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Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 1 Modelos Psicanalíticos e Humanistas “Textos Essenciais da Psicanálise: Volume I – O Inconsciente, os Sonhos e a Vida Pulsional” Sigmund Freud Mestrado Integrado em Psicologia | 2º ano Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 2 1. Análise Leiga: A questão da Análise Leiga I Os pacientes reconhecem que estão doentes e recorrem a um médico. Estes examinam os órgãos que produzem os sintomas e recomendam interrupções no modo normal da vida do paciente. O analista não usa qualquer instrumento – nem receita nem medicamentos. Deixa o doente no seu próprio ambiente e modo normal de vida durante o tratamento. O analista combina uma hora com o paciente, põe-no a falar, escuta-o, fala-lhe e fá-lo escutar. Os tratamentos analíticos levam meses ou anos. O analista não despreza a palavra, visto que é um instrumento muito utilizado e poderoso. É o meio através do qual transmitimos os sentimentos entre nós, o método para influenciar outras pessoas. Incita-se a que o paciente seja inteiramente sincero, que não esconda intencionalmente nada do que lhe venha à cabeça e que ponha de lado toda e qualquer reserva que possa impedi-lo de contar certos pensamentos ou recordações. É necessário fazer-lhe notar que não se usa influência pessoal nem “sugestões” para suprimir os sintomas da doença, como acontece com a sugestão hipnótica. Pretende-se que o paciente compreenda que esses sentimentos duradouros e persistentes têm uma base real e que se pode descobrir. II Ego: uma organização mental que está interpolada entre, por um lado, os estímulos sensoriais e a perceção das necessidades somáticas e, pelo outro, os atos motores e que serve de mediador entre eles para um fim especial. É a camada externa e periférica do aparelho mental (do id) que foi modificada por influência do mundo externo (da realidade). O ego é algo mais superficial. Fica entre a realidade e o id. Caracterizado por uma tendência notória no sentido de unificação, da síntese. Os processos do ego são os únicos que se podem tornar conscientes (nem todos e nem sempre, podendo grandes parcelas permanecerem indefinidamente inconscientes). A sua principal função é decidir quando é mais apropriado controlar as próprias paixões, curvando-se perante a realidade, e quando é mais apropriado alinhar com elas e lutar contra o exterior. Id: região mental mais extensa, dominante e obscura que o “eu”. É mais profundo. Não há conflitos: as contradições e as antíteses vivem lado a lado, sendo muita vezes ajustadas pela formação de compromissos. Não existe a característica da unificação, estando “em bocados” (os seus diferentes impulsos prosseguem independentemente os seus respetivos propósitos, sem tomar os outros em consideração). Tudo o que acontece no id é permanentemente inconsciente. Superego/Consciência: instância ligada imediatamente ao mundo externo, um sistema, um órgão, pela excitação. Pode ser excitada tanto do exterior – recebendo assim (com a ajuda dos órgãos sensoriais) os estímulos do mundo externo – como do interior – tomando, assim, consciência das sensações do id e também dos processos Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 3 desenvolvidos no ego. Pertence ao ego e compartilha do seu elevado grau de organização psicológica, mas tem também uma ligação particularmente íntima com o id. É um precipitado dos primeiros investimentos do id num objeto e é o herdeiro do complexo de Édipo depois de ele ter sido abandonado. É capaz de enfrentar o ego e trata-lo com um objeto. A saúde mental depende fortemente do facto de o superego estar normalmente desenvolvido – isto é, de ele se ter tornado suficientemente impessoal. Qualquer observação permite que podem ocorrer-nos ideias que não podiam ter brotado sem preparação. Mas não sentimos nenhuma dessas fases preliminares do pensamento, embora também elas tenham natureza mental. O ego e o id formam um todo. III As forças que põem o aparelho mental em atividade são produzidas nos órgãos do corpo como expressão das principais necessidades somáticas. A estas necessidades corporais, damos o nome de pulsões. Estas pulsões preenchem o id: todas as energias do ide têm nelas a sua origem e derivam das forças existentes no id. Pretendem a satisfação, isto é, a criação de situações nas quais as necessidades corporais possam ser extintas. Uma diminuição da tensão da necessidade é sentida pelo nosso órgão de consciência como prazer. Um aumento dessa tensão é sentido como um desprazer – “predomínio do prazer”. Se as exigências pulsionais do id não são satisfeitas, podem criar-se condições intoleráveis. É missão do ego estar de guardar contra estas condições, servindo de mediador entre as exigências do id e as objeções do mundo exterior. Por um lado, e com a ajuda dos órgãos dos sentidos, o sistema de consciência observa o mundo externo, de modo a captar o momento favorável para uma satisfação sem prejuízos. Por outro lado, influencia o id, põe-lhe um travão nas suas “paixões”, convence as pulsões a adiar a sua satisfação e modifica os seus alvos ou, mediante uma qualquer compensação, a desistir deles – “princípio da realidade”. No recalcamento, o ego segue o princípio do prazer, coisa que tem por hábito corrigir, e é bem possível que sofra danos. Este dano reside no facto de o ego ter para sempre estreitado a sua esfera de influência. A noção pulsional recalcada está agora isolada, abandonada a si mesma, inacessível mas também não influenciável. Esta pulsão produz derivados psíquicos para a substituir. Penetra à força no ego e na consciência sob a forma de um qualquer substituto distorcido e irreconhecível e cria aquilo a que chamamos de sintoma. Origem da neurose: o ego fez uma tentativa no sentido de suprimir certas porções do id, mas de ma maneira não adequada. Essa tentativa falhou e o id “vingou-se”. Uma neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id em que se lançou o ego, porque deseja manter a sua adaptabilidade em relação ao mundo exterior real. Este conflito é Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 4 originado na circunstância de o ego ter recorrido ao instrumento ineficiente que é o recalcamento para resolver esse problema. O ego está ainda pouco desenvolvido e sem poder, sendo que os recalcamentos decisivos acontecem sempre na infância. Tratamento das doenças neuróticas: Tentar refazer o ego, libertá-lo das suas restrições e devolver-lhe o comando sobre o id que perdeu por causa dos seus anteriores recalcamentos. Procurar descobrir os recalcamentos que foram criados e incitar o ego a corrigi-los e a enfrentar os conflitos de melhor forma (ao invés da fuga). Uma vez que os recalcamentos pertencem aos primeiros anos de vida, também o trabalho do analista nos leva de volta a este período. O caminho até essas situações de conflito, que foram na maioria esquecidas e que se tenta reavivar na mente do paciente, é-nos indicado pelos seus sintomas, sonhos e associações livres. O processo será bem-sucedido se a situação de recalcamento puder ser reproduzida na memória. IV A análise baseia-se numa confiança plena. Contam-se coisas que são escondidas de todas as outras pessoas. Os fatores da vida sexual desempenham um papel extremamente importante, dominante e específico como causa e fator precipitante das doenças neuróticas. Os impulsos instintivos sexuais acompanham a vida desde o nascimento, o que é precisamente na intenção de vencer essas pulsões que o ego infantil institui recalcamentos.A função sexual, desde o seu começo até à forma definitiva, sofre um processo de desenvolvimento. Nasce de várias pulsões parciais com diferentes alvos e passa por diversas fases de organização, até que entra ao serviço da reprodução. Nem todas as pulsões parciais que a compõem têm igual utilidade para o produto final; terão de ser modificadas, remodeladas e, em parte, suprimidas. Acontecem inibições n desenvolvimento, fixações parciais nos primeiros estágios de desenvolvimento. Se mais tarde surgirem obstáculos de exercício da função sexual, o impulso sexual – líbido – pode recuar até esses anteriores pontos de fixação. Na vida sexual das crianças, é necessário vincar o facto de estas pulsões sexuais se desenvolverem nos primeiros cinco anos de vida. Desde então até à puberdade, estende-se o período de latência. Durante este período, a sexualidade não costuma avançar; aliás, os impulsos sexuais diminuem de força e muitas coisas que a criança fazia e sabia são abandonadas e esquecidas. Depois da primeira florescência da sexualidade, surgem atitudes do ego como vergonha, repulsa e moralidade, atitudes destinadas a, mais tarde, fazer frente às tempestades da puberdade e a estabelecer o caminho dos desejos sexuais que acordam – a isto chama- se “instauração difásica”. É vulgar que os rapazes pequenos temam ser comidos pelo pai. As crianças do sexo masculino têm medo que o pai lhes roube o seu órgão genital e esse medo de castração tem influência no desenvolvimento do seu caráter e na decisão da direção a seguir pela Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 5 sexualidade. O órgão sexual feminino não desempenha nela qualquer papel, até porque a criança ainda não o descobriu. A ênfase recai no órgão masculino, todo o interesse da criança está voltado para a questão de saber se esse órgão está ou não presente. As meninas sentem profundamente a falta de um órgão sexual de valor igual ao masculino; por este motivo, consideram-se inferiores, e essa “inveja do pénis” é a origem de todo um número de reações femininas características. É típico que as suas necessidades de excreção sejam investidas de um interesse sexual. As crianças orientam geralmente os seus desejos sexuais na direção dos seus parentes mais próximos. O primeiro objeto de amor de um rapaz é a sua mãe e de uma rapariga é o pai. O outro genitor é sentido como um rival incomodativo e não poucas vezes encarado com forte hostilidade. Os seus desejos culminam na intenção de ter e procriar um bebé. A toda esta estrutura mental damos o nome de “complexo de Édipo”. Somos tentados a dizer que a neurose nas crianças não é exceção. Na maioria dos casos, esta fase neurótica da infância é superada espontaneamente. Os impulsos sexuais das crianças encontram as suas principais expressões na autogratificação, pela fricção dos seus próprios órgãos genitais. No que diz respeito ao tratamento analítico, é necessário ter em conta determinadas etapas. Inicialmente, é necessário encontrar a interpretação correta. Depois, temos de esperar pelo momento certo para comunicar, com certa possibilidade de êxito, essa interpretação ao paciente. A fórmula é esperar até ele se ter aproximado tanto do material recalcado que lhe falte dar apenas pouco mais passos sob a direção da interpretação que lhe propomos. De seguida, descobre-se que fomos enganados pelo paciente, que não podemos contar com a sua colaboração, que ele está pronto a erguer todos os obstáculos possíveis para entravar o seu trabalho em comum. O paciente quer ser curado – mas também quer não ser curado. O seu ego perdeu a unidade e por essa razão também o seu querer não tem unidade – “ganho da doença”. Nos neuróticos, cujo complexo de Édipo não passou pelo processo correto de transformação, o superego não está completamente desenvolvido para garantir a saúde mental. A doença é empregada como instrumento para a autopunição e os neuróticos têm de se comportar como se fossem governados por um sentimento de culpa que, para ser satisfeito, precisa de ser castigado pela doença. O “sentimento inconsciente da culpa” representa a resistência do superego. Se durante o primeiro período, o ego, por medo, estabeleceu um recalcamento, então esse medo continua a existir e manifesta-se como resistência, se o ego se aproximar do material recalcado. A resistência do id consiste na dificuldade em seguir um novo caminho que acaba de ser aberto subitamente. A função do analista é lutar contra estas resistências. Com o desenrolar do processo, surge uma paixão de amor do paciente pelo analista. O amor do paciente não se satisfaz com ser obediente; torna-se exigente, pede satisfações sexuais e de afeto, exige exclusividade; desenvolve ciúmes e vai mostrando cada vez mais o reverso da medalha, a sua prontidão em tornar-se hostil e vingativo quando não consegue o que pretende. Ao mesmo tempo, afasta qualquer outro material mental; extingue o interesse no tratamento e na recuperação. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 6 À medida que as facetas puramente sensuais e hostis do seu amor tentam manifestar- se, a oposição do paciente a essas facetas é despertada. Ele luta contra elas e tenta recalca-las perante os nossos olhos. E aí compreendemos que, nesse cair apaixonado pelo analista, o paciente está a repetir experiências mentais por que já anteriormente passou; transferiu para o analista atitudes mentais que estavam prontas dentro de si e que se encontravam intimamente ligadas à neurose; repete antigas ações defensivas. O enigma do amor transferencial é resolvido e a análise prossegue o seu caminho. VI Os médicos formam um grupo de pessoas que fazem tratamentos sem possuir conhecimentos e capacidade para tal no campo da análise. Muitas vezes, praticam tratamentos analíticos sem os terem aprendido e sem os compreenderem. Freud propõe uma política de laissez faire, isto é, com regulamentos suficientes para quem pratica a psicanálise (já que considera que demasiadas proibições não irão funcionar). VII Freud não anula a possibilidade de médicos procederem com a análise, mas com os devidos cuidados. No entanto, a forma como os médicos lidam com os problemas neuróticos é acrescido, na medida em que a precaução no diagnóstico é essencial. O diagnóstico preferencial nem sempre é fácil e na pode ser feito de imediato em todas as fases. O diagnóstico é habitualmente feito por um médico e depois, este deverá encaminhar o paciente para um analista. No entanto, o diagnóstico de uma neurose não é facilitado, visto que se pode apresentar através de várias facetas com diferentes significados (como por exemplo, estar perto da loucura). Há ainda outra situação em que o analista tem de recorrer a um médico: quando o paciente apresenta sintomas físicos, podendo estar relacionados com a neurose ou com uma doença orgânica. Uma regra técnica diz que, se no tratamento surgirem sintomas dúbios, o analista tem de recorrer a um médico que não esteja ligado ao caso, mesmo que o analista seja médico e tenha conhecimentos nesse campo. Existem várias razões para a implementação desta regra. Em primeiro lugar, não é boa ideia que uma combinação de tratamento orgânico e psíquico seja feito pela mesma pessoa. Em segundo lugar, a relação na transferência pode tornar desaconselhável que o analista examine o paciente fisicamente. Em terceiro lugar, o analista tem todas as razoes para pôr em dúvida a sua imparcialidade, visto que os seus interesses estão orientados para os fatores psíquicos. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 7 2. O significado dos sonhos Introdução Hoje em dia, já ninguém ignora que grande parteda vida mental se desenrola sem delas termos consciência, isto é, que o nosso ego “não é dono e senhor da sua própria casa”. Esse inconsciente inclui a vida pulsional, cujos derivados, sob a forma de desejos, lutam pela satisfação. O modo próprio do inconsciente segue os seus cainhos, dirigidos apenas no sentido de alcançar o prazer. Usa uma linguagem pictórica que não tem palavras à sua disposição. A pessoa dorme para regressar a um estado primário e tente experimentar em sonhos tudo aquilo que durante o dia manteve sob o mais rigoroso controlo por amor às considerações da realidade. Freud considera os sonhos como a mais importante via conducente às forças subterrâneas que determinam as parapraxias da vida quotidiana, a escolha do parceiro no amor e a formação de sintomas de neurose e psicose nas doenças mentais. I Existem 3 linhas de pensamento acerca dos sonhos. Uma delas é utilizada por certos filósofos. Consideram que a base da vida onírica é um estado peculiar de atividade mental, tratando-se de um estado de elevação a um nível superior. Afirmam que os sonhos nascem essencialmente de impulsos mentais e representam manifestações de forças mentais que foram impedidas de se expandir livremente durante o dia. Um segundo ponto de vista é defendido pela maioria dos médicos que dizem que os sonhos só muito tangencialmente atingem o nível de serem fenómenos psíquicos. Os únicos instigadores dos sonhos são os estímulos sensoriais e somáticos que se impõem à pessoa que dorme vindos do exterior ou se tornam acidentalmente ativos nos seus órgãos internos. O que é sonhado não tem sentido ou significado. A opinião popular acredita que os sonhos têm um significado que está relacionado com a predição do futuro e que pode ser descoberto por qualquer processo de interpretação de um conteúdo que muitas vezes é confuso e intrigante. Os métodos de interpretação consistem na transformação dos conteúdos do sonho tal como é recordado para uma relação simbólica. II A descoberta das linhas de pensamento que, ocultas à consciência, fazem a ligação entre as ideias patológicas e o restante conteúdo da mente, é equivalente a uma solução dos sintomas, e tem como consequência o domínio das ideias que até então não podiam ser Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 8 inibidas. Usou-se a psicoterapia como ponto de partida de procedimento para a explicação dos sonhos. Inicialmente, pedimos ao paciente que dê atenção a tudo o que lhe venha à mente e sem exceção e que o participe ao médico. Se ele afirmar que é incapaz de fixar a atenção em qualquer coisa, tiramos-lhe essa ideia da cabeça, assegurando-lhe que a ausência completa de qualquer ideia é absolutamente impossível. Se conseguirmos convencer o paciente a abandonar o seu criticismo perante as ideias que lhe ocorrem e a continuar a prosseguir as linhas de pensamento continuarão a emergir se ele mantiver a atenção fixa nelas, encontraremos uma quantidade de material psíquico que está ligado à ideia patológica que nos serviu de ponto de partida. Irá permitir-nos substituir a ideia patológica por uma outra que se insere no nexo do pensamento de modo inteligível. Se usarmos o mesmo processo com nós mesmos, seguiremos melhor a investigação se formos desde o início escrevendo o que, no começo, parecem associações ininteligíveis. É aconselhável dividir um sonho nos seus elementos e descobrir as associações que se ligam separadamente a cada um destes fragmentos. Seguindo as associações dos elementos separados do sonho, isolados do seu contexto, existem inúmeros produtos importantes para a vida mental. Esse material revelado pela análise do sonho está intimamente ligado ao conteúdo do sonho, mas a conexão é de tal natureza que nunca seria possível inferir o novo material desse conteúdo. Por vezes, os sonhos permitem a consciência de profundos impulsos afetivos. O sonho é uma espécie de substituto para os processos de pensamento, cheio de significado e emoção. Conteúdo manifesto do sonho: sonho como está retido na memória Conteúdo latente do sonho: material relevante descoberto através da análise Trabalho do sonho: processo que transforma o conteúdo latente dos sonhos em conteúdo manifesto Trabalho de análise: transformação no sentido inverso III Os sonhos podem ser divididos em três categorias. 1. Sonhos que fazem sentido e são ao mesmo tempo inteligíveis, isto é, os que, sem mais dificuldades, podem ser inseridos no contexto da nossa vida mental. São geralmente curtos e parecem pouco dignos de atenção, visto não haver neles nada de estranho. A sua ocorrência constitui poderoso argumento contra a teoria que defende que os sonhos têm a sua origem na atividade isolada de grupos separados de células cerebrais. Eles não nos dão qualquer indicação de uma atividade psíquica reduzida ou fragmentária. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 9 2. Sonhos que, embora tenham conexão em si mesmos e um sentido claro, têm o efeito de nos espantar, porque não vemos como inserir esse sentido na nossa vida mental. 3. Sonhos que não fazem qualquer sentido nem são inteligíveis, porque aparecem desconexos, confusos e sem sentido. A maioria dos produtos dos nossos sonhos exibem estas características. O contraste entre os conteúdos manifesto e latente dos sonhos só têm significação em sonhos de segunda e terceira categoria. Há uma relação íntima e regular entre a natureza inteligível e confusa dos sonhos e a dificuldade de comunicarmos os pensamentos que lhes estão subjacentes. Os sonhos das crianças encontram-se na primeira categoria, visto que têm significado e não são intrigantes. Todos os sonhos das crianças realizam desejos que tinham estado ativos todo o dia, mas que tinham ficado por satisfazer. Os sonhos eram simplesmente e sem disfarce a realização de desejos. Têm uma direta relação com a vida diurna. Os sonhos de caráter infantil são particularmente comuns em condições extremas ou fora do usual. No caso dos adultos, regra geral, os sonhos estão cheios do mais estranho e indiferente material e não há no seu conteúdo qualquer sinal de realização de um desejo. Os sonhos mostram-nos o desejo já realizado. Apresentam essa realização como real e presente e o material utilizado nas representações do sonho consiste em situações e imagens sensoriais (principalmente visuais). IV O trabalho do sonho realizou um trabalho de compreensão ou de condensação em grande escala. De cada elemento do conteúdo de um sonho, saem ramificações associativas em duas ou mais direções. Cada situação de um sonho parece o resultado conjunto de duas ou mais impressões ou experiências. Em todos os componentes terá de existir um ou mais elementos comuns. A interpretação dos sonhos indica que, ao analisar um sonho, se uma incerteza pode ser resolvida por u “ou-ou”, devemos na interpretação substituir por um “e”, e tomar cada uma das alternativas como pontos de partida independentes para outra série de associações. O modo mais conveniente de juntar dois pensamentos latentes que, à partida, nada têm em comum, é alterar a forma verbal de um deles, levando-o ao encontro do outro, que pode estar igualmente vestido com uma nova forma verbal. A combinação de diferentes pessoas numa só representante no conteúdo do sonho tem um significado: pretende indicar um “e” ou “tal como”, ou comparar entre si as pessoas originais sob um qualquer aspeto, que pode até estar especificado no sonho. Esse elemento comum entre as pessoas combinadas pode apenas ser descoberto por meio da análise, e está indicado no conteúdo do sonho apenas pela formação da figura coletiva.Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 10 Cada elemento no conteúdo de um sonho é “sobredeterminado” pelo material dos pensamentos do sonho. Não deriva de um único elemento desses pensamentos, mas de todo um número deles. Um elemento do sonho é o representante de todo o material díspar no conteúdo do sonho. A condensação, juntamente com a transformação de pensamentos (dramatização), é a característica mais importante do trabalho do sonho. V O que no sonho sobressai ousada e claramente como seu conteúdo essencial deve, depois da análise, satisfazer-se com o desempenho de um papel extremamente subordinado perante os pensamentos do sonho. No decurso do trabalho do sonho, a intensidade psíquica passa dos pensamentos e ideias a que propriamente pertence para outras que, na nossa opinião, não têm direito a tal ênfase. “Deslocamento onírico”: a intensidade psíquica, a significação ou a potencialidade afetiva do pensamento é transformada em vividez sensorial. Surge como uma substituição de uma experiência importante por outra sem interesse. No entanto, a análise descobre vias associativas que ligam estas trivialidades com coisas de alta importância psíquica sob o ponto de vista do sonhador. Quanto mais obscuro e confuso um sonho parece ser, tanto maior a proporção da sua construção que pode ser atribuída ao fator do deslocamento. Todos os sonhos estão relacionados com uma qualquer impressão dos dias anteriores ou do dia que precede imediatamente o sonho (o dia do sonho). Se, além da condensação, ocorrer também um deslocamento, é constituída uma “uma entidade intermediária” que está numa relação para com os dois diferentes elementos. VI O processo de deslocamento é o principal responsável por não sermos capazes de descobrir ou reconhecer os pensamentos oníricos, sem antes termos compreendido a razão para a sua distorção. Os pensamentos oníricos com que primeiramente deparamos ao procedermos à análise, vêm simbolicamente representados por meio de metáforas e imagens que se assemelham às imagens da linguagem poética. O conteúdo manifesto dos sonhos consistem em situações pictóricas. O material psíquico dos pensamentos do sonho habitualmente inclui recordações de experiências marcantes, principalmente do período da infância, apercebidas como Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 11 situações com cariz visual. Esta porção de pensamentos oníricos constitui um núcleo de cristalização que atrai a si o material dos próprios pensamentos oníricos. O conteúdo dos sonhos inclui também fragmentos desconexos de imagens visuais, discursos e até porções de pensamento não modificadas. Os sonhos reproduzem a conexão lógica por uma aproximação no tempo e no espaço. Uma relação causal entre dois pensamentos ou não é representada ou é substituída por uma sequência de dois segmentos de sonho de diferente extensão. A transformação imediata de uma coisa em outra parece representar a relação de causa efeito. Ideias contraditórias são expressas nos sonhos preferentemente por um só e mesmo elemento. A oposição entre dois pensamentos, a relação de inversão, pode manifestar- se através da sensação de inibição do movimento – manifestação da contradição de dois impulsos, um conflito de vontades. O absurdo num sonho significa a presença nos pensamentos latentes de contradição, ridículo e escárnio. VII Fachada: só entra em operação depois de já ter sido construído o conteúdo do sonho. A sua função consiste em dispor os componentes do sonho de modo a que formem um todo mais ou menos conexo. Tem em conta considerações de inteligibilidade. Compreende o conteúdo com base em certas ideias antecipadas e rearranja o sonho com a intenção de o tornar inteligível. Ao fazê-lo, corre o risco de falsificá-lo e, na verdade, quando não consegue associá-lo a algo de familiar, é presa das mais estranhas confusões. Os sonhos que sofreram uma revisão deste género são “bem contruídos”. Estas revisões são feitas pela instância consciente da nossa vida mental. As fantasias cheias de desejo reveladas pela análise nos sonhos da noite, muitas vezes vem a verificar-se serem repetições ou versões modificadas de cenas da infância. Assim, em alguns casos, a fachada do sonho revela diretamente o verdadeiro núcleo do sonho distorcido pela misturado de outro material. VIII Os pensamentos que surgem no sonho estão realmente presentes na mente, e de posse de uma certa intensidade psíquica, mas estavam numa situação especial, em consequência da qual não se pode ter consciência deles – recalcamento. Há uma ligação causal entre a obscuridade do conteúdo do sonho e o estado de recalcamento – inadmissibilidade pela consciência. “Distorção do sonho”: tem em vista a dissimulação, isto é, o disfarce do que pretende surgir no sonho. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 12 Caso se esteja a lidar com um neurótico, a aceitação do pensamento recalcado ser-lhe- á imposta pela força, devido à ligação desse pensamento com os sintomas da sua doença e devido à melhoria que sente quando troca esses sintomas por ideias recalcadas. IX No caso dos sonhos com significado, descobriu-se que são realizações não disfarçadas de desejos. A situação do sonho representa como satisfeito um desejo conhecido da consciência, desejo que ficou da vida diurna e que merece interesse. No caso dos sonhos obscuros e confusos, trata-se de uma representação de um desejo como realizado – um desejo proveniente de pensamentos oníricos, mas que será representado de forma irreconhecível, podendo apenas ser reconhecível através da análise. Nesses casos, o desejo ou é ele mesmo um desejo recalcado e estranho à consciência ou está intimamente ligado a pensamentos recalcados. A fórmula para estes sonhos é a seguinte: são realizações disfarçadas de desejos reprimidos. Consoante a sua atitude para com a realização de desejos, os sonhos podem ser divididas em 3 categorias: 1. Sonhos que representam sem disfarce um desejo não recalcado. São os sonhos do tipo infantil, que se vão tornando cada vez mais raros nos adultos. 2. Sonhos que exprimem disfarçadamente um desejo recalcado. Estas formam a maioria dos nossos sonhos e é necessário recorrer à análise para os compreender. 3. Sonhos que representam um desejo recalcado, mas sem disfarce ou com disfarce insuficiente. São acompanhados por angústia que os interrompe. Esta angústia substitui a distorção do sonho. X Tudo o que é rejeitado pelo superego está em estado de recalcamento. Sob certas condições, e o estado de sono é uma delas, a relação entre a força das duas instâncias (ego e id) é modificada de um tal modo que aquilo que está recalcado não pode ser mais mantido na retaguarda. Isto acontece no estado de sono talvez devido a um relaxamento da censura (superego). A censura nunca fica completamente eliminada, mas apenas reduzida, o material recalcado terá de submeter-se a certas alterações que mitiguem as suas características ofensivas. O que se torna consciente nestes casos é um compromisso entre as intenções de uma instância e as exigências da outra. Recalcamento Relaxamento da censura Formação de um compromisso A formação de compromissos é acompanhada de processos de condensação e de deslocamento, e pelo emprego de associações superficiais. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 13 Quando o estado de sono acaba, a censura recupera rapidamente toda a sua força, e pode apagar tudo o que foi ganho durante o período da sua fraqueza. Esta deve ser pelo menos uma parte da explicação da razão porque esquecemos os sonhos. Um fragmento do conteúdo do sonho,que parecido esquecido, reemerge. Esse fragmento recuperado do esquecimento proporciona-nos invariavelmente o melhor e mais direto acesso ao significado do sonho. XI Os sonhos são como guardiões do sono e esta é a sua função. Nas crianças, o sonho mostra um desejo realizado que é acreditado, durante o sono. Assim, o sonho vai apagar esse desejo, tornando o sono possível. Nos adultos, acontece um processo diferente. A atenção que está de guarda, está também dirigida para os estímulos internos, de desejos que emanam do material recalcado, e combinam-se com eles para formar o sonho que, como forma de compromisso, satisfaz simultaneamente ambas as instâncias. O sonho proporciona uma espécie de consumação psíquica do desejo que fora suprimido, representando-o como realizado. Mas satisfaz também outra instância, permitindo-lhe que o sono continue. Quando acontecem sonhos de angústia, o sonho já não consegue executar a sua função de evitar a interrupção do sono e, em seu lugar, assume a outra função de fazer acabar prontamente esse sono. Ao fazê-lo, está apenas a comportar-se como consciencioso guarda-noturno, que a princípio cumpre o seu dever acalmando os distúrbios para que as pessoas não acordem, mas que depois continua a cumprir o seu dever ao acordar essas pessoas, se as causas do distúrbio lhe parecem séries e de uma espécie que não pode controlar sozinho. Os estímulos sensoriais que surgem durante o sono influenciam o conteúdo dos sonhos. Há várias maneiras como as pessoas que dorme pode reagir a um estímulo sensorial externo. Ela pode acordar ou conseguir continuar a dormir, apesar desse estímulo. Neste último caso, pode recorrer a um sonho para se livrar do estímulo externo. Ou, ao estímulo externo é dada uma interpretação que o insere no contexto de um desejo recalcado que nesse momento espera realização. Desse modo, ao estímulo externo é roubada a sua realidade e ele é tratado como se fosse parte do material psíquico. XII A origem da maior parte dos sonhos dos adultos consiste em desejos eróticos. Muitos outros sonhos, que no seu conteúdo manifesto não mostram o mínimo sinal de serem eróticos, vêm a revelar-se, depois do trabalho de interpretação da análise, como a realização de desejos sexuais. A análise prova que muitos dos pensamentos que ficam da atividade da vida acordada como “resíduos do dia anterior” conseguem apenas abrir Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 14 caminho para uma representação nos sonhos com a ajuda de desejos eróticos recalcados. Podemos fazer notar que nenhum outro grupo de pulsões foi submetido a tao intensa supressão pelas exigências da educação cultural, ao mesmo tempo que as pulsões sexuais são também aquelas que, na maioria das pessoas, com mais facilidade escapam ao controlo das mais elevadas instâncias mentais. Quase toda a pessoa civilizada ainda tem ei si as formas infantis da vida sexual num ou noutro aspeto. Os desejos sexuais infantis recalcados fornecem as forças motivadoras mais frequentes e mais fortes para a construção de sonhos. O material das ideias sexuais não deve ser representado como tal, mas terá de ser substituído no conteúdo do sonho por alusões, insinuações e formas similares de representação indireta. Os modos de representação que satisfazem a estas condições são geralmente descritos como “símbolos” das coisas que representam. É possível compreender o significado de elementos separados do conteúdo de um sonho ou sonhos inteiros, sem ter de perguntar à pessoa que sonha as suas associações. Há alguns símbolos que têm um único significado quase que universalmente: assim, Imperador e a imperatriz: pais Quartos: mulheres Entradas e saídas do quarto: aberturas do corpo da mulher Armas aguçadas, objetos longos e rígidos (troncos de árvore ou bengalas): órgão genital masculino Armários, caixas, carruagens, fornos: útero Escadaria, subir escada: relações sexuais Gravata: órgão sexual masculino Madeira: órgão sexual feminino Os símbolos estão presentes em todos os sonhadores que pertencem a um mesmo grupo linguístico ou cultural. Aqui, podemos distinguir aqueles cuja pretensão à representação de ideias sexuais é de imediato justificada pelo uso linguístico. Há outros que só aparecem dentro do mais restritos limites individuais. Isto é explicado pelo facto de a relação com ideias sexuais parecer recuar aos primeiros tempos da humanidade e às mais obscuras profundezas do nosso funcionamento concetual. O simbolismo dos sonhos é também indispensável para a compreensão daqueles sonhos que são conhecidos como “sonhos típicos” que todos temos e dos sonhos “recorrentes” nos indivíduos. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 15 3. O conceito de inconsciente Introdução Breuer e Freud concluíram que a doença histérica de um indivíduo era desencadeada por um regresso ao passado. Freud aponta que a recordação a que o histérico está ligado, não é uma recordação de acontecimentos reais, mas antes de fantasias anteriores. O histérico regressa a fantasias de desejos infantis. Classificamos os processos psíquicos em pré-conscientes, conscientes e inconscientes. Distinguimos os processos pré-conscientes de pensamento dos inconscientes, cuja existência decorre num reino diferente da vida mental e que estão isolados da consciência por fortes forças contrárias, isto é, por resistências que apenas podem ser vencidas com a ajuda da interpretação dos sonhos ou da associação livre. O pensar inconsciente é um processo primário, em contraste com o processo de pensamento consciente que se desenvolve mais tarde, o processo secundário. Enquanto o pré-consciente e o consciente podem sem dificuldade passar de um nível ao outro e fazer uma troca dos seus elementos, há na fronteira entre o sistema consciente e o sistema inconsciente guardiães que examinam e fazem a censura dos elementos que emergem da profundidade quanto á sua admissibilidade, e que devolvem tudo o que é sujeito a objeções do consciente – recalcamento. Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise Consciente: conceito que está na nossa consciência e de cuja presença nos damos conta. Inconsciente: conceito de que não estamos cientes, mas cuja existência estamos, contudo, prontos a admitir devido a outras provas e sinais. Numa experiência de Bernheim, uma pessoa é posta em estado hipnótico e, de seguida, é acordada. Enquanto está no estado hipnótico, é-lhe dada a ordem de executar determinada ação em determinado momento fixo depois de ter acordado. Ele acorda e parece estar perfeitamente consciente e no seu estado normal: não recorda o seu estado hipnótico e, no entanto, como pré-ordenado, sobe-lhe subitamente o impulso de fazer tal e tal coisa, e fá-lo conscientemente, embora sem saber porquê. A ordem estivera presente na mente da pessoa num estado de latência, ou estivera inconscientemente presente, até chegar o momento dado, e que nesse momento se tornara consciente. Mas, no consciente, não emergiu tudo; apenas o conceito do ato a executar. Todas as outras ideias associadas ao conceito continuam inconscientes, até neste momento. A ação ordenada na hipnose tornou-se ativa: foi traduzida em ação, logo que a consciência se tornou ciente da sua presença. Sendo o estímulo real a ordem dada pelo médico, será difícil não reconhecer que também a ideia da ordem do médico se tornou Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 16 ativa. No entanto, esta última ideia não se revelou à consciente e, por isso, estava simultaneamente ativa e inconsciente. A mente do paciente histérico está cheia de ideias ativas se bem queinconscientes; todos os seus sintomas provêm de tais ideias. Uma ideia latente ou inconsciente não é necessariamente fraca. Já certas ideias latentes que não penetram no consciente, por muito fortes que se tornem. Podemos chamar às ideias latentes do primeiro tipo de pré-conscientes e reservamos o termo inconsciente para outro tipo de pensamentos. A inconsciência é uma fase regular e inevitável nos processos que constituem a nossa atividade psíquica; qualquer ato psíquico começa por ser inconsciente e pode, quer permanecer assim, quer continuar a desenvolver-se e passar para a consciência, e isto depende de encontrar (ou não) resistência. O Inconsciente I. Justificação para o conceito de inconsciente Existem atos psíquicos a que falta a consciência, isto é, os processos mentais são em si próprios inconscientes. II. Vários significados de “o inconsciente” – o ponto de vista topográfico O inconsciente inclui, por um lado, atos que estão meramente latentes, temporariamente inconscientes, mas que eu nenhum outro aspeto diferente dos conscientes e, por outro lado, processos tais como os recalcados que, se se tornassem conscientes, sobressairiam em profundo contraste perante o resto dos processos conscientes. Um ato psíquico passa por duas fases no que diz respeito ao seu estado, entre as quais está entreposta uma espécie de teste (censura). Na primeira fase, o ato psíquico está inconsciente e pertence ao sistema inconsciente. Se no teste é rejeitado, não lhe é permitido passar à segunda fase. Está recalcado e deve permanecer inconsciente. Se passar no teste, entra na segunda fase e pertence ao segundo sistema – o sistema inconsciente. Ainda não está consciente, mas é certamente capaz de tornar-se consciente. Tendo em consideração, esta capacidade para se tornar consciente, ao sistema consciente também chamamos “pré-consciente”. O sistema pré-consciente partilha das características do sistema consciente e a rigorosa censura executa a sua missão no ponto de transição do inconsciente para o pré-consciente. A nossa hipótese baseia-se no facto da fase do consciente ser uma ideia que implica um novo registo, situado num outro local. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 17 Ser comunicarmos a um paciente uma ideia que ele em tempos tinha recalcado, mas que descobrimos nele, o facto de lha termos contado não provoca, a princípio, qualquer alteração na sua condição mental. Tudo o que conseguimos, a começo, será uma rejeição da ideia recalcada. Mas agora o paciente tem de facto a mesma ideia sob duas formas, em diferentes locais do seu aparelho mental: primeiro, tem a recordação inconsciente do traço auditivo da ideia, transmitido no que lhe contámos; segundo, também possui a recordação inconsciente da sua experiência como ela era na sua forma anterior. Não há levantamento do recalcamento até que a ideia consciente, depois de vencidas as resistências, tenha entrado em ligação com o traço de memória inconsciente. Só quando esta última se torna consciente é que consegue o sucesso. III. Sentimentos inconscientes Uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência – só a ideia que representa a pulsão o pode. É certamente da essência de uma emoção que estejamos conscientes dela, isto é, que seja do conhecimento da consciência. Um impulso afetivo ou emocional pode ser apercebido, mas mal interpretado. Devido ao recalcamento do seu representante próprio, viu-se forçado a ligar-se a outra ideia, e é agora considerado pela consciência como a manifestação dessa ideia. Se repomos a verdadeira ligação, chamamos ao impulso afetivo original um impulso “inconsciente”. O uso dos termos “afeto inconsciente” e “emoção inconsciente” é referente às vicissitudes sofridas, em consequência do recalcamento. O sistema consciente controla a afetividade e a motricidade. IV. Topografia e dinâmica de recalcamento O recalcamento trata-se de uma retirada de investimento. Há uma retirada do investimento pré-consciente, uma retenção do investimento inconsciente ou uma substituição do investimento pré-consciente por um inconsciente. Precisamos de um processo que mantenha o recalcamento, no primeiro caso (o caso do recalcamento posterior) e que no segundo (recalcamento originário) garanta que ele seja não só estabelecido como também continuado. Este outro processo encontra-se no pressuposto de um contra-investimento, por meio do qual o sistema pré-consciente se protege da pressão que sobre ele exerce a ideia inconsciente. O contra-investimento é o único mecanismo do recalcamento originário; no caso do recalcamento propriamente dito há a acrescentar a retirada do investimento. Na histeria de angústia, consiste na aparição da angústia sem o sujeito saber do que tem medo. Somos obrigados a supor que no inconsciente estava presente um qualquer impulso de amor a exigir transposição para o sistema pré-consciente; mas o investimento que lhe fora dirigida por este último sistema, retirou-se do impulso (como Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 18 que numa tentativa de fuga) e o investimento libidinal inconsciente da ideia rejeitada descarregou-se sob a forma de angústia. Na altura de uma repetição deste processo, o movimento que se pôs em fuga por associação à ideia rejeitada e, pelo outro, escapou ao recalcamento graças à sai distância da ideia – “substituto por deslocamento”. Ela desempenha agora o papel de um contra- investimento para o sistema consciente, protegendo-o de uma emergência da ideia recalcada. Por outro lado, é o ponto de partida para a libertação de afeto de angústia. Na segunda fase da histeria de angústia, o contra-investimento do sistema consciente levou à formação de um substituto. O processo de recalcamento não está ainda completo e encontra novo objetivo na tarefa de impedir o desenvolvimento da angústia proveniente do substituto. Quanto mais distanciados do substituto temido estão situados os sensíveis e vigilantes contra-investimentos, tanto mais precisamente poderá funcionar o mecanismo destinado a isolar a ideia substitutiva e a protegê-la de nova excitação. A fuga de um investimento consciente da ideia substitutiva manifesta-se nas evitações, renúncias e proibições pelas quais reconhecemos a histeria de angústia. A terceira fase repete o trabalho da segunda numa escala mais ampla. O sistema consciente protege-se agora contra a ativação da ideia substitutiva por meio de um contra-investimento do meio que o rodeia. O ego comporta-se como se o perigo de um desenvolvimento de angústia o ameaçasse, ficando assim capaz de reagir a esse perigo externo com as tentativas de fuga representadas pelas evitações fóbicas. Na histeria de conversão, o investimento pulsional da ideia recalcada transforma-se na inervação do sintoma. O papel desempenhado pelo contra-investimento proveniente do sistema consciente e torna-se manifesto na formação do sintoma. A quantidade de energia despendida pelo sistema consciente no recalcamento não precisa de ser tão grande quanto a energia de investimento do sintoma. Porque a força do recalcamento é medida pela quantidade do contra-investimento despendido, ao passo que o sintoma é mantido, não apenas por esse contra-investimento, mas também pelo investimento pulsional do sistema inconsciente, que está condensado no sintoma. Quanto às neuroses obsessivas, o contra-investimento do sistema consciente dica mais notoriamente em proeminência. É isso que, organizado como uma formação reativa, produz o primeiro recalcamento, e que mais tarde constitui o ponto em que a ideia recalcada vem à superfície. V. Características especiais do sistemaInconsciente O núcleo do inconsciente consiste em representantes pulsionais que procuram descarregar o seu investimento. Consiste em impulsos de desejos. Estas moções Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 19 pulsionais estão coordenadas entre si, existem lado a lado sem serem mutuamente influenciadas e estão livres de contradição mútua. Neste sistema, não há negações, dúvidas, graus de certeza; todas estas são apenas introduzidas com o trabalho de censura. A negação é um substituto, a nível mais elevado, do recalcamento. Pelo processo do deslocamento, uma ideia pode ceder a outra toda a sua quota de investimento; pelo processo da condensação pode apropriar-se de várias outras ideias. Os processos do sistema inconsciente são intemporais, menosprezam a realidade (estão sujeitos ao princípio do prazer – substituição externa pela psíquica), só são passiveis do nosso conhecimento sob as condições do sonho ou da neurose. As descargas do sistema inconsciente passam à inervação somática que conduz ao desenvolvimento do afeto. Os processos do sistema pré-consciente mostram ser capazes de se tornarem conscientes – uma inibição da tendência à descarga das ideias investidas. Os deslocamentos e condensações que acontecem no processo primário são excluídos ou muito restritos. Existem dois estados diferentes de energia de investimento na vida mental: um em que a energia está tonicamente “ligada” e outra em que ela é livremente móvel e faz pressão no sentido da descarga. Além disso, compete ao sistema pré-consciente tornar possível a comunicação entre os diferentes conteúdos ideativos para que possam influenciar-se mutuamente, dar-lhes uma ordem no tempo, criar uma censura ou várias censuras. VI. Comunicação entre os dois sistemas As moções pulsionais, por um lado, são altamente organizadas, livres de autocontradição, fizeram uso de todas as aquisições do sistema consciente, e dificilmente poderiam ser distinguidos das formações desse sistema. Por outro lado, são inconscientes e incapazes de se tornarem conscientes. Assim, qualitativamente pertencem ao sistema pré-consciente, mas factualmente ao inconsciente. São desta natureza as fantasias não só das pessoas normais como também dos neuróticos que reconhecemos como os estádios preliminares na formação tanto dos sonhos como dos sintomas e que, apesar do elevado grau de organização, continuam recalcadas e por isso não podem tornar-se conscientes. O inconsciente é mandado de volta, na fronteira do pré-consciente, pela censura, mas derivados do inconsciente podem lograr essa censura, atingir um elevado grau de organização e obter no pré-consciente uma certa intensidade de investimento. Quando, porém, essa intensidade é excedida e tentam forçar a entrada na consciência, são reconhecidos como derivados do inconsciente e são de novo reprimidos na nova fronteira de censura entre o pré-consciente e o consciente. A primeira dessas censuras atua contra o próprio inconsciente e a segunda contra os seus derivados pré- conscientes. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 20 Nas raízes da atividade pulsional, os sistemas comunicam intensamente entre si. Uma parte dos processos que aí são excitados passa pelo inconsciente, como por um estágio preparatório, e atinge o mais elevado desenvolvimento psíquico no consciente. Outra parte fica retida no inconsciente. VII. Avaliação do inconsciente Nos esquizofrénicos, observamos um grande número de alterações na fala. O paciente muitas vezes dedica um especial cuidado à maneira de se exprimir. No conteúdo dessas frases, muitas vezes é dada proeminência a referências a órgãos do corpo ou a inervações – fala hipocondríaca ou “fala do órgão”. Na esquizofrenia, as palavras são sujeitas ao mesmo processo que transforma os pensamentos latentes dos sonhos em imagens dos sonhos - processo psíquico primário. São sujeitas à condensação e, por meio do deslocamento, transferem entre si os seus investimentos na sua totalidade. O sistema inconsciente contém os investimentos de coisa dos objetos, os primeiros e verdadeiros investimentos objetais; o sistema pré-consciente surge quando a representação da coisa é sobre-investida ao ligar-se às representações de palavra que lhe correspondem. Podemos vem supor que são esses sobre-investimentos que dão origem a uma organização psíquica superior e que tornam possível que ao processo primário se suceda o processo secundário que é dominado no pré-consciente. Uma representação que não é traduzida em palavras, ou um ato psíquico que não é sobre- investido, permanece então no inconsciente em estado de recalcamento. Apêndice C. Palavras e Coisas Sob o ponto de vista da psicologia, a unidade da função da fala é a “palavra”, uma representação complexa que se prova ser uma combinação de elementos auditivos, cinéticos e visuais. Na representação de palavra distinguem-se normalmente quatro componentes: a imagem sonora, a imagem visual de letras, a imagem motora da fala e a imagem motora da escrita. 1. Aprendemos a falar associando a imagem sonora da palavra com a sensação de inervação da palavra. Depois de termos falado, estamos também de posse de uma representação motora da fala. Nesta fase de desenvolvimento da fala – no princípio da infância – usamos uma linguagem construída por nós próprios. Nisto, comportamo-nos como afásicos motores, pois associamos uma variedade de sons verbais externos a um único som produzido por nós próprios. 2. Aprendemos a falar a linguagem de outras pessoas, tentando fazer com que a imagem sonora produzida por nós se pareça tanto quanto possível com a que motivou a nossa inervação da fala. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 21 3. Aprendemos a soletrar juntando a imagem visual das letras a novas imagens sonoras. 4. Aprendemos a ler ligando, de acordo com certas regras, a sucessão de representações inervatórias e motoras de palavras que recebemos quando falamos em letras separadas, de modo a que surjam novas representações motoras da palavra. 5. Aprendemos a escrever reproduzindo as imagens visuais das letras por meio de imagens inervatórias da mão, até que apareçam imagens visuais iguais ou semelhantes. 6. Executamos essas diferentes funções da fala pelas mesmas vias associativas que percorremos ao aprendê-las. A palavra ganha significado quando a ligamos a uma “representação de objeto”. A patologia das perturbações da fala leva-nos a afirmar que a representação da palavra está ligada na sua extremidade sensorial à representação de objeto. Chegamos assim à existência de duas classes de perturbações de fala: 1. Uma afasia de primeira ordem, afasia verbal, em que só estão perturbadas as associações entre os diferentes elementos da representação de palavra. 2. Uma afasia de segunda ordem, afasia assimbólica, em que está perturbada a associação entre a representação de palavra e a representação de objeto. Existem ainda a agnosia caracterizada pela perturbação no reconhecimento de objetos. Algumas lições elementares de psicanálise A natureza do psíquico Tudo o que é consciente é psíquico e vice-versa? Não! Ser consciente é apenas uma qualidade do que é psíquico, e ainda por cima uma qualidade inconstante – uma qualidade que está muito mais vezes ausente do que presente. O psíquico, seja qual for a sua natureza, é em si próprio inconsciente. Os chamados processos psíquicos inconscientes são os processos orgânicos que há muito se reconheceu seguirem paralelamente aos processos mentais. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 22 4. As Moções Pulsionais IntroduçãoAs fontes das moções pulsionais estão na esfera biológica e somática de onde as moções pulsionais enviam para o reino psíquico apenas os seus derivados. Esses derivados alcançam o inconsciente, o sistema que lhes está mais próximo, e a partir daí tentam forçar a entrada no pensamento consciente e na ação. O “conflito interno” que dá origem a problemas para o indivíduo e o seu analista, é pois a incompatibilidade entre as exigências feitas pelas moções pulsionais e a faceta moral, ética e social da personalidade humana, que se lhe opõe. As pulsões e as suas vicissitudes Analisemos, primeiro, a pulsão do ângulo da fisiologia. Um estímulo pulsional não surge do mundo externo, mas do próprio organismo. Uma pulsão nunca opera como uma força que imprime um impacto momentâneo, mas sempre como um impacto constante. Além disso, como se manifesta a partir de dentro do organismo e não a partir de fora, nenhuma fuga lhe pode valer. Um termo melhor para pulsão será necessidade. O que acaba com a necessidade é a satisfação. Isto pode obter-se por meio de uma alteração apropriada da fonte interna do estímulo. Existe um postulado que diz o seguinte: o sistema nervoso é um aparelho que tem por função livrar-se dos estímulos que a ele chegam, ou de os reduzir ao nível mais baixo possível. Vamos atribuir ao sistema nervoso a tarefa de dominar os estímulos. Os estímulos pulsionais alteram o mundo externo, de modo a permitir a satisfação da fonte de estimulação interna. Obrigam o sistema nervoso a renunciar à sua intenção ideal de afastar os estímulos, pois mantêm um afluxo incessante e inevitável de estimulação. Falemos, agora, de alguns conceitos associados às pulsões: Pressão: o seu fator motor é a quantidade de força ou a medida da exigência de trabalho que a pulsão representa. Alvo: é a satisfação, que pode apenas ser obtida mediante a remoção do estado de estimulação na fonte da pulsão. Objeto: coisa através da qual a pulsão consegue atingir o seu alvo. O objeto não é necessariamente algo de exterior; pode igualmente ser uma parte do corpo do próprio sujeito. Pode acontecer que o mesmo objeto sirva simultaneamente para a satisfação de várias pulsões – “confluência” de instintos (Adler). Fonte: processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo e cujo estímulo é representado na vida mental por uma pulsão. As pulsões são todas qualitativamente semelhantes e devem o efeito que produzem À quantidade de excitação que veiculam ou, também, a certas funções dessa quantidade. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 23 Existem as pulsões do ego/autoconservação e as pulsões sexuais. As pulsões sexuais são numerosas, emanam de grande variedade de fontes orgânicas, atuam a princípio independentes umas das outras e só numa fase posterior conseguem uma síntese mais ou menos completa. O alvo pelo qual cada uma luta por atingir é o “prazer do órgão”; só quando a síntese é conseguida é que elas entram ao serviço da função reprodutora e se tornam reconhecidas por todos como pulsões sexuais. Quando aparecem pela primeira vez, estão ligadas às pulsões de autoconservação, de que só gradualmente se vão separando; também na sua escolha de objeto seguem as vias que lhes são indicadas pelas pulsões do ego. Distinguem-se por possuírem a capacidade de, em ampla medida, agirem substitutivamente umas pelas outras e por serem capazes de mudar rapidamente de objetos. São capazes de funções em remotas das suas ações intencionais originais – isto é, capazes de “sublimação”. A observação mostra-nos que uma pulsão pode sofrer as seguintes vicissitudes – modos de defesa contra as pulsões: Inversão no seu contrário Traduz-se em dois processos diferentes: uma mudança da atividade para a passividade e uma inversão do seu conteúdo. Temos como exemplo o sadismo-masochismo e a escopofilia-exibicionismo. A inversão afeta apenas o alvo das pulsões. O alvo ativo é substituído por um alvo passivo. A inversão do conteúdo encontra-se num único caso, o da transformação do amor em ódio. As pulsões cujo alvo respetivo é olhar ou exibir-se admitem determinadas fases: a) Olhar como uma atividade dirigida para um objeto externo b) Abandonar o objeto e fazer incidir a pulsão escopofílica sobre uma parte do corpo do próprio sujeito (com isto, dá-se a transformação em passividade e a criação de um novo alvo – o ser olhado) c) Introdução de um novo sujeito perante quem a pessoa se exibe para olhada por ele. Existem uma ambivalência, visto que se pode observar o sujeito e o seu oposto (passivo). Retorno sobre si próprio A essência do processo é a mudança do objeto, enquanto o alvo permanece sem mudança. Recalcamento Sublimação À primeira fase do desenvolvimento do ego, durante a qual as pulsões sexuais encontram satisfação auto-erótica, dá-se o nome de “narcisismo”. Segue-se a fase preliminar da pulsão escopofílica, em que o corpo do próprio sujeito é objeto da escopofilia. A pulsão escopofílica ativa desenvolve-se a partir daí, deixando para trás o Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 24 narcisismo. Pelo contrário, a pulsão escopofílica passiva mantém-se firmemente ligada ao objeto narcísico. O sujeito narcísico é, por identificação, substituído por um outro ego, estranho. A mudança do conteúdo de uma pulsão para o seu oposto é observada num único caso – a transformação de amor em ódio (ambivalência de sentimentos). Amar admite três opostos: amar - odiar, amar - ser amado e desinteresse – indiferença. Existem três polaridades entre as antíteses anteriores: 1. Sujeito (ego) – Objeto (mundo externo) (real) A antítese ego – não ego (exterior) é imposta ao organismo desde muito cedo, pela experiência de que se podem silenciar estímulos externos por meio de ação muscular, mas que se é indefeso contra estímulos pulsionais. 2. Prazer – Desprazer (económica) A polaridade prazer – desprazer está ligada a uma escala de sentimentos, cuja enorme importância na determinação das nossas ações já foi sublinhada. Para o ego – prazer, o mundo externo está dividida numa parte que é agradável, que incorporou em si próprio, e na remanescente, que lhe és estranha. O sujeito do ego coincide com o prazer, e o mundo externo com o desprazer. 3. Ativo – Passivo (biológica) A antítese ativo – passivo não deve ser confundida com a antítese ego – objeto do mundo externo. A relação do ego com o mundo externo é passiva na medida em que dele recebe estímulos e ativa quando reage a esses estímulos. Se, por agora, definimos o amar como a relação entre o ego e as suas fontes de prazer, a situação em que o ego se ama apenas a si mesmo e é indiferente ao mundo externo ilustra o primeiro dos opostos que encontramos em “amar”. O objeto é pela primeira vez trazido do mundo externo para o ego pelos instintos de autoconservação. E não pode negar-se que também odiar caracterizou, originalmente, a relação entre o ego e o desconhecido mundo externo, com os estímulos que introduz. Se mais tarde um objeto se revela fonte de prazer, passa a ser amado, mas também é incorporado no ego. Falemos de “amor-ódio”. Depois de a fase puramente narcísica ter dado lugar à fase objetal, prazer e desprazer significam relações entre o ego e o objeto. Se o objeto se torna uma fonte de sentimentos de prazer, surge um impulso motor que procura aproximar o objeto do ego e incorporá-lo no ego. Falámos antes da “atração” exercida pelo objeto que dá prazer, e dizemos que “amamos” esse objeto. Pelo contrário, se o objeto é fonte de sentimentos de desprazer, há um impulso que luta para aumentar a distância entre o objeto e o ego, e pararepetir em relação ao objeto a tentativa original Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 25 de fuga do mundo externo com a sua emissão de estímulos. Sentimos a “repulsão” do objeto e odiamo-lo. Este ódio pode mais tarde ser intensificado ao ponto de se tornar numa inclinação agressiva contra o objeto – uma intenção de o destruir. O amor deriva da capacidade do ego para satisfazer auto-eroticamente algumas das suas moções pulsionais, pela obtenção do prazer do órgão. É originalmente narcísico. Torna- se intimamente ligado à atividade das pulsões sexuais posteriores e, quando estas estão já completamente sintetizadas, coincide com o impulso sexual como um todo. Como o primeiro destes alvos, podemos reconhecer a fase do incorporar ou devorar – ambivalência. Na fase, mais elevada, de organização sádico-anal pré-genital, a luta pelo objeto aparece sob a forma de um impulso de dominação, para o qual qualquer dano ou aniquilação do objeto é absolutamente indiferente. Na sua atitude para com o objeto, o amor, nesta forma e nesta fase preliminar, é difícil distinguir do ódio. Só depois de estabelecida a organização genital é que o amor se torna no oposto do ódio. O ódio deriva do repúdio primordial do ego narcísico para com o mundo externo com a sua efusão de estímulos. Como expressão da reação de desprazer evocada pelos objetos, sempre permanece numa relação íntima com as pulsões de autoconservação. A mistura de ódio tem como fonte as pulsões de autoconservação. Se uma relação de amor com determinado objeto é interrompida, frequentemente o ódio emerge em seu lugar, de modo que temos a impressão de uma transformação de amor em ódio. O ódio adquire um caráter erótico, assegurando a continuidade de uma relação de amor. A terceira antítese do amar, a transformação do amor em ser amado, corresponde à operação da polaridade da atividade e da passividade e deve ser julgada da mesma maneira que os casos de escopofilia e sadismo. Além do princípio do prazer I Decidimos relacionar prazer e desprazer com a quantidade de excitação presente na mente, mas que não está de modo nenhum “ligada” e relacioná-los de uma maneira tal que desprazer corresponda a um aumento na quantidade de excitação e prazer a uma diminuição. Fechner propôs que qualquer movimento psicofísico que ultrapasse o limiar da consciência é, para além de certo limite, acompanhado de prazer na proporção em que se aproxima de uma estabilidade completa: enquanto entre esses dois limites, a que podemos dar o nome de limiares qualitativos do prazer e do desprazer, há uma certa margem de indiferença estética. O aparelho mental esforça-se por manter a quantidade de excitação nele presente tao baixa quanto possível ou, pelo menos, por mantê-la constante. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 26 Sob a influência das pulsões de autoconservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio da realidade. Este princípio não abandona a intenção de, no final, obter prazer, mas, no entanto, exige e leva a efeito do adiamento da satisfação, o abandono de certo número de possibilidades de obter satisfação e a tolerância temporária do desprazer. A maior parte do desprazer que sentimentos é um desprazer percetivo. Pode ser a perceção de uma pressão por parte das pulsões insatisfeitas; ou podem ser perceções externas que são desagradáveis em si mesmas ou que excitam no aparelho mental expectativas de desprazer. II Relativamente às neuroses traumáticas comuns: em primeiro, o principal peso na sua casualidade parece residir no fator de surpreso, de susto; segundo, um ferimento ou dano provocado simultaneamente vai agir contra o desenvolvimento de uma neurose. A “angústia” descreve um estado especial de expetativa de perigo ou uma preparação para ele, mesmo que esse perigo seja desconhecido. O “medo” exige um objeto definido de que se tem temor. O “susto” é o nome que damos ao estado em que fica uma pessoa quando cai num perigo sem estar preparada para ele. Os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas têm a característica de repetidamente levarem o paciente a viver de novo a situação do acidente, situação essa de que acorda com novo susto – há uma fixação no momento em que ocorreu o trauma. Focamos agora nas brincadeiras das crianças – as primeiras atividades normais. As crianças repetem tudo o que na vida real lhes causou grande impressão, e que ao fazê- lo, reagem à força da impressão, tornando-se senhoras da situação. Todas as suas brincadeiras são influenciadas por um desejo que as domina todo o tempo – o desejo de serem adultos de poderem fazer o que fazem os adultos. Não há necessidade de presumir a existência de um instinto imitativo especial para criar um motivo para brincar. III Apresenta-se agora um novo objetivo: obrigar o paciente a, com a sua memória, confirmar a construção do analista. A ênfase principal recaía sobre as resistências do paciente – a arte consistia agora em descobrir essas resistências o mais rapidamente possível. Apontá-las ao paciente e convencê-lo, mediante a influência humana a abandonar essas resistências. O paciente não consegue recordar tudo o que tem recalcado dentro de si. É obrigado a repetir o material recalcado como se fosse uma experiência contemporânea. Quando as coisas atingem esta fase, podemos dizer que a neurose anterior foi agora substituída por uma nova “neurose de transferência”. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 27 As resistências do paciente provêm do seu ego, e imediatamente nos apercebemos que a compulsão à repetição terá de ser atribuída ao recalcado inconsciente. Não há dúvida de que a resistência do ego consciente e inconsciente opera sob a influência do princípio do prazer; procura evitar o desprazer que seria produzido pela libertação do material recalcado. Por outro lado, os nossos esforços têm por fim conseguir a tolerância a esse desprazer mediante um apelo ao princípio da realidade. IV O sistema pré-consciente/consciente deve estar na linha limítrofe entre o exterior e o interior; deve estar voltado para o mundo exterior e deve envolver os outros sistemas psíquicos. A “sede” da consciência localiza-se no córtex cerebral. O processo de excitação torna-se consciente no sistema consciente, mas sem nele deixar, atrás de si, qualquer traço permanente. A consciência surge em vez de um traço de memória. Damos o nome de “traumática” a qualquer excitação do exterior suficientemente poderosa para penetrar através do escudo protetor. O princípio de prazer é momentaneamente posto fora de ação. V A camada cortical recebe os estímulos, porque não tem qualquer escudo protetor contra as excitações vindas do interior. Uma pulsão é um impulso inerente à vida orgânica para restaurar um anterior estado de coisas que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas. VI Toda a substância viva tem de morrer por causas internas. A parte mortal é o corpo no seu sentido restrito e só ela está sujeita à morte natural. Por outro lado, as células germinais são potencialmente imortais, na medida em que, sob certas condições favoráveis, são capazes de desenvolver-se num novo indivíduo (Weismann). Somos levados a distinguir duas espécies de pulsões: as que procuram conduzir à morte o que é vivo e outras, as pulsões sexuais que perpetuamente tentam e conseguem um recomeço de vida. O ego é o reservatório e original da líbido, e que só a partir desse reservatório a líbido é estendida aos objetos. Margarida Ferreira Pinto | 2016/2017 28 Uma parte das pulsões do ego foiconsiderada libidinal; as pulsões sexuais – provavelmente juntamente com outras – operavam no ego. O comportamento sádico é uma componente que pode tornar-se independente e pode, sob a forma de perversão, dominar toda a atividade sexual de um indivíduo. Também emerge como uma pulsão. Esta pulsão de morte é deslocada. (Tudo isto se trata de especulação). VII Uma das primeiras e mais importantes funções do aparelho mental é domina as moções pulsionais que se lhe impem, substitui o processo primário prevalecente neles pelo processo secundário, e converter a sua energia de investimento livremente móvel num investimento essencialmente imóvel. Os processos livres ou primários dão origem e sentimentos muito mais intensos do que os ligados ou secundários. As pulsões de vida têm muito mais contacto com a nossa perceção interna – emergindo como perturbadoras da paz e constantemente produzindo tensões cuja descarga é sentida como prazer – enquanto as pulsões de morte parecem fazer o seu trabalho sem dar nas vistas. O princípio de prazer parece servir as pulsões da morte. “Aquilo a que não podes chegar voando, podes alcançar coxeando… As Escrituras dizem-nos que não é pecado coxear”.
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