Prévia do material em texto
ANESTÉSICOS LOCAIS a anestesia local refere-se à perda de sensação em uma região limitada do corpo. É obtida pela interrupção do fluxo neural aferente por meio da inibição da geração ou propagação de impulsos. Esse bloqueio pode produzir outras alterações fisiológicas, como paralisia muscular e supressão dos reflexos somáticos ou viscerais, e esses efeitos podem ser desejáveis ou indesejáveis, dependendo das circunstâncias específicas. Embora os anestésicos locais com frequência sejam usados como analgésicos, a sua característica diferencial consiste na capacidade de produzir uma perda completa de todas as modalidades sensoriais. O contraste com a anestesia geral deve ser óbvio, porém ressalta-se que, na anestesia local, o fármaco é administrado diretamente no órgão-alvo, e a circulação sistêmica serve apenas para diminuir ou interromper o seu efeito. A anestesia local também pode ser produzida por vários meios químicos ou físicos. Todavia, na prática clínica de rotina, é obtida com o uso de um espectro bastante estreito de compostos, e a recuperação normalmente é espontânea, previsível e sem quaisquer efeitos residuais. FARMACOLOGIA BÁSICA DOS ANESTÉSICOS LOCAIS QUÍMICA Os anestésicos locais são constituídos, em sua maioria, por um grupo lipofílico (p. ex., um anel aromático) ligado por uma cadeia intermediária, por meio de um éster ou de uma amida, a um grupo ionizável (p. ex., uma amina terciária). Além das propriedades físicas gerais das moléculas, as configurações estereoquímicas específicas estão associadas a diferenças na potência dos estereoisômeros (p. ex., levobupivacaína, ropivacaína). Como as ligações éster têm mais tendência a sofrer hidrólise do que as ligações amida, os ésteres apresentam habitualmente uma duração de ação mais curta. Os anestésicos locais são bases fracas que, em geral, estão clinicamente disponíveis na forma de sais para aumentar a so- lubilidade e a estabilidade. No organismo, ocorrem como base sem carga ou como cátion. Como a pKa da maioria dos anestésicos locais encontra-se na faixa de 7,5 a 9, a forma catiônica com carga constitui a maior porcentagem presente em pH fisiológico. Uma exceção notável é a benzocaína, cuja pKa é de cerca de 3,5, de modo que o fármaco só existe como base não ionizada em condições fisiológicas normais. Essa questão de ionização tem grande importância, visto que a forma catiônica é a mais ativa no receptor. Entretanto, a história é um pouco mais complexa, pois o sítio receptor dos anestésicos locais situa-se no vestíbulo interno do canal de sódio, e a forma do anestésico com carga penetra pouco nas membranas biológicas. Por conseguinte, a forma sem carga é importante para a penetração na célula. Após a penetração no citoplasma, a obtenção de equilíbrio leva à formação e ligação do cátion com carga no canal de sódio, com consequente produção de um efeito clínico. O fármaco também pode alcançar o receptor lateralmente por meio da denominada via hidrofóbica. Como consequência clínica, os anestésicos locais são menos efetivos quando injetados em tecidos infectados, visto que o baixo pH extracelular favorece a forma com carga, com menor disponibilidade da base neutra para difusão por meio da membrana. Por outro lado, a adição de bicarbonato a um anestésico local – uma estratégia algumas vezes empregada na prática clínica – elevará a concentração efetiva da forma não ionizada e, portanto, encurtará o tempo de início de um bloqueio regional. FARMACOCINÉTICA Quando anestésicos locais são usados para anestesia neuroaxial local, periférica e central – suas aplicações clínicas mais comuns –, a absorção sistêmica, a distribuição e a eliminação servem apenas para diminuir ou interromper seus efeitos. Por conse- guinte, a farmacocinética clássica desempenha um papel menor do que a terapia sistêmica; contudo, continua sendo importante para a duração do anestésico, e essencial e crítica para o desenvolvimento potencial de reações adversas, especificamente toxicidade ao coração e ao sistema nervoso central (SNC). A. Absorção A absorção sistêmica de um anestésico local injetado a partir de seu local de administração é determinada por diversos fatores, inclusive dose, local de injeção, ligação do fármaco aos tecidos, fluxo sanguíneo tecidual local, uso de um vasoconstritor (p. ex., epinefrina) e propriedades fisicoquímicas do próprio fármaco. Os anestésicos mais lipossolúveis geralmente são mais potentes, apresentam duração de ação mais longa e levam mais tempo para produzir seus efeitos clínicos. A sua extensa ligação às proteínas também serve para aumentar sua duração. A aplicação de um anestésico local a uma área altamente vascularizada, como a mucosa da traqueia ou o tecido que circunda os nervos intercostais, resulta em absorção mais rápida e, portanto, em níveis sanguíneos mais elevados do que se o anestésico local fosse injetado em um tecido de pouca perfusão, como a gordura subcutânea. Quando usados para bloqueio importante de condução, os níveis séricos máximos irão variar em função do local específico de injeção, estando os bloqueios intercostais entre os mais elevados, e o isquiático e o femoral entre os mais baixos. Quando se utilizam vasoconstritores com anestésicos locais, a consequente redução do fluxo sanguíneo serve para reduzir a taxa de redução sistêmica e, portanto, diminuir os níveis séricos máximos. Esse efeito é, em geral, mais evidente com os anestésicos locais de ação mais curta, menos potentes e menos lipossolúveis. B. Distribuição 1. Localizada – Como os anestésicos locais são, em geral, injetados diretamente no local do órgão-alvo, a sua distribuição dentro desse compartimento desempenha uma importante função na obtenção do efeito clínico. Por exemplo, os anestésicos administrados no espaço subaracnóideo serão diluídos com o líquido cerebrospinal (LCS), e o padrão de distribuição irá depender de numerosos fatores, entre os quais os mais críticos são a densidade específica em relação à do LCS e a posição do paciente. As soluções são denominadas hiperbáricas, isobáricas e hipobáricas, e irão descer, permanecer relativamente estáticas ou ascender, respectivamente, dentro do espaço subaracnóideo, devido à gravidade quando o paciente está sentado. Em uma revisão e análise da literatura pertinente, foram encontrados 25 fatores apontados como determinantes da disseminação do anestésico local no LCS, que podem ser classificados como características da solução anestésica, constituintes do LCS, características do paciente e técnicas de injeção. Considerações um tanto semelhantes aplicam-se aos bloqueios epidural e periférico. 2.Sistêmica – Os níveis sanguíneos máximos alcançados durante a anestesia por condução maior serão minimamente afetados pela concentração do anestésico ou pela velocidade da injeção. A distribuição desses agentes pode ser bem representada por um modelo de dois compartimentos. A fase alfa inicial reflete uma rápida distribuição no sangue e órgãos ricamente difundidos (p. ex., cérebro, fígado, coração, rins), caracterizada por um declínio exponencial acentuado na sua concentração. Essa fase é seguida de uma fase beta de declínio mais lento, refletindo a distribuição do fármaco em tecidos de menor perfusão (p. ex., músculo, intestino), assumindo uma taxa de declínio quase linear. A toxicidade potencial dos anestésicos locais é afetada pelo efeito protetor proporcionado pela captação nos pulmões, que serve para atenuar a concentração arterial, embora a duração e a magnitude desse efeito não tenham sido adequadamente caracterizadas. C. Metabolismo e excreção Os anestésicos locais do tipo amida são convertidos em metabólitos mais hidrossolúveisno fígado (tipo amida) ou no plasma (tipo éster), que são excretados na urina. Como os anestésicos locais em sua forma inalterada sofrem rápida difusão pelas membranas lipídicas, ocorre pouca ou nenhuma excreção urinária da forma neutra. A acidificação da urina promove a ionização da base amina terciária à forma com carga mais hidrossolúvel, resultando em eliminação mais rápida. Os anestésicos locais do tipo éster são hidrolisados com rapidez no sangue pela butirilcolinesterase circulante em metabólitos inativos. Por exemplo, as meias-vidas da procaína e da cloroprocaína no plasma são de menos de um minuto. Entretanto, pode ocorrer acúmulo de concentrações excessivas em pacientes com hidrólise plasmática reduzida ou ausente em consequência da presença de colinesterase plasmática atípica. Os anestésicos locais do tipo amida sofrem uma complexa biotransformação no fígado, que inclui hidroxilação e N-desalquilação por isozimas microssômicas hepáticas do citocromo P450. Existe uma considerável variação na taxa de metabolismo hepático de cada composto de tipo amida, com a seguinte ordem: prilocaína (mais rápida) > lidocaína > mepivacaína > ropivacaína ≈ bupivacaína e levobupivacaína (mais lenta). Em consequência, a toxicidade dos anestésicos locais do tipo amida tem mais tendência a ocorrer em pacientes portadores de doença hepática. Por exemplo, a meia-vida de eliminação medida da lidocaína pode aumentar de 1,6 hora em indivíduos normais (t1/2, Tabela 26-2) para mais de seis horas em pacientes com doença hepática grave. Muitos outros fármacos usados em anestesia são metabolizados pelas mesmas isozimas P450, e a administração concomitante desses fármacos competitivos pode retardar o metabolismo hepático dos anestésicos locais. Deve-se antecipar também uma redução da eliminação hepática dos anestésicos locais em pacientes com diminuição do fluxo sanguíneo hepático. Por exemplo, a liberação hepática da lidocaína em pacientes que usaram anestésicos voláteis (que reduzem o fluxo sanguíneo hepático) é mais lenta do que em pacientes que passaram por técnicas anestésicas intravenosas. Em pacientes com insuficiência cardíaca congestiva, pode ocorrer também metabolismo tardio, devido à redução do fluxo sanguíneo hepático. FARMACOCINÉTICA A. Mecanismo de ação 1. Potencial de membrana – O principal mecanismo de ação dos anestésicos locais consiste em bloqueio dos canais de sódio regulados por voltagem. A membrana excitável dos axônios nervosos, à semelhança da membrana do músculo cardíaco e dos corpos celulares neuronais, mantém um potencial transmembrana em repouso de -90 a -60 mV. Durante a excitação, ocorre abertura dos canais de sódio, e uma rápida corrente de sódio internamente dirigida despolariza com rapidez a membrana para o potencial de equilíbrio do sódio (+40 mV). Em consequência desse processo de despolarização, ocorre fechamento dos canais de sódio (inativação), enquanto os canais de potássio se abrem. O fluxo de potássio para fora repolariza a membrana para o potencial de equilíbrio do potássio (cerca de -95 mV); a repolarização faz os canais de sódio retornarem ao estado de repouso, com um tempo de recuperação característico que determina o período refratário. Os gradientes iônicos transmembrana são mantidos pela bomba de sódio. Esses fluxos iônicos assemelham-se aos do músculo cardíaco, embora sejam mais simples, e os anestésicos locais apresentam efeitos semelhantes em ambos os tecidos. 2. Isoformas dos canais de sódio – Cada canal de sódio consiste em uma única subunidade alfa contendo um poro central de condução de íons associado a subunidades beta acessórias. A subunidade alfa formadora do poro é, na verdade, suficiente para expressão funcional, porém a cinética e a dependência de voltagem da comporta do canal são modificadas pela subunidade beta. Vários canais de sódio diferentes foram caracterizados por registro eletrofisiológico, depois isolados e clonados, ao passo que a análise mutacional possibilitou a identificação dos componentes essenciais do sítio de ligação dos anestésicos locais. Dessa maneira, nove membros de uma família de canais de sódio de mamíferos foram caracterizados e classificados como Nav1.1 a Nav1.9, em que o símbolo químico representa o íon principal, o subscrito denota o regulador fisiológico (a voltagem, nesse caso), o número inicial indica o gene, e o número após o ponto, a isoforma particular. 3. Bloqueio dos canais – Certas toxinas biológicas, como a batracotoxina, a aconitina, a veratridina e alguns venenos de escorpiões ligam-se a receptores dentro do canal e impedem a sua inativação. Essa ação resulta em influxo prolongado de sódio através do canal e em despolarização do potencial em repouso. As toxinas marinhas tetrodotoxina (TTX) e saxitoxina apresentam efeitos clínicos similares, em grande parte, aos dos anestésicos locais (p. ex., bloqueio de condução sem alterações do potencial de repouso). Todavia, diferentemente dos anestésicos locais, seu sítio de ligação localiza-se próximo à superfície extracelular. A sensibilidade desses canais à TTX varia, e a subclassificação com base nessa sensibilidade farmacológica tem importantes implicações fisiológicas e terapêuticas. Seis dos já citados canais são sensíveis a concentrações nanomolares des- sa biotoxina (TTX-S), ao passo que três deles são resistentes (TTX-R). Entre estes últimos, o Nav1.8 e o Nav1.9 parecem ex- clusivamente expressos em nociceptores dos gânglios da raiz dorsal, o que aumenta a possibilidade de desenvolver alvos para essas subpopulações neuronais específicas. Essa terapia analgésica aperfeiçoada tem o potencial teórico de proporcio- nar analgesia efetiva, enquanto limita os efeitos adversos signi- ficativos produzidos por bloqueadores inespecíficos dos canais de sódio. Quando são aplicadas concentrações progressivamente crescentes de determinado anestésico local a uma fibra nervosa, o limiar de excitação aumenta, a condução de impulsos torna- -se mais lenta, a taxa de elevação do potencial de ação declina, a amplitude do potencial de ação diminui e, por fim, a capacidade de geração de um potencial de ação é totalmente abolida. Esses efeitos progressivos resultam da ligação do anestésico local a um número cada vez maior de canais de sódio. Se a corrente de sódio for bloqueada ao longo de uma extensão crítica do ner- vo, a propagação através da área bloqueada não é mais possível. Nos nervos mielinizados, a extensão crítica parece ser de 2 a 3 nós de Ranvier. Na dose mínima necessária para bloquear a propagação, o potencial de repouso não é significativamente alterado. O bloqueio dos canais de sódio pela maioria dos anestési- cos locais depende tanto da voltagem como do tempo. Os ca- nais no estado de repouso, que predominam em potenciais de membranas mais negativos, exibem afinidade muito menor com os anestésicos locais do que nos canais ativados (no es- tado aberto) e inativados, que predominam em potenciais de membrana mais positivos (ver Figura 14-10). Por conseguin- te, o efeito de determinada concentração do fármaco é mais acentuado nos axônios de disparo rápido do que nas fibras em repouso (Figura 26-3). Entre potenciais de ação sucessivos, parte dos canais de sódio recupera-se do bloqueio dos anesté- sicos locais (ver Figura 14-10). A recuperação de um bloqueio induzido por fármaco é 10 a 1.000 vezes mais lenta do que a recuperação dos canais de sua inativação normal (confor- me mostrado na Figura 14-4 para a membrana cardíaca). Em consequência, o período refratário aumenta, e o nervo conduz menos potenciais de ação. A elevação do cálcio extracelular antagoniza, em parte, a ação dos anestésicos locais, em virtude do aumento induzido pelo cálcio no potencial de superfícieda membrana (que fa- vorece o estado em repouso de baixa afinidade). Ademais, o aumento do potássio extracelular despolariza o potencial de membrana e favorece o estado inativado, intensificando o efeito dos anestésicos locais. 4. Outros efeitos – Os anestésicos locais atualmente usados ligam-se aos canais de sódio com baixa afinidade e pouca es- pecificidade, e existem vários outros locais para os quais a sua afinidade é quase igual àquela para a ligação ao canal de sódio. Por conseguinte, na presença de concentrações clinicamente relevantes, os anestésicos locais apresentam atividade potencial em inúmeros outros canais (p. ex., de potássio e de cálcio), enzi- mas (p. ex., adenililciclase, carnitina-acilcarnitina-translocase) e receptores (p. ex., N-metil-d-aspartato [NMDA], acoplados à proteína G, 5-HT3, neurocinina-1 [receptor de substância P]). A função desempenhada por esses efeitos auxiliares na produção de anestesia local parece importante, porém não está bem elucidada. Além disso, as interações com esses outros lo- cais provavelmente constituem a base para inúmeras diferenças observadas entre os anestésicos locais no que diz respeito aos efeitos anestésicos (p. ex., bloqueio diferencial) e toxicidades que não acompanham a potência anestésica, de modo que não são adequadamente explicadas apenas pelo bloqueio dos canais de sódio regulados por voltagem. As ações dos anestésicos locais circulantes nesses diversos locais exercem muitos efeitos, alguns dos quais vão além do controle da dor e são também potencialmente benéficos. Por exemplo, há evidências de que a atenuação da resposta ao es- tresse e a melhora dos resultados perioperatórios, que podem ocorrer com anestesia epidural, provêm, em parte, de uma ação do anestésico além do bloqueio dos canais de sódio. Os anesté- sicos circulantes também exibem efeitos antitrombóticos que têm impacto sobre a coagulação, sobre a agregação plaquetária e sobre a microcirculação, bem como sobre a modulação da in- flamação. B. Características de estrutura-atividade dos anestésicos locais Os anestésicos locais menores e mais lipofílicos apresentam uma taxa de interação mais rápida com o receptor do canal de sódio. Conforme assinalado anteriormente, a potência também exibe uma correlação positiva com a lipossolubilidade. A lido- caína, a procaína e a mepivacaína são mais hidrossolúveis do que a tetracaína, a bupivacaína e a ropivacaína. Estes últimos agentes são mais potentes e apresentam maior tempo de ação anestésica local. Esses anestésicos locais de ação longa também se ligam mais às proteínas e podem ser deslocados desses sítios de ligação por outros fármacos que se conectam a elas. No caso de agentes opticamente ativos (p. ex., bupivacaína), o isômero R(+) é um pouco mais potente do que o isômero S(–) (levobu- pivacaína). C. Fatores neuronais que afetam o bloqueio 1. Bloqueio diferencial – Como os anestésicos locais são ca- pazes de bloquear todos os nervos, suas ações não se limitam à perda desejada de sensação dos locais de estímulos nocivos (dolorosos). Com o uso de técnicas neuroaxiais centrais (espi- nal ou epidural), a paralisia motora pode comprometer a ativi- dade respiratória, e o bloqueio nervoso autônomo, promover o desenvolvimento de hipotensão. Além disso, deseja-se a pa- ralisia motora durante uma cirurgia, mas ela talvez represente uma desvantagem em outras situações. Por exemplo, a fraqueza motora que ocorre em consequência de anestesia epidural du- rante o trabalho de parto obstétrico pode limitar a capacidade da paciente de fazer força para baixo (i.e. “empurrar”) durante o parto. De forma semelhante, quando usados para analgesia pós-operatória, a fraqueza pode comprometer a capacidade de deambular sem ajuda e representa um risco de quedas, ao passo que o bloqueio autônomo residual pode interferir na função da bexiga, com consequente retenção urinária e necessidade de ca- teterização. Essas questões são particularmente problemáticas no caso da cirurgia ambulatorial, que representa uma porcenta- gem cada vez maior de intervenções cirúrgicas. 2. Suscetibilidade intrínseca das fibras nervosas – As fibras nervosas diferem significativamente na sua suscetibilidade ao bloqueio dos anestésicos locais. Tradicionalmente, acreditava- -se, e ainda se afirma com frequência, que os anestésicos locais bloqueiam preferencialmente as fibras de menor diâmetro em primeiro lugar, devido à distância mais curta ao longo da qual um impulso elétrico pode propagar-se passivamente nessas fi- bras. Entretanto, uma proporção variável de fibras grandes é bloqueada antes do desaparecimento do componente do po- tencial de ação composto nas fibras pequenas. De modo mais notável, os nervos mielinizados tendem a ser bloqueados antes dos nervos não mielinizados do mesmo diâmetro. Por exemplo, as fibras B pré-ganglionares são bloqueadas antes das fibras C não mielinizadas de menor tamanho envolvidas na transmissão da dor (Tabela 26-3). Outro fator importante subjacente ao bloqueio preferencial decorre do mecanismo de ação dos anestésicos locais depen- dente do estado e do uso. O bloqueio por esses fármacos é mais pronunciado em frequências mais altas de despolarização. As fibras sensoriais (da dor) apresentam uma alta frequência de descarga e uma duração do potencial de ação relativamente longa. As fibras motoras apresentam descargas em uma fre- quência mais lenta e têm potenciais de ação de duração mais curta. Como as fibras do tipo delta A e C participam na trans- missão da dor de alta frequência, essa característica pode favo- recer o seu bloqueio mais cedo, na presença de concentrações mais baixas de anestésicos locais. O impacto potencial desses efeitos exige uma interpretação cautelosa dos experimentos não fisiológicos na avaliação da suscetibilidade intrínseca dos ner- vos ao bloqueio de condução pelos anestésicos locais. 3. Disposição anatômica – Além do efeito da vulnerabilida- de intrínseca ao bloqueio dos anestésicos locais, a organiza- ção anatômica do feixe de nervo periférico pode ter impacto no início e na suscetibilidade de seus componentes. Como se pode prever com base na necessidade de as fibras sensoriais proximais serem as últimas a se juntarem no tronco nervoso, a porção interna irá conter fibras sensoriais que inervam as par- tes mais distais. Por conseguinte, um anestésico aplicado fora do feixe nervoso irá alcançar e anestesiar em primeiro lugar as fibras proximais localizadas na porção externa do feixe, e o bloqueio sensorial irá ocorrer de modo sequencial, da porção proximal para a distal. fArmAcologiA clínicA dos Anestésicos locAis Os anestésicos locais podem produzir analgesia altamente efe- tiva em regiões bem definidas do corpo. As vias habituais de administração incluem aplicação tópica (p. ex., mucosa nasal, margens de feridas [local de incisão]), injeção nas proximida- des de terminações nervosas periféricas (infiltração perineural) e grandes troncos nervosos (bloqueios), e injeção nos espaços epidural ou subaracnóideo circundando a medula espinal (Fi- gura 26-4). Características clínicas do bloqueio Na prática clínica, observa-se geralmente uma evolução orde- nada dos componentes do bloqueio, começando com a trans- missão simpática e progredindo para a temperatura, a dor, o toque leve e, por fim, o bloqueio motor. Isso é percebido com mais facilidade durante o início da anestesia espinal, em que se detecta uma discrepância espacial nas modalidades, com os componentes mais vulneráveis exibindo maior dispersão der- matomal (cefálica). Por conseguinte, a perda da sensação de frio (com frequência avaliada por uma esponja embebida em álcool) estará aproximadamente dois segmentos acima do ní- vel analgésico de uma alfinetada, que, por sua vez, estará cercade dois segmentos rostrais da perda da sensação de toque leve. Entretanto, devido às considerações anatômicas feitas anterior- mente em relação aos troncos nervosos periféricos, o início dos bloqueios periféricos varia mais, e a fraqueza motora proximal pode preceder o início da perda sensorial mais distal. Além dis- so, a solução do anestésico em geral não se deposita de modo uniforme ao redor de um feixe nervoso, e a dispersão longitu- dinal e a penetração radial no tronco nervoso estão longe de serem uniformes. No que diz respeito ao bloqueio diferencial, convém assina- lar que a anestesia cirúrgica “bem-sucedida” pode exigir a per- da do tato, e não apenas a eliminação da dor, visto que alguns pacientes irão perceber até mesmo a sensação de toque como angustiante durante a cirurgia, temendo com frequência que o procedimento se torne doloroso. Além disso, embora existam diferenças nas modalidades, não é possível, com as técnicas convencionais, produzir anestesia cirúrgica sem alguma perda da função motora. A. efeito da adição de vasoconstritores Vários benefícios podem ser obtidos com a adição de um va- soconstritor a um anestésico local. Em primeiro lugar, ocorre aumento localizado da captação neuronal, devido às concentra- ções teciduais locais mais altas e sustentadas, que podem cor- responder, clinicamente, a um bloqueio de maior duração. Isso possibilita uma anestesia adequada para procedimentos mais prolongados, maior duração do controle pós-operatório da dor e menor necessidade total de anestésico. Em segundo lugar, os níveis sanguíneos máximos estarão reduzidos, visto que a ab- sorção relaciona-se de modo mais estreito com o metabolismo e com a eliminação, e ocorre uma redução no risco de efeitos tóxicos sistêmicos. Além disso, quando incorporada a um anes- tésico espinal, a epinefrina pode não apenas contribuir para o prolongamento do efeito do anestésico local em virtude de suas propriedades vasoconstritoras, mas também exercer um efeito analgésico direto, mediado por receptores α2-adrenérgicos pós- -sinápticos dentro da medula espinal. O reconhecimento desse potencial levou ao uso clínico da clonidina, um α2-agonista, como adjuvante de anestésicos locais para anestesia espinal. Em contrapartida, a inclusão da epinefrina pode ter efeitos colaterais. A adição de epinefrina a soluções anestésicas potencia- liza a neurotoxicidade dos anestésicos locais aplicados para blo- queio nervoso periférico ou anestesia espinal. Além disso, evita- -se, em geral, o uso de um agente vasoconstritor em uma área que carece de fluxo colateral adequado (p. ex., bloqueio digital), embora alguns tenham questionado a validade dessa proibição. B. uso intencional de anestésicos locais por via sistêmica Embora o principal uso de anestésicos locais tenha por objetivo produzir anestesia em uma área restrita, esses agentes são algu- mas vezes administrados deliberadamente por via sistêmica para obtenção de efeitos supressores no processamento da dor. Além das reduções documentadas na necessidade de anestésico e na dor pós-operatória, a administração sistêmica de anestésicos lo- cais tem sido utilizada com algum sucesso no tratamento da dor crônica, e esse efeito pode permanecer por mais tempo além da duração da exposição ao anestésico. Acredita-se que o controle da dor obtido pela administração sistêmica de anestésicos locais se deve, pelo menos em parte, à supressão da descarga ectópica anormal, um efeito observado em concentrações de anestésico local de uma ordem de magnitude abaixo daquela necessária ao bloqueio da propagação dos potenciais de ação nos nervos nor- mais. Em consequência, esses efeitos podem ser obtidos sem os efeitos colaterais que ocorreriam devido à falha da condução nervosa normal. O escalonamento da dose de anestésico parece exercer as seguintes ações sistêmicas: (1) baixas concentrações suprimem preferencialmente a geração de impulsos ectópicos em nervos periféricos com lesão crônica; (2) concentrações mo- deradas suprimem a sensibilização central, o que explicaria o be- nefício terapêutico que pode se estender além da exposição ao anestésico; (3) concentrações mais altas produzem efeitos anal- gésicos gerais, podendo culminar em toxicidade grave. Toxicidade A toxicidade dos anestésicos locais provém de dois processos dis- tintos: (1) efeitos sistêmicos após injeção intravascular inadverti- da ou absorção do anestésico local de seu local de administração; (2) neurotoxicidade em consequência dos efeitos locais produzi- dos pelo contato direto com elementos neurais. A. Toxicidade sistêmica A dose de anestésico local usada para anestesia epidural ou blo- queio periférico de grande volume é suficiente para provocar toxicidade clínica significativa e até mesmo morte. A fim de se minimizar esse risco, foram promulgadas doses máximas re- comendadas de cada fármaco para aplicação geral. O conceito subjacente a essa conduta é o de que a absorção a partir do local de injeção deve corresponder apropriadamente ao metabolis- mo, impedindo, dessa maneira, a ocorrência de níveis séricos tóxicos. Entretanto, essas recomendações não consideram as características do paciente ou fatores de risco concomitantes, nem levam em conta o bloqueio nervoso periférico específico efetuado, que possui um impacto significativo na velocidade de captação sistêmica (Figura 26-2). O aspecto mais importante, entretanto, ainda é o fato de que essas recomendações não pro- porcionam uma proteção contra a toxicidade induzida por in- jeção intravascular inadvertida (às vezes em uma artéria, porém geralmente em uma veia). 1. Toxicidade para o SNC – Todos os anestésicos locais têm a capacidade de produzir sedação, tontura, distúrbios visuais e auditivos e inquietação quando a ocorrência de concentrações plasmáticas elevadas resulta de sua rápida absorção ou de sua administração intravascular inadvertida. A dormência perioral e lingual e um gosto metálico constituem sintomas precoces de toxicidade dos anestésicos locais. Em concentrações mais altas, ocorrem nistagmo e contrações musculares espasmódicas, se- guidos de convulsões tônico-clônicas. Aparentemente, os anes- tésicos locais provocam depressão das vias inibitórias corticais, possibilitando, assim, uma atividade das vias neuronais excita- tórias sem qualquer oposição. A esse estágio de transição de ex- citação não equilibrada (p. ex., atividade convulsiva) segue-se o de depressão generalizada do SNC. Todavia, esse padrão clássi- co de evolução da toxicidade foi caracterizado, em grande par- te, em estudos de voluntários humanos (que, por razões éticas, foram limitados a baixas doses) e por administração graduada em modelos animais. A observação de desvios dessa progressão clássica é comum na toxicidade clínica e influenciada por inú- meros fatores, inclusive vulnerabilidade do paciente, anestésico específico administrado, fármacos concomitantes e velocidade de elevação dos níveis séricos do fármaco. Uma revisão recente da literatura de casos clínicos relatados de cardiotoxicidade dos anestésicos locais verificou a ocorrência de sinais prodrômicos de toxicidade do SNC em apenas 18% dos casos. Quando há necessidade de grandes doses de anestésico lo- cal (p. ex., para grande bloqueio nervoso periférico ou infiltração local para cirurgia plástica de grande porte), a pré-medicação com um benzodiazepínico por via parenteral (p. ex., diazepam ou midazolam) proporciona alguma profilaxia contra a toxicida- de do SNC induzida pelo anestésico local. Entretanto, essa pré- -medicação tem pouco ou nenhum efeito sobre a toxicidade car- diovascular, retardando potencialmente a identificação de uma superdosagem fatal. É interessante assinalar que a administração de infusão de propofolou anestesia geral foi responsável por 5 dos 10 casos que apresentaram toxicidade cardiovascular isolada na revisão da literatura mencionada de casos clínicos relatados. Caso ocorram convulsões, é de suma importância evitar o desenvolvimento de hipoxemia e acidose, que potencializam a toxicidade anestésica. A intubação traqueal rápida facilita a ventilação adequada e a oxigenação, e é essencial evitar a as- piração pulmonar do conteúdo gástrico em pacientes de alto risco. O efeito da hiperventilação é complexo, e sua função na reanimação após superdosagem de anestésico é um tanto contro- versa, porém é provável que ofereça um benefício distinto quando usada para contrabalançar a acidose metabólica. As convulsões causadas por anestésicos locais devem ser rapidamente controla- das, a fim de se evitar qualquer dano ao paciente e exacerbação da acidose. A American Society of Regional Anesthesia recomenda o uso de benzodiazepínicos como fármacos de primeira linha (p. ex., midazolam, 0,03 a 0,06 mg/kg), em virtude de sua estabili- dade hemodinâmica; entretanto, a administração de pequenas doses de propofol (p. ex., 0,25 a 0,5 mg/kg) foi considerada uma alternativa aceitável, visto que esse fármaco com frequência está disponível de forma mais imediata no contexto da administração de anestésicos locais. A atividade motora da convulsão pode ser efetivamente interrompida pela administração de um bloqueador neuromuscular, embora essa medida não diminua as manifesta- ções do SNC e os esforços envidados devam incluir uma terapia direcionada à atividade convulsiva subjacente. 2. Cardiotoxicidade – As complicações mais temidas associa- das à administração de anestésicos locais resultam dos efeitos profundos que esses agentes podem exercer sobre a condução e a função cardíacas. Em 1979, um editorial da Albright forneceu uma revisão das circunstâncias de seis mortes associadas ao uso de bupivacaína e etidocaína. Esse artigo inspirador sugeriu que os anestésicos lipofílicos e potentes, relativamente novos, exi- biam maior cardiotoxicidade potencial e que talvez ocorresse parada cardíaca concomitante ou imediatamente após as con- vulsões e – o mais importante – na ausência de hipoxia ou de acidose. Embora essa sugestão tenha sido fortemente criticada, experimentos clínicos subsequentes infelizmente reforçaram a preocupação da Albright – no decorrer de 4 anos, a FDA rece- beu relatos de 12 casos de parada cardíaca associados ao uso de bupivacaína a 0,75% para anestesia epidural em obstetrícia. A maior cardiotoxicidade desses anestésicos foi comprovada a partir de estudos realizados em animais, demonstrando que do- ses de bupivacaína e etidocaína de apenas dois terços das que provocam convulsões eram capazes de induzir arritmias, ao passo que a margem entre toxicidade do SNC e cardiotoxicida- de foi de menos da metade daquela para a lidocaína. Em respos- ta a isso, a FDA proibiu o uso da bupivacaína a 0,75% em obste- trícia. Além disso, a incorporação de uma dose de teste passou a constituir um padrão de prática anestésica, juntamente com a prática de administração fracionada de anestésico local. Embora a redução na concentração anestésica da bupivacaí- na e mudanças na prática anestésica tenham contribuído sobre- maneira para reduzir o risco de cardiotoxicidade, as diferenças identificadas na toxicidade dos estereoisômeros da bupivacaína criaram a oportunidade de desenvolvimento de anestésicos po- tencialmente mais seguros (ver Capítulo 1). Pesquisas demons- traram que os enantiômeros da mistura racêmica de bupiva- caína não eram equivalentes em termos de cardiotoxicidade, apresentando o enantiômero S(–) melhor vantagem terapêu- tica, o que levou à comercialização subsequente da levobupi- vacaína. A ela se seguiu, pouco tempo depois, a ropivacaína, um anestésico ligeiramente menos potente do que a bupivaca- ína. Entretanto, convém assinalar que a redução da toxicidade proporcionada por esses compostos é apenas modesta, e que o risco de cardiotoxicidade significativa continua sendo uma pre- ocupação muito real quando se administram esses anestésicos para bloqueios de grande volume. 3. Reversão da toxicidade da bupivacaína – Recentemente, uma série de eventos clínicos, observações casuais, experimentos sistemáticos e decisões clínicas racionais identificaram uma terapia simples, prática e aparentemente efetiva para a cardio- toxicidade resistente da bupivacaína utilizando a infusão in- travenosa de lipídeo. Essa terapia parece ter aplicações que se estendem além da cardiotoxicidade da bupivacaína, incluindo a toxicidade cardíaca ou do SNC induzida por uma superdosa- gem de qualquer fármaco lipossolúvel (ver Quadro “Ressusci- tação com lipídeos”). B. Toxicidade Localizada 1. Lesão neural – Desde a introdução inicial da anestesia es- pinal na prática clínica, relatos esporádicos de lesão neuroló- gica associada a essa técnica levaram à preocupação de que os agentes anestésicos locais fossem potencialmente neurotóxicos. Após a ocorrência de lesões associadas ao uso de uma formu- lação para anestesia espinal com procaína, a atenção inicial foi dirigida aos componentes do veículo. Entretanto, estudos experi- mentais constataram que a procaína a 10% isoladamente induzia lesões semelhantes em gatos, o que não ocorria com o veículo. A preocupação quanto à neurotoxicidade anestésica reapareceu no início da década de 1980 com uma série de relatos de lesão neurológica significativa após o uso de cloroprocaína para anes- tesia epidural. Nesses casos, houve evidências de que o anestésico destinado ao espaço epidural foi inadvertidamente administrado por via intratecal. Como a dose necessária para anestesia espinal é cerca de uma ordem de magnitude menor do que para anestesia epidural, a lesão resultou, aparentemente, da exposição excessiva dos elementos neurais subaracnóideos mais vulneráveis. Com as mudanças efetuadas na formulação dos veículos e na prática clínica, as preocupações quanto à toxicidade mais uma vez diminuíram, para reaparecer uma década mais tarde com relatos de síndrome da cauda equina associada à anestesia espinal contínua (AEC). Diferentemente da técnica mais co- mum de injeção única, a AEC consiste na colocação de um ca- teter no espaço subaracnóideo para possibilitar a administração de doses repetidas, visando facilitar uma anestesia adequada e manutenção do bloqueio por um período extenso de tempo. Nesses casos, o anestésico local foi evidentemente administrado a uma área restrita do espaço subaracnóideo; para se estender o bloqueio a fim de se obter uma anestesia cirúrgica adequada, foram então administradas múltiplas doses do anestésico. Por ocasião em que o bloqueio ficou adequado, houve acúmulo de concentrações neurotóxicas em uma área restrita da região cau- dal do espaço subaracnóideo. Mais notavelmente, o anestésico na maioria desses casos foi a lidocaína, um fármaco considerado como o menos tóxico pela maioria dos médicos. Esse evento foi seguido de relatos de lesão neurotóxica causada pela lidocaína destinada à administração epidural, inadvertidamente admi- nistrada por via intratecal, à semelhança dos casos anteriores envolvendo a cloroprocaína, há uma década. A ocorrência de lesão neurotóxica com AEC e com a administração subaracnói- dea de doses de lidocaína para anestesia epidural serviu para estabelecer uma vulnerabilidade toda vez que se administra um anestésico em excesso por via intratecal, independentemente do anestésico específico usado. O que mais preocupa é o fato de que relatos subsequentes forneceram evidências de lesão com a administração espinal de lidocaína no limite superior da dose clínica recomendada, levando a recomendações de uma redu- ção da dose máxima. Esses relatos clínicos(bem como estudos experimentais concomitantes) serviram para dissipar o con- ceito de que os modernos anestésicos locais administrados em doses e concentrações clinicamente relevantes são incapazes de induzir lesão neurotóxica. O mecanismo da neurotoxicidade dos anestésicos locais foi muito investigado em cultura de células, axônios isolados e mo- delos in vivo. Esses estudos demonstraram inúmeros efeitos dele- térios, inclusive falha da condução, lesão da membrana, extrava- samento de enzimas, ruptura do citoesqueleto, acúmulo de cálcio intracelular, interrupção do transporte axonal, colapso do cone de crescimento e apoptose. Ainda não foi esclarecido o papel que esses ou outros fatores podem desempenhar na lesão clínica. En- tretanto, é evidente que a lesão não resulta do bloqueio do canal de sódio regulado por voltagem em si, de modo que o efeito clí- nico e a toxicidade não estão estreitamente ligados. 2. Sintomas neurológicos transitórios (SNT) – Além das com- plicações neurais muito raras, porém devastadoras, que podem ocorrer com a administração neuroaxial (espinal e epidural) de anestésicos locais, uma síndrome de dor ou disestesia transitória ou ambas foi recentemente associada ao uso da lidocaína para anestesia espinal. Embora esses sintomas não estejam associados a uma perda sensorial, fraqueza motora ou disfunção intestinal ou vesical, a dor pode ser muito intensa, ultrapassando com fre- quência a intensidade daquela provocada pelo procedimento cirúrgico. Os SNT ocorrem até mesmo com doses modestas de anestésico e foram documentados em até um terço dos pacien- tes aos quais se administrou lidocaína, com risco aumentado as- sociado a certas posições do paciente durante a cirurgia (p. ex., litotomia) e anestesia ambulatorial. O risco com outros anes- tésicos varia de modo considerável. Por exemplo, a incidência é apenas um pouco reduzida com o uso de procaína ou mepi- vacaína, porém parece insignificante com a bupivacaína, prilo- caína e cloroprocaína. A etiologia e o significado dos SNT ainda não foram estabelecidos, porém as diferenças entre fatores que afetam os SNT e a toxicidade em animais de laboratório consti- tuem um forte argumento contra um mecanismo comum para mediar esses sintomas e os déficits neurológicos persistentes ou permanentes. Todavia, a elevada incidência de SNT contribuiu sobremaneira para a insatisfação com o uso de lidocaína como anestésico espinal, levando ao abandono quase total dessa técni- ca (embora continue sendo um anestésico popular e apropria- do para todas as outras aplicações, inclusive anestesia epidural). A cloroprocaína, outrora considerada um anestésico mais tóxi- co, está sendo explorada para anestesia espinal de curta dura- ção como alternativa à lidocaína, um composto usado para bem mais de 50 milhões de procedimentos de anestesia espinal. Anestésicos locAis comumente usAdos e suAs APlicAções ArticAínA Aprovada para uso nos Estados Unidos, em abril de 2000, como anestésico para odontologia, a articaína é singular entre os anes- tésicos do tipo amino-amida por ter um anel tiofeno, no lugar de um anel de benzeno, bem como um grupo éster adicional sujeito a metabolismo por esterases plasmáticas (Tabela 26-1). A modi- ficação do anel serve para aumentar a lipofilicidade, melhoran- do, assim, a penetração nos tecidos, enquanto a inclusão do éster resulta em meia-vida plasmática mais curta (cerca de 20 minu- tos), conferindo-lhe um melhor índice terapêutico em relação à toxicidade sistêmica. Essas características levaram a uma ampla popularidade da articaína na anestesia dentária, situação na qual, em geral, é considerada mais efetiva e, possivelmente, mais segu- ra do que a lidocaína, o padrão anterior. Em contraposição a es- ses atributos positivos, existe a preocupação de desenvolvimento de parestesias persistentes, apesar de raras, que podem ser três vezes mais comuns com o uso da articaína. Entretanto, a prilo- caína tem sido associada a uma incidência relativa ainda maior (duas vezes a da articaína). É importante assinalar que estes con- sistem nos únicos dois anestésicos de uso odontológico formu- lados em soluções a 4%; todos os outros são comercializados em concentrações menores (p. ex., a concentração máxima de lido- caína para anestesia de uso odontológico é de 2%), e já está bem estabelecido que a neurotoxicidade anestésica, em certo grau, depende da concentração. Por conseguinte, é possível que o ris- co aumentado decorra mais da formulação do que de uma pro- priedade intrínseca do anestésico. Em um levantamento recente de instituições de ensino de odontologia no Canadá e nos EUA, mais da metade dos que responderam indicaram que a articaína a 4% não é mais usada para bloqueio do nervo mandibular. benzocAínA Conforme assinalado anteriormente, a lipofilicidade pronun- ciada da benzocaína relegou a sua aplicação à anestesia tópica. Todavia, apesar de um século de uso para essa finalidade, a sua popularidade diminuiu recentemente, devido à preocupação crescente acerca de seu potencial na indução de metemoglobi- nemia. Os níveis elevados talvez se devam a erros inatos, ou po- dem ocorrer com exposição a um agente oxidante, sendo este o caso observado na exposição significativa à benzocaína (ou aos nitritos, ver Capítulo 12). Como a metemoglobina não trans- porta oxigênio, os níveis elevados representam um sério risco, sendo a gravidade obviamente paralela aos níveis sanguíneos observados. buPiVAcAínA Devido à preocupação quanto à sua cardiotoxicidade, a bupiva- caína com frequência é evitada em técnicas que exigem grandes volumes de anestésico concentrado, como bloqueios epidural ou de nervos periféricos realizados para anestesia cirúrgica. Por outro lado, concentrações relativamente baixas (≤ 0,25%) com frequência são usadas com vistas à obtenção de uma anestesia periférica prolongada e analgesia para controle da dor pós-ope- ratória, e o fármaco tem uma popularidade semelhante quando a infiltração do anestésico é usada para controle da dor na in- cisão cirúrgica. Com frequência, trata-se do agente de escolha para infusões epidurais usadas para controle da dor pós-opera- tória e analgesia no trabalho de parto. Por fim, a bupivacaína tem uma história comparativa impecável como anestésico espinal, com índice terapêutico favorável no que concerne à neurotoxicidade e pouco ou nenhum risco de SNT. Todavia, a bupivacaína espinal não é bem apropriada para cirurgia am- bulatorial, visto que a sua duração de ação relativamente longa pode retardar a recuperação, exigindo maior permanência do paciente antes de receber alta. cloroProcAínA A introdução da cloroprocaína na prática clínica, em 1951, representou uma regressão ao modelo amino-éster anterior. A cloroprocaína conquistou uma aceitação disseminada como agente epidural na anestesia obstétrica, situação na qual a sua rápida hidrólise serve para minimizar o risco de toxicidade sis- têmica ou exposição do feto. Os relatos lamentáveis de lesão neurológica associada à administração intratecal incorreta apa- rente de grandes doses destinadas ao espaço epidural levaram a seu quase abandono. Entretanto, a ocorrência frequente de SNT quando se administra lidocaína como anestésico espinal criou uma lacuna em termos de anestésicos, de modo que a clo- roprocaína parece bem apropriada para preencher essa vaga. O início e a duração de ação da cloroprocaína espinal são ainda mais curtos que os da lidocaína, porém apresentam pouco ou nenhum risco de SNT. Embora a cloroprocaína nunca tenha sido isentada no que diz respeito às antigas lesões neurológicas associadas à anestesia epidural, sabe-se atualmente que a admi- nistração de altas doses de qualquer anestésico local é capaz de induzir lesão neurotóxica. Na atualidade,uma formulação é co- mercializada na Europa especificamente para anestesia espinal, e uma solução isenta de conservantes disponível nos Estados Unidos tem considerável uso sem indicação na bula. Entretan- to, o uso documentado como anestésico espinal é relativamente limitado, e é necessária uma experiência adicional para esta- belecer firmemente a sua segurança. Além do uso emergente como anestésico espinal, a cloroprocaína ainda tem alguma aplicação atual como anestésico epidural, em particular em si- tuações nas quais há um cateter de demora e necessidade de obter uma rápida anestesia cirúrgica, como cesariana em uma parturiente em trabalho de parto com sofrimento fetal. cocAínA O uso clínico atual da cocaína limita-se, em grande parte, à anestesia tópica para procedimentos otorrinolaringológicos, em que a intensa vasoconstrição produzida pode servir para re- duzir o sangramento. Mesmo nesses casos, o seu uso diminuiu a favor de outros anestésicos associados a vasoconstritores, devido a uma preocupação acerca de sua toxicidade sistêmica, bem como à inconveniência da dispensação e da manipulação dessa substância controlada. etidocAínA Introduzida juntamente com a bupivacaína, a etidocaína teve aplicação limitada, em virtude de suas fracas características de bloqueio. A etidocaína tende a produzir um bloqueio diferen- cial inverso (p. ex., em comparação com outros anestésicos, como a bupivacaína, a etidocaína produz bloqueio motor ex- cessivo em comparação com o bloqueio sensorial), o que rara- mente constitui um atributo favorável. leVobuPiVAcAínA Conforme discutido, esse enantiômero S(–) da bupivacaína é um pouco menos cardiotóxico do que a mistura racêmica. É também menos potente e tende a apresentar duração de ação mais longa, embora a magnitude desses efeitos seja demasia- do pequena para ter qualquer importância clínica substancial. É interessante assinalar que trabalhos recentes com ressusci- tação com lipídeos sugerem uma vantagem potencial da levo- bupivacaína em relação à ropivacaína, visto que a primeira é sequestrada de modo mais efetivo no denominado “lipid sink”, implicando maior capacidade de reversão dos efeitos tóxicos, caso venham a ocorrer. lidocAínA Além da questão da alta incidência de SNT com a sua adminis- tração espinal, a lidocaína tem excelente registro como anes- tésico de duração intermediária e continua sendo o padrão de referência para a comparação da maioria dos anestésicos. mePiVAcAínA Apesar de ser estruturalmente semelhante à bupivacaína e à ropivacaína (Tabela 26-1), a mepivacaína exibe propriedades clínicas comparáveis às da lidocaína. Todavia, difere da lido- caína no que diz respeito à vasoatividade, visto que a mepiva- caína tende a produzir vasoconstrição, em lugar de vasodila- tação. Essa característica provavelmente explica a sua duração um pouco mais longa, tornando-a uma escolha popular para bloqueio periférico grande. A lidocaína manteve o seu domínio sobre a mepivacaína para anestesia epidural, situação na qual a colocação rotineira de cateter anula a importância da maior du- ração. Mais importante ainda é o fato de a mepivacaína ser len- tamente metabolizada pelo feto, tornando-a uma escolha im- própria para anestesia epidural na parturiente. Quando usada para anestesia espinal, a mepivacaína apresenta uma incidência um pouco mais baixa de SNT do que a lidocaína. PrilocAínA Entre os anestésicos do tipo amino-amida, a prilocaína é a que apresenta maior depuração, conferindo-lhe um risco reduzido de toxicidade sistêmica. Infelizmente, essa vantagem é um tan- to anulada por sua tendência a induzir metemoglobinemia, em consequência do acúmulo de um de seus metabólitos, a ortoto- luidina, que é um agente oxidante. Como anestésico espinal, a duração de ação da prilocaína é um pouco mais longa do que a da lidocaína, e os dados limitados disponíveis sugerem que está associada a um baixo risco de SNT. A prilocaína está sendo cada vez mais usada para anestesia espinal na Europa, onde foi comercializada especificamente para essa finalidade. Não existe nenhuma formulação aprovada nos Estados Unidos, nem qual- quer formulação que possa ser apropriada para uso na anestesia espinal como indicação não incluída na bula. roPiVAcAínA A ropivacaína é um enantiômero S(–) em uma série homólo- ga, que inclui a bupivacaína e a mepivacaína, distinguida por sua quiralidade e grupo propila fora do anel piperidina (Tabela 26-1). A reduzida cardiotoxicidade percebida levou a seu uso disseminado para bloqueio periférico de grande volume. A ro- pivacaína também constitui uma escolha popular para infusão epidural para controle da dor no trabalho de parto e pós-ope- ratória. Embora haja algumas evidências de que a ropivacaína produz um bloqueio diferencial mais favorável do que a bupi- vacaína, a falta de potência clínica equivalente contribui para a complexidade dessas comparações. emlA O termo eutético é aplicado a misturas nas quais a combinação de elementos apresenta uma temperatura de fusão mais baixa do que cada um dos elementos componentes. A lidocaína e a pri- locaína podem ser combinadas para formar uma mistura desse tipo, comercializada como EMLA (Eutectic Mixture of Local Anesthetics*). Essa formulação, que contém 2,5% de lidocaína e 2,5% de prilocaína, possibilita a penetração do anestésico na camada ceratinizada da pele, produzindo dormência localizada. É comumente usada em pediatria a fim de se anestesiar a pele an- tes de uma punção venosa para colocação de cateter intravenoso. tendÊnciAs futurAs Formulações de liberação retardada A administração de analgesia ou anestesia prolongadas, como no caso de tratamento da dor pós-operatória, tem sido tradicional- mente efetuada com a colocação de um cateter para possibilitar uma administração contínua do anestésico. Mais recentemente, esforços foram envidados com vistas ao desenvolvimento de sis- temas de administração capazes de liberar lentamente o anestési- co, proporcionando, assim, maior duração sem o inconveniente de um cateter. A administração de liberação retardada tem a van- tagem potencial adicional de reduzir o risco de toxicidade sistê- mica. O trabalho preliminar de encapsular o anestésico local em microesferas, lipossomas e outras micropartículas forneceu uma prova do conceito, embora ainda seja necessário resolver proble- mas de desenvolvimento significativos, bem como questões rela- tivas à sua toxicidade tecidual potencial. Agentes menos tóxicos; agentes mais seletivos Foi claramente demonstrado que a neurotoxicidade dos anesté- sicos não resulta do bloqueio dos canais de sódio regulados por voltagem. Por conseguinte, o efeito e a toxicidade tecidual não são mediados por um mecanismo comum, estabelecendo a pos- sibilidade de desenvolver compostos com índices terapêuticos consideravelmente melhores. Conforme discutido, a identificação e a subclassificação de famílias de canais de sódio neuronais estimularam a pesquisa voltada ao desenvolvimento de bloqueadores mais seletivos dos canais de sódio. A distribuição neuronal variável dessas isofor- mas e a função singular que alguns desempenham na sinaliza- ção da dor sugerem que é possível se obter um bloqueio seletivo desses canais, o que poderá melhorar bastante o índice terapêu- tico dos moduladores dos canais de sódio.