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As 20 estruturas politicas - Portugal na época moderna (1499) - 2001

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2001_As estruturas politicas em Portugal na epoca moderna .doc (25-12-2003 14:07:00) 
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ANTÓNIO MANUEL HESPANHA *, AS ESTRUTURAS POLÍTICAS EM PORTUGAL 
NA ÉPOCA MODERNA +. 
Talvez não haja história mais difícil de fazer do que a História da Época 
Moderna. Não é que existam “fontes a menos”, como acontece, 
frequentemente, na História Antiga ou na História Medieval. Por outra palavras, 
o problema dos historiadores que se dedicam a este período não é o de se saber 
pouco sobre ele. É antes o de, aparentemente, se “saber demais”. 
Na verdade, o comum das pessoas tem imensas ideias feitas sobre uma 
série de coisas que se passaram na Época Moderna, sobretudo em Portugal. A 
história que se fez desde há séculos - por vezes quase desde o momento em que 
os factos se passaram - fixou no senso comum uma série de imagens, que hoje 
estão tão enraizadas que custa muito removê-las ou mesmo apenas revê-las. Por 
exemplo, ao falar das grandes figuras da história de Portugal, desde D. Sebastião 
até ao Marquês de Pombal, passando por Vasco da Gama, o Infante D. Henrique 
ou D. João V, é evocada toda uma série de imagens, de sentimentos, de 
apreciações ou, mesmo, de elementos iconográficos, muitos dos quais hoje se 
sabe já não corresponderem a qualquer verdade histórica. Neste sentido, a 
história banaliza-se, torna-se uma galeria de representações esperadas e já 
sabidas. 
A melhor maneira de fazer história é romper com estes lugares comuns, 
procurando retratos mais libertos dos nossos sentimentos e do nosso saber 
intuitivo. Mas, também, da nossa actual maneira de sentir, de pensar, de agir e 
de reagir. Então, o passado surge-nos como algo de diferente e de inesperado, 
que documenta a variedade histórica dos homens e das culturas. 
O mundo actual, se estivermos atentos à sua diversidade, já nos dá conta 
de que os homens são muito diversos, como muito diversas são as suas formas de 
viver e de conviver. A história, contada como um relato da diversidade, não faz 
senão aumentar essa riqueza do humano, mostrando-nos outras formas de viver, 
de sentir a vida e de organizar. Nesse sentido, ela constitui uma galeria, não de 
tipos familiares e previsíveis, mas de tipos estranhos e inesperados. Os nossos 
trisavós, de que a História Moderna se ocupa, eram, de facto, uns sujeitos 
bizarros, com os quais teríamos seguramente muita dificuldade em nos 
entendermos.1. 
 
1. A ordem social como ordem natural. 
 
 
* Professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; 
Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E-mail: 
am.hespanha@mail.telepac.pt. 
+ As obras citadas, são-no, de forma abreviada (que pode ser completada com recurso à 
bibliografia final. 
1 Para ir mais além: António Manuel Hespanha, "Para uma teoria da história político-
institucional do Antigo Regime", cit., 7-90; Poder e instituições no Antigo Regime. Guia de 
estudo, cit., 1992, 128 pp.. 
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A Época Moderna herda do período medieval a ideia de que existe uma 
ordem universal (cosmos), abrangendo os homens e as coisas, e fixando uns e 
outras a um curso quase tão forçoso e inevitável como a sequência das estações 
do ano ou o fluir dos acontecimentos naturais. Tratava-se, afinal, de uma 
sociedade de fortes raízes camponesas, habituada aos ritmos monótonos da vida 
natural; e, para além disso, de uma sociedade tradicionalista, onde a vida 
comunitária tinha hábitos longamente estabelecidos, cuja observância era tida 
como obrigatória. A própria Bíblia, que era lida tanto por católicos como por 
protestantes, parecia confirmar esta ideia de que tudo estava organizado desde 
a origem, ao relatar a Criação do Mundo e o modo como Deus teria ordenado as 
criaturas, animadas e inanimadas, umas para as outras e todas para a Sua glória. 
Também a organização da cidade (a “política”) tinha como fundamento 
esta ordem divina da Criação. Apesar de se reconhecer que os membros de cada 
comunidade podiam estabelecer algumas normas particulares de organização 
política, pensava-se que a generalidade das regras de vida em comum (a 
“constituição social”, digamos) estavam fixadas pela natureza. A sociedade - 
dizia-se então - era como corpo, em que a disposição dos órgãos e as suas 
funções estava definida pela natureza. 
Assim, era da natureza das coisas que os súbditos seguissem os ditames 
dos governantes, que estes tivessem que governar em vista do bem comum, que 
a mulher obedecesse ao marido, que o casamento fosse monogâmico e 
indissolúvel, que os poderosos protegessem os mais fracos, que os amigos ou 
parentes se favorecessem mutuamente. Os juristas - que, então, eram aqueles 
que pensavam a organização política - identificavam a justiça com o respeito por 
estes equilíbrios sociais. 
Esta ideia do carácter natural da constituição social - i.e., de que a 
organização social depende, no fundamental, da natureza das coisas - faz com 
que se atenue muito a importância da ideia de indivíduo e de vontade. 
Na verdade, as leis fundamentais (a "constituição") de uma sociedade (de 
um reino) dependeriam tão pouco da vontade como a fisiologia do corpo humano 
ou a ordem da natureza. Não era, de facto, a vontade humana - nem a dos 
governantes, nem a dos governados - que definia o que era justo ou injusto, o 
que era lícito ou ilícito, o que era politicamente possível ou impossível. Pelo 
contrário, o justo, o lícito e o politicamente possível estavam definidos numa 
ordem do mundo anterior e superior à vontade dos homens, mesmo dos 
monarcas. O indivíduo não estava, assim, na origem da constituição política ou 
da organização social; era esta, pelo contrário, que lhe atribuía um determinado 
papel social ou um certo conjunto de direitos e deveres. 
São estas ideias - então muito difundidas por teólogos e por juristas - 
acerca da relação entre ordem político-social e natureza que explicam algumas 
das características mais notórias das sociedades de Antigo Regime. Por exemplo, 
que o título de rei passe de pais para filhos, como qualquer característica 
natural que se transmite pelo sangue, sem intervenção da vontade dos súbditos. 
Ou que os poderes do rei não dependam da sua própria vontade, mas das funções 
que a natureza atribui aos governantes em vista da realização do bem comum. 
Ou que os direitos e deveres dos membros da comunidade doméstica nem sequer 
possam ser modificados por lei, uma vez que decorrem de uma natureza da 
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família que se considera estar acima da lei do rei. Ou, finalmente, que o uso das 
coisas que são de nossa propriedade não dependa do nosso arbítrio, mas dos fins 
para que a natureza no-las deu, em vista, não apenas do nosso interesse, mas 
também dos interesses da comunidade. 
Era este ideal de vida honesta - isto é, de vida conforme à natureza das 
coisas - que explica a antipatia com que a sociedade tradicional recebe as novas 
ideias, que começam a surgir no Renascimento, de que o indivíduo está no 
centro do mundo e de que toda a constituição social e política há-de depender 
da sua vontade 2. A estes temas da ordem como equilíbrio desigual, da 
mobilidade social e do individualismo dedicaremos os números seguintes. 
 
2. O individualismo. 
 
Os séculos XV e XVI são épocas de grandes modificações nos horizontes 
culturais e sociais europeus. A Reforma quebra a unanimidade religiosa, o 
Renascimento provoca uma mudança nos modelos do gosto e também nas 
referências culturais. Os Descobrimentos tornam conhecidos outros mundos e 
outras culturas, algumas delas totalmente desconhecidas até então, outras 
radicalmente diferentes da europeia. Muito do que parecia indiscutívele 
natural, revela-se problemático e artificial. Nestas circunstâncias, torna-se 
muito difícil continuar a acreditar numa ordem estável do mundo, onde cada 
coisa tenha um lugar fixo, insensível às mudanças dos tempos ou das latitudes. 
Parece, agora, que é mais sensato pensar a ordem social, não como o 
reflexo de uma ordem natural forçosa, mas como baseada em acordos artificiais 
e provisórios, a que os homens vão chegando, para, em cada conjuntura política, 
evitar a anarquia originária e estabelecer a paz. 
Em contraste com a sensibilidade política anterior, isto significava 
desligar a ordem da sociedade de qualquer ordem natural ou metafísica. Ou 
seja, significava pensar que o estado de natureza - em que os homens estavam, 
antes de acordar nessas bases de convivência (contrato social) - não era um 
estado de harmonia natural, como antes se tendia a julgar, mas um estado de 
anarquia e de guerra de todos contra todos. 
Por detrás desta ideia pessimista acerca da natureza humana está, 
seguramente, o traumatismo das guerras sociais e de religião que assolaram a 
Europa durante o séc. XVI, mas também uma nova ideia de acerca da natureza 
do homem. 
Este deixa de ser considerado como uma peça na grande máquina do 
Universo, mas antes como um elemento auto-determinado e dinâmico, possuindo 
uma energia própria. Isto levá-lo-ia a afirmar-se perante os outros, a tentar 
modelar as relações sociais e políticas de acordo com os impulsos da sua vontade 
e a apropriar-se das coisas externas de modo a transformá-las em suas próprias. 
 
2 Desenvolvimentos: Ângela Barreto Xavier e A. M. Hespanha, "A representação da 
sociedade e do poder", cit., 121-145. 
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Este novo individualismo destrói completamente a ideia anterior de que a 
ordem social e política é independente e superior à vontade. Pelo contrário. A 
constituição da sociedade é agora vista como sendo o produto de um pacto, 
cujas cláusulas apenas dependem da vontade dos contraentes. Daí que todos os 
governos estabelecidos (ou seja, aceites, expressa ou tacitamente) sejam, em 
princípio, justos. 
Por isso é que o individualismo - e contratualismo que daí decorre - pôde 
dar origem a vários tipos de regime, por vezes radicalmente diferentes quanto à 
maneira de entender as relações entre os cidadãos e o poder. 
Nuns casos, o contratualismo veio a legitimar principados absolutos - 
como as várias manifestações de despotismo esclarecido típicas da segunda 
metade do séc. XVIII - por se entender que, no pacto social, os cidadãos tinham 
transferido todos os seus poderes originários para os governantes (contratualismo 
absolutista), ficando o príncipe livre de qualquer sujeição ou limite. Noutros 
casos, o contratualismo legitimou regimes de poder limitado, liberais ou 
democráticos, como os que surgiram em Inglaterra na sequência da Glorious 
Revolution, das revoluções Americana e Francesa ou das revoluções liberais dos 
finais do séc. XVIII e inícios do séc. XIX. Por se poder entender que o conteúdo 
do contrato social nunca poderia contrariar os objectivos últimos pelo qual ele 
teria sido celebrado, ou seja, instaurar uma ordem social e política que 
permitisse ao máximo a realização dos impulsos de cada um, devendo por isso os 
direitos naturais permanecerem eficazes mesmo depois de constituído um 
governo. 
Mas não é apenas no plano da constituição política e do regime de 
governo que o individualismo marca a fase final da Época Moderna. Pode dizer-se 
que isto se passa em todos os domínios da vida social. Todas as relações sociais 
passam a ser tidas como desprovidas de qualquer núcleo “natural” e, por isso, 
livremente modificáveis pela vontade. Um bom exemplo é o do casamento, que 
começa a ser visto como um simples contrato e, por isso, dissolúvel por vontade 
das partes. E, na verdade, o divórcio passa a ser progressivamente admitido (em 
França, a partir de 1804, com o Code civil, de Napoleão). Outra manifestação 
desta concepção individualista é o novo modo de conceber a propriedade das 
coisas. Se esta antes estava limitada por uma série de direitos da comunidade, 
como os usos colectivos (de pastoreio, de caça, por exemplo) ou os direitos dos 
vizinhos (servidões de passagem, por exemplo), agora ela é concebida como um 
direito absoluto sobre as coisas próprias, sem quaisquer restrições impostas ou 
pelos interesses comunitários ou pela solidariedade social (propriedade 
capitalista) 3. 
 
3. Um “Estado moderno”? 
 
 
3 Para ir mais além: Luís Reis Torgal, Ideologia política, cit..; Luís Cabral de Moncada, 
"Origens do moderno direito português ...”; Angela Barreto Xavier e A. M. Hespanha, "A 
representação da sociedade ...”, cit., 121-145. 
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É esta configuração do poder que se costuma designar por “Estado 
Moderno”. 
A questão da existência ou não de um “Estado moderno” ou da cronologia 
da sua instituição está ligado a um certo contexto da reflexão sobre a sociedade 
e o poder. Nos meados do século passado, Karl Marx caracterizou o advento da 
modernidade (capitalista) pela separação entre a esfera da política e a esfera da 
economia. Ao passo que, no modo de produção feudal, a exploração económica 
se fazia por processos políticos (cobrança da “renda feudal”), no capitalismo a 
drenagem da mais valia para as classes exploradores realiza-se no âmbito da 
economia, constituindo a política apenas a moldura externa do processo de 
exploração. Com isto, põe-se termo à confusão entre propriedade e autoridade 
que teria caracterizado o sistema feudal, separando-se o “Estado” da “sociedade 
civil”. Por outras palavras, o marxismo reserva o conceito “Estado” para a 
descrição de um modelo em que a política formalmente se destaca do processo 
de exploração, emergindo como (pretensa) portadora de interesses gerais ou 
supra-classistas. Por outra lado, e ainda na segunda metade do mesmo século, a 
teoria jurídica e política começou a adoptar um estilo de análise política que se 
preocupava menos com a conjuntura - com a análise “évènementielle” da cena 
política - do que com as estruturas do político, nomeadamente com os grandes 
princípios (axiomas, conceitos) da teoria constitucional. Foi a isto que se chamou 
a adopção do “método jurídico” pela teoria constitucional alemã, francesa e 
italiana das últimas décadas do século. Para esta, a modernidade teria consistido 
na instauração de um modelo novo de desenhar o poder, de acordo com o qual 
um único pólo político se arrogava o monopólio de poder em relação a uma 
comunidade territorial - um povo, um território, um Estado, um direito. A partir 
daqui, o conceito de Estado ganha uma nova referência - a de um poder político 
único e exclusivo sobre uma “sociedade civil”, ou seja, uma sociedade que é 
palco de relações e de interesses meramente privados. 
Já no nosso século, Max Weber completa a carga conceptual da palavra 
“Estado”. Partindo da sua tipologia de modelos políticos - o modelo 
“carismático”, o modelo “tradicional”, o modelo “legal-racional” -, Weber 
reserva o conceito de Estado para este último, que seria o modelo típico da 
modernidade em termos políticos. O Estado constituiria, assim, uma forma de 
organização do poder caracterizada pela racionalidade, generalidade e 
abstracção. Uma forma racional de organizar (a “burocracia”, a “racionalização 
territorial”, a selecção “meritocrática”), uma forma abstracta e geral de regular 
(o “direito igual”), um modelo também impessoal de participação política (a 
“democracia representativa”). 
A palavra “Estado” é, assim, tudo menos um termo vazio de sentidos. 
Nele está deposta uma carga semântica pesadíssima,marcada por pensadores 
muito influentes na história do pensamento político contemporâneo. Dessa carga 
fazem parte algumas ideias força, de resto parcialmente sobreponíveis: 
• o Estado foi a entidade que separou o público do privado, a 
autoridade da propriedade, a política da economia; 
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• o Estado foi a entidade que promoveu a concentração de poderes 
num só pólo e que, por isso, eliminou o pluralismo político típico 
do Antigo Regime; 
• o Estado foi a entidade que instituiu um modelo racional de 
governo, funcionando segundo normas gerais e abstractas. 
Já se vê, a partir daqui, o que é que implicitamente se assume quando se 
utiliza a palavra “Estado”. 
É a consciência do peso destas assunções e do modo como elas podem 
deformar a apreensão do passado que fez surgir a consciência de que o Antigo 
Regime tinha que ser estudado com recurso a conceitos próprios, decalcados 
numa percepção e sensibilidade (incluindo, a afectividade) diferentes das 
relações sociais e políticas. 
E, de facto, enquanto isto se passava no plano da teoria geral da história, 
do lado da história política estavam a dar-se movimentos confluentes, embora 
com uma origem teórica muito diferente. 
Desde o século XIX que se mantinha, em toda a Europa, um filão de crítica 
ao modelo político instituído pelas revoluções liberais. Era constituído pelo 
pensamento político conservador-reaccionário, que continuava mais ou menos 
ligado às formas de imaginar a organização política típicas da sociedade de 
Antigo Regime. Os representantes deste filão estavam em melhores condições, 
desde logo psicológicas e afectivas, para entender e descrever com fidelidade o 
imaginário político da antiga Europa, de que eram politicamente admiradores. O 
exemplo clássico de uma descrição desse tipo é o da obra de Otto Gierke, nos 
finais do séc. XIX 4. Mas a ele se podem juntar o historiador belga Émile Lousse - 
que trabalhou sobre a organização corporativa medieval - e, sobretudo, o 
historiador austríaco Otto Brunner que, nos anos trinta, se dedicou à descrição 
do mundo mental subjacente à organização política medieval e moderna - o 
imaginário da “casa”, o imaginário das relações de fidelidade, o imaginário da 
nobreza, o imaginário das relações senhor-súbdito 5. 
A influência de O. Brunner na historiografia política do pós-guerra veio a 
ser muito grande, sobretudo na Alemanha e na Itália. Paradoxalmente, não tanto 
sobre a historiografia conservadora, mas sobre historiadores críticos dos modelos 
políticos estabelecidos, que se encontravam com Brunner na sua crítica implícita 
ao paradigma democrático-representativo. É isto que explica esse estranho 
casamento, típico da nova vaga de historiadores do poder e do direito dos anos 
setenta 6, entre uma formação teórica de raiz marxista e os tópicos 
 
4 Das deutsche Genossenschaftsrecht, Berlin, 1868-1913. 
5 Otto Brunner (1939), Land und Herrschaft. Grundfragen der territorialen 
Verfassungsgeschichte Oesterreichs im Mittelalter, Wien 1939 (trad. it. da 5ª ed. reelaborada, 
Terra e potere, intr. P. Schiera, Giuffré, Milano, 1983); "Das 'ganze Haus' und die alteuropaeische 
Oekonomik'" e “”Die Freiheitsrechte in der altstaendischen Gesellschaft”, ambos em Neue Wege 
der Verfassungs- und Sozialgeschichte, Göttingen 1968 (2ª ed.; existem trads. ital. e esp.); 
Adeliges Landleben und europaeischer Geist. Leben und Werke Helmhards von Honberg (1612-
1688), Salzburg, 1949. 
6 Por exemplo, Pierangelo Schiera, Johannes-Michael Scholz, Bartolomé Clavero e eu 
próprio. Hoje, o grupo alargou-se muito. 
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historiográficos de Otto Brunner, inspirados por uma visão política muito 
conservadora. 
Não vou aqui repetir, em detalhe, as consequências desta viragem 
historiográfica 7. Mas saliento que ela desviou a atenção das áreas clássicas da 
história institucional, como a administração “pública” formal, o direito 
legislativo e oficial, para novas áreas como as relações clientelares e de 
fidelidade, o imaginário e organização domésticos, a disciplina informal. Ou 
seja, para elementos de controlo e disciplina que não só não cabem no 
imaginário do Estado contemporâneo, mas que por ele são positivamente 
reprimidos, como sinais de corrupção e de perversão. 
É o que se passa, justamente, com a permanência - quase que diria contra 
natura, em face dos dados empíricos que todos já conhecem - da ideia de que o 
sistema político de Antigo Regime (com maioria de razão o medieval) se pode 
configurar como um sistema “estadual”. 
Explico melhor. 
A historiografia mais corrente tem difundido a imagem de que o sistema 
político da época moderna se caracterizou, também em Portugal, por uma 
crescente absolutização do poder real, logo a partir dos finais do séc. XV. 
Costumava-se apoiar esta visão com argumentos como o da decadência das 
cortes, da curialização da nobreza, da criação dos juizes de fora e consequente 
enfraquecimento da autonomia municipal, do enriquecimento da coroa com a 
empresa dos descobrimentos. 
Alguns destes argumentos são pouco rigorosos. 
Os juizes de fora, ainda que fossem esses instrumentos do poder real de 
que tanto se fala, só existiam, até aos finais do séc. XVIII, em cerca de 20 % dos 
concelhos. Um livro meu, já com dez anos, provou isso abundantemente 8. Neste 
particular aspecto, o trabalho de Ana Cristina Nogueira da Silva 9 parece 
confirmar, mesmo nos finais do séc. XVIII, um grande apego dos concelhos às 
suas autonomias jurisdicionais, embora isso conviva com um projecto da coroa 
reordenador do espaço político, numa perspectiva geométrica e centralizadora, 
cujos argumentos são aliás curiosamente incorporados, quando é conveniente, 
no discurso localista dos concelhos. 
Embora os poderes dos senhores portugueses não fossem tão extensos e 
incontrolados como no centro da Europa, cerca de 2/3 dos concelhos do reino 
pertenciam a senhores, que aí administravam a justiça. E, em cerca de 1/3 dos 
casos, estes senhores das terras podiam mesmo impedir a entrada dos 
magistrados régios (corregedores) a cargo de quem estava inspeccionar o 
 
7 Sobre ela, pode ver-se o meu prefácio à colectânea Poder e instituições na Europa do 
Antigo Regime, Lisboa 1984, 541 pp., max. 26 ss.; António Manuel Hespanha, Storie delle 
instituzione politiche ...cit... 
8 Última edição, António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan. Instituições e 
poder político (Portugal, séc. XVIII), Coimbra, Almedina, 1994, 682 pp. (reedição remodelada da 
edição espanhola de 1990). 
9 Ana Cristina Nogueira da Silva, O modelo espacial do Estado moderno [...] cit., 
maxime 374 ss.. 
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governo local. Também isto está abundantemente provado hoje, muito embora 
se discutam algumas questões relevantes neste plano: (i) qual o controlo 
efectivo dos senhores de terras sobre as suas terras; (ii) qual o grau de 
curialiação da nobreza portuguesa e em que é que isso consistia 10; (iii) qual o 
impacto prático da existência de uma justiça senhorial intermédia 11. 
Recentemente, trabalhos importantes, nomeadamente de Nuno Gonçalo 
Monteiro, de José Manuel Subtil, de Mafalda Soares da Cunha, e de Maria 
Fernanda Olival, aprofundaram diversos aspectos do tema. Mas – apesar de 
algumas restrições postas por alguns destes autores - não creio que o argumento 
se tenha alterado profundamente. Nuno Monteiro 12 insiste no tema da 
progressiva concentração da lata aristocracia num pequeno número de casas, 
cada vez mais curializadas e dependentes do favor régio, numa lógica de 
prestação deserviços contra o recebimento de mercês reais, nomeadamente as 
apetecidas e economicamente decisivas comendas das ordens militares; no 
entanto, a cultura política da “mercê” e do “benefício” filia-se numa “economia 
da graça” 13 com regras bastante estritas, que deixava pouco espaço ao arbítrio 
régio. A mesma economia da graça repassava a atribuição de distinções das 
ordens militares, de que o rei era o grão-mestre desde os meados do séc. XVI, 
tema recentemente estudado por Maria Fernanda Olival 14. Também aí, regras 
bastantes estritas de relação entre o serviço e a mercê limitavam uma plena 
disponibilidade dos recursos das ordens para a realização de uma política “da 
coroa”; ao mesmo tempo que, ao encararem a mercê como geralmente 
remuneratória de serviços, introduziam importantíssimas limitações à sua 
revocabilidade ou não renovação. É certo que estes dois historiadores insistem 
no papel da coroa na estruturação do sistema político. Mas, para além do que já 
se disse quanto às limitações postas ao “centro” pela lógica objectiva desta 
economia da mercê (como Fernanda Olival prefere chamar-lhe), não fica muito 
claro quem seja esse “centro”, nem quem idealiza e formula as suas estratégias 
ou projectos. Porque também resulta particularmente claro da própria obra 
destes autores – a contrastar com o que se passa no período iluminista, como 
mostra José Manuel Subtil, no seu estudo sobre o Desembargo do Paço 15 – que a 
monarquia continua a ser eminente poli-sinodal e “descerebrada” pelo menos 
 
10 António Manuel Hespanha, "Une autre administration. La cour comme paradigme 
d'organisation des pouvoirs à l'époque moderne", cit.. 
11 V. o meu livro Portugal moderno. Político e institucional, cit., no capítulo “Os 
senhorios”; bem como o livro de Nuno Gonçalo Monteiro, O crepúsculo dos grandes ...[...]. 
Sobre a corte, um programa metodológico em António Manuel Hespanha, "Une autre 
administration [...]”, cit.. 
12 Nuno G. Monteiro, O crepúsculo dos grandes ..., cit.. 
13 A. M. Hespanha, “L’économie de la grâce [...]”, cit.. 
14 Maria Fernanda Olival, Honra, mercê e venalidade[...], cit.. 
15 José Manuel Subtil, O Desembargo do Paço [...], cit.. Aparentemente, a “cerebração” 
do centro, em torno dos Secretários de Estado, já se vem manifestando no reinado de D. João V. 
O teor da correspondência de D. João V com os seus ministros de Estado, bem como a riqueza 
política dos memoriais de D. Luís da Cunha já o indiciam; estudos de Nuno Monteiro, ainda em 
curso, parece apontarem no sentido de uma decisiva politização do cargo de Secretário de 
Estado, que passa de um lugar acessório e de estatuto desvalorizado a um lugar de acumulação 
de informação política sobre os assuntos de Estado e, por isso, a uma instância decisiva na 
formação da política da coroa. 
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até aos meados do séc. XVIII. Em contrapartida, Mafalda Soares da Cunha 16 
mostra como uma grande casa senhorial – a dos Duques de Bragança - tinha uma 
coerente política de construção de redes clientelares próprias, cuja capilaridade 
se pode observar desde as camadas mais elevadas até às mais humildes da 
sociedade local. 
Ainda como poder autónomo, o da Igreja. 
A importância da Igreja como pólo político autónomo é enorme, na Época 
Moderna. 
Por um lado, estamos - pelo menos no Sul da Europa - perante uma 
sociedade "integrista", em que se visa uma direcção integral da vida pela moral 
cristã; e em que, portanto, os actos mais mínimos e mais íntimos estão 
detalhadamente regulados. Este ambiente integrista explica também a 
influência da teologia sobre outros universos normativos, nomeadamente, sobre 
o direito temporal e sobre a política 17. 
Por outro lado, de todos os poderes que então coexistiam, a Igreja é o 
único que se afirma com bastante eficácia desde os âmbitos mais humildes, 
quotidianos e imediatos, como as famílias e as comunidades, até ao âmbito 
internacional, onde convive com os poderes dos reis e imperadores De um 
extremo ao outro, a influência disciplinar da Igreja exerce-se continuamente. No 
plano da acção individual, pela via da cura das almas, a cargo dos párocos, 
pregadores e confessores. No plano da pequena comunidade, pela via da 
organização paroquial. No plano corporativo, por meio das confrarias específicas 
de cada profissão. Nos âmbitos territoriais intermédios, por meio da disciplina 
episcopal. Nos reinos, por mecanismos como a vigência temporal do direito 
canónico ou a existência de um foro especial para clérigos. 
Para desempenhar a sua missão (de condutora, de mãe e de mestra), a 
Igreja dispunha, quer de normas disciplinares, quer de uma malha administrativa 
e jurisdicional sem paralelo na época. 
O principal núcleo das normas com que a Igreja disciplinava a sociedade 
moderna estava contido no património doutrinal (ou dogmático) da Igreja, 
integrando as obras dos teólogos (teologia moral). Dentro destas, salientam-se as 
normas morais, visando o aperfeiçoamento individual, nos âmbitos do 
comportamento para consigo mesmo (monastica), do comportamento no seio da 
família (oeconomia), ou ao comportamento no seio da república (politica). A 
cada um destes grupos correspondia um capítulo da teologia moral, corpo 
literário vastíssimo, que vai desde as grandes sínteses (como a segunda parte da 
Summa theologica, de S. Tomás de Aquino, 1225-1274) até aos comentários 
monográficos ou aos "manuais de confessores", espécie de repertórios dos "casos 
de consciência" para uso dos confessores. 
Outra fonte de disciplina eclesiástica dos comportamentos era o direito da 
Igreja (direito canónico), conjunto de normas cuja observância estava garantida 
pela existência de uma completíssima rede de tribunais da Igreja (foro 
 
16 Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança. 1560-1640 [...], cit.. 
17 A. M. Hespanha, Portugal moderno [...], cit., 129 ss... 
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10 
eclesiástico) que aplicava aos contraventores sanções, quer do foro interno 
(penitência, excomunhão), quer do foro externo (condenações pecuniárias, 
prisão em instituições da Igreja). 
O direito canónico não vigorava nem apenas para os clérigos, nem apenas 
nas questões relativas à fé. Pelo contrário, aplicava-se a também a leigos e 
sobre matérias de natureza puramente temporais - como o pagamento de 
prestações económicas às instituições religiosas ou todos os negócios sobre os 
bens destas - ou que hoje são consideradas como tal. Um exemplo da última 
categoria é o casamento, então regulado exclusivamente pelo direito da Igreja. 
Estes sistemas de normas eram tornados efectivos por um conjunto de 
processos muito eficazes. 
Um delas era a pregação, nomeadamente a pregação dominical, que 
constituía um poderosíssimo instrumento de disciplina das comunidades de 
crentes. Outro, a confissão, preceito pelo menos anual para cada fiel, por meio 
da qual se exercia uma disciplina personalizada e se atingiam os níveis mais 
íntimos da conduta de cada um. Se a pregação podia "entrar por um ouvido e sair 
pelo outro", a confissão implicava o risco da não absolvição e das penas 
canónicas que daí decorriam. Nos casos mais graves, como a privação dos 
sacramentos ou a excomunhão, estas penas expunham quem violasse os 
preceitos canónicos a situações de marginalização social que eram mais graves 
do que muitas das penas seculares. Pense-se na vergonha pública que 
constituiria, nestes tempos, a impossibilidade de se casar pela igreja, de se ser 
padrinho, de frequentar os sacramentos, de receber a visita pascal, de ser 
enterrado canonicamente. Finalmente, a disciplina eclesiástica dispunha de um 
outro instrumento de efectivação,as visitas feitas pelo bispo ou vigário-geral a 
cada paróquia da diocese, ocasião para proceder a uma devassa geral da vida da 
comunidade, quer quanto aos aspectos do culto, quer quanto a matérias de 
disciplina (como, por exemplo, a existência de pecadores públicos - adúlteros, 
prostitutas, homossexuais, jogadores, usureiros). 
Também a malha administrativa do oficialato da Igreja não tinha 
equivalente na época. Desde Roma até a uma paróquia perdida da Beira, a Igreja 
dispunha de uma malha de oficiais e instituições que cobriam eficazmente o 
território e garantiam com uma eficácia absolutamente excepcional para a 
época as diversas funções que lhe competiam, desde as puramente espirituais, 
até às do foro externo, como a realização da justiça ou a cobrança dos tributos 
eclesiásticos. 
Claro que esta situação privilegiada da Igreja quanto ao controlo social 
era vista com preocupação pela coroa, que tentava atenuá-la de diversas 
formas. Uma delas era o beneplácito régio, instituído ainda durante a Época 
Medieval, que obrigava a que as "cartas de Roma" fossem sujeitas, antes da sua 
publicação, à aprovação régia (cf., Portugal, as Ordenações afonsinas, de 1446, 
II,12). Outra, eram as leis contra a amortização, contidas nas Ordenações (II, 
26), que proibiam as instituições eclesiásticas de possuírem bens imóveis. A sua 
aplicação nunca foi, de facto, levada a cabo, mas o preceito impendeu sempre, 
como ameaça, sobre a Igreja, nas épocas de tensão política com a Coroa, como 
aconteceu no período filipino. Finalmente, outra prerrogativa régia era a de 
proteger os seus súbditos naturais contra as violências dos eclesiásticos (a regia 
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11 
protectio) ou de punir pela justiça real os criminosos que não o tivessem sido 
devidamente pelas justiças eclesiásticas 18. 
Depois, se quisermos avaliar da importância relativa do poder real, temos 
que pôr a questão da eficácia da máquina administrativa da coroa e, mesmo 
antes, dos meios de conhecer o reino. 
O aparelho administrativo da coroa era muito débil, como o gráfico 
seguinte pode comprovar. Dos cerca de 1700 oficiais que a coroa tinha ao seu 
serviço em meados do séc. XVII, uns 500 estavam na corte. No resto do país, 
apenas 10 % das estruturas administrativas pertenciam à coroa, o que quer dizer 
que, para cerca de 12 000 funcionários concelhios, senhoriais e de outras 
entidades (excluídos, em todo o caso, os oficiais eclesiásticos), havia 1 200 da 
coroa 19. 
Rendas dos oficiais da administração 
portuguesa (excluindo a ultramarina), em 
1640
Concelhos
48%
Corte e seus 
tribunais
21%
Outros
2% Corporações 
e senhores
6%
Milícia real
0%
Justiça real
11%
Fazenda real
12%
 
 
A esta fragilidade dos aparelhos burocráticos soma-se a falta de recursos 
financeiros da coroa, pois a subida das suas rendas durante os sécs. XVII e XVIII - 
a que se refere o gráfico seguinte - não era bastante para melhorar 
substancialmente o magro aparelho burocrático a que antes nos referimos 20. 
 
18 Para ir mais além: Joaquim de Carvalho, As visitas pastorais e a sociedade de Antigo 
Regime, Notas para o estudo de um mecanismo de normalização social, Coimbra, polic., 1985; 
Joaquim de Carvalho, "A jurisdição episcopal sobre leigos em matéria de pecados públicos: as 
visitas pastorais e o comportamento moral das populações portuguesas de Antigo Regime", Rev. 
port. hist., 25(1990) 121-163; Ana Mouta Faria, "Função da carreira eclesiástica na organização 
do tecido social do Antigo Regime", Ler história, 11(1987) 29-46; António Manuel Hespanha, 
Portugal moderno [...]. cit.. 
19 Sobre este tópico, de novo, o meu livro As vésperas …, cit.; ou, para a segunda 
metade do séc. XVIII, José Manuel Subtil, O Desembargo do Paço [...], cit.. 
20 Sobre o tema, v. o capítulo “A fazenda” do vol. O Antigo Regime, por mim dirigido na 
História de Portugal, coord. Por José Mattoso, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1993, pp. 203-238. 
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12 
1588
1607
1618
1621
1627
1632
1641
1681
1716
1720
1737
1766
REINO - Total
ILHAS
AFRICA
BRASIL
INDIA
0
1.000
2.000
3.000
4.000
5.000
6.000
Evolução das despesas a preços correntes (1588-1766)
 
 
A esta falta de meios da coroa para governar o Reino teríamos ainda que 
acrescentar uma referência ao deficiente conhecimento do próprio território - 
de que não houve representações cartográficas detalhadas ou contagens 
demográficas precisas até aos inícios do séc. XIX 21 - e às dificuldades e demoras 
das comunicações internas - más estradas, deficiente serviço de correios. 
Mas neste balanço do impacto dos vários poderes existentes no Reino 
esquecem-se, sobretudo, alguns dados fundamentais sobre a lógica global do 
sistema de poder na época moderna. 
Ao contrário do que acontece hoje, o poder político estava muito 
repartido nas sociedades modernas. Com o poder da coroa coexistiam o poder da 
Igreja, o poder dos concelhos ou comunas, o poder dos senhores, o poder de 
instituições como as universidades ou as corporações de artífices, o poder das 
famílias. Embora o rei dispusesse de prerrogativas políticas de que outros 
poderes normalmente não dispunham - os chamados direitos reais, como a 
cunhagem de moeda, a decisão sobre a guerra e a paz, a justiça em última 
instância -, o certo é que os restantes poderes também tinham atribuições de 
que o rei não dispunha. A Igreja, por exemplo, tinha uma larga esfera de 
competências exclusivas - como, por exemplo, julgar e punir os clérigos. O 
mesmo acontecia com o poder do pai, no âmbito da família; era impensável que 
a coroa se intrometesse, por exemplo, na disciplina doméstica ou na educação 
dos filhos. E por aí em diante: a universidade julgava e punia os seus estudantes 
e professores; as corporações regulavam os respectivos ofícios; as câmaras 
editavam as normas (posturas) relativas à vida comunitária. 
Também o direito do rei (a lei) não era o único direito. Ao lado dela, 
vigorava o direito da Igreja (direito canónico); o direito dos concelhos (usos e 
costumes locais, posturas das câmaras); ou os usos da vida, longamente 
estabelecidos e sobre que houvesse consenso, que os juristas consideravam como 
 
21 Ana Cristina Nogueira da Silva, O modelo espacial [...], cit.. 
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13 
de obediência obrigatória, tanto ou mais do que a lei do rei. De resto, como 
também mostrei num estudo com alguns anos 22, a lei do rei tão pouco era 
aplicada de forma inexorável e sistemática. Os juízes entendiam que a aplicação 
da lei devia ser matizada pela avaliação da sua justeza em concreto, tarefa que 
lhes caberia essencialmente a eles e sobre a qual mantinham um poder 
incontrolado, escudados na doutrina jurídica do direito comum. No caso da lei 
penal, a sua aplicação devia, além disso, ser misericordiosa 23. Daí que, apesar 
de as Ordenações portuguesas preverem a pena de morte para uma série enorme 
de crimes, ela ser excepcionalmente aplicada, pelo menos até ao iluminismo. 
E, quanto às decisões políticas, a vontade do rei estava sujeita a muitos 
limites. Ele tinha que obedecer às normas religiosas, porque era o “vigário” (o 
substituto) de Deus na Terra. Tinha que obedecer ao direito, porque este não 
era, como vimos, apenas o resultado da sua vontade. Tinha que obedecer a 
normas morais, porque os poderes que lhe tinham sido conferidos o tinham sido 
para que ele realizasse o bem comum. E, finalmente, tinha que se comportar 
com um pai dos seus súbditos, tratando-os com amor e solicitude,como os pais 
tratam os filhos 24. E isto não era apenas poesia. Muitas entidades controlavam o 
cumprimentos destes deveres do ofício de reinar. A Igreja, por exemplo, que 
continuava a deter a perigosa prerrogativa de excomungar o rei, desligando os 
súbditos do dever de lhe obedecer. Por isso é que as crises com o Papado - que 
se multiplicavam durante os reinados e D. João V a D. José - eram 
politicamente tão sérias. Os próprios tribunais podiam suspender as decisões 
reais e declará-las nulas. E isso acontecia frequentemente, tanto nos tribunais 
superiores como nos juízes concelhios, por todo o reino, em questões grandes e 
pequenas. 
Tudo isto estava abundantemente e solidamente sedimentado na teoria 
política que, até ao pombalismo, não cessou de repetir os tópicos corporativos, 
descrevendo o poder real como um poder limitado, a constituição como o 
produto indisponível da tradição, o governo como a manutenção dos equilíbrio 
estabelecidos, o direito como um fundo normativo provindo da natureza. Nestes 
termos, todos os acenos da teoria política moderna para um governo baseado na 
vontade, nomeadamente na vontade arbitrária do rei, eram geral e 
enfaticamente rejeitados 25. Digna de uma análise porventura diferente é a 
literatura histórica e política referente ao ultramar, em que os tópicos 
maquiavélicos da exploração da conjuntura e do artificialismo do político parece 
serem mais frequentes. 
Assim, os limites ao governo provinham mais deste controle difuso e 
quotidiano do que, como frequentemente se diz, da reunião regular das cortes 
 
22 A. M. Hespanha, "Da 'iustitia' à 'disciplina' [...]”, cit... 
23 Cf. a obra citada na nota anterior. 
24 V., por último, a dissertação de doutoramento de Pedro Cardim, O poder dos afectos, 
Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL, 2000. 
25 Cf. A. M. Hespanha e Ângela Barreto Xavier, “A representação da sociedade e do 
poder”, cit.. e bibl. aí citada; cf. também a minha síntese, António Manuel Hespanha, “A 
fortuna de Aristóteles no pensamento político português dos sécs. XVII e XVIII”, cit.. 
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14 
que, nessa altura, tinham uma função sobretudo consultiva e cerimonial 26. “Sem 
o conselho {dos juristas}, o príncipe não pode editar leis, ainda que o possa fazer 
sem a convocação de cortes”, escreve um jurista do séc. XVII, repetindo a 
opinião comum. 
Este breve conspecto das coisas sabidas - algumas delas arqui-sabidas - da 
história política do Portugal moderno é suficiente para mostrar como muitas das 
ideias ainda correntes sobre o advento do “Estado” e a sua cronologia não 
quadram, de todo em todo, com os dados empíricos. 
A menos que “Estado” não tenha significado nenhum e se desconheça a 
carga semântica que no conceito foi depositado por quase 200 anos de teoria 
política. 
 
4. O império e a metrópole. 
 
Toda esta imagem de centralização ainda é mais desajustada quando 
aplicada ao império ultramarino. Aí, alguns módulos (Timor, Macau, costa 
oriental da África) viveram em estado de quase total autonomia até ao séc. XIX. 
Mas mesmo a Índia era objecto de um controlo tornado muito remoto pelos 9 
meses que demorava a comunicação com a metrópole 27. Apesar de, como já se 
sugeriu, a teoria da acção política relativa ao ultramar fosse algo mais 
permissiva. De qualquer modo, algumas concepções correntes sobre a história 
política e institucional do Império Português carecem de uma profunda revisão, 
já que a visão dominante é a da centralidade da coroa, com as suas instituições, 
o seu direito e os seus oficiais. 
A sobrevivência dessa imagem pode ser explicada por uma interpretação 
ingénua – ainda que ideologicamente significativa – das instituições históricas, 
fundada em preconceitos enraizados acerca da relação colonial 28. 
Do ponto de vista do colonizador, a imagem de um império centralizado 
era a única que fazia suficientemente jus ao génio colonizador da metrópole. Em 
contrapartida, admitir um papel constitutivo das forças periféricas reduziria o 
brilho da empresa imperial 29. Do ponto de vista das elites coloniais, um 
colonialismo absoluto e centralizado condiz melhor com uma visão histórica 
celebradora da independência. Se, por exemplo, lermos alguma historiografia 
brasileira (que, neste aspecto, é exemplo único e paradigmático na área ex-
 
26 Sobre as cortes, Pedro Cardim, Cortes e cultura política no Portugal do Antigo 
Regime, Lisboa, Cosmos, 1998. 
27 Cf., por exemplo, A. M. Hespanha e Maria Catarina Madeira Santos, “Os poderes num 
império oceânico”, cit.. 
28 Problemas semelhantes na historiografia italiana, Aurelio Musi, L’Italia dei viceré , 
cit... 
29 Não é por acaso que a historiografia romântica e nacionalista alimentou várias teorias 
que destacavam o carácter intencional e programático da expansão portuguesa - “Plano das 
Índias”, “Escola de Sagres”, “Política de segredo”. “Ideia imperial” e, talvez, a ideia de um 
“Pacto colonial” deliberada e cuidadosamente deliberado, estabelecendo o modelo de trocas 
comerciais entre a metrópole e o ultramar. 
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15 
portuguesa) 30 é bastante evidente a sua vinculação a um discurso narrativo e 
nacionalista, no qual a coroa portuguesa desempenhava um papel catártico de 
intruso estranho, agindo segundo um plano “estrangeiro” e “imperialista”, 
personificando interesses alheios, explorando as riquezas locais e levando a cabo 
uma política agressiva de genocídio em relação aos locais, por usa vez 
considerados como basicamente solidários, sem distinção de elites brancas e 
população nativa. Este exorcismo historiográfico permite um branqueamento das 
elites coloniais, descritas como objectos (e não sujeitos) da política colonial. 
Esta situação seria porventura consistente com a situação dos goeses, mas não 
decerto com a dos brasileiros 31. 
 
 
30 Este tópico tem, naturalmente, que ser muito matizado. Um caso extremo é o de 
Raymundo Faoro (Faoro, 1973 [cito a ed. de 2000], que, embora anotando uma série 
impressionante de argumentos anti-centralistas, está completamente cego por um modelo de 
interpretação “absolutista” e “explorador” da história luso-barsileira, produzindo um texto em 
toda a base empírica invocada está em contradição com as interpretações propostas (v.g., no 
que escreve sobre os poderes dos governadores e seus limites vários, pp. l164/165; estruturas 
militares e ordenaanças (caudilhismo), 180 ss.; funcionários, 193-194; limitações fácticas e 
teóricas do poder real, 199-200; “descerebração” da polisonodia, 201; desde que se tirem as 
conclusões opostas às suas, a sua síntese sobre o sistema político-administrativo, pp. 199-229, é 
bastante boa. De grande qualidade, é a síntese de Caio Prado, Jr., na Formação do Brasil 
contemporâneo, ed. cit., pp. 313-346, se descontarmos algum optimismo quanto à eficácia das 
intenções regulamentadoras do centro, bem como a crença em que a minúcia da 
correspondência com o Conselho Ultramarino representava domíniop efectivo (ele próprio 
comenta: “na realidade, a impossibilidade material de atender a tamanho acúmulo de serviço 
não só atrazava o expediente, de dezenas de anso à vezes, mas deixava grande número de casos 
a dormir o sono da eternidade na gavetas dos arquivos”, p. 314). Mas, sobretudo, a mais recente 
hostoriografia brasileira tem levantado essa hipoteca. Creio que é justo destacar o contributo de 
Maria Odila Leite Dias, que promove uma leitura da história brasileira liberta desa absessiva 
oposição metrópole-colónia (sobretudo em “A interiorização da metropole (1808-1835), Mota, 
Carlos Guilherme,1822-Dimensões, S. Paulo, Perspectivas, 1972, 160-184; síntese da questão em 
Furtado, Júnia Ferreira, Homens de negócio. A interiorização da metrópole e do comércio nas 
minas setecentistas, S. Paulo, HUCITEC, 1999). Também os contributos daqueles que têm 
salientado a tensão entre a norma de governo e a sua massiva violação; desde logo, Caio Prado, 
2000, 310; mas, mais recentemente, Laura de Mello e Souza, 1999, onde publica e destaca 
interessantes estudos sobre a indisciplina no próprio alvo central da disciplina da coroa no séc. 
XVIII, como a demarcação diamantina (sobre a qual, também, Anastasia, 1998, e Furtado, 1996. 
Na verdade, o que se passa também, com muita da historiografia brasileira é que estende a todo 
o Antigo Regime as intenções centralizadoras dos finais do séc. XIX, retroprojectando, por isso, 
uma oposição Brasil-Metrópole de que não é fácil falar antes da década ’70 do séc. XVIII; antes, 
encontram-se tensões várias: anti-fiscalismo, princípio do indigenato no provimento dos cargos, 
sentimentos contra o novo emigrante, localismo, anti-urbanismo, decadentismo e 
restauracionismo de uma época de ouro já passada, sentido de inferioridade intelectual (v. 
alguns destes tópicos em Mota, 1996 (4ª ed.). 
31 Do lado português, um artigo de Luís Filipe Thomaz, hoje clássico, renovou a 
historiografia política do império português, sobretudo do oriental, embora sem ligação com o 
novo contexto teórico da historiografia política moderna, inicialmente descrito. Cf António 
Manuel, & Santos, Catarina Madeira Santos, “Os poderes num império oceânico”; com mais 
detalhes, António Manuel Hespanha, Panorama da história institucional e jurídica de Macau, 
cit.. 
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16 
4.1 Um projecto colonial ? 
O primeiro facto que deve ser realçado é a inexistência de um modelo ou 
estratégia gerais para a expansão portuguesa. Existem, evidentemente, vários 
tópicos usados incidentalmente no discurso colonial para justificar a expansão. 
Um deles era a ideia de Cruzada e de expansão da fé. Mas, a par dele, vinha o 
do engrandecimento do rei ou o das finalidades do comércio metropolitano ou, 
mais tarde, de população. No entanto, este conglomerado não era harmónico, 
sendo que cada tópico levava frequentemente a políticas diferentes ou mesmo 
opostas. Aparentemente, o equilíbrio dos vários mudava com os tempos e com os 
lugares. As praças de Marrocos eram frequentemente justificadas por razões 
cavaleirescas e cruzadísticas, também invocadas em relação à Índia, mas 
raramente presentes na justificação da expansão sub-sahariana, macaense ou 
brasileira. Pelo contrário, os interesses mercantis, o proselitismo religioso e, 
mais tarde, os intuitos povoadores ou de drenagem demográfica constituíam, 
sucessivamente a justificação oficial da colonização do Brasil. Os 
estabelecimentos de África não mereceram uma detida literatura de 
legitimação; mas a evangelização e a manutenção da paz eram a cobertura 
ideológica oficial para a colonização africana, sempre que esta não era 
simplesmente justificada com a prioridade histórica da chegada dos portugueses 
ou com os meros interesses económicos do tráfico negreiro. Assim, parece que 
não existe uma estratégia sistemática abrangendo todo o império, pelo menos 
até aos meados do séc. XVIII 32. 
 
4.2 A moldura institucional: falta de homogeneidade, de centralidade 
e de hierarquias rígidas. 
4.2.1 Um estatuto colonial múltiplo. 
Uma descrição institucional da expansão portuguesa confirma este quadro 
atomístico 33. Realmente, embora os estabelecimentos coloniais portugueses 
tenham estado sempre ligados à metrópole por um laço de qualquer tipo, faltou, 
pelo menos até ao período liberal, uma constituição colonial unificada 34. 
Desde logo, faltava um estatuto unificado da população colonial. Alguns, 
os nascidos de pai português, eram “naturais” (Ord. fil., II, 55), gozando de um 
estatuto pleno de portugueses, usando o direito português e estando sujeitos às 
justiças portuguesas. Outros eram estrangeiros, libertos da obediência ao 
governo e ao direito portugueses 35. A sua única obrigação era a de aceitarem a 
pregação e o comércio; mas isto decorria, não de qualquer sujeição ao direito 
português, mas de normas do direito das gentes. Esta situação de nações livres 
vizinhas era muito instável, já que os colonos usavam de qualquer pretexto para 
 
32 A. J. R Russel-Wood., The Portuguese Empire, cit., 240. 
33 Cf. A. M. Hespanha, Panorama da história institucional e jurídica de Macau, cit., 
maxime 9-37. 
34 Mesmo então, o estatuto constitucional de alguns dos territórios coloniais não era 
claro. 
35 Tal era o caso dos “índios bravos” brasileiros ou dos “sobas amigos mas não vassalos” 
de Angola. 
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17 
as reduzir à obediência por meio de uma “guerra justa” 36. Entre naturais e 
estrangeiros, existiam situações diversas. Primeiro, a dos vencidos na guerra 
(justa), cujo destino dependia dos vencedores. De acordo com as leis da guerra, 
podiam ser mortos, reduzidos a cativeiro ou mantidos sob um regime mais ou 
menos duro de sujeição legal ou fiscal 37. Era o que se passava com os reinos 
angolanos de N’gola 38 ou com as nações Tapajós ou Tapuia 39. Finalmente, o 
estatuto daqueles que celebravam com o rei de Portugal um tratado de 
vassalagem; a sua integração na ordem política ou jurídica portuguesa estava aí 
fixada, podendo variar muitíssimo. As instituições políticas nativas eram 
frequentemente preservadas, como instâncias de mediação com o poder 
português. Por vezes, portugueses “assistiam” as autoridades locais (como em 
certas cidades indianas ou sobados africanos). No Brasil, portugueses “de bons 
costumes” eram enviados como “capitães das aldeias” para governar as aldeias 
índias, já que a capacidade dos nativos para se auto-governarem era tida como 
problemática 40. 
Esta heterogeneidade de laços políticos impedia o estabelecimento de 
uma regra regular de governo, ao mesmo tempo que criava limites ao poder da 
coroa ou dos seus delegados. 
 
4.2.2 Um direito pluralista. 
Um corpo geral de direito também faltava. 
Vários são os factores que podem ser chamados a explicar o pluralismo e a 
inconsistência do direito colonial moderno. 
O primeiro deles decorria da própria arquitectura do direito comum 
europeu, baseada no princípio da preferência das normas particulares (como os 
costumes locais, os estilos de decidir dos tribunais locais, os privilégios; numa 
palavra, os iura propria) às normas gerais (como a lei ou a doutrina jurídica 
geral, ius commune) 41. Para além disso, o princípio de que a lei posterior revoga 
a anterior (lex posterior revogat priorem) não vigorava de forma muito rigorosa, 
já que os direitos adquiridos à sombra do anterior regime podiam ser opostos ao 
 
36 Detalhes sobre o regime de declaração de guerra justa em A. M. Hespanha, António 
Manuel Hespanha, “The constitution of Portuguese empire. Revision of current historiographical 
biases, cit. bibl. final. 
37 Cf. António Manuel Hespanha, “Os africanos no Tratado da Justiça e do Direito, de 
Luís de Molina, S.J.”, a ser publicado em Análise social, 2001. 
38 António da Silva Rego, The Portuguese colonization in the 16th century: a study of the 
royal ordinances (Regimentos), cit.; António Manuel Hespanha, “Os africanos no Tratado da 
Justiça e do Direito, de Luís de Molina, S.J.”, a ser publicado em Análise social. 2001. 
39 Pedro Puntoni, A guerra dos bárbaros [...], cit.. 
40 Lei de 13.11.1611, n. 4, em Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., I, 325; v. 
também André Vidal de Negreiros (1655), ns. 43 ss., em Marcos Carneirode Mendonça, Raízes 
[...], cit., II, 710. 
41 António Manuel Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica europeia, cit., 92-
98. 
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18 
novo e quaisquer decisões reais que os violassem podiam ser anuladas 
judicialmente 42. 
Depois, a incoerência do sistema jurídico derivava também de algo que já 
foi evocado – a constituição pluralista do império, em que cada nação submetida 
podia gozar do privilégio de manter o seu direito, garantido por tratado ou pela 
própria doutrina do direito comum, de acordo com a qual o âmbito de um 
sistema jurídico era marcado pela naturalidade. Daí que o direito português só 
se aplicasse aos naturais (Ord. fil, II, 55), governando-se os nativos pelo seu 
direito específico. Isto quer dizer que os juízes portugueses, ainda que tivessem 
jurisdição sobre os nativos, lhes deviam aplicar o seu próprio direito, excepto 
para casos em que estavam em causa valores supremos da ordem jurídica ou 
ética europeia, nomeadamente do foro religioso 43. Decerto, a subordinação dos 
juízes de primeira instância a tribunais de recurso, que seguiam o direito oficial 
e letrado, podia deformar esta regra, nos casos de recurso. Assim como a 
presença das jurisdições do colonizador, oferecia aos nativos a possibilidade de 
recorrer também a este direito contra as suas normas tradicionais, o que 
constituía um importante factor de desarticulação da lógica política e jurídica 
autóctones 44. Mais do que uma versão estrita do direito nativo, o que tendia 
então a vigorar na prática era uma espécie de “justiça crioula”. De qualquer 
jeito, criava-se uma ilha de direito autónomo e não oficial.45. 
A inconsistência do sistema político-jurídico decorre, finalmente, da 
própria natureza da alta administração colonial, ainda mais claramente 
pluralista na sua base 46. 
 
4.2.3 Uma estrutura administrativa centrífuga. 
4.2.3.1 Vice-reis e governadores. 
Se a centralização não pode ser real sem um quadro legal geral, tão pouco 
pode ser efectiva sem uma hierarquia estrita dos oficiais, por meio da qual o 
poder real possa chegar à periferia. Daí que a eficiência da centralização 
política derive, por um lado, da existência de laços de hierarquia funcional entre 
os vários níveis do aparelho administrativo e, por outro, negativamente, do 
âmbito dos poderes dos oficiais periféricos ou da sua capacidade para anular, 
distorcer ou fazer seus os poderes que recebiam de cima. 
Um relance sobre a autonomia dos poderes na hierarquia política imperial 
é, então, decisivo. 
De acordo com a doutrina da época, os governadores gozavam de um 
poder extraordinário (extraordinaria potestas) 47, semelhante ao dos supremos 
 
42 A. M. Hespanha, As vésperas do Leviathan [...], cit., 472 ss.. 
43 Cf. A. M. Hespanha, “The constitution of Portuguese empire. Revision of current 
historiographical biases”, cit.. 
44 Cf. Sanjay Subrahmanyam, “O romântico, o oriental e o exótico: notas sobre os 
portugueses em Goa”, 34-35. 
45 Detalhes, A. M. Hespanha, “The constitution of Portuguese empire. Revision of current 
historiographical biases”, cit.. 
46 Cf., para o Brasil, as justas considerações de Prado Júnior, 2000, 310. 
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chefes militares (dux). Tal como o próprio rei, podiam derrogar o direito em 
vista de uma ainda mais perfeita realização do seu múnus. Nos regimentos que 
lhes eram outorgados 48 estava sempre inserida a cláusula de que poderiam 
desobedecer ao regimento, sempre que uma avaliação pontual do serviço real o 
justificasse. Daí que, apesar do estilo altamente detalhado das cláusulas 
regimentais e da obrigação de, para certos casos, consultarem o rei ou o 
Conselho Ultramarino, os vice-reis e governadores gozavam, de facto, de uma 
grande autonomia. 
Esta autorização para criar direito – ou, pelo menos, para dispensar o 
direito existente – era uma consequência normal da natureza das funções de 
governo ultramarino que lhes eram confiadas. De facto, eles lidavam, por um 
lado, com matérias mutáveis, tal como as militares e marítimas 49. Por outro 
lado, o seu contexto político não era o mundo estabilizado da política dos reinos 
europeus, em que a justiça e o governo estava enraizados em tradições estáveis 
e duradouras e formalizados em processos e fórmulas fixados pelo tempo. Pelo 
contrário, eles actuavam num mundo estranho e não balizado, ele próprio 
subvertido nos seus estilos pela erupção dos europeus, um mundo em mudança, 
semelhante ao que Maquiavel descrevia no seu famoso tratado, em que a justiça 
tinha que ser criada, ex novo, pela vontade do príncipe, tirando partido da 
oportunidade e das mutáveis circunstâncias dos tempos. Por fim, os 
governadores ultramarinos estavam isolados da fonte do poder por viagens que 
chegavam a levar anos, tendo necessidade de resolver sem ter que esperar a 
demorada resposta às suas demoradas perguntas 50. 
Numa carta para o rei, Pero Borges, ouvidor geral do Brasil nos meados do 
séc. XVI (7.2.1550), escrevia “Esta terra, Senhor, para se conservar e ir avante, 
há mister não se guardarem em algumas coisas as Ordenações, que foram feitas 
não havendo respeito aos moradores delas [...] acontecem mil casos que não 
estão determinados pelas Ordenações, e ficam ao alvedrio do julgador, e se 
nestes se houver de apelar, não se pode fazer justiça [...]”) 51. Assim, em 
regimentos sucessivos dados aos governadores do Brasil sempre se declarou que 
eles poderiam decidir os casos não previstos nos seus regimentos, após 
conferenciarem com o Bispo, o Chanceler da Relação da Baía e o Provedor da 
 
47 Sobre o estatuto político dos vice-reis, A. M. Hespanha, Panorama da história 
institucional e jurídica de Macau, cit.,, 25-27; análise mais detalhada, Catarina Madeira Santos, 
“Goa é a chave de toda a Índia”, cit., 35 ss.. 
48 Sobre estes regimentos, v., Catarina Madeira Santos, “Goa é a chave de toda a Índia”, 
cit., 35 ss.., 37. Indicações de fontes, para a Índia e Brasil, A. M. Hespanha, “The constitution of 
Portuguese empire. Revision of current historiographical biases”, cit.. 
49 “E porque as cousas do mar são incertas e há casos que se não podem prevenir 
antecipadamente: hei por bem que Vós, com o Almirante da dita frota, auditor, e sargento-mor, 
e capitão de mar e guerra da capitania, disponham, nos tais casos, o que se vencer por mais 
votos ...”, reg. de Salvador Correia de Sá, 35.3.1644, Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], 
cit., II, 621. 
50 “Quanto mais longe apartado esse Estado está de minha presença quanto mais carrego 
sobre vós a obrigação deste ponto [da justiça]”, Reg. de André Vidal de Negreiros, governador e 
capitão geral do Estado do Pará e Maranhão, 14.4.1655, Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes 
[...], cit., II, 702 (d. 9). 
51 Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., I, 57. 
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Fazenda Real, numa curiosa combinação que torna manifestas as “razões do 
Estado” – religião, justiça e fazenda 52 
Para além da justiça, também a graça constituía um atributo real 53, que 
permitia agir contra o direito (“dispensar a lei”), em atenção a uma justiça 
excelsa e acima daquela que estava contida no rigor do direito. Aparentemente, 
a instituição da vice-realeza obedeceu ao propósito de dotar os governadores 
ultramarinos com uma dignidade quase real, permitindo-lhes o exercício de 
actos de graça, tal como concessão de mercês, dada de ofícios, outorga de 
rendas, perdão de crimes 54. Porém, mesmo os simplesgovernadores recebiam 
atribuições deste tipo, embora em escala mais restrita 55. 
 
4.2.3.2 Donatários, governadores locais e juízes. 
O que acaba de se dizer sobre a autonomia de vice-reis e governadores 
pode ser dito também de níveis inferiores, embora a fundamentação doutrinal e 
as razões políticas não sejam as mesmas. No Brasil, os capitães donatários e, 
mais tarde, os governadores das capitanias tinham também um larga autonomia 
de decisão. É certo que, a partir de 1549, o governador geral era a cabeça do 
governo do Estado, gozando de supremacia sobre donatários e governadores das 
capitanias, devendo estes obedecer-lhes e dar-lhes conta do seu governo (cf. 
res. 16.5.1716, prov. 26.10.1722, CR. 14.11.1724). No entanto, esta 
dependência ficava bastante limitada pelo facto de que, simultaneamente, eles 
deviam obediência aos secretários de Estado em Lisboa. Esta dupla sujeição 
criava um espaço de incerteza hierárquica sobre o qual os governadores locais 
podiam criar um espaço de poder autónomo efectivo. Daí que a relação 
hierárquica entre o governador geral (ou vice-rei) e os governadores locais podia 
ser descrita, ainda nos inícios do séc. XIX, da forma seguinte: os governadores 
das capitanias eram autónomos no que respeitava ao governo local 
(“económico”) das suas províncias, estando sujeitos ao governador geral apenas 
em matérias que dissessem respeito à política geral e à defesa de todo o Estado 
do Brasil 56. 
A mais importante das atribuições dos donatários, mais tarde dos 
governadores locais, era a concessão de sesmarias, a forma mais tradicional, 
contínua e decisiva de concessão de terras no Brasil (cf., v.g., Reg. Tomé de 
 
52 Cf. Reg. Francisco Geraldes de 1588, n. 48, Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], 
cit.,1972, I, 276; reg. Gaspar de Sousa, 6.10.1612, n. 57, ibid., I, p. 435 (id. Reg. André Vidal de 
Negreiros, 1655, ibid., II, 710, n. 40.). Para a Índia, a situação era idêntica, cf. Catarina M. 
Santos, “Goa é a chave de toda a Índia”, 53. 
53 A. M. Hespanha, História de Portugal moderno, cit., 215 ss..; sobre o uso da graça 
pelo vice-rei, Catarina M. Santos, “Goa é a chave de toda a Índia”, 55 ss.. 
54 Catarina M. Santos, “Goa é a chave de toda a Índia”, 50 ss.. 
55 Detalhes sobre as atribuições de graça dos governadores do Brasil, A. M. Hespanha, 
The constitution of Portuguese empire [...], cit.. Sobre o regime das mercês, nomeadamente de 
hábitos de ordens militares no ultramar, v. Maria Fernanda Olival, Honra, mercê e venalidade 
[...],127 ss., 168 ss. 
56 Cf. Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., II, 805-807. 
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Sousa, 1549, caps. 8/10)57. Os ouvidores dos donatários deviam inspeccionar a 
legalidade da concessão e do uso da terra, depois de concedida. Com a contínua 
incorporação das capitanias na administração directa da coroa, seja por 
vacatura, seja por compra, a concessão das sesmarias passou a competir aos 
governadores das capitanias, enquanto que a inspecção da legalidade era 
cometida a juízes demarcantes letrados propostos pelas câmaras 58. 
Resumindo, podemos dizer que um dos actos de poder mais importantes 
numa colónia “de plantação” – a concessão de terras para agricultar – dependia 
dos governadores das capitanias, enquanto que a avaliação sucessiva da 
legalidade do uso da terra pelos sesmeiros estava a cargo de magistrados mais ou 
menos dependentes das elites locais 59. 
Também no domínio da justiça, era central o papel dos governadores e 
dos seus ouvidores que, de acordo com as primeiras doações de capitanias, 
gozavam de plena jurisdição criminal e de uma vasta jurisdição cível (até 
100 000 rs.) em relação aos escravos, nativos e peões 60. Jurisdição que só veio a 
ser parcialmente restringida (nomeadamente, no crime, relativamente a 
ingénuos) pela criação do governo geral, em 1549. 
Nos níveis mais baixos da administração, nomeadamente em matérias de 
justiça, surgem novos factores de incoerência e autonomia, originadas pelas 
deformações, intencionais ou não, do direito, às mãos “de pessoas simples e 
ignorantes, que não sabem ler nem escrever”, facilmente corrompidas ou 
assustadas pelos poderosos das terras. Frequentemente, os capitães nomeavam 
condenados (“degredados”, “desorelhados”) 61. como ouvidores, situação que se 
manteve continuadamente 62. 
Magistrados locais deste tipo eram comuns em todo o império. Mas à sua 
função de periferização do poder somava-se também a dos altos tribunais 
coloniais. 
 
 
57 Base legal: Ord. fil., IV,43,13; para o enquadramento doutrinal, Jorge de Cabedo, 
Practicarum observationum [...], cit., II, dec. 112. Detalhes, A. M. Hespanha, The constitution 
of Portuguese empire [...], cit.. 
58 Cf. Res. 27.11.1761 (cit. em Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., II, 780 
ss.). 
59 Sobre concessões mineiras, v. Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., I, 295. 
60 Cf. cf. carta de doação a Duarte Coelho, 25.9.1534, Marcos Carneiro de Mendonça, 
Raízes [...], cit., I, 131 ss. (jurisdições, 132); mais tarde, reg. ouvidores gerais, 11.3.1669, 
Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., I, 83. 
61 Carta Pero Borges, “ouvidor geral do Brasil”, para o rei (7.2.1550), ns. 3-4, 7, 12, 
Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., I, 53 ss.. 
62 “Sou informado que por a povoação do Rio Grande ir em crescimento e não haver nela 
modo de governo, nem quem administrasse a justiça, e haver disso algumas queixas, e os 
Capitães estarem absolutos”, Reg. Gaspar de Sousa, 1612, Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes 
[...], cit., I, n. 10, p. 416. Picturesque examples of the kind of khadi’s justice common in the 
periphery: Altavila, 1925 
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4.2.3.3 Relações e desembargadores. 
As Relações coloniais – v.g., as de Goa, Baía e Rio de Janeiro – tinham 
prerrogativas semelhantes aos tribunais supremos do reino (Casa da Suplicação, 
Casa do Cível). A doutrina jurídica considerava-os como tribunais soberanos, 
“colaterais”, “camarais”, cujo presidente natural era o rei 63. As suas decisões 
têm a mesma dignidade das decisões reais, não podendo, no entanto, ser 
revogadas ou restringidas por actos régios. Daí que a administração da justiça, 
quer pelos ouvidores quer pelas Relações, constituísse uma área bastante 
autónoma e auto-regulada, não apenas porque os governadores não podiam 
controlar o conteúdo das decisões judiciais, mas ainda porque os seus poderes 
disciplinares sobre os juízes eram débeis e efémeros 64. 
Salientar a autonomia das Relações é muito mais do que um detalhe 
histórico. Desde o estudo clássico de Stuart Schwartz sobre a Relação da Baía 65, 
sabemos como eram fortes a solidariedades entre os seus desembargadores e as 
elites coloniais, nomeadamente a dos senhores de engenhos. Daí que os juízes 
fossem muito mais do que simples técnicos de direito, esforçados aplicadores do 
direito régio. Muito frequentemente, eles veiculariam com eficiência os 
interesses dos poderosos locais, no julgamento de questões tão estratégicas 
como a interpretação de cartas de doação, a revogação de sesmarias, a 
instituição, sucessão ou desmembramento de propriedade vinculada (morgados e 
capelas). Podemos então entender como estes órgãos podiam funcionar como 
factores de periferização da política colonial. 
 Mas, mais do que isso. O regime estabelecido para a sindicância dos 
governadores e vice-reis realça ainda mais a importância das Relações. De facto, 
um alvará régio de 9.4.1623 atribuiu às Relações, nomeadamente na Índia, a 
competência tomar residência aos governadores cessantes, embora isto tenha 
desencadeado dura polémica,já que os governadores se sentiam diminuídos por 
esta supremacia outorgada às Relações, para além de que temiam os seus 
resultados práticos, numa altura em que já nem sequer se encontravam na 
colónia para organizar (ou manipular) a sua defesa 66. 
 
4.2.3.4 Câmaras municipais. 
Os desembargadores eram apenas uma das vias que as elites locais usavam 
para colonizar a administração. Outra das vias eram as câmaras, com as quais os 
 
63 Cf. A. M. Hespanha, História de Portugal moderno …, cit., 235 ss.. Na Índia e no 
Brasil, o Governador, como alter ego do rei, servia como Presidente da Relação (Reg. Relação da 
Baía, 7.3.1609: Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., I, 385 ss.). 
64 Cf. reg. Gaspar de Sousa, 6.10.1612, n. 46, Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], 
cit., I, p. 431. 
65 Stuart Schwartz, Sovereignty and society in colonial Brazil. The High Court of Bahia 
and its judges, 1609-175, cit... 
66 Resumo da discussão, em Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...], cit., II, 826. Mais 
detalhes, em A. M. Hespanha, The constitution of Portuguese empire [...], cit.. 
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governadores mantinham frequentes conflitos 67. O exemplo porventura mais 
interessante é o da cidade de Macau, no Sul da China. 
O município de Macau foi criado por volta de 1584, tendo o imperador 
Wan Li (1583-1620) atribuído o título de mandarim a um dos seus vereadores, o 
Procurador da Cidade, dando-lhe o direito de julgar a população chinesa. A 
câmara de Macau (Leal Senado) actuava, de facto, como um mediador remoto 
entre dois impérios, sempre na óptica dos interesses das elites locais, A sua 
independência, mesmo no plano diplomático, era notável. Mantinha relações 
directas com o vice-rei (Suntó) de Cantão e controlava todo o trânsito político-
diplomático, com o Extremo Oriente, incluindo as Molucas e o Japão. Isto 
permitiu uma fase áurea de relações com o império espanhol do Oriente e, 
através das Filipinas, com o império espanhol das Américas, mesmo durante a 
guerra da Aclamação (1640-1688) 68. O principal esforço da política da coroa 
portuguesa em relação a Macau, desde os finais do séc. XVIII, foi o de reduzir o 
Leal Senado às dimensões de uma simples câmara municipal, o que só se 
consumou em meados do séc. seguinte 69. 
 
4.2.3.5 Oficiais e servidores. 
A administração do Brasil – que constitui o exemplo mais importante de 
uma colónia de plantação, com uma população residente enraizada e 
socialmente bem estruturada – conheceu uma outra forma singular de combinar 
interesses sociais e poderes administrativos, a venalidade dos ofícios. A 
monarquia portuguesa nunca admitiu o princípio de que os cargos públicos 
podiam ser vendidos, ao contrário do que aconteceu com os exemplos típicos da 
Espanha e de França. A venda privada de cargos era formalmente proibida (Ord. 
fil., I, 96 [venda pelos titulares]; II, 46 [venda por aqueles que tinha o poder de 
prover ofícios]); embora seja mais do que provável que a maior parte das 
renúncias “nas mãos do rei” encobrissem vendas. A venda de ofícios pela coroa 
também estava excluída, embora apenas por lei especial (cf. CL 6.9.1616), 
sendo considerada como não admissível pela doutrina da época 70. Durante os 
anos ’20 e ’30 do século XVII, bem como depois de 1640, a condenação da venda 
dos ofícios era um tópico corrente na literatura anti-filipina 71. A 
patrimonialização dos ofícios existia, mas antes sob a forma de atribuição de 
 
67 Cf., panorama bibliográfico; Ch. R. Boxer, Portuguese society in the tropics [...]; 
Nanci Leonzo, “Instituições administrativas”, em Maria Beatriz Nizza da Silva, O Império luso-
brasileiro [...], cit., 321 ss., 1986, 321 ss.; Francisco Bethencourt, História da expansão [...], 
cit.1998, II, 343-361; III, 270-280. Sobre a Câmara de Goa e seus privilégios, Maria de Jesus dos 
Mártires Lopes, Goa setecentista [...], cit.. 
68 A. M. Hespanha, Panorama da histórica jurídica e institucional de Macau, cit., 22, 76 
s.. Considerando, enfaticamente, Macau como uma “república mercantil”, Almerindo Lessa, 
Anthropologie et anthroposociologie de Macau.cit.. 
69 A. M. Hespanha, Panorama da histórica jurídica e institucional de Macau, cit., 22, 76 
s.., 54-56. 
70 Cf. A. M. Hespanha, As vésperas … […], 513; divergindo, com escassos fundamentos, 
para o caso específico da venda de ofícios, Maria Fernanda Olival, Honra, mercê e venalidade 
[...], cit., 245 ss.. 
71 “Faziam pratica neste reino coisa nunca vista entre portugueses: venderem-se a quem 
mais dava os ofícios que antigamente se davam de graça”, Arte de furtar, cap. XVII). 
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direitos sucessórios aos filhos dos oficiais que tivessem servido bem; e era 
justamente o reconhecimento destes direitos que, provavelmente, obstaculizava 
de forma decisiva a venalidade, já que a coroa não podia vender os ofícios 
vacantes, sem violar estes direitos de sucessão, ao contrário do que acontecia 
com a concessão de hábitos ou de foros de fidalguia 72. 
A situação no Brasil evoluiu, porém, num sentido diferente. O primeiro 
regimento de governo 73 proibia a criação de novos ofícios pelos governadores 
com base numa disposição das Ordenações que reservava para o rei a criação de 
ofícios (cf Ord. fil., II, 26, 1; II, 45, 1,3,13, 15, 31). Para os ofícios já existentes, 
os governadores podiam nomear serventias, mas não dá-los em propriedade. Em 
causa, não estava apenas o privilégio real de dada de ofícios 74, mas ainda o já 
referido direito dos filhos 75. Porém, no início do séc. XVIII, o regime começou a 
mudar. Um decreto real 76 estabeleceu que os novos ofícios (criados ou a criar, 
excluídos os da fazenda) fossem dados a quem tivesse oferecido um “donativo” à 
fazenda. No fundo, tratava-se de uma espécie de “serviço”, que justificaria a 
“mercê” do ofício, nos quadros de uma lógica já conhecida. Mais tarde, o regime 
do donativo veio a ser estendido a todos os ofícios, mesmo os antigos (Prov. 
23.12.1740). Daí para o futuro, os ofícios foram vendidos em leilão, a quem mais 
oferecesse, segundo aquilo a que se chamou o “direito antidoral e 
consuetudinário” 77. Depois de hesitações legislativas várias nas décadas de ’60 e 
‘70, o sistema dos donativos foi restaurado em 1799 (CR. 11.12) para as 
serventias dos ofícios de justiça. Esta informação está contida num comentário 
ao regimento dos governadores do Brasil, da autoria de um vice-rei do início do 
séc. XIX 78; aqui é também dito que a prática brasileira sobre ofícios era 
semelhante à usada em quase todas as colónias do ultramar. 
Ou seja. Desde o início do séc. XVIII que a propriedade – ou, pelo menos, 
as serventias – de todos os ofícios de justiça (notários e escrivães, 
nomeadamente) estavam à disposição das elites económicas das colónias, 
 
72 No entanto, existiam também obstáculos de natureza ideológica, como a condenação 
da simonia (v. A. M. Hespanha, As vésperas [...], 498 ss.).. 
73 Cf., v.g., reg. Francisco Geraldes, 30.5.1588, n.45, Marcos Carneiro de Mendonça, 
Raízes [...], cit., I, 275; reg. Gaspar de Sousa, 6.10.1612, n. 44, Marcos Carneiro de Mendonça, 
Raízes [...], cit., I, 431; reg. Roque da Costa Barreto, 23.1.1677, Marcos Carneiro de Mendonça, 
Raízes [...], cit., II, 753. Em contrapartida, os primeiros “capitães donatários” tinham o direito 
de criar e prover os ofícios: carta de doação de Duarte Coelho, 25.9.1534, Marcos Carneiro de 
Mendonça, Raízes [...], cit., I, 133. 
74 A. M. Hespanha, As vésperas [...], 398 ss.. 
75 Cf. ibid., n. 43, p. 430. 
76 D. 18.5.1722, transmitido por Provisão 23.9.1723 (Marcos Carneiro

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