencar o argumento de Thomson com a alegoria do violinista inconsciente: De manhã acorda e descobre que está numa cama adjacente à de um violinista inconsciente e famoso. Descobriu-se que ele sofre de uma doença renal fatal. [...] Por esta razão os melómamos raptaram-no, e na noite passada o sistema circulatório do violinista foi ligado ao seu, de maneira a que seus rins possam ser usados para purificar o sangue de ambos. O diretor do Hospital diz-lhe agora: “[...] nunca o teríamos permitido se estivéssemos a par do caso. Mas eles puseram-no nesta situação e o violinista está ligado a si. Caso se desligasse, matá-lo-ia. Mas não se importe, pois isso dura apenas nove meses. Depois ele ficará curado e será seguro desligá-lo de si. (Thomson, 2005, p. 27). No que se refere à violência sexual sofrida, ambas as vertentes concordam que o estupro é uma situação por si só dolorosíssima. É um ser humano que foi violado em sua dignidade e liberdade. Alves (1982) esclarece o argumento a favor do aborto “sentimental”: pelo fato de a mulher ter sido vítima de abuso sexual, e engravidada por violência, quer se justificar o extermínio, pelo médico, de uma vida humana inocente e indefesa, ainda no ventre materno. O mesmo autor afirma que tal defesa seria uma violação do espirito e da finalidade da medicina, ao mesmo tempo em que mancharia o respeito à vida humana e, consequentemente, o Direito e a Justiça. Considerando o gravíssimo ferimento já causado à dignidade da mulher, apresentar o aborto como sendo única opção, é acrescentar à mulher um fardo a mais que marcará de forma irreversível sua existência. É impossível evitar ou mesmo reparar uma crueldade já praticada tendo como meio a retirada da vida que está sendo gerada. Assim como o estupro, o aborto é algo impossível de excluir de sua história (ALVES, 1982). Mesmo sendo fruto de uma violação, é impossível que uma mulher não crie algum sentimento (bom ou ruim) pelo feto gerado dentro de si. O meio mais viável para que tal situação seja tratada com mais humanidade seria possibilitando o acesso da mãe à assistência médica, psicológica e espiritual adequadas (ALVES, 1982). Há quem argumente que isso seria algo ideal, perfeito, ao mesmo tempo, praticamente inalcançável para pessoas que precisam de soluções rápidas para problemas rápidos. No entanto, oferecer à mulher violentada uma única alternativa, tão dolorosa quanto a violação, seria algo no mínimo desumano. 2.3. Impossibilidade sóciofinanceira Um dos argumentos também pertinentes para justificar a prática do aborto é a impossibilidade sócio-financeira. Que vai ao encontro do que Boff (Cavalcante& Xavier, 2006) fala a respeito da vida com dignidade. Já que o argumento preponderante é de que a vida começa com a concepção, então devemos cuidar para que de fato sejam efetuados todos os processos necessários para a emergência da vida, que podem ser ditos como elementos sociais, biológicos, ecológicos e mesmo existenciais. A vida só começa porque as condições globais assim permitem. A fala de Boff elenca fatores de ordem social e estrutural como fatores necessários para o bem-estar e a dignidade do ser que está sendo gerado. E, se confrontados com os dados da PNA 2016, os argumentos ganham força. De 2002 mulheres entrevistadas, 442 encaixam- se no grupo de mulheres com renda familiar de até 1 salário mínimo, destas, 70 (16%) recorreram ao aborto. O número tende a cair em porcentagem conforme a renda familiar aumenta, sendo possível constatar que, de 199 mulheres com renda superior a 5 salários mínimos, apenas 16 (8%) recorreram ao aborto. Os números apresentados vão ao encontro do que Rosado-Nunes (2006) afirma. Uma sociedade que não oferece estruturas necessárias para o exercício de trazer ao mundo um novo ser de forma digna, é uma sociedade cuja postura moral e ética deve ser tão questionável quanto a questão tratada neste Trabalho de Conclusão de Curso. Quando se fala sobre possíveis causas do aborto, Kaczor (2014) elenca os seguintes itens: famílias desagregadas; excesso de drogas; pobreza acabrunhante; relacionamentos abusivos; educação incompleta; medo de humilhação pública; antipatia entre parceiros; amor fracassado. Diante do posicionamento quanto à impossibilidade sóciofinanceira, é possível que vertentes pró-aborto assumam a posição de que não se pode negar o mínimo de dignidade à vida que está sendo gerada. E de fato, “muitos querem justificar o aborto como necessário para evitar ou solucionar problemas de ordem econômica ou social: fome, desemprego, baixo salário, moradia” (AQUINO, 2005, p. 18). Porém, não parece muito sensato considerar a morte como solução (ou mesmo a única solução) para os problemas da vida. Nesse sentido, Aquino (2005) argumenta que não há solução fácil para problemas difíceis. Soluções para os difíceis problemas sociais devem ser encontradas em providências governamentais, aliadas à participação privada – pessoas ou entidades – que se disponham a prestar solidariedade e assistência adequadas. Considerar a morte como solução para os problemas da vida seria como voltar à barbárie. A civilização sucumbe. Ao argumentar sobre as condições supracitadas, Kaczor considera que tais mazelas podem atingir os pais de uma criança mesmo após seu nascimento, nem por isso matar uma criança já nascida torna-se um ato menos imoral se justificado por questões de ordem financeira. Aqui ambos os lados consideram que nada justificaria matar uma criança (KACZOR, 2014). Apoio e afeto pela mulher significam sustentá-la e apoiá-la no caminho do bem moral. Ao considerar isso, o mesmo autor afirma que a moralidade comum defende como “situação eticamente inaceitável” o ato de matar uma pessoa inocente ou colaborar para que outros o façam, mesmo em condições deploráveis. A postura a ser assumida seria: “se houverproblema humano, procuraremos eliminar o problema e salvar o humano”. Por trás desta questão, está também a discussão sobre a pessoalidade do feto. Se o feto humano não é pessoa, plausivelmente nem se precisa de circunstâncias difíceis para se justificar o aborto. Todavia, se ao feto se atribui status moral intermediário, talvez certos abortos continuassem a não poder ser admitidos. Mas se o feto humano é uma pessoa como a criança de seis anos, as circunstâncias difíceis não autorizam terminar sua vida. 2.4. Opção a ser desprezada, vai contra a liberdade humana Uma compreensão possível é a de que o aborto é uma sentença de morte para um ser que não tem culpa. Ao mesmo tempo em que é possível compreender que escolher abortar seria exercício da liberdade e mesmo da capacidade de controlar a natalidade: “meu corpo, minhas regras”. Rosado-Nunes (2006) entende que se uma mulher tem que escolher sua felicidade e o respeito a uma vida humana nascente, a opção pela própria liberdade é uma decisão ética e religiosamente aceitável. Para o movimento feminista, ter domínio sobre o próprio corpo é uma bandeira a ser erguida tantas vezes quantas forem necessárias. Mas isso implica - além de uma necessidade de reconhecer o concepto como propriedade privada -, uma necessidade de se “manter o controle sobre as condições da atividade reprodutiva a fim de conduzi-la bem” (ROSADO- NUNES, 2006, p. 34). No entanto, compreender o ser em gestação como algo que pertence ao corpo da mulher seria reduzi-lo em sua razão de ser. A independência do feto manifesta-se pelo próprio impacto realizado na vida da mulher. Ela não tem controle total sobre isso. Requerer para si as rédeas do próprio corpo é moralmente aceitável, ao mesmo tempo que condição para o exercício da liberdade humana. No entanto, requerer para si a administração da existência de outro ser, bem como a decisão sobre sua vida, seria tomar para si uma responsabilidade pesada demais. Acontece que, nas relações sexuais em que se prevaleceu a necessidade de se satisfazer prazer, anula-se o ato como produto da ação livre. Sandel (2016) esclarece o conceito Kantiano de liberdade. A liberdade autônoma é o modelo mais “perfeito” da ação livre. E, ao mesmo tempo, é ação que possui como fim último a prática do bem moral. Nesse sentido, liberdade autônoma pode ser compreendida como: ter todos os motivos (elementos e motivações externas) para praticar algo moralmente errado, mas, escolher não fazê-lo. Kant afirma que “ser livre é não depender de determinações do mundo sensível”. Aqui podemos argumentar a respeito do Aufklarung, o esclarecimento. Para Kant (1784) não é possível haver uma liberdade verdadeira e intimamente humana sem a capacidade de raciocínio, que por sua vez é uma capacidade estritamente humana. O esclarecimento é portanto a saída do homem de sua minoridade intelectual, de sua capacidade reduzida de entendimento, para uma maioridade intelectual, que exigirá dele maior responsabilidade. De início é possível perceber um certo encontro com o pensamento Kantiano e o pensamento feminista ao sugerir que a decisão por abortar deveria ser resultado do exercício da consciência da mulher. Da mesma forma Kant sugere que o exercício do imperativo categórico perpassa por um saber que se deve fazer o certo simplesmente porque este é o certo, e não depender de elementos frutos da sensibilidade ou de emoções humanas que são transitórias e portanto, inconstantes. Dessa forma é possível compreender que se deve fazer o certo sempre, independente de opiniões particulares a respeito. Se matar é moralmente errado, assim o será em todos os casos, desde o menor ser humano ao mais idoso e deficiente. Não necessariamente porque isso é fruto de uma consciência particular. Mas porque as várias consciências acusaram o ato como sendo moralmente errado. Sendo assim, destaca-se que a liberdade autônoma perpassa o uso da própria consciência como elemento fundamental para alcançar a liberdade autônoma. Ao mesmo tempo em que não anula a necessidade de zelo com os valores morais já determinados. Ambos não contradizem-se, apenas serão a confirmação do que é bom justo e verdadeiro se fundamentados na mesma base que é a Verdade. E um dos elementos que impedem o ser humano de ascender para uma liberdade esclarecida são os instintos. Sobre eles, Kant afirma que são as causas pelas quais uma parte dos homens já libertos, porém repletos de comodismo, ainda insistem em permanecer como menores. Preferem-se entregar a tutela de sua vida diante de elementos transitórios e que influenciarão sua vida de forma permanente. O homem se apega a essa regência dos instintos. Não se é capaz de usar a racionalidade para reger sua existência. Não há escolha por este lado deficiente da existência. E ainda que se argumente sobre a capacidade de escolha, seria escolher pelo que é irracional, logo, uma opção por aquilo que nega a atitude livre. Levando em consideração a noção de liberdade em Kant é possível questionar-se sobre a capacidade de escolha autonomamente livre e consciente de uma mulher que está grávida de um filho que não consta em seus planos. Ora, alguém que se permite relações sexuais cujo resultado (já sabemos qual é) não é esperado, não agiu autonomamente livre. Deixou-se reger pelos instintos e abriu mão do que caracteriza a existência humana, a liberdade. Ao não esperar o filho que agora desenvolve-se em seu ventre, a mulher cria dentro de si um emaranhado de sentimentos e pensamentos que giram em torno da existência daquele ser. Se considerarmos que a criança não foi esperada, a mulher será mãe solteira e as condições financeiras não são as mais dignas. É muito provável que a mulher escolheria abortar. Mas, olhemos com atenção. Ela está fazendo com que fatores transitórios passem a ser determinantes para a vida de outro ser. A mulher em questão quer exercer sua liberdade de maneira a colocar como fundamental aquilo que Kant entende como elementos que retiram totalmente a capacidade de escolha pelo que é certo. Apenas uma consciência esclarecida do que é bom, justo e certo escolherá de forma autêntica pelo que é moralmente certo, sem levar em consideração de forma determinante o que é transitório. Dessa forma, há de se discutir se existe capacidade de escolha em uma relação sexual que não possui elementos mínimos de planejamento para algo de futuro e duradouro. Isso significa dizer que, se a medida da liberdade for pautar a existência do ser humano a uma mera busca por saciar seus desejos, seria reduzir a capacidade humana ao mero campo do empírico. A liberdade daria lugar à ditadura dos sentidos, que são inconstantes, excluindo assim qualquer capacidade de escolha mais autêntica e sustentada na capacidade de conhecer. Sendo assim, não fará sentido reivindicar para si o direito de escolher. A liberdade já foi anulada em uma etapa anterior. E todas as suas consequências não são se não produto de nossa capacidade/ausência de escolha livre e racional. A noção de liberdade autônoma é muito mais inteligível do que empírica. Isso implica que o agir livre pressupõe o assumir para si a postura de uma maioridade, que por sua vez é assumir as ações como atitude de quem pensa. Ao falar de sexualidade, Kant entende que a ação sexual deve estar pautada no princípio pela qual ela possui razão de ser: a preservação da espécie sem a degradação da pessoa. O fim pelo qual o sexo é destinado e o dever de que tal ação aconteça estão ligados ao imperativo categórico, o que se compreende como algo que não se deve abrir exceções, é um princípio moral. A atividade sexual, portanto, está ligada à capacidade de perpetuar a espécie, assim como qualqueroutra ação intrinsecamente boa. Deixar o aborto à mercê da escolha de um ser humano no mínimo pressupõe que todos adentraram à maioridade intelectual, o que não é real. Menos ainda expressa a capacidade de escolha livre. Pelo contrário, seria a negação da moral e uma supervalorização de uma consciência individual e inconstante. Quanto a reger o próprio corpo, Kant explica que não estamos à disposição nem de nós mesmos. O requisito moral para tratar-se como finalidade é a compreensão de que o homem não pode dispor de si mesmo porque não é um objeto ou uma propriedade pertencente a si próprio (cf. SANDEL, 2016, p. 163). A liberdade, para Kant, não pode ser cerceada por nada, nem pode cercear as outras liberdades. Nesse sentido, devemos considerar que “a moral [...] está fundamentada no respeito às pessoas como fins em si mesmas” (SANDEL 2016, p. 137). O agir moral tem como fundamento principal a permanência da espécie humana. Ou seja, o ser humano e sua existência são ponto final do agir bem moralmente. Qualquer ação que desvia a noção de liberdade, a reduz ou mesmo suprime a capacidade de existência do ser humano, não é ação moralmente boa. Logo, pelo imperativo categórico, pela moral Kantiana e pela noção Kantiana de liberdade autônoma, o aborto não encaixa-se como produto da ação moral humana. 2.5. Humanidade do feto Também há quem considera abortar comparável ao assassinato. Afinal, se a vida é “humana” desde a fecundação ou concepção, qualquer tipo de prática que lesa os direitos do embrião deve ser proibida. A maneira como se responde a essa questão afeta a atitude sobre o aborto. O posicionamento de algumas opiniões encontradas durante a pesquisa vai contra o pensamento de Thomson (2005), que entende não ser possível gerar tal afirmação, porque afirmações semelhantes - como o desenvolver de uma semente já ter o mesmo valor que a árvore - não fariam sentido. A este argumento Thomson o classifica como “argumento de derrapagem” (2005, p. 25). Na mesma linha vão o Movimento “Católicas pelo Direito de Decidir”, que entende o argumento da pessoalidade do feto como algo sem muita constância histórica, sendo assim, passível de questionamento sobre a sustentação filosófica de quem o defende. Ao recordar do dissenso interno da Igreja Católica no século XX – quando emergiu a discussão a respeito da Encíclica Humanae Vitae sobre questões como sexualidade e procriação –, Rosado-Nunes (2006, p. 24), explica que muitos epíscopos orientaram seus fiéis a recorrer à própria consciência, em questões de moral. Considerando que a prática abortiva também é uma questão moral - sustenta a autora -, que se recorra à própria consciência. “Tal recurso é fundamental quando se discute a possibilidade de mulheres católicas decidirem pela interrupção da gravidez” (2006, p. 25). A consciência parece ter assumido um ponto central no que diz respeito à postura moral. Esta assume a posição de regente da liberdade do indivíduo que, por sua vez, sente-se limitado existencialmente mediante imposições da autoridade. Ao considerar isso, Ratzinger (2014) entende que a moral da consciência e a moral da autoridade são elementos a se contrapor, e que a liberdade seria preservada apelando apenas para o princípio moral, tendo a consciência como norma suprema, e a autoridade – ao pronunciar-se em questões de moral -, daria apenas propostas à consciência, para que esta formule juízo autônomo. Com isso é inevitável a concepção de que a consciência é o que o ser humano tem de infalível. As ações humanas devem ser julgadas pelo que o indivíduo compreende por postura correta. Seria um retorno à ética niilista, na qual não existe erro se o indivíduo não quiser que exista. Se fosse assim, não existiria base fixa capaz de sustentar a moral e a religião que, segundo Ratzinger, são “fundamentos da nossa existência” (RATZINGER 2014, p. 88). E isso seria uma negação das próprias origens do ser humano. E uma história sem origens não encontra sustento sólido para confirmar sua finalidade. As obras de bioética nos possibilitam elencar três vertentes que pretendem definir um ponto exato da humanização: a) a humanização só acontece após a implantação do óvulo no útero (nidação); b) a constituição básica do cérebro acontece devido a um processo desenvolvimentista; c) o feto deve ser definido com base nas consequências sociais de tal decisão (a respeito da humanidade do feto). Seria uma definição que teria como medida a sociedade e suas normas morais e sociais (MOSER&SOARES, 2006; PESSINI & BARCHIFONTAINE, 1995). No entanto, a bioética, com base na pesquisa genética, esclarece que não há como negar que o embrião é portador de código genético próprio e completo. Geneticamente é um ser independente, com características próprias e únicas. A morte cerebral nos coloca diante de um ser não vivo, o que não é a mesma coisa que um embrião em determinado estágio de desenvolvimento, afinal, no primeiro caso, há uma situação irreversível, no segundo, uma capacidade celular de gerar outros tecidos e órgãos, dentre eles, o cérebro. “Tais teorias” – diz o autor – “só reforçam as suspeitas de que elas são mais ideológicas do que de caráter científico” (MOSER & SOARES, 2006, p. 63). A biologia do ser humano é consideravelmente modelada pelas relações que os outros mantêm com ele, e a vida relacional depende grandemente da biologia. Sendo assim, o desenvolvimento do feto é constantemente influenciado por fatores de ordem biológica e empáticas. “Durante os nove meses, o ser em gestação é modelado pelas trocas biológicas e relacionais que existem entre ele e a mãe” (Pessini & Barchifontaine, 1995 p. 229). Um dos argumentos pertinentes a respeito da humanização seria a determinação de quando a alma seria introduzida no corpo. Ainda que admita-se o pensamento sobre a humanização tardia, Alves (1982) justifica que todo processo que acontece entre espermatozoide e óvulo pertence à esfera humana. E mesmo se essa teoria (da humanização tardia) fosse a mais aceitável, todo o processo já iniciado culminará com a infusão da alma e, portanto, em vida humana. Sendo assim, o aborto direto voluntário possui fundamento ao ser comparável ao homicídio. Assegurando ainda mais o seu argumento, Alves apresenta a fala de Moreira da Fonseca, membro da Academia Nacional de Medicina, que diz: “O Estado protege o embrião, porque há um direito a tutelar, que se realiza na vida do nascituro. O argumento contrário é sem sentido, diante da intangibilidade dos direitos e que se concretizam, durante a gestação, na pessoa física e biológica do feto. O feticídio é um homicídio” (ALVES 1982, p. 98) Os grandes pecados contra a humanidade foram permeados sobretudo do argumento da negação da humanidade. O regime nazista, a escravidão, e a falta de reconhecimento das mulheres em sociedades patriarcais. Afinal, “temos realmente razão de crer que pela primeira vez na história humana temos razão em tratar alguns seres humanos como menos que pessoas plenas? Ou seremos julgados pela história como apenas um episódio a mais na longa lista de exploração dos poderosos sobre os fracos?” (Kaczor, 2014, p. 100). 3. Considerações finais Um dos propósitos mesmo deste trabalho é possibilitar o esclarecimento a respeito de tão detalhado tema. Não podendo, no entanto, ser um manual moral para mulheres que sofrem com o dilema da escolha por abortar ou não. Este quer provocar abordagens que possibilitem o esclarecimento e a justa e verdadeira capacidade de exercer a liberdade. Diante dos argumentos apresentados, o leitor provavelmente sentiu-se tentado a assumir um lado em detrimento do outro. Na verdade, é possível que o leitor esteja emcomunhão com pensamentos de ambos os lados. Mas, será possível ser “pró-vida” e “pró- escolha”? Será possível existir um meio termo? A pesquisa de campo aqui apresentada nos ajuda a ter contato com algumas das mais diversas opiniões. Junto a ela também confrontamos duas outras pesquisas que, feitas no mesmo período, revelam dados que no mínimo seriam contraditórios. Na verdade não serão se observarmos que: de uma forma geral, ninguém concorda com o aborto. No entanto, em casos específicos como violência sexual, risco de morte e problemas de cunho social e estrutural o número tende a outro lado. Isso não significa que o brasileiro é indeciso. Na verdade, é uma demonstração – ainda que reduzida e superficial - da capacidade de compreender que de forma geral o aborto é inadequado para uma sociedade que denomina-se evoluída, e que casos particulares devem ser analisados com cautela. O que não necessariamente implica abrir mão da ética, pelo contrário. Argumentos contra o aborto não servem para mulheres que vivem esse drama. A estas, a máxima dignidade que o ser humano pode oferecer. Quem assume-se pró-vida não necessariamente abre mão do exercício livre. Da mesma forma, quem assume a postura pró-escolha não abre mão da existência vital. Mas a liberdade será exercida de maneira mais plena e concreta e correta à medida em que a ação racional também o for de forma plena. E a plenitude da moral, baseada na razão, não é contraditória à moral da autoridade se ambas tiverem como motor primeiro a capacidade de ir em direção à Verdade. O que é verdadeiramente certo, não necessariamente é o que convém. Não é a Verdade que se adapta ao ser humano em toda sua inconstância. É este, na sua inconstância, que deve adaptar-se à Verdade na sua existência única e absoluta. A presença da filosofia neste trabalho mostrou-se de forma clara no próprio movimento de diálogo entre diferentes posturas e a presença de diferentes teóricos em diferentes períodos históricos mostrando assim a intensa e histórica busca por uma resposta concreta e, na medida do possível, constante. Ao mesmo tempo em que identifica-se um ponto de partida comum e real que influencia diretamente a existência humana (o aborto). Que existencialmente influencia a possibilidade ou não de existência de um ser humano em particular que já lança sinais de que ele é um ser em particular e que possui uma existência independente em certos aspectos do seu ser. Sendo assim, passível de análise filosófica. A bioética mostrou-se, ainda que entrelaçada nos argumentos filosóficos, nos autores a ela vinculados, como Pessini, Alves, Moser, dentre outros, que possibilitam um acesso à filosofia por este meio. A pesquisa de campo é oportuna quando possibilita aos entrevistados um exercício do pensar a respeito de questões relacionadas ao aborto, ao mesmo tempo em que proporciona ao pesquisador uma visão mais ampla do pensamento sobre aborto relativo ao senso-comum. Relacionar os posicionamentos coletados na pesquisa com a bibliografia já existente é posicionar a opinião do senso comum como também um produtor de conhecimento tão válida quanto os teóricos aqui mencionados, ao ponto de ser possível a sustentação teórica e seu diálogo com o material coletado em campo. As implicâncias morais e éticas mostram-se entrelaçadas. No entanto há de se considerar que abordar o dilema da existência de um ser que está sendo gerado, não é algo distante da argumentação lógica, como foi mostrado. A existência de ação moral mostra-se nos próprios posicionamentos aqui expostos. Ao passo que a ética, como mecanismo de reflexão da moral, mostrou-se presente na própria possibilidade de discussão a respeito da ação humana frente ao aborto. Referências ALVES, João Evangelista dos Santos et al. O aborto: o direito do nascituro à vida. Rio de Janeiro: Agir, 1982. AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Aborto?...Nunca!...: 40 razões. Lorena: Cléofas, 2005. BOLTANSKI, Luc. 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