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A RELIGIÃO RACIONALISTA DE VOLTAIRE

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU 
Programa de Pós-graduação em Filosofia 
 
 
 
 
 
 
 
 
JULIO CEZAR LAZZARI JUNIOR 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A RELIGIÃO RACIONALISTA DE VOLTAIRE 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Paulo 
2011 
 
 
UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU 
Programa de Pós-graduação em Filosofia 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A RELIGIÃO RACIONALISTA DE VOLTAIRE 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação 
em filosofia da Universidade São Judas Tadeu 
como parte das exigências para a 
obtenção do título de mestre em filosofia 
por Julio Cezar Lazzari Junior 
 
Orientador: Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Paulo 
2011 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878 
 
 
 
 
 
 
 
 
Lazzari Junior, Julio Cezar 
A religião racionalista de Voltaire / Julio Cezar Lazzari Junior. - São Paulo, 
2011. 
 
226 f. ; 30 cm. 
 
Orientador: Paulo Jonas de Lima Piva 
Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2011. 
 
1. Voltaire, 1694 - 1778 2. Filosofia - epistemologia 3. Liberdade religiosa I. 
Piva, Paulo Jonas de Lima II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título 
 
 
 
 
 
 
Agradecimentos 
 
 A Deus, Senhor de tudo e de todos. 
 À minha esposa Gisele e à minha mãe Idalina. 
 Ao professor Piva, cuja dedicação nunca falhou. Sua valiosa orientação ajudou a 
construir cada parte desta dissertação, do começo ao fim. 
 Ao professor Floriano, por sua importante orientação na construção da estrutura 
desta dissertação. 
 Às professoras Regina e Sônia, por suas relevantes observações em meu exame de 
qualificação. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
O intuito desta dissertação de mestrado é responder: qual a religião de Voltaire? O filósofo 
teria um modelo de religião a propor? Sabendo que a resposta é positiva, trabalhamos, 
analisando as principais obras de Voltaire, para entender quais são os fundamentos mais 
importantes de sua religião, quais são as questões que mais aparecem nas obras do filósofo 
e como elas são respondidas. Para isso, apresentaremos a relação das ideias de Voltaire com 
o cristianismo vigente em sua época, e a posição do filósofo a respeito de Deus, da alma e 
do livre-arbítrio, bem como o modelo de religião proposto pelo autor do Cândido. 
 
Palavras-chave: religião, Deus, alma, livre-arbítrio. 
 
ABSTRACT 
 
The aim of this master’s paper is to answer: what is the religion of Voltaire? Does the 
philosopher have one religious model to propose? Since we know that the answer is 
affirmative, we analyze Voltaire’s main works, in order to understand what the most 
important bases of his religion are, what the questions that most appear in his works are, 
and how these questions are answered. So, we will present the relationship between 
Voltaire’s ideas and the Christian religion of his time, and what our philosopher thinks 
about God, soul and free will. We will present, too, what is the religion model of Voltaire. 
 
Keywords: religion, God, soul, free will. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1 
 
SUMÁRIO 
 
Introdução...............................................................................................................................3 
 
Capítulo 1: Voltaire e a religião do seu tempo: visão crítica do cristianismo.......................09 
1.1. O ataque de Voltaire à Bíblia como o principal pilar do cristianismo.....................09 
1.2. Crítica histórica à Bíblia...........................................................................................19 
1.2.1. Empréstimos que a Bíblia teria tomado da história de outros 
povos...................................................................................................................19 
1.2.2. Incompatibilidade da história bíblica com a história de outros 
povos...................................................................................................................24 
1.2.3. Problemas históricos internos..............................................................30 
1.3. Absurdos, contradições e atrocidades constatados por Voltaire na Bíblia...............36 
1.4. A intolerância do cristianismo.................................................................................52 
1.4.1. A experiência de Voltaire na Inglaterra...............................................59 
1.4.2. O caso de Jean Calas...........................................................................61 
 
Capítulo 2: O Deus de Voltaire.............................................................................................67 
2.1. Argumentos a favor da existência de Deus..............................................................67 
2.1.1. Causas finais e as leis da natureza.......................................................72 
2.1.2. Vazio e necessidade da matéria...........................................................81 
2.1.3. A moral universal: ideias inatas e empirismo......................................84 
2.2. A relação do Deus de Voltaire com a humanidade..................................................98 
2.2.1. O problema do mal e do sofrimento: combate à ideia do melhor dos 
mundos................................................................................................................98 
2.2.2. O terremoto de Lisboa.......................................................................113 
2.3. Rejeição de Voltaire ao ateísmo.............................................................................118 
 
Capítulo 3: A Alma em Voltaire.........................................................................................123 
3.1. Quadro teórico da discussão acerca da natureza da alma na filosofia dos séculos 
XVII e XVIII.......................................................................................................................123 
2 
 
3.1.1. O dualismo de René Descartes..........................................................124 
3.1.2. O materialismo de Jean Meslier........................................................130 
3.1.3. O materialismo de Denis Diderot......................................................147 
3.2. Argumentos contra a espiritualidade e imortalidade da alma em Voltaire............160 
 3.2.1. A manutenção dos sentidos e da identidade após a morte.................161 
 3.2.2. Falta de evidências físicas sobre a autonomia da alma.....................165 
3.3. Suspensão de juízo sobre a natureza da alma.........................................................171 
 
Capítulo 4: Voltaire em face da liberdade metafísica.........................................................178 
4.1. O pecado original...................................................................................................178 
4.2. Liberdade metafísica e determinismo causal.........................................................187 
4.2.1. Duas etapas da obra de Voltaire: defesa do livre-arbítrio e 
determinismo.....................................................................................................188 
4.2.2. Continuação dos argumentos deterministas deVoltaire....................196 
 
Capítulo 5: A religião de Voltaire.......................................................................................205 
5.1. O modelo de religião proposto por Voltaire..........................................................205 
5.1.1. A religião submetida ao Estado.........................................................206 
5.1.2. A religião natural e racional..............................................................212 
 
Conclusão............................................................................................................................218 
 
Bibliografia.........................................................................................................................220 
3 
 
INTRODUÇÃO 
 
 A presente dissertação tem como objetivo principal responder a seguinte questão: 
qual é a religião de Voltaire? Antes de apresentarmos o nosso trabalho, todavia, 
gostaríamos de apresentar o filósofo, destacando alguns episódios relevantes em sua vida. 
Voltaire nasceu em Paris, no ano de 1694, cidade na qual também faleceu em 1778. 
Seu verdadeiro nome é François Marie Arouet e talvez o nome Voltaire, pseudônimo 
adotado em 1718, seja um anagrama de Arouet le jeune (Arouet, o jovem, onde a letra “i” 
substituiria a letra “j” e a letra “v” substituiria a letra “u”), ou talvez o nome tenha existido 
na família de sua mãe. Sua mãe chamava-se Marguerite Daumard e veio de uma família 
nobre. Gostava de manter relações sociais com pessoas cultas, que frequentavam sua casa. 
Seu pai, François Arouet, era tabelião e recebia multas na Câmara das Contas, sendo um 
homem de condição financeira muito boa. 
Voltaire estudou em um colégio jesuíta chamado Louis-le-Grand entre 1704 e 1711 
e seu pai queria que ele fosse advogado do rei. Desde bem jovem já escrevia versos e 
aprendeu dialética com os jesuítas. Seu pai não aprovava a ideia do filho querer seguir 
carreira literária, pois isso não seria financeiramente bom. Também em sua juventude 
Voltaire conheceu os círculos literários de seu tempo e a vida no salão de uma conhecida 
cortesã, e assim se inicia seu contato com a vida desregrada do seu tempo. Devido a essa 
vida de excessos, ou mesmo ao seu estilo polêmico, seu pai o envia à residência de um 
parente, com o objetivo de afastá-lo dessas situações. 
O filósofo também escrevia peças de teatro, emprestava dinheiro a juros e fazia 
investimentos financeiros. Em 1717 foi levado preso à bastilha por terem atribuído a ele 
dois poemas, os quais acusavam o regente de usurpar o trono. Depois de algum tempo é 
solto. 
Após uma contenda com o cavaleiro de Rohan, foi surrado por homens a mando do 
cavaleiro em 1726. Após desafiá-lo para um duelo, é mandado novamente à bastilha por 
influência do cavaleiro, mas logo é solto, com a condição de sair de Paris. É nessa ocasião 
que o filósofo fica na Inglaterra entre 1726 e 1729, experiência essa que resultara em suas 
Cartas inglesas. A tolerância religiosa teria sido um dos fatores mais marcantes na 
experiência do filósofo na Inglaterra. 
4 
 
Voltaire se envolveu com a Marquesa de Châtelet, estudiosa de ciência, mulher 
culta, a quem o nosso filósofo dedicava grande admiração e que marcou sua vida, embora o 
relacionamento tenha tido muitas turbulências. Voltaire se relacionou com a Marquesa de 
1733 até cerca de 1748, quando a sua amada se apaixona por um jovem, o Marquês de 
Saint-Lambert, para ira do filósofo, que também já tinha traído a Marquesa. Ela vem a 
falecer, de parto, em 1749, causando tristeza a Voltaire. 
O nosso filósofo foi influenciado por alguns pensadores, entre os quais destacamos 
Isaac Newton (1642-1727) e John Locke (1632-1704). Newton representava, para Voltaire, 
um homem que fazia ciência séria, que buscava conhecer o universo como ele é, 
empiricamente, sem estabelecer verdades a priori. Locke, de igual modo, influenciou o 
autor do Cândido pela sua maneira de estudar a origem do conhecimento humano, a forma 
como o homem constrói suas ideias a partir dos sentidos, refutando a concepção de que há 
ideias inatas. 
Voltaire teve grande ligação com Frederico da Prússia (que viria se tornar o rei 
Frederico II), tendo estabelecido correspondência com ele de 1738 até o final de sua vida. 
Apesar dos mútuos elogios que um tecia ao outro por cartas, quando ambos passaram a 
conviver na mesma residência, na corte de Frederico, o que ocorreu após a morte da 
Marquesa de Châtelet, não foi possível evitar os conflitos entre o filósofo e o rei, e o 
temperamento de Voltaire, que escreveu uma sátira contra o presidente da Academia de 
Berlim, cooperou para a separação dos dois, além do fato do filósofo ter feito um 
investimento proibido, o que irritou Frederico. 
Por volta dos anos de 1760, Voltaire começa a se tornar um militante em favor da 
causa da tolerância. O filósofo se envolveu em tentativas de reversão de decisões judiciais 
que envolviam intolerância religiosa, sendo o caso do protestante Jean Calas, acusado 
injustamente de matar o filho que supostamente queria se tornar católico, o mais conhecido 
de todos. Após três anos de trabalho, Voltaire conseguiu reunir evidências para provar a 
inocência de Calas. 
É em Ferney, cidade que ficava próxima da fronteira entre Suíça e a França, que 
Voltaire vai viver de 1758 até o final de sua vida. Foi em Ferney que o filósofo passou a 
receber diversas pessoas, de todos os tipos e posições, interessadas em ouvi-lo, em 
conhecê-lo, em ter contato com um homem que tinha se tornado bastante conhecido e 
5 
 
reverenciado na França e na Europa por seus escritos e pela sua militância em favor da 
liberdade. Nessa fase de sua vida, muitas pessoas procuraram o patriarca de Ferney para 
pedir-lhe ajuda, muitas vezes em casos envolvendo intolerância. 
Em 1778 o filósofo volta a Paris, já com a saúde debilitada. Lá é recebido como um 
rei, como um herói nacional, como um mito. Vai ao teatro assistir a representação de sua 
peça Irène, e é ovacionado pelo público. O filósofo retorna à sua casa, exausto, e vem a 
falecer em 30 de maio de 1778.1 
Passemos agora, então, para a estrutura da nossa dissertação. Como antecipamos no 
início, o objetivo deste trabalho é responder a questão: qual é a religião de Voltaire? Como 
responder a esta pergunta? O método que encontramos para respondê-la foi trilhando o 
caminho que expomos nos parágrafos a seguir. 
Começamos, no primeiro capítulo, apresentando a crítica de Voltaire ao 
cristianismo, em especial ao Catolicismo Romano, com o intuito de entender o modelo de 
religião que o filósofo rejeita, para, a partir daí, começarmos a trilhar o caminho até 
chegarmos ao modelo de religião que ele defende. A crítica de Voltaire, no que se refere à 
religião, não se limita ao cristianismo, mas se direciona a toda religião que se diz revelada, 
o que incluiria tanto o judaísmo como o islamismo, as mais conhecidas, englobando, 
consequentemente, outras religiões que também se enquadrariam neste quesito. Mas é 
notório que o autor do Cândido tem o cristianismo como seu foco principal e, dentro do 
cristianismo, o Catolicismo Romano é seu mais importante alvo. 
Sendo assim, antes de tudo, apresentamos um quadro teórico da crítica à religião no 
século XVIII, com o objetivo de entendermos melhor o contexto intelectual no qual 
Voltaire se situa. O nosso propósito é expor como a razão é cultivada no século XVIII e, a 
partir dela, as religiões seriam julgadas, analisadas, interpretadas. Não só isso, mas o 
desenvolvimento de algumas ciências, como a física e a astronomia, se chocaria com a 
interpretação literal que a Igreja dava à Bíblia. Com isso, veremos como a mentalidade 
iluminista, o que inclui Voltaire, entra em conflito com a religião predominante da época, o 
Catolicismo Romano.1
 Para conhecer mais ampla e detalhadamente a vida de Voltaire, indicamos as seguintes obras: Voltaire: 
nascimento dos intelectuais no século das luzes, de Pierre Lepape, Compêndio da Cambridge sobre Voltaire, 
de vários autores, cujo editor é Nicolas Cronk, e Voltaire, de David Federico Strauss. 
6 
 
Após isso, analisamos, ainda no primeiro capítulo, a relação de Voltaire com o 
cristianismo, destacando sua crítica à Bíblia e à intolerância cristã. Como veremos, o autor 
do Cândido era um estudioso da Bíblia, o que lhe possibilitou manuseá-la com certa 
facilidade. O filósofo submete o texto bíblico à análise racional, ao seu conhecimento de 
história, problematizando as Escrituras como documento histórico, refutando sua origem 
divina, buscando contradições internas, negando os milagres. O leitor verá como o patriarca 
de Ferney trabalha com a Bíblia inteira, tanto com o Antigo como com o Novo Testamento, 
sempre refutando, zombando, tentando tirar seu crédito, buscando tornar sua veracidade e 
inspiração divina como algo inviável e contrário à razão. A investida do filósofo contra o 
cristianismo continua com uma interpretação diferente da história da igreja cristã, onde 
Voltaire entende que os cristãos teriam sido intolerantes desde o seu princípio e, por isso, 
foram perseguidos. A intolerância, prega o filósofo, faria parte do cristianismo desde o 
início, tendo sido manifesta em seus primeiros concílios. 
Como partimos daquilo que Voltaire demole, isto é, da religião que ele entende não 
ser viável por ser intolerante e irracional, contra a qual ele lutou com seus escritos e com 
sua militância, começamos a verificar o que ele põe no lugar, ou seja, após destruir, o que 
ele constrói? Assim, analisamos, no segundo capítulo, um dos principais pilares da religião 
voltairiana, isto é, qual concepção de Deus o filósofo defende. Primeiro, trabalhamos com 
alguns argumentos usados na tradição filosófica que visam provar a existência de Deus 
para, novamente, inserirmos o filósofo dentro do seu contexto intelectual, pois sabemos que 
ele era um estudioso da filosofia, tendo tido, assim, contato com ideias outrora usadas para 
provar a existência de um Ser superior. A seguir, selecionamos os argumentos de Voltaire 
para provar a existência de Deus, frisando a observação da natureza, das leis eternas do 
universo como evidência de que a divindade existe. Depois, tratamos da abordagem do 
filósofo acerca da relação de Deus com os homens, se o Ser supremo interfere ou não na 
vida humana. Neste momento, apresentamos a crítica do filósofo aos milagres, sua tentativa 
inicial de explicar o sofrimento humano como parte de um desígnio geral e, então, seu 
abandono total a qualquer tentativa de explicar o mal e o sofrimento por meio de qualquer 
sistema teológico ou filosófico. E, então, concluímos o capítulo com a crítica do autor do 
Cândido ao ateísmo, não apenas por sua suposta irracionalidade, como também por achá-lo 
perigoso para a moral. 
7 
 
Seguindo a nossa trilha, veremos, no terceiro capítulo, o que o filósofo pensa sobre 
as discussões acerca da alma humana, uma das questões mais importantes para Voltaire. 
Para contextualizar Voltaire nas opiniões que existiam em sua época sobre o assunto, 
apresentamos duas concepções antagônicas existentes nos séculos XVII e XVIII, que são: o 
dualismo da substância e o materialismo. A seguir, analisamos como o autor do Cândido 
problematiza a ideia da existência de uma substância espiritual, isto é, a concepção dualista. 
Alguns dos principais argumentos focam na dificuldade em explicar como o ser humano 
manteria os seus sentidos após a morte, como a identidade seria preservada após o 
falecimento do indivíduo e na suposta falta de evidências biológicas da existência de uma 
substância espiritual. Apesar de tudo o que escreveu contra a existência de uma alma 
espiritual, o filósofo suspendeu o juízo sobre a questão, não ousando negar, 
categoricamente, que a alma possa existir e sobreviver à morte. 
Depois, no quarto capítulo, abordamos outra questão de grande relevância na obra 
de Voltaire, que é o problema da liberdade humana. A vontade humana é livre ou é 
causada? Há um determinismo ou não? Apresentamos a crítica do filósofo à ideia do 
pecado original, que veria o ser humano de maneira muito pessimista, e também limitaria 
sua liberdade para fazer o bem. Depois, tratamos das questões que envolvem a liberdade 
humana e como o patriarca de Ferney se propõe a resolvê-las. Veremos que Voltaire tem 
posições diferentes, mesmo antagônicas, acerca da questão da liberdade, e sua forma de 
argumentar muda radicalmente ao longo dos anos, o que veremos nas obras citadas. Em 
certo momento, a vontade é apresentada como livre quando o homem age conforme sua 
vontade, isto é, se o indivíduo quer algo e faz, ele é livre, mas, posteriormente, o filósofo 
percebe a dificuldade que é explicar o que causaria a vontade, o que o leva a defender uma 
posição determinista. 
Por fim, após trabalharmos com as questões mais relevantes que formariam a 
religião de Voltaire, concluímos a nossa dissertação, no quinto capítulo, expondo o modelo 
prático da religião do patriarca de Ferney, isto é, como deve ser esta religião em suas 
relações com o Estado e com a sociedade, e quais são as suas ideias principais. A religião 
de Voltaire, em verdade, é composta por cada um dos itens abordados na dissertação, isto é, 
o que ele pensa sobre Deus, sobre a alma, sobre a liberdade, bem como sobre outros temas 
relacionados a estes. Contudo, é relevante entendermos como o filósofo concebe sua 
8 
 
religião na prática, como ela deve ser, quais são seus elementos mais relevantes, qual sua 
relação com as leis, como ela deve se comportar, qual a origem dos seus valores mais 
importantes. Antecipamos que o modelo de religião do autor do Cândido é uma religião 
baseada na razão, não na revelação ou em livros sagrados, é fundamentada na tolerância, na 
natureza, e não está acima do Estado e de suas leis. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
9 
 
CAPÍTULO 1 
 
1. VOLTAIRE E A RELIGIÃO DO SEU TEMPO: VISÃO CRÍTICA DO 
CRISTIANISMO 
 
1.1. O ataque de Voltaire à Bíblia como o principal pilar do cristianismo 
 
 Como o objetivo central da nossa dissertação é expor a concepção religiosa de 
Voltaire, é bastante relevante compreendermos qual a relação do filósofo com as religiões 
de sua época, como ele se posicionava a respeito delas. Como seus escritos demonstram 
abundantemente, é no cristianismo que está o foco da crítica de Voltaire, principalmente no 
Catolicismo Romano, é com a religião cristã que o filósofo encontra as maiores 
dificuldades em conciliar a sua filosofia racional. 
 Dentro deste assunto, da relação de Voltaire com o cristianismo, temos uma 
importante parte, bastante destacada nos textos do autor do Cândido, que é a sua visão 
crítica da Bíblia. Não podemos tratar da crítica de Voltaire à religião cristã sem abordarmos 
a sua relação com as Escrituras Sagradas, já que o filósofo ataca a Bíblia com o intuito de 
derrubar o pilar mais importante das religiões cristãs, seja do Catolicismo, seja dos grupos 
oriundos da Reforma Protestante. 
 Julgamos relevante contextualizar a crítica do filósofo ao seu tempo, para que 
entendamos, com clareza, a razão que o leva a atacar a visão judaico-cristã, dum modo 
geral, e a Bíblia, como seu fundamento mais relevante. Para tal, é importante entendermos 
o que a religião cristã, com seus dogmas, representa para o filósofo, e também o que ele 
busca como modelo de busca da verdade. Assim, chegaremos ao entendimento dos motivos 
que o levam, constantemente, a atacar o cristianismo e seus pilares. 
 O conflito que Voltaire e outros filósofos iluministas enxergavam entreas ideias de 
revelação e de razão foi um dos motivos que levou o filósofo a combater com tanta 
veemência a visão judaico-cristã. Se, por um lado, a razão representaria emancipação, 
maturidade, liberdade, a autoridade da revelação manteria o homem preso, limitado, 
impedido de buscar a verdade, de ultrapassar as fronteiras a que tinha chegado até então. 
Vejamos a declaração de Cassirer a este respeito: 
 
10 
 
[No Século das Luzes] a religião não deve ser mais algo a que se está 
submetido; ela deve brotar da própria ação e receber da ação suas 
determinações essenciais. O homem não deve ser mais dominado pela 
religião como por uma força estranha; deve assumi-la e criá-la ele próprio 
na sua liberdade interior. (CASSIRER, 1994, p. 225). 
 
 Entendendo este espírito, compreendemos que, se assim for, não haverá 
compatibilidade entre o cristianismo, no qual a revelação é um dos pilares, e esta nova 
forma de pensar. Onde a religião é instituída divinamente, não haveria espaço para 
questionamentos, já que o homem estaria, assim, questionando o próprio Deus. A religião, 
agora, não dominaria mais o homem, não seria um elemento exterior, mas seria criada pelo 
próprio homem, interiormente. Ou seja, se é o homem quem cria a sua própria religião, 
conforme sua “liberdade interior”, então uma religião com mandamentos divinos, como o 
cristianismo, não teria lugar nesta nova mentalidade. 
 Vejamos a opinião de Luiz Roberto Salinas Fortes sobre a submissão da razão 
humana a qualquer outra autoridade no Século das Luzes: 
 
Para ser efetivamente livre a Razão não pode se submeter a nenhuma 
autoridade que a transcenda ou a nenhuma regra que lhe seja extrínseca: 
ela é, por si mesma, sua própria regra. Mas é também a regra para o 
universo em geral: se o homem reivindica um estatuto soberano para a sua 
Razão é porque postula simultaneamente a racionalidade última do 
universo. Os seres e as coisas que nos circundam estão submetidos a 
certas regularidades. Caberá ao homem descobri-las e para isto ele dispõe 
do instrumento adequado, ou seja, sua própria inteligência. (FORTES, 
1981, p. 18). 
 
 Desta forma, a citação de Fortes corrobora, em certo aspecto, a opinião de Cassirer. 
Neste, há a afirmação de que o homem não deve mais estar submetido à religião, enquanto 
naquele a razão humana não pode estar sujeita a nada fora de si, o que inclui, naturalmente, 
a ideia de uma revelação. A busca pela verdade, a descoberta do universo se daria não pela 
revelação da religião, mas pela razão humana, pela inteligência do homem. O 
conhecimento da verdade não viria de cima, viria de dentro. E, se a razão não deve se 
submeter a mais nada, a não ser às suas próprias regras, então os milagres também estariam 
fora de cogitação. Trata-se de mais um motivo de incompatibilidade entre a fé cristã e 
certos aspectos da visão iluminista. 
11 
 
 Salinas Fortes confirma a soberania da razão na visão iluminista, citando Voltaire 
como exemplo: 
 
Não há nenhuma autoridade acima da Razão. Nada escapa ao livre exame, 
ao livre exercício desta nobre faculdade de que nos achamos dotados. 
Soberana e livre, é assim que a querem os iluministas e é por uma tal 
imagem de Razão que se baterá durante toda a vida com a eloqüência e o 
talento que lhe são próprios de um homem, por exemplo, como Voltaire. 
(FORTES, 1981, p. 19). 
 
 Assim, Voltaire é um dos filósofos que busca uma razão livre, soberana, não 
submetida a nada nem a ninguém, a não ser a si própria. Por esta citação podemos começar 
a entender a incompatibilidade entre os escritos de Voltaire e a visão cristã, promovida pela 
Bíblia e por sua tradição, preservadas e pregadas pelo Catolicismo e pelo Protestantismo. 
Na fé cristã ortodoxa não é possível conciliar a intervenção divina na história, com muitos 
milagres, com a razão humana. A fé transcende a razão do homem e o cristianismo não 
pode ser o que é, não pode manter a sua identidade, se submeter doutrinas como a 
encarnação de Cristo, por exemplo, à racionalidade humana. 
 Elizabeth Dias confirma o critério voltairiano de submeter tudo à razão: 
 
A esse tribunal da razão, Voltaire submete tanto os sistemas metafísicos e 
suas construções quiméricas, que, ao pretenderem explicar a essência das 
coisas, substituíram a realidade por fantasias, quanto as crenças baseadas 
no testemunho da revelação, da tradição e da autoridade, que cegaram e 
paralisaram a razão ao apresentarem como verdadeiros os erros e os 
preconceitos e justos os privilégios e as injustiças. (DIAS, 2000, p. 127). 
 
Dias cita, provavelmente, a crítica de Voltaire aos sistemas metafísicos que buscam 
ir além daquilo que a razão humana pode explicar, daquilo que pode ser conhecido e 
demonstrado racionalmente. De acordo com a autora, revelação e razão seriam 
incompatíveis para o autor do Cândido, já que a primeira inverteria os valores, 
transformando o erro em verdade e a injustiça em justiça. Assim, Voltaire submete a 
religião, a metafísica, os sistemas, os dogmas à razão humana, motivo pelo qual boa parte 
do cristianismo e da Bíblia são rejeitados pelo filósofo. Daí a sua guerra constante, por 
meio de suas obras e de sua militância, contra a visão judaico-cristã. Como afirma Fortes, 
“a crítica sistemática e tenaz do espírito teológico e dos dogmas da tradição religiosa 
12 
 
constituirá precisamente uma das grandes frentes de batalha para homens como os 
enciclopedistas.” (FORTES, 1981, p. 15). 
Portanto, como vimos, se uma das características de boa parte da filosofia iluminista 
é a supremacia da razão, é colocar os dogmas debaixo da autoridade do pensamento 
racional, então é natural que uma batalha seja travada entre alguns filósofos e a visão 
judaico-cristã. Dificilmente haveria espaço para as duas visões conviverem juntas e 
pacificamente, já que, como pudemos ver brevemente, elas são essencialmente antagônicas. 
Vejamos a afirmação de Pierre Lepape a respeito: 
 
Ora, quem dirigia as consciências, quem formava os espíritos, quem 
desempenhava na França todas as tarefas do ensino e tinha nas mãos o 
essencial dos meios de informação, formação e reflexão? A Igreja. A 
filosofia, tal como era concebida por Voltaire e seus contemporâneos, só 
podia ser pensada em termos de concorrência com a propaganda religiosa. 
Não podia pensar em fazer avanços a não ser ocupando o território no 
qual a Igreja havia se instalado séculos antes. Livro contra livro, 
ensinamento contra ensinamento, controle contra controle das instituições. 
(LEPAPE, 1995, p. 97). 
 
Assim, corroborando o nosso pensamento, a briga de Voltaire, em se tratando de 
religião, é contra o cristianismo, em especial contra o Catolicismo Romano. Ainda que o 
filósofo também mencione o Islamismo, em alguns momentos, e também cite o Antigo 
Testamento, também usado pelos judeus (não como “Antigo Testamento”, mas como 
Escrituras Sagradas), é notório que o seu foco é a religião cristã, como ficará mais claro nas 
seções a seguir. Portanto, se a Igreja Católica tem o domínio das mentes, do ponto de vista 
intelectual e religioso, é contra ela que Voltaire e muitos filósofos iluministas se voltam, 
usando suas penas como arma. A citação de Lepape que fala de “livro contra livro” é uma 
demonstração de que a Bíblia é um dos alvos principais da crítica iluminista, em especial de 
Voltaire. A Bíblia, portanto, é atacada não apenas porque seu conteúdo seria contrário à 
razão de certos filósofos do Século das Luzes, mas porque é o pilar principal do 
cristianismo. Assim, destruindo o pilar, a casa se desmorona. A afirmação de Gargett 
demonstra ponto de vista semelhante: 
 
Aquilo que julgava ser uma mitologia bárbara e primitiva dos judeus [O 
Antigo Testamento] foi tornada célebre pela sua história sagrada dos 
cristãos; passou a ser considerado uma fonte de preceitos morais e, para13 
 
piorar, uma justificativa para as contínuas pretensões e para a arrogância 
soberba da Igreja Cristã. Se o Velho Testamento fosse completamente 
refutado e o “povo eleito” se revelasse uma horda de ladrões e bandidos, 
então os eventos milagrosos poderiam ser desprezados ou destruídos por 
zombarias. O Cristianismo não estaria baseado em nada além de areia. 
(GARGETT, 2010, pp. 243-244). 
 
 Sendo assim, entendemos que Voltaire não ataca a Bíblia por acaso ou apenas por 
não julgá-la racional, pois ele tem um objetivo. Seus constantes bombardeios ao Antigo 
Testamento, como veremos com mais detalhes nas seções seguintes, visam demonstram 
que um documento que é considerado como divinamente inspirado pela visão cristã não 
passaria de uma reunião de eventos absurdos e desprezíveis. Gargett entende que as duras 
críticas de Voltaire aos judeus, chamados de “povo eleito”, visam tornar desacreditados os 
milagres narrados no Antigo Testamento, o que também afetaria o Novo Testamento, já que 
há uma íntima ligação entre ambos, e não é possível ler o Novo Testamento de maneira 
independente do Antigo Testamento. Voltaire, sabendo disso, buscou atacar toda a Bíblia 
para destruir os pilares do cristianismo. 
 Gargett tem a palavra novamente: 
 
Acima de tudo, l’Infâme, geralmente, mas não exclusivamente 
simbolizada pela Igreja Católica, retirava sua autoridade e seus 
fundamentos intelectuais da Bíblia. De fato, a Igreja Cristã como um todo 
baseava suas propostas transcendentais na Escritura, sendo que o Novo 
Testamento era não apenas visto como o sucessor do Antigo, mas como 
seu complemento. De maneira tenaz, contínua e quiçá obsessiva, Voltaire 
fez de tudo para solapar e desacreditar as duas partes da Bíblia. 
(GARGETT, 2010, p. 241). 
 
 Gargett confirma que o alvo de Voltaire não é simplesmente a Bíblia, mas é a Igreja 
Católica e, consequentemente, todos os segmentos religiosos que se fundamentam na 
Bíblia. Se Voltaire desacredita a Bíblia, o cristianismo se desmorona. O leitor moderno 
pode entender, assim, o porquê de muitos grupos cristãos conservadores lutarem, hoje em 
dia, contra propostas que sejam supostamente contrárias à visão bíblica, como a teoria da 
evolução ou do Big Bang. Para muitos desses conservadores, se essas teorias forem 
verdadeiras, então a Bíblia estaria em descrédito. Daí seus esforços, mesmo com 
argumentos pretensamente científicos, em combater estas e outras teorias. Voltando ao 
século XVIII, o filósofo usa suas armas para mostrar a Bíblia como um livro cheio de erros 
14 
 
científicos, lógicos, racionais e indigno de crédito. Assim, ele atingiria em cheio a Igreja 
Católica e suas ramificações. Como diz Iotti, “Voltaire, que se autodenomina o ‘grande 
demolidor’ (...) defende que a construção do futuro depende da destruição do passado; em 
outras palavras, a afirmação da verdade consiste na incessante refutação do erro.” (IOTTI, 
2010, p. 156). Portanto, não haveria lugar para a filosofia voltairiana e para o cristianismo 
ao mesmo tempo, ao menos não como ambos se apresentavam no século XVIII. 
 Para termos uma visão mais ampla dos motivos que levaram Voltaire a atacar a 
Bíblia, não podemos apenas analisar estes aspectos vistos até então, que seriam, em suma, a 
supremacia da razão sobre quaisquer outros fundamentos, e o desejo de Voltaire de, com 
seus ataques à Bíblia, atingir o cristianismo como um todo. Não há dúvida de que estes 
aspectos são verdadeiros, mas não é apenas isso. Para Voltaire, a Bíblia em si se chocaria 
com algumas áreas de conhecimento, com algumas verdades já demonstradas de maneira 
clara. Vejamos um exemplo com a explicação de Cassirer: 
 
Embora já estivesse bastante mais solto antes do século XVIII [o vínculo 
entre teologia e física], não fora ainda quebrado de modo nenhum. A 
autoridade das Escrituras continuava sendo respeitada em questões que só 
dependiam da física. As zombarias com que Voltaire atormentava 
inexoravelmente a “física bíblica” parecem-nos hoje superadas e 
insípidas, mas um juízo histórico justo não deve esquecer que ele se 
defrontava no século XVIII com um adversário que era ainda sério e 
perigoso. A ortodoxia ainda não renunciara, em absoluto, ao princípio da 
inspiração literal e o resultado lógico desse princípio era que o relato 
mosaico da Criação continha uma autêntica ciência da natureza cujos 
dados não podiam ser abalados. Não só os teólogos, mas também os 
físicos e os biólogos esforçavam-se por sustentar e explicar essa ciência. 
(CASSIRER, 1994, p. 78). 
 
Para quem está familiarizado com alguns debates cristãos que envolvem fé e 
ciência, fica claro que há certa flexibilidade, mesmo entre teólogos conservadores, em 
relativizar a autoridade da Bíblia em questões de ciência, embora, como já foi citado, 
algumas ideias ainda geram conflitos e não estão bem resolvidas. Seja como for, na época 
de Voltaire o problema era bem diferente. Hoje é inconcebível que um departamento de 
física ou de biologia de uma universidade se fundamente em um livro sagrado para fazer 
ciência, mas, segundo Cassirer, no século XVIII mesmo os cientistas da época usavam o 
relato bíblico como fundamento literal de física, biologia e, logicamente, até de astronomia, 
15 
 
já que o Gênesis trata da criação do universo. Por exemplo, se a Bíblia fosse interpretada 
literalmente e como fonte de conhecimento científico, então o sol se moveria em torno da 
Terra, todas as espécies teriam sido criadas como são hoje (o que faria a teoria da evolução 
das espécies, já embrionária na época de Voltaire, ser rejeitada), a espécie humana teria 
meia dúzia de milhares de anos, a morte só teria entrado no mundo de uns seis mil anos pra 
cá, todos os males do nosso pequeno planeta seriam consequência do pecado de Adão, etc. 
Assim, não haveria compatibilidade entre uma interpretação literal da Bíblia e o progresso 
da ciência, pelo que, como afirma Cassirer, Voltaire zomba constantemente da “física 
bíblica”. Para o filósofo, diversos episódios narrados na Escritura, como o dilúvio, estariam 
em desacordo com as ciências. Maiores detalhes, com as palavras do próprio Voltaire, 
veremos nas seções seguintes a esta. 
Outro aspecto relevante que conduziu Voltaire às suas críticas e rejeição à Bíblia é a 
sua visão da história. A forma como Voltaire enxergava a história da humanidade 
confronta-se, claramente, com aquilo que a Bíblia informa. Um motivo essencial da 
incompatibilidade entre a visão voltairiana e a história bíblica é que, para o filósofo, a 
história é história dos homens, do ser humano apenas, enquanto a Bíblia demonstra, várias 
vezes, a intervenção e o controle de Deus na história de Israel e da humanidade. Maria das 
Graças de Souza comenta sobre o assunto: 
 
O filósofo Bossuet, no século XVII, havia traçado em seu Discurso sobre 
a história universal, a história de um mundo governado por Deus. Para 
ele, o processo histórico revelava, em última instância, a realização dos 
planos da Providência divina. Ora, para Voltaire, cabe ao historiador 
descobrir, na sabedoria ou na loucura dos homens, apenas o próprio 
homem. (SOUZA, 1993, p. 45). 
 
O leitor familiarizado com a Bíblia vê que, por exemplo, nos livros de Juízes, dos 
Reis e das Crônicas, aparecem ali constantemente relatos da intervenção de Deus em 
levantar líderes para trabalhar em favor do seu povo. É uma forma de apresentar a história 
como teocrática, com Deus governando a história dos homens. Segundo Souza, se Voltaire 
vê na história humana apenas o próprio homem, então, como é claro, a consequência 
natural é que sua visão entre em choque com a visão bíblica e ambas se tornem 
incompatíveis. 
Pierre Lepape tem opinião parecida: 
16 
 
 
... é passível de crítica a sua [de Voltaire] documentação apressada, 
embora ele não parasse de perguntar, de pesquisar, decoletar 
depoimentos, de ampliar sua biblioteca em Cirey e de consultar, na 
medida do possível, arquivos estrangeiros. Mas é indiscutível que inovou, 
e radicalmente: ao propor uma história dos homens que não levava em 
conta nenhum projeto divino, nenhum castigo e nenhuma providência; e, 
sobretudo, ao desenvolver uma filosofia da história, um modo de ler o 
presente e, com a ajuda do passado, esboçar um futuro possível. 
(LEPAPE, 1995, p. 135). 
 
O leitor da Bíblia percebe que ela apresenta uma história humana linear, com 
começo, meio e fim, sempre controlada por um projeto divino. O universo foi criado, o 
homem vem em seguida, e acontece a “queda”, onde o homem teria sido criado inocente e, 
seduzido pela “serpente”, se tornou pecador. A redenção acontece por meio da morte de 
Cristo, que voltará no fim dos tempos para levar os remidos. A antiga ordem é substituída 
por um novo mundo, por uma nova criação, perfeita, onde o que é antigo é destruído e onde 
os homens que não aceitam o propósito de Deus são condenados. Em tudo isso, vemos uma 
linearidade histórica, um começo, um meio e um fim, uma história que acontece sob o 
controle divino. Não é a toa que a Bíblia começa com o Gênesis, que narra a criação e a 
queda do homem, e termina com o Apocalipse, que narra a redenção de uns e a condenação 
de outros, bem como a criação de novos céus e nova terra, decretando o fim da velha 
ordem. Segundo Lepape, como Voltaire propôs uma “história dos homens que não levava 
em conta nenhum projeto divino”, temos aí mais uma clara confirmação de que sua visão 
era bastante incompatível com a essência da Bíblia, daí a sua crítica inevitável e constante 
ao livro sagrado do cristianismo. Como buscaremos demonstrar nesta dissertação, Voltaire 
acreditava na existência de Deus, mas não cria em sua interferência na vida humana. 
 O autor do Cândido também rejeitou a Bíblia em vários aspectos porque, além de 
buscar na história só aquilo que seria racional, o que excluiria os milagres como narrativas 
autênticas, ele também não confiava na veracidade das histórias antigas, o que incluiria as 
Escrituras. Para Maria das Graças de Souza, “ao lermos os historiadores antigos, devemos 
também rejeitar, na opinião de Voltaire, tudo o que parece muito exagerado” (SOUZA, 
1993, p. 50). Nas próprias palavras do filósofo, “resumindo, lendo qualquer história, 
mantenhamo-nos alertas contra qualquer fábula.” (VOLTAIRE, 2007a, p. 79). 
 O filósofo fala mais sobre o assunto: 
17 
 
 
Os primeiros fundamentos de toda história são os relatos dos pais aos 
filhos, transmitidos em seguida de uma geração a outra; em sua origem, 
eles são no máximo prováveis, quando não entram em choque com o 
senso comum, e perdem um grau de probabilidade a cada geração com o 
tempo, a fábula cresce e a verdade se perde: vem daí que todas as origens 
dos povos são absurdas. (VOLTAIRE, 2007a, p. 4). 
 
 O filósofo desconfia da tradição oral, já que tais relatos orais seriam transmitidos de 
uma geração para outra e, como diz o ditado, “quem conta um conto, acrescenta um ponto”. 
Já na sua origem, quando o fato poderia potencialmente ser conhecido com veracidade, a 
narrativa é, para o filósofo, no máximo provável, não confiável. Portanto, todas as histórias, 
em suas origens, não seriam dignas de confiança, motivo que nos faz entender a razão dele 
desconfiar da história antiga, o que inclui, obviamente, a Bíblia. Ainda mais quando elas 
entram em choque com o “senso comum”, ou seja, com o que seria razoável para a maioria 
das pessoas. Desta forma, os milagres bíblicos, indiretamente, são rejeitados como verazes. 
 O patriarca de Ferney não critica apenas a Bíblia, mas também outras histórias que 
teriam fatos sobrenaturais, como vemos: 
 
Os chineses não têm história anterior à de seus imperadores; quase não 
têm ficções, nenhum prodígio, nenhum homem inspirado que se diga 
semideus, como entre os egípcios e entre os gregos; desde que escreve, 
esse povo escreve razoavelmente. (VOLTAIRE, 2007a, p. 103). 
 
 Sem debater aqui sobre a forma como Voltaire constantemente exalta a China, ele 
vê na história dos chineses um modelo a ser seguido, já que a história deste povo não teria 
ficções. Aqui os alvos do filósofo são os gregos e os egípcios, por suas histórias fabulosas. 
Tais histórias deveriam ser vistas com desconfiança pelo historiador sério, independente de 
quais povos elas tenham sido originadas. 
 O filósofo fala sobre a sua desconfiança das histórias antigas: 
 
Sou tão ignorante que nem conheço os fatos antigos com que me iludem. 
Sempre temo enganar-me em setecentos ou oitocentos anos, pelo menos, 
ao procurar em que época viveram aqueles heróis antigos, considerados os 
primeiros a praticar o roubo e o banditismo numa grande extensão do país, 
bem como aqueles primeiros sábios que adoraram estrelas, peixes, 
serpentes, monstros ou seres fantásticos. (VOLTAIRE, 1978d, p. 327). 
 
18 
 
 Notamos que Voltaire não confia nas histórias antigas, naquelas narrativas nas quais 
o fato está misturado a elementos sobrenaturais ou fabulosos, onde a documentação 
existente não permite caminhar num solo mais seguro. Percebemos, contudo, que ele 
reconhece algo de história verídica nestas narrativas, já que ele teme enganar-se “setecentos 
ou oitocentos anos” sobre a data em que tais “heróis” teriam vivido. Assim, o filósofo 
reconhece que há algo de histórico nessas narrativas, mas os elementos fantásticos 
provavelmente foram sendo acrescidos de geração a geração, como ele mesmo expressou 
na citação que selecionamos nesta seção. Auger confirma a desconfiança do nosso filósofo 
sobre a história antiga: 
 
Se a História tinha de ser útil, também precisava focar no que era 
essencial. Ao escrever, Voltaire se debruça sobre uma enormidade de 
detalhes inúteis e secos, sem reparos em deixar de fora aqueles que lhe 
parecem supérfluos e gratuitos ou que lhe parecem falsos e incertos: a 
verdadeira tarefa do historiador é escolher, não copiar; o historiador 
precisa ser realmente “crítico”. Nesse sentido, a história antiga, altamente 
suspeita, tinha necessariamente de ser considerada inferior à história 
moderna. (AUGER, 2010, p. 184). 
 
 Assim, o historiador, para Voltaire, deveria selecionar o que seria relevante. Ele 
deveria ter inteligência e sensibilidade para separar o trigo do joio, para trazer ao leitor 
contemporâneo o que tem importância. Auger cita as palavras “falsos” e “incertos” como 
aquilo que deveria ser descartado da história, e, como veremos nesta dissertação, os 
milagres encontram-se nestas categorias, provavelmente na primeira. E as histórias mais 
antigas estariam mais cheias de fábulas e absurdos do que as mais recentes, daí a 
desconfiança do filósofo em relação às primeiras. 
 Por fim, para encerrar esta seção, citamos o filósofo novamente para demonstrar 
mais um motivo, mais um critério para ele ter rejeitado a Bíblia em seu aspecto histórico, 
ao menos boa parte dela: 
 
Quando Marco Polo falou, primeiro e apenas ele, da grandeza e da 
população da China, ninguém acreditou, e ele não pôde exigir crédito. Os 
portugueses que entraram naquele vasto império séculos depois 
começaram a tornar a coisa provável. Hoje isso é certo, dessa certeza que 
nasce do depoimento unânime de mil testemunhas oculares de diferentes 
nações, sem que ninguém tenha reclamado contra seu testemunho. 
(VOLTAIRE, 2007a, pp. 16-17). 
19 
 
 
 Um dos critérios que o filósofo estabelece para aceitarmos algo como verídico em 
história é o depoimento de um bom número de fontes confirmando o mesmo fato. Só se 
pode dar por certo algo que não vimos com os nossos próprios olhos quando há o 
“depoimento unânime de mil testemunhas oculares”. Como veremos na seção 1.2.2., a 
ausência deste critério foi utilizado pelo filósofo para criticar algumas histórias bíblicas,pois elas não teriam, segundo Voltaire, o testemunho de outras nações. 
 O nosso propósito, nesta seção, foi apenas apresentar aspectos teóricos gerais sobre 
os prováveis motivos que levaram Voltaire a fazer as críticas que fez ao cristianismo e à 
Bíblia, daí termos mais citações de comentadores do que do próprio filósofo, já que se trata 
de interpretações de especialistas, não das palavras do próprio filósofo, a não ser nas poucas 
citações que constam aqui. Nas seções seguintes, buscaremos, também, nas palavras do 
filósofo, entender não os motivos, mas as críticas em si, conhecermos os critérios e 
argumentos que o autor do Cândido utiliza para atacar os textos bíblicos. 
 
1.2. Crítica histórica à Bíblia 
 
Esta seção, que trata da crítica histórica que Voltaire faz à Bíblia, cita e analisa 
textos do filósofo que fazem comparação de certas narrativas históricas da Bíblia com a 
história de outros povos. Como veremos, Voltaire tem o intuito de demonstrar que a Bíblia 
copiou e se apropriou de histórias de outros povos e que a forma como as histórias bíblicas 
estão narradas, colocando Israel como o centro de tudo, é incompatível com as histórias de 
outras nações. Com isso, o filósofo tenta fazer da Bíblia não a Palavra de Deus, mas um 
livro que plagia incessantemente outras narrativas, e da história de Israel não a história de 
um povo escolhido o qual Deus cuida, mas uma história cheia de contradições, absurdos, 
cujo critério de colocar esta nação como centro do mundo não deve ser a maneira correta de 
se fazer história. 
 
 1.2.1. Empréstimos que a Bíblia teria tomado da história de outros povos 
 
 Um dos argumentos de Voltaire para tirar o crédito da Bíblia como livro inspirado e 
revelado por Deus é buscar provas na história de que o livro sagrado dos judeus e dos 
20 
 
cristãos, longe de ter sido inspirado pelo Criador do universo, na verdade é um conjunto de 
plágios das histórias de outros povos. 
 Se o filósofo consegue ter êxito em seu propósito, a autoridade da Bíblia se 
relativiza, e as narrativas consideradas sagradas pela visão judaico-cristã passam a ser 
vistas com naturalidade, não mais com reverência, não como lições inspiradas por Deus que 
visam nos ensinar, corrigir, dirigir. A Bíblia passa a ser apenas mais um livro, produzido 
humanamente, refletindo meramente a visão de um povo sobre a vida, sobre as leis, sobre 
Deus, etc. Assim, perdendo-se a autoridade da Bíblia, o que sobra do cristianismo? 
 A seguir, citamos o argumento do filósofo, começando pelo relato da criação: 
“Todos os povos de que os judeus estavam rodeados tinham uma Gênese, uma Teogonia, 
uma Cosmogonia, bem antes de esses judeus existirem. Não se vê de forma evidente que o 
Gênesis dos judeus foi tirado das antigas fábulas de seus vizinhos?” (VOLTAIRE, 2006, p. 
26). Há duas ideias presentes na citação voltairiana: O Gênesis bíblico foi copiado dos 
relatos de outras nações e seu caráter é fabuloso, ou seja, trata-se de uma fábula, de um 
relato que não tem caráter histórico. Parece que esta maneira de ler a Bíblia, comparando-a 
com a história de outros povos, não era tão incomum no século XVIII. A seguir, e em 
outros momentos, citaremos referências da obra Breviário filosófico ou história do 
judaísmo, do cristianismo e do deísmo em 33 versos, de Antonio Giachino Cerutti, com o 
intuito de, novamente, contextualizar Voltaire ao seu ambiente intelectual: 
 
A serpente desempenha algum papel em todas as religiões. Os brâmanes 
contavam a história da serpente que havia roubado do homem o elixir da 
imortalidade. Os choens, ou sacerdotes do Egito, utilizavam esse réptil 
como símbolo da eternidade. Em todos os tempos, na China, a imagem 
dos dragões alados foi o ornamento imperial e o paramento religioso. 
(CERUTTI, 2008, p. 53). 
 
 A referência é à serpente citada no Gênesis como o ser que levou o homem à queda, 
e que veio a receber interpretações posteriores como um símbolo do diabo.2 Cerutti, assim 
como Voltaire, busca quebrar a suposta exclusividade do texto bíblico e demonstra que a 
narrativa contida na Bíblia é apenas mais uma entre outras, o que provavelmente não seria 
bem visto pela Igreja. Hoje em dia tratar os primeiros capítulos da Bíblia como míticos ou 
 
2
 Cf. Ap 12 
21 
 
mesmo como tendo narrativas em comuns com as histórias de outros povos não traz 
maiores problemas para muitos estudiosos, em especial quando se estuda o texto bíblico no 
meio acadêmico, mas ainda assim a questão não está bem resolvida para muitas pessoas. 
Para muitos grupos, negar a historicidade de Adão e Eva, negar que o mundo foi criado em 
seis dias, que a morte só entrou no mundo quando Adão teria comido o fruto proibido, que 
o homem caiu do seu estado original de inocência, etc, é negar a verdade bíblica, é cometer 
uma heresia, é negar que o homem precisa de salvação e, consequentemente, negar o 
sacrifício de Cristo. Mesmo hoje em dia, quando se discute fé e religião sob o ponto de 
vista da natureza, da biologia, criação e evolução são ideias colocadas como pontos de vista 
antagônicos, como se houvesse apenas essas duas alternativas separadas para se aceitar, e 
muitos sequer pensam que alguém pode ser criacionista sem negar as descobertas da 
ciência, ou que pode ser cientista e não necessariamente não ter fé alguma. Assim, se nos 
nossos dias a questão não está bem resolvida para muitas pessoas, então no século XVIII 
uma frase como essa, de Voltaire, não deve ter soado de maneira muito amigável.3 
 Vejamos algumas informações importantes dadas por Champlin, um dos mais 
importantes exegetas da Bíblia do nosso século, que demonstram que a afirmação de 
Voltaire tem fundamento histórico e, por ser entendida como plausível por um intérprete 
contemporâneo, se reveste de importância: 
 
Várias antigas cosmogonias, incluindo a dos babilônios, pintavam um 
caos primevo ao qual as forças da criação esforçaram-se por emprestar 
boa ordem, produzindo um mundo bem organizado e embelezado. O 
relato babilônico dizia que o caos era governado pelo deus Apsu e pela 
deusa Tiamate. Somente o Deus supremo, Marduque, finalmente teve o 
poder de fazer reverter o caos de Apsu. A temível Tiamate foi morta. O 
“corpo” dela foi dividido em duas partes, e uma metade tornou-se a terra, 
e a outra metade, o firmamento acima. (CHAMPLIN, 2001, p. 11). 
 
 Voltaire não trata de nenhuma cosmogonia específica na citação mencionada, mas 
informa que os judeus copiaram as fábulas de seus “vizinhos”. Champlin corrobora um 
aspecto importante comum entre o Gênesis bíblico e outros relatos de criação que é o caos 
 
3
 Sobre um pouco da questão em nossos tempos, e como ela ainda incomoda muitos cristãos, confira uma 
entrevista sobre criação e evolução na seguinte fonte: 
http://www.cacp.org.br/movimentos/artigo.aspx?lng=PT-BR&article=819&menu=12&submenu=4 
 
22 
 
relativo aos primeiros tempos, antigo. Na Bíblia, realmente, temos a informação de que “a 
terra era sem forma e vazia” (Gn 1:2), ou seja, havia um caos. Segundo a informação de 
Champlin, no relato babilônico da criação, Marduque é o deus supremo que reverteu o 
caos, enquanto na Bíblia Deus, a partir de uma terra já existente, porém caótica, começa a 
estabelecer ordem (Cf. Gn 1:2ss). Na lenda babilônica houve uma divisão entre a terra e o 
firmamento acima, provavelmente uma referência ao céu, oriunda do corpo de Tiamate, 
enquanto no Gênesis há uma separação entre as águas que ficam acima dos céus e as que 
ficam abaixo (Cf. Gn 1:6-8). Os céus foram criados para abrigar uma parte das águas, 
enquanto a terra abrigaria outra parte (Cf. Gn 1:9-10). Ambas as narrativas fazem a 
dicotomia terra/céu. Mais alguns paralelos entre o Gênesis e o mito babilônico são: uma 
serpenteque trouxe confusão a um jardim; o homem feito de argila; a existência de um 
jardim paradisíaco; uma maldição por alguém ter comido o que não deveria (Cf. 
CHAMPLIN, 2001, p. 4048). Como esta cosmogonia babilônica foi encontrada no século 
XIX Voltaire certamente não teve acesso a ela, todavia, se o conteúdo de tal relato refletir 
ideias que são comuns entre algumas cosmogonias antigas, entre elas o Gênesis, então 
vemos que o filósofo, para fazer a afirmação que fez, teve contato com outros relatos de 
criação provavelmente semelhantes ao texto babilônico e chegou à conclusão de que a 
Bíblia os copiou. Não temos como ter certeza absoluta sobre tal afirmação, mas atualmente 
muitos estudiosos acreditam que o relato bíblico da criação e do dilúvio não é original, mas 
reflete as ideias dos povos da época.4 Assim, Voltaire faz uma afirmação importante para o 
estudo histórico da Bíblia e, mesmo sem podermos afirmar absolutamente que o Gênesis 
copiou e adaptou os relatos de outros mitos5, ainda assim sua crítica demonstra que ele 
tinha familiaridade com a Bíblia e com outros textos de outros povos. 
 Continuemos, citando mais um exemplo que o filósofo emprega acerca da suposta 
não originalidade dos relatos bíblicos: 
 
A queda do homem degenerado é o fundamento da teologia de quase 
todas as antigas nações. O pendor natural do homem a se queixar do 
presente e a exaltar o passado fez que se imaginasse em toda parte uma 
 
4
 Para mais detalhes sobre esta opinião, consultar a fonte http://www.klepsidra.net/klepsidra23/gilgamesh.htm 
5
 Para conferir uma opinião contrária, ver a seguinte referência: UNGER Merril F. Arqueologia do velho 
testamento. São Paulo: Editora Batista Regular, 1998 
 
23 
 
espécie de idade de ouro a que os séculos de ferro sucederam. 
(VOLTAIRE, 2007a, p. 101). 
 
 O filósofo demonstra, com este comentário, que o texto bíblico sobre a queda do 
homem é apenas mais um, já que, se tal episódio é narrado em documentos de diversas 
nações, então a exclusividade que muitos enxergam na Bíblia cai por terra. Ou seja, a Bíblia 
não só perderia, assim, seu status de livro inspirado, como também se tornaria apenas mais 
um relato acerca do passado da humanidade. Vejamos novamente Cerutti seguindo 
caminho semelhante, isto é, comparando a Bíblia com outras narrativas antigas: 
 
O autor do Gênesis estava lidando com um povo de ladrões. Eva comeu o 
fruto proibido por curiosidade. Pandora, por curiosidade, abriu sua 
caixinha fatal. Por curiosidade, Psiquê feriu e perdeu seu amante imortal. 
Eu observo que: 1º) de todas essas mulheres curiosas e fabulosas, a mais 
interessante é a última; 2º) todos os contos antigos, assim como todos os 
contos modernos, giram em torno da fraqueza das mulheres. (CERUTTI, 
2008, pp. 54-55). 
 
Com um tom parecido com o de Voltaire, depreciando os judeus, o escritor vê, mais 
uma vez, paralelos entre a história bíblica e outras narrativas, igualmente fabulosas, míticas. 
Reforçamos que, com essa citação, é possível ver que essa maneira crítica de ler a Bíblia 
não era exclusiva de Voltaire, o que o texto demonstra bem. 
Na citação anterior, Voltaire atribui à natureza do homem em exaltar o passado e se 
queixar do presente a existência de tais narrativas, das quais a Bíblia seria apenas mais 
uma. Champlin informa que “material proveniente da biblioteca da Suméria, descoberto há 
cinqüenta anos em Nipur, no sul da Babilônia, fala sobre um lugar chamado Dilmun, um 
lugar aprazível onde eram desconhecidas a morte e as enfermidades.” (CHAMPLIN, 2001, 
p. 24). Novamente reforçamos, pela época da descoberta do documento citado por 
Champlin, que Voltaire também não teve contato com este material específico, mas 
frisamos que a essência desses comentários tem um bom fundamento histórico, pois a 
informação corrobora o que o filósofo afirma, que havia outros relatos, de outros povos, 
tratando de uma “idade de ouro”, o que se vê também na Bíblia. A Bíblia de Jerusalém, 
comentando sobre Gn 1:30, afirma que o texto se refere a uma “imagem de uma idade de 
ouro, na qual o homem e os animais viveriam em paz, alimentando-se de plantas.” (p. 35). 
24 
 
 O filósofo ainda afirma que a história de Moisés teria várias semelhanças com a de 
Baco (Cf. VOLTAIRE, 2007a, pp. 134-135), e que a de Moisés não seria a original, mas a 
cópia (Cf. VOLTAIRE, 2000, p. 93), que os nomes bíblicos de Deus, no hebraico, teriam 
sido copiados dos fenícios (Cf. VOLTAIRE, 2007a, p. 83) e mesmo rituais como o batismo 
e a circuncisão e até a crença nos anjos e nos querubins também teriam sido copiados de 
outras nações (Cf. VOLTAIRE, 2000, p. 61). Cerutti corrobora esta maneira de ler a Bíblia 
por alguns estudiosos no século XVIII: 
 
Gabriel, Rafael, Uriel, Miguel etc eram nomes caldeus. Os hebreus 
aproveitaram o cativeiro para enriquecer e refinar seu idioma – o mais 
pobre e o mais grosseiro dos dialetos árabes. Eles trouxeram do Egito seu 
bezerro de ouro e, da Babilônia, seus anjos de prata, seus querubins, seus 
serafins etc. Toda a Bíblia é um plágio rabínico. (CERUTTI, 2008, p. 62). 
 
Enfim, são diversas afirmações que teriam que ser examinadas isoladamente e com 
maiores detalhes, o que não é propósito deste trabalho e exigiria mesmo uma vasta pesquisa 
da Bíblia e dos livros dos outros povos que conteriam as informações citadas por Voltaire e 
também por Cerutti. Contudo, a essência dessas argumentações é que as Escrituras teriam 
copiado boa parte de suas histórias antigas dos relatos de outros povos, não sendo, portanto, 
um livro revelado e inspirado por Deus e seria apenas mais um livro produzido por um 
povo como os demais, tendo, ainda, a desvantagem de não ter qualquer originalidade. 
 
 1.2.2. Incompatibilidade da história bíblica com a história de outros povos 
 
No conto O touro branco, Voltaire fala de uma princesa, Amaside, que era filha de 
Amásis, rei de Tânis, no Egito. Havia um sábio de 1300 anos que estava sempre com ela e 
Mambrés era superintendente de sua casa. Mambrés6, antigo mago dos faraós, teve uma 
disputa com o “grande Moisés” e, por forças divinas, foi derrotado. O amado de Amaside 
tinha sumido há sete anos e ela, por isso, chorava. Seu pai a proibira de falar o nome dele. 
Uma velha coberta de farrapos tinha alguns animais inusitados, que conversavam entre si. 
A serpente tinha olhos ternos e fisionomia nobre, o peixe era admirável e havia também 
uma jumenta. Já o touro era branco, elegante, leve, tinha chifres de marfim e não havia 
touro mais belo do que ele. O touro, ao encontrar a princesa, correu para ela, lançou-se aos 
 
6
 Provável referência a Jambres, mago de Faraó (Cf. 2 Tm 3:8). 
25 
 
seus pés, beijou-os, chorou, sentiu dor e alegria. A princesa se agradou do ato. A velha 
recebeu proposta para vender o touro para a princesa, feita por Mambrés, e disse que não 
podia vender, pois não lhe pertencia. O velho reconhece a mulher, que era a pitonisa de 
Endor7 (Cf. VOLTAIRE, 2005, p. 700). Ele era famoso por mudar os bastões em serpentes, 
o dia em trevas, os rios em sangue8 (Cf. VOLTAIRE, 2005, p. 701). O sábio quer saber 
quem são os animais que estão com a velha e ela diz: A serpente é a do Éden, a jumenta é a 
que falou com Balaão, o peixe é o que engoliu Jonas, o cão é o que seguiu o anjo Rafael e 
Tobias durante a viagem a Ragés, na Média, o bode é o que expia os pecados da nação e o 
corvo e a pomba são as que estavam na arca de Noé (Cf. Voltaire, 2005, p. 701). 
A seguir Mambrés fala à pitonisa: 
 
O Eterno revela o que quer, e a quem quer, ilustre pitonisa. Todos esses 
animais, encarregados convosco da guarda do touro branco, só são 
conhecidos na vossa generosa e aprazível nação, a qual, por sua vez, é 
desconhecida de quase todo o mundo.As maravilhas que vós e os vossos, 
e eu e os meus operamos, serão um dia objeto de dúvida e escândalo ente 
os falsos sábios. Felizmente encontrarão crédito entre os verdadeiros 
sábios, que se submeterão aos videntes, numa pequena parte do mundo, e 
é o que basta. (VOLTAIRE, 2005, p. 701). 
 
 Toda essa parte do conto tem como um dos objetivos mostrar que as histórias 
bíblicas citadas não são compatíveis com as histórias de outros povos. Nenhum povo 
conheceria as histórias bíblicas da serpente falante no Éden, da jumenta que conversou com 
Balaão, de Jonas, etc. Voltaire fala em tom zombeteiro, pois esses animais só seriam 
conhecidos na nação judaica, ou seja, as histórias bíblicas que os citam não seriam 
conhecidas em lugar algum, exceto por quem as escreveu, clara referência ao povo judeu. O 
filósofo também zomba dos milagres bíblicos, pois o personagem Mambrés, provável 
referência a Jambres, que fez prodígios e milagres no conflito com Moisés no Egito, bem 
como a pitonisa, que teria trazido o espírito do profeta Samuel do mundo dos mortos, 
teriam um dia suas maravilhas postas em dúvida pelos “falsos sábios”. É claro que o 
filósofo está ironizando e zombando das histórias bíblicas, já que quem as poria em dúvida 
não seria, em hipótese alguma, um “falso sábio”. Os “verdadeiros sábios”, que acreditariam 
nestas histórias, se submeteriam aos “videntes”, ou seja, aos profetas, mais uma 
 
7
 Para conferir a história da pitonisa de Endor e Saul, ver I Sm 28. 
8
 Referência irônica a Moisés. 
26 
 
demonstração de que Voltaire zomba da superstição de quem crê nos profetas e nos 
milagres. Ainda vemos, na referência acima, a expressão “numa pequena parte do mundo”, 
o que significa, novamente, que as histórias bíblicas seriam conhecidas apenas entre os 
judeus, não em outras partes do mundo. Dessa forma, a crítica histórica de Voltaire à Bíblia 
passa pelo argumento de que suas narrativas não seriam conhecidas em outros lugares, o 
que significa, provavelmente, que elas não ocorreram, já que a história precisa de 
evidências de um bom número de testemunhas. 
 O filósofo reforça o seu argumento de que as histórias bíblicas não teriam 
evidências nos registros de outros povos, agora em seu trabalho O túmulo do fanatismo: 
 
Terá havido um Moisés? De seu nascimento a sua morte, tudo nele é tão 
prodigioso que parece um personagem fantástico, como nosso encantador 
Merlin. Caso tivesse existido, caso tivesse operado os pavorosos milagres 
que supostamente fez no Egito, seria possível que nenhum autor egípcio 
falasse desses milagres, que os gregos, amantes do maravilhoso, não 
tivessem dito uma só palavra a respeito? (VOLTAIRE, 2006, p. 12). 
 
 Sabemos que Voltaire rejeitava a existência de milagres, até mesmo pela sua 
concepção de que Deus não os faz9, e certamente este foi um dos fatores mais importantes 
para a sua rejeição às narrativas bíblicas, recheadas de relatos sobrenaturais. As passagens 
bíblicas que tratam a respeito de Moisés, as quais contêm narrativas de sinais e prodígios 
em vários momentos, são rejeitadas pelo filósofo como sendo improváveis, já que, se 
tamanhos milagres tivessem ocorrido no Egito, algum autor desse país deveria ter relatado 
alguma coisa sobre eles. Argumento semelhante o patriarca de Ferney usou para rejeitar os 
milagres de Jesus, já que, se eles tivessem ocorrido como narrados na Bíblia, os romanos 
deveriam tê-los relatado (Cf. VOLTAIRE, 2000, p. 115). Ou mesmo a origem dos hebreus 
e dos árabes, que teriam descendido do mesmo ancestral, Abraão, não teria como ser 
demonstrada pela história (Cf. VOLTAIRE, 2000, p. 48). 
 A Bíblia não somente não teria suas histórias confirmadas pelos registros de outros 
povos, como também entraria em choque com elas. Esta também é uma maneira que o 
filósofo encontrou de desacreditar as narrativas do texto bíblico usando a história como 
arma. Ironicamente ele afirma que “o mais belo de todos [os milagres], a meu ver, é aquele 
 
9
 Ver o verbete “milagres” no Dicionário filosófico 
27 
 
em que Jesus manda o diabo para o corpo de dois mil porcos, numa região onde não havia 
porcos.” (VOLTAIRE, 2006, p. 48). Não temos a fonte que o filósofo usou para nos dar a 
informação citada, de que o local do milagre não teria porcos, mas a sua ideia é demonstrar 
que o texto bíblico está usando de falsidade. Argumento semelhante vemos na seguinte 
passagem da obra Deus e os homens: 
 
São Lucas diz que Quirino era governador da Síria quando Jesus nasceu. 
Essa falsidade é reconhecida por todos: sabe-se que o governador era 
Quintílio Varo. Eis, dizem, uma das mais grosseiras e mais patentes 
mentiras com que já se manchou a história. (VOLTAIRE, 2000, pp. 138-
139). 
 
 O escritor do evangelho, Lucas, segundo a tradição cristã, situa o nascimento de 
Jesus num recenseamento que teria ocorrido na época do citado governador da Síria (Cf. Lc 
2:1-2). O filósofo também critica a ideia de um suposto recenseamento universal narrado no 
texto bíblico (Cf. VOLTAIRE, 2006, p. 64). Sobre o recenseamento, a Bíblia de Jerusalém 
tem o seguinte comentário: 
 
Um recenseamento de todo o império sob Augusto é desconhecido em 
outros lugares; o recenseamento que aconteceu quando Qurino era legado 
da Síria (2,2+) se referia somente à Judéia. Sem dúvida Lc transpõe uma 
questão local à escala mundial... (p. 1789). 
 
 O comentário desta moderna e importante tradução da Bíblia de certa forma 
demonstra que a crítica voltairiana se reveste de fundamento histórico, já que um 
recenseamento universal seria desconhecido em outras nações, corroborando a crítica do 
filósofo ao tal recenseamento. O escritor bíblico teria tomado a parte pelo todo, tornando 
um evento local em algo universal. Champlin, todavia, informa-nos que papiros 
encontrados no Egito corroboram a informação dada pelo escritor do evangelho, bem como 
haveria também informações de que o governador da Síria já exercia poder na citada nação 
antes do que Voltaire pensava (Cf. CHAMPLIN, 1995, p. 25). Não sabemos se o autor do 
Cândido tinha algumas informações históricas que temos atualmente, mas, se por um lado 
suas críticas demonstram sua familiaridade com a Bíblia e com a história, bem como o bom 
fundamento de suas análises, por outro é preciso ser cauteloso ao afirmar categoricamente 
28 
 
que tal fato não aconteceu, já que em história nem tudo é certo ou claro, e as descobertas 
que ocorrem de tempos em tempos esclarecem as nossas interpretações sobre os fatos. 
 O filósofo também não aceita a forma como a Bíblia coloca os hebreus no centro da 
história, como o texto bíblico faz com que os israelitas sejam o povo de quem Deus cuida, 
muitas vezes castigando-o. Seria algo inconcebível que os povos da história se movam 
tendo como propósito fazer algo em favor ou contra os hebreus, seria ignorar o que de fato 
ocorre na história. Vejamos a seguinte citação na obra O pirronismo da história: 
 
É sempre audacioso querer penetrar nos desígnios de Deus; mas a essa 
temeridade mescla-se um grande ridículo quando se quer provar que o 
Deus de todos os povos da Terra e de todas as criaturas dos outros globos 
não se preocupava com as revoluções da Ásia e que só enviava 
pessoalmente tantos conquistadores uns após os outros em consideração 
do pequeno povo judeu, ora para o abater, ora para o encorajar, sempre 
para o instruir, e que essa pequena horda voluntariosa e rebelde era o 
centro e o objeto das revoluções da Terra. (VOLTAIRE, 2007b, p. 20). 
 
 Num extremo estaria a arrogância do homem em julgar os propósitos de Deus, mas 
no outro estaria a atitude de aceitar algo absurdo em nome do divino. A concepção que o 
filósofo tinha de Deus, de um Ser universal, criador de todas as coisas, o impediude aceitar 
a visão bíblica de que Deus escolheu um povo e o usou para seus propósitos na história. 
Seria mesmo “ridículo” conceber a ideia de que o Ser supremo fez o “pequeno povo judeu” 
o centro “das revoluções da Terra”. Para situar melhor o leitor dentro de prováveis 
passagens bíblicas que o filósofo tem em mente, citamos a seguinte: “Eis que o Senhor fará 
vir sobre eles as águas do rio, fortes e impetuosas, isto é, o rei da Assíria, com toda a sua 
glória; e subirá sobre todos os seus leitos, e trasbordará por todas as suas ribanceiras.” (Is 
8:7). O contexto da passagem citada demonstra que Deus castigaria os hebreus por causa de 
sua infidelidade, e o faria usando a Assíria, nação que veio a destruir o reino do norte de 
Israel e também trouxe grandes dificuldades para o reino do sul. A Assíria é vista, pelo 
profeta Isaías, como um instrumento de Deus, como um machado nas mãos de quem o usa 
(Cf. Is 10:5, 15). Sendo assim, uma nação poderosa seria apenas um instrumento divino, na 
visão do profeta bíblico, para castigar o seu povo, visão essa que, como vimos, é rejeitada 
por Voltaire. 
29 
 
 Vejamos mais uma referência bíblica que se enquadra na visão rejeitada por 
Voltaire, dos hebreus como o centro, enquanto as outras nações seriam instrumento divino 
para abater o povo eleito: 
 
Também todos os chefes dos sacerdotes e o povo aumentavam de mais em 
mais as transgressões, segundo todas as abominações dos gentios; e 
contaminaram a casa do Senhor, que ele tinha santificado em Jerusalém. 
E o Senhor, Deus de seus pais, lhes enviou a sua palavra pelos seus 
mensageiros, madrugando e enviando-lhos; porque se compadeceu do seu 
povo e da sua habitação. 
Porém zombaram dos mensageiros de Deus, e desprezaram as suas 
palavras e mofaram dos seus profetas até que o furor do Senhor subiu 
tanto, contra o seu povo, que mais nenhum remédio houve. 
Porque fez subir contra eles o rei dos caldeus, o qual matou os seus 
mancebos à espada, na casa do seu santuário, e não teve piedade nem dos 
mancebos, nem das donzelas, nem dos velhos, nem dos decrépitos; a 
todos os deu na sua mão. (2 Cr 36:14-18). 
 
 A conquista da nação de Israel feita pela Babilônia é vista como mero instrumento 
nas mãos de Deus por causa da rebeldia do povo hebreu. A persistência dos hebreus na 
rejeição às exortações dos profetas traria, fatalmente, o cativeiro babilônico como 
consequência. Perceba o leitor que, segundo o texto bíblico, foi Deus quem “fez subir 
contra eles [os hebreus] o rei dos caldeus [Babilônia]”. Como pudermos ver, Voltaire não 
aceita que “essa pequena horda voluntariosa e rebelde [os judeus] era o centro e o objeto 
das revoluções da Terra”. Um Deus que escolhe um povo em detrimento dos outros é 
inconcebível para Voltaire, ainda mais quando esse povo passa a ser o critério principal 
para explicar os eventos históricos de outras nações. 
 Citamos outra referência do filósofo com o mesmo tipo de crítica, agora em sua 
obra A filosofia da história: 
 
Se os reis da Babilônia, em suas conquistas, atacam de passagem o povo 
hebreu, é unicamente para corrigir esse povo de seus pecados. Se o rei a 
quem se chamou Ciro se assenhora da Babilônia, é para dar a alguns 
judeus licença para ir para casa. Se Alexandre é vencedor de Dario, é para 
estabelecer roupas-velheiros judeus em Alexandria. (VOLTAIRE, 2007a, 
p. 13). 
 
 Novamente o autor do Cândido critica a visão bíblica que coloca os hebreus como o 
centro da história. Ele não aceita que fatos importantes ocorridos na Terra tenham como 
30 
 
alvo os judeus. A história não deveria ser interpretada dessa maneira. Citamos mais uma 
vez o texto bíblico para esclarecer o leitor sobre o que Voltaire tem em mente: 
 
Portanto assim diz o Senhor dos Exércitos: Visto que não escutastes as 
minhas palavras, 
Eis que eu enviarei, e tomarei a todas as gerações do norte, diz o Senhor, 
como também a Nabucodonozor, rei de Babilônia, meu servo, e os trarei 
sobre esta terra, e sobre os seus moradores, e sobre todas estas nações em 
redor, e os destruirei totalmente, e po-los-ei em espanto, e em assobio, e 
em perpétuos desertos. (Jr 25:8-9). 
 
 O texto citado é do profeta Jeremias e tem teor semelhante ao que citamos 
anteriormente, já que ambos fazem da Babilônia um mero instrumento nas mãos de Deus, 
visando castigar o povo hebreu por não obedecer suas palavras. Fica claro que Voltaire está 
citando esta ou outra passagem similar, já que cita nominalmente a Babilônia em suas 
conquistas como um meio para se corrigir os israelitas. Mais uma vez o teor da crítica 
voltairiana é reforçado, pois não seria razoável ver um pequeno povo como o centro de 
todas as coisas. O filósofo também cita o conhecido texto de Ed 1:1-4, onde Ciro, rei da 
Pérsia, concedeu o direito dos judeus exilados da Babilônia voltarem para a sua pátria e 
reconstruírem sua cidade e seu templo. Novamente o texto bíblico vê o controle de Deus na 
história em favor do povo eleito e Voltaire corrobora sua rejeição a uma história que tem 
uma nação como centro. 
 
1.2.3. Problemas históricos internos 
 
Tendo percorrido o caminho da busca de incompatibilidade entre a história bíblica e 
a história de outros povos, seja reforçando a falta de evidências das narrativas bíblicas nas 
narrativas de outros povos, seja rejeitando a visão histórica que coloca os hebreus como 
centro de algumas importantes ações de outros povos, agora o filósofo buscará problemas 
históricos internos, ou seja, buscará contradições e inconsistências nas narrativas bíblicas, 
prosseguindo em seu ataque histórico ao texto bíblico. Para vermos como o filósofo assim 
problematiza a história bíblica, selecionaremos algumas passagens citadas em suas obras. 
Comecemos por um texto onde Voltaire problematiza a cronologia da história dos 
hebreus conforme narrada na Bíblia: 
31 
 
 
Corramos os olhos por todas as nações do nosso Ocidente, desde Arcangel 
até Gibraltar; acaso há uma só que tenha tido leis e uma história escrita 
antes de se reunir em cidades? Que digo? Há um só povo na terra que 
tenha mantido arquivos antes de se ter estabelecido? Como apenas os 
judeus teriam essa prerrogativa? (VOLTAIRE, 2000, p. 53). 
 
 O filósofo está se referindo ao fato da Bíblia dizer que os hebreus receberam a sua 
lei, a Torá, a Lei de Moisés, quando ainda estavam no deserto, antes de terem uma terra 
fixa para viver.10 A narrativa bíblica segue a ordem inversa do que Voltaire afirma que 
aconteceu com outros povos, isto é, as outras nações se reúnem em cidades, se organizam e 
então fazem leis, com os hebreus, ao contrário, a lei veio primeiro e então eles, com uma lei 
em mãos, partem para conquistar suas cidades. Para Voltaire, esta cronologia demonstraria 
a inconsistência da narrativa bíblica, seria uma demonstração de que a Bíblia não pode ser 
encarada como um livro histórico sério, já que tamanha contradição, em comparação com 
todas as outras histórias, demonstraria a falta de credibilidade das Escrituras Hebraicas. 
 O filósofo confirma que a lógica da cronologia de um povo é diferente daquela que 
a Bíblia demonstra acerca dos hebreus: 
 
A história de uma nação nunca pode ser escrita senão bem tardiamente; 
começa-se por alguns registros sumários que são conservados, na medida 
em que podem sê-lo, num templo ou numa cidadela. Uma guerra infeliz às 
vezes destrói esses anais, e é preciso recomeçar vinte vezes como 
formigas cuja habitação foi pisada. Só ao fim de vários séculos é que uma 
história um tanto detalhada pode suceder a esses registros informes, e essa 
primeira história é sempre mesclada de um falso maravilhoso pelo qual se 
pretende substituir a verdade que falta. (VOLTAIRE, 2007a, pp. 222-
223). 
 
A posição conservadora, tanto antiga como atual, atribui os cinco primeiros livros 
da Bíblia a Moisés. E esses cinco primeiros

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