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Fundamentos FilosóFicos da educação Maringá 2009 Fundamentos Filosóficos da Educação editoRa da uniVeRsidade estadual de maRinGÁ Reitor: Prof. Dr. Júlio Santiago Prates Filho Vice-Reitora: Profa. Dra. Neusa Altoé Diretor da Eduem: Prof. Dr. Alessandro Lucca Braccini Editora-Chefe da Eduem: Profa. Dra. Terezinha Oliveira conselHo editoRial Presidente: Prof. Dr. Alessandro Lucca Braccini Editores Científicos: Prof. Dr. Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues Profa. Dra. Angela Mara de Barros Lar Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva Profa. Dra. Cecília Edna Mareze da Costa Prof. Dr. Clóves Cabreira Jobim Profa. Dra. Eliane Aparecida Sanches Tonolli Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik Prof. Dr. Eliezer Rodrigues de Souto Prof. Dr. Evaristo Atêncio Paredes Profa. Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso Profa. Dra. Larissa Michelle Lara Prof. Dr. Luiz Roberto Evangelista Profa. Dra. Luzia Marta Bellini Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima Prof. Dr. Rafael Bruno Neto Prof. Dr. Raymundo de Lima Profa. Dra. Regina Lúcia Mesti Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias Profa. Dra. Rozilda das Neves Alves Prof. Dr. Sezinando Luis Menezes Profa. Dra. Terezinha Oliveira Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco Profa. Dra. Valéria Soares de Assis eQuiPe tÉcnica Fluxo Editorial: Cicília Conceição de Maria Edneire Franciscon Jacob Mônica Tanati Hundzinski Vania Cristina Scomparin Projeto Gráfico e Design: Marcos Kazuyoshi Sassaka Artes Gráficas: Luciano Wilian da Silva Marcos Roberto Andreussi Marketing: Marcos Cipriano da Silva Comercialização: Norberto Pereira da Silva Paulo Bento da Silva Solange Marly Oshima coPyRiGHt © 2013 eduem Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2013 para a editora. eduem - editoRa da uniV. estadual de maRinGÁ Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná Fone: (0xx44) 3011-4103 Fax: (0xx44) 3011-1392 http://www.eduem.uem.br eduem@uem.br Maringá 2009 Formação dE ProFEssorEs - Ead Fundamentos Filosóficos da Educação Célio Juvenal Costa (ORGANIZADOR) 5 2. ed. revisada e ampliada coleção Formação de Professores - ead Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese Luciana de Araújo Nascimento Guaraldo Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331 Revisão Gramatical: Annie Rose dos Santos Edição e Produção Editorial: Carlos Alexandre Venancio Eliane Arruda Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Copyright © 2009 para o autor 3a reimpressão 2014 - Revisada Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2009 para Eduem. Fundamentos filosóficos da educação. / Célio Juvenal da Costa, organizador. 2. ed. rev. e ampl. Maringá: Eduem, 2008. 190p. 21cm. (Formação de professores – EAD; n. 5) ISBN 978-85-7628-171-6 1. Filosofia - Estudo e ensino. 2. Filosofia - História. 3. Filosofia – Educação. I. Costa, Célio Juvenal da, org. CDD 21. ed. 109 F981 Endereço para correspondência: eduem - editora da universidade estadual de maringá Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná Fone: (0xx44) 3011-4103 / Fax: (0xx44) 3011-1392 http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br 5 sobre os autores apresentação da coleção apresentação do livro caPÍtulo 1 mitologia grega e educação Vladimir Chaves dos Santos caPÍtulo 2 o nascimento da Filosofi a: os fi lósofos da natureza e sócrates Célio Juvenal Costa caPÍtulo 3 Platão, aristóteles e o helenismo Célio Juvenal Costa caPÍtulo 4 a organização do pensamento cristão José Joaquim Pereira Melo caPÍtulo 5 a fi losofi a medieval: uma proposta cristã de refl exão Terezinha Oliveira > 7 > 9 > 11 > 13 > 31 > 47 > 65 > 85 umários Fundamentos FilosóFicos da educação 6 caPÍtulo 5 Filosofi a no renascimento Jorge Cantos caPÍtulo 7 Filosofi a moderna: o pensamento de Francis Bacon e René descartes João Batista Pereira caPÍtulo 8 Filosofi a política moderna: Hobbes, locke e Rousseau José Carlos Rothen caPÍtulo 9 iluminismo, idealismo e materialismo histórico Alonso Bezerra de Carvalho caPÍtulo 10 Positivismo, Fenomenologia e existencialismo Alonso Bezerra de Carvalho caPÍtulo 11 Filosofi a e educação Divino José da Silva Pedro Ângelo Pagni > 107 > 123 > 135 > 149 > 171 > 175 7 alonso BeZeRRa de caRValHo Professor da Faculdade de ciências e letras da universidade estadual Pau- lista (unesp-assis). Graduado em Filosofi a e ciências sociais (unesp-marília). mestre em educação (unesp-marília). doutor em educação (usP). cÉlio JuVenal costa Professor da universidade estadual de maringá (uem). Graduado em Filo- sofi a (Puc-PR). mestre em educação (uem). doutor em educação (unimep). diVino JosÉ da silVa Professor da Faculdade de ciências e tecnologia da universidade estadual Paulista (unesp-Presidente Prudente). Graduado em Filosofi a (Puc-mG). mestre em educação (ufscar). doutor em educação (unesp-marília). João Batista PeReiRa Professor do centro de ensino superior do Paraná (Faculdade maringá). Gra- duado em História (uem). especialista em História econômica (uem). mestre em educação (uem). JoRGe cantos Professor da universidade estadual de maringá (uem). Graduado em estudos sociais (unisinos) e em ciências sociais (Fafi cla). mestre em educação (uem). doutor em Filosofi a (unicamp). JosÉ caRlos RotHen Professor da universidade Federal de são carlos. Graduado em Filosofi a (Puc-campinas). mestre em Filosofi a (Puc-campinas). doutor em educação (unimep). Jose JoaQuim PeReiRa de melo Professor da universidade estadual de maringá (uem). Graduado em História e Pedagogia (Fafi jan). mestre em História (unesp-assis). doutor em História (unesp-assis). obre os autoress Fundamentos FilosóFicos da educação 8 PedRo anGelo PaGni Professor da Faculdade de Filosofi a e ciências da universidade estadual Pau- lista (unesp-marília). Graduado em educação Física (Puc-mG). mestre em educação (Puc-sP) doutor em educação (unesp-marília). teReZinHa oliVeiRa Professora da universidade estadual de maringá (uem). Graduada em His- tória (unesp-assis). mestre em ciências sociais (ufscar). doutora em História (unesp-assis). VladimiR cHaVes dos santos Professor da universidade estadual de maringá (uem). Graduado em Filoso- fi a (unicamp). mestre em Filosofi a (unicamp). doutorando (unicamp). 9 A coleção Formação de Professores - EAD teve sua primeira edição publicada em 2005, com 33 títulos fi nanciados pela Secretaria de Educação a Distância (SEED) do Ministério da Educação (MEC) para que os livros pudessem ser utilizados como material didático nos cursos de licenciatura ofertados no âmbito do Programa de Formação de Professores (Pró-Licenciatura 1). A tiragem da primeira edição foi de 2500 exemplares. A partir de 2008, demos início ao processo de organização e publicação da segunda edição da coleção, com o acréscimo de 12 novos títulos. A conclusão dos trabalhos deverá ocorrer somente no ano de 2012, tendo em vista que o fi nanciamento paraesta edição será liberado gradativamente, de acordo com o cronograma estabelecido pela Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), que é responsável pelo programa denominado Universidade Aberta do Brasil (UAB). A princípio, serão impressos 695 exemplares de cada título, uma vez que os livros da nova coleção serão utilizados como material didático para os alunos matriculados no Curso de Pedagogia, Modalidade de Educação a Distância, ofertado pela Universi- dade Estadual de Maringá, no âmbito do Sistema UAB. Cada livro da coleção traz, em seu bojo, um objeto de refl exão que foi pensado para uma disciplina específi ca do curso, mas em nenhum deles seus organizadores e autores tiveram a pretensão de dar conta da totalidade das discussões teóricas e práticas construídas historicamente no que se referem aos conteúdos apresentados. O que buscamos, com cada um dos livros publicados, é abrir a possibilidade da leitura, da refl exão e do aprofundamento das questões pensadas como fundamentais para a formação do Pedagogo na atualidade. Por isso mesmo, esta coleção somente poderia ser construída a partir do esforço coletivo de professores das mais diversas áreas e departamentos da Universidade Esta- dual de Maringá (UEM) e das instituições que têm se colocado como parceiras nesse processo. Neste sentido, agradecemos sinceramente aos colegas da UEM e das demais insti- tuições que organizaram livros e ou escreveram capítulos para os diversos livros desta coleção. Agradecemos, ainda, à administração central da UEM, que por meio da atuação direta da Reitoria e de diversas Pró-Reitorias não mediu esforços para que os traba- lhos pudessem ser desenvolvidos da melhor maneira possível. De modo bastante presentação da coleçãoa Fundamentos FilosóFicos da educação 10 específi co, destacamos o esforço da Reitoria para que os recursos para o fi nanciamento desta coleção pudessem ser liberados em conformidade com os trâmites burocráticos e com os prazos exíguos estabelecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Internamente enfatizamos, ainda, o envolvimento direto dos professores do De- partamento de Fundamentos da Educação (DFE), vinculado ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCH), que no decorrer dos últimos anos empreenderam esforços para que o curso de Pedagogia, na modalidade de educação a distância, pu- desse ser criado ofi cialmente, o que exigiu um repensar do trabalho acadêmico e uma modifi cação signifi cativa da sistemática das atividades docentes. No tocante ao Ministério da Educação, ressaltamos o esforço empreendido pela Diretoria da Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educação de Educação a Distância (SEED/MEC), que em parceria com as Instituições de Ensino Superior (IES) conseguiram romper barreiras temporais e espaciais para que os convênios para a li- beração dos recursos fossem assinados e encaminhados aos órgãos competentes para aprovação, tendo em vista a ação direta e efi ciente de um número muito pequeno de pessoas que integram a Coordenação Geral de Supervisão e Fomento e a Coordenação Geral de Articulação. Esperamos que a segunda edição da Coleção Formação de Professores - EAD possa contribuir para a formação dos alunos matriculados no curso de Pedagogia, bem como de outros cursos superiores a distância de todas as instituições públicas de ensino superior que integram e ou possam integrar em um futuro próximo o Sistema UAB. Maria Luisa Furlan Costa Organizadora da Coleção 11 É com muito prazer e satisfação que entregamos às mãos dos leitores a segunda edição deste livro, publicado pela primeira vez em 2005. O assunto trabalhado é a Filosofi a da Educação. Para desenvolvê-lo, optamos por tratar a educação e a fi losofi a historicamente, por meio da exposição sobre autores e teorias que se fi zeram presentes ao longo da história da sociedade ocidental. O leitor observará que nos capítulos procuramos evidenciar, primeiramente, os aspectos políticos, sociais e humanos da fi losofi a, bem como as concepções de ser humano, de natureza e de sociedade encontradas nos fi lósofos e nas correntes fi losófi cas. Esse procedimento abre um campo de análise que nos permite abordar a educação como uma atividade humana essencialmente cultural e social. Procuramos abordar a educação como uma atividade mais abrangente que a educação escolar e, assim, foi possível apresentar as concepções de educação como decorrentes de concepções fi losófi cas. Por meio da fi losofi a é possível enxergar a realidade de forma mais crítica, mais universalizante, mais radical e, por consequência, a educação também passa a ser vista por esses prismas. O leitor verá que, em acordo com o espírito fi losófi co de contínua discussão, exposição e debate das ideias, o livro carece de unidade teórica, podendo algum autor expressar pontos de vistas discordantes sobre um ou outro tema. Essa característica, além de não empobrecer o conjunto, enriquece-o, mostra maturidade e senso de respeito à competência e à seriedade dos autores. O livro está organizado em 11 capítulos, dos quais 9 apresentam o desenrolar histórico da fi losofi a desde o seu nascimento até a teoria existencialista. Os outros dois têm as funções de introduzir e fechar a obra. No capítulo inicial, Vladimir Chaves dos Santos disserta sobre a Mitologia Grega e a Educação, com o objetivo de mostrar que, antes do nascimento da fi losofi a, existia um tipo de saber concebido pelos homens, que os guiava, orientava e educava. Os mitos gregos, fazendo ou não parte das poesias, perfazem a primeira construção teórica do ocidente, cuja profundidade nos emociona e ensina até hoje. Nos capítulos segundo e terceiro, Célio Juvenal Costa apresenta a fi losofi a na Grécia Antiga, destacando os primeiros fi lósofos, ou os chamados pré-socráticos e, na sequência, Sócrates, Platão, Aristóteles e as fi losofi as do período do helenismo. Os capítulos quarto e quinto, escritos por José Joaquim Pereira Melo (Neto) e Terezinha Oliveira, respectivamente, abordam a fi losofi a cristã: um é dedicado às origens do cristianismo e de sua fi losofi a até Santo Agostinho; o outro, com foco no longo presentação do livroa Fundamentos FilosóFicos da educação 12 período histórico dos começos da Idade Média até o século XIV, é dedicado à análise dos fi lósofos Boécio, Alcuíno, Santo Anselmo e São Tomás de Aquino, entre outros. Os capítulos sexto, sétimo e oitavo são dedicados ao pensamento produzido no período de surgimento e de amadurecimento da moderna sociedade capitalista. Jorge Cantos apresenta a fi losofi a no Renascimento com base nos fi lósofos Thomas Morus, Nicolau Maquiavel e Erasmo de Roterdã. João Batista Pereira, o novo autor nesta segunda edição, discorre acerca do pensamento fi losófi co e científi co moderno, priorizando os autores Bacon e Descartes. José Carlos Rothen escreve sobre a fi losofi a política moderna, abrangendo a teoria do contratualismo a partir de Hobbes, Locke e Rousseau. As chamadas teorias fi losófi cas contemporâneas são abordadas por Alonso Bezerra de Carvalho nos capítulos nono e décimo. No primeiro deles, realiza-se uma exposição acerca do Iluminismo, do Idealismo e do Materialismo Histórico, focalizando os pensadores mais importantes dessas teorias, como Voltaire, Hegel e Marx. No seguinte, as fi losofi as do Positivismo, da Fenomenologia e do Existencialismo são apresentadas abordando os fi lósofos Comte, Husserl, Heidegger e Sartre. No último capítulo, Divino José da Silva e Pedro Ângelo Pagni fazem um balanço bibliográfi co acercado estado em que se encontram as investigações sobre a relação entre Filosofi a e Educação. Baseados em Foucault, Adorno, Horkheimer e Saviani, eles analisam como tem sido tratada a disciplina Filosofi a da Educação no Brasil e apresentam importantes aspectos que emergem quando se pensa no sentido crítico e formativo do fi losofar sobre e na educação. Continuamos considerando que seria muita pretensão que, em tão poucas páginas e com tão poucos capítulos, fosse possível abranger toda a história da fi losofi a ocidental. Para cumprir a fi nalidade de apresentar uma visada geral dos principais fi lósofos e teorias fi losófi cas, tivemos que sacrifi car outros tantos, que não são menos importantes por não estarem aqui. A tarefa de escolher nem sempre é fácil, mas, às vezes, imperiosa. Nesse caso, a opção foi pelos clássicos ou, pelo menos, pelos principais autores que a própria historiografi a fi losófi ca já consagrou. Nesta segunda edição, reiteramos os nossos profundos agradecimentos às instituições, departamentos e institutos que, por meio dos autores, participaram deste livro. Aos companheiros co-autores deste livro, muitíssimo obrigado por se comprometerem com este desafi o de forma praticamente abnegada. Novamente deixo meu pedido para que se preparem desde já para as próximas edições. Aos leitores deste livro nosso desejo que os conteúdos aqui tratados auxiliem em sua formação acadêmica, lembrando, principalmente, que cada capítulo seja, na verdade, um estímulo à leitura direta dos fi lósofos e de suas obras. Célio Juvenal Costa Organizador 13 Vladimir chaves dos santos Platão (427-347 a.C.) sem dúvida é um marco para a história da educação. Foi ele quem fundou a Academia. Infl uenciado por Sócrates (469-399 a.C.), lançou as bases para a ideia de que a emancipação e a realização do homem se dão por meio do co- nhecimento; daí, a necessidade de uma educação pública, custeada pela sociedade. A fi losofi a de Platão tem em seu cerne um projeto sistemático de esclarecimento dos homens e combate à ignorância, fonte de todos os males da humanidade. Para ele, não há felicidade sem sabedoria. Em seu tempo, a educação era baseada principalmente nos ensinamentos da mito- logia e da arte da guerra. As principais fontes da mitologia eram os poemas de Homero e Hesíodo. O projeto pedagógico de Platão pode ser visto como uma correção da educação tradicional calcada na mitologia. Há muitas rupturas entre o pensamento mi- tológico e o fi losófi co, mas também há continuidades. Segundo o fi lósofo, a educação deveria começar pela arte das Musas1 e terminar com a “verdadeira Musa”, a fi losofi a. Não há como negarmos a importância de estudar a mitologia grega para a compreen- são do nascimento da fi losofi a e da própria educação. Um modo de abordar as questões que envolvem a mitologia grega é servir-se do auxílio da etimologia, isto é, do conhecimento da origem das palavras. A etimologia esclarece muitas coisas. Ela pode ser útil em várias situações. Por exemplo, ela poderia 1 As musas eram nove deusas das artes na mitologia grega. Eram fi lhas de Zeus, o rei dos deuses, e de Mnemosine, a deusa da memória. Cada musa protegia uma certa arte. Os primeiros escritores e artistas gregos pediam inspiração às musas antes de começar a trabalhar. Musa é uma palavra que vem do grego "mousa"; dela derivam museu, que originalmente signifi ca "templo das musas", e música, que signifi ca "arte das musas". mitologia grega e educação 1 Fundamentos FilosóFicos da educação 14 esclarecer muitos conceitos no processo de ensino da matemática, cujos termos têm origem grega ou latina. Mas essa é uma outra história. Mitologia é o conhecimento dos mitos. Entretanto, é possível afi rmar que a ciência é incompatível com os mitos? No caso da Grécia Antiga, a ciência teria surgido por oca- sião da fi losofi a pré-socrática, por volta do século VI a.C., ou seja, depois dos tempos de Homero e de Hesíodo, séc. IX a VIII a.C. Homero teria cantado a Ilíada, a história da guerra de Tróia, que em grego se chama Ílio, bem como a Odisséia, que narra o retorno de um dos heróis da expedição dos Aqueus contra os troianos, que é chama- do, em latim, Ulisses, e em grego, Odisseu; por isso, Odisséia. A expressão “agradar a gregos e troianos” em certo sentido não parece correta, pois os troianos da história homérica, apesar de se situarem em uma região que não corresponde à Grécia atual, cultuavam os mesmos deuses e falavam a mesma língua que os Aqueus, os “gregos” da história, o que fazia deles gregos também. A palavra “mitologia” pode ser vista como uma contradição em termos: é composta por mitos, que signifi ca “fala” ou “palavra”, e logos, que signifi ca primeiramente a mes- ma coisa, adquirindo depois o sentido de “argumento”, “razão”, “proporção”. Ocorre que o logos, no sentido de “razão”, historicamente é posterior ao mitos. O mitos é de um tempo em que o homem percebia e se expressava naturalmente pela imaginação, uma vez que não tinha, ou pouco tinha, desenvolvida a faculdade da razão. Tempo em que não havia escrita para registrar as histórias dos povos. Histórias que vinham desde os cretenses, que, entre 2500 a 1500 a.C. dominaram os mares da Grécia, em cujo centro estava a ilha de Creta. Eles teriam legado à posteridade o costume da tauromaquia, um ritual de enfrentamento e sacrifício de touros, que se espalhou por toda a Grécia e depois por todo o mediterrâneo (como o exemplo das touradas). É provável que os cretenses tenham vivido basicamente do comércio de tapetes e tecidos, tendo uma enorme frota mercante; nem seriam muito guerreiros e conquistadores, nem muito religiosos; levavam uma vida mais hedonista (isto é, vol- tada para o prazer, que em grego se diz hedoné) e pouco voltada para a guerra. Eles eram relativamente o contrário dos povos que vieram do norte e invadiram a Grécia continental e insular por volta de 1500 a.C., os aqueus, assim designados nos poemas de Homero, ou os micênicos, assim chamados por ser a cidade de Micenas a mais po- derosa durante seu domínio. Os aqueus eram um povo guerreiro e conquistador; teriam empreendido, por volta do século XIII a.C., a expedição contra os troianos. Nesse momento, as línguas e os costumes, incluindo a religião, de cretenses e aqueus já se haviam fundido. Enfi m, por volta do século XIII a.C., os dóricos, povos também vindos do norte e guerreiros ainda mais poderosos, tomaram as terras dos aqueus, obrigando-os a migrar para o outro 15 lado do mar Egeu, região que se conhece hoje como a costa oeste da Turquia. Os dó- ricos não seriam tão navegadores como os cretenses e aqueus; seriam mais agrícolas e religiosos e, ao que parece, pouco interessados em “intercâmbios culturais”. Podemos postular que há poucos dados e referências históricas do período dórico, que vai de 1200 a 800 a.C., o que torna mais difícil descrevê-lo do que o período anterior, ao qual os poemas de Homero parecem se referir. Podemos concluir, então, que os gregos são fruto do amálgama desses três povos formados ao longo de muitos séculos: cretenses, aqueus e dóricos. Os documentos escritos mais antigos, que nos permitem uma ideia desse passado grego são os poemas de Homero, principalmente a Ilíada e a Odisséia, e os de Hesío- do, a Teogonia e Os trabalhos e os dias. Provavelmente os de Homero datam do século IX a.C. e os de Hesíodo da passagem do século IX ao VIII a.C.. Contudo, não foram eles que inventaram essas histórias: transmitidas por uma tradição oral, alheias à documen- tação escrita, elas teriam sido sedimentadas através dos tempos na memória coletiva. Os meios transmissores dessa tradição oral eram as cerimônias religiosas e espe- cialmente os poetas que cantavamestórias de cidade em cidade por ocasião de festas populares, geralmente dedicadas a um deus. Esses poetas tinham uma designação específi ca: rapsodos, que signifi ca “costuradores de cantos”. Possivelmente eles rea- tualizavam os mitos no contexto de festas populares, ou, então, divertiam os membros das cortes reais, cantando, talvez, a um público aristocrático. O mitos não tem uma autoria individual, como entendemos modernamente; ele é o resultado de diversas intervenções e que por fi m chega aos rapsodos: Homero e Hesíodo, por exemplo. O mitos pertence ao que chamamos de domínio público. A tradição rapsódica é própria de uma sociedade que não convivia com a escrita, além de ser uma sociedade agrária: quem mandava eram os senhores de terra, que determinavam as leis e controlavam os camponeses com seus exércitos de guerreiros. O contexto histórico do logos é um tanto diverso. Em primeiro lugar, é urbano. Tinham-se formado as polis, cidades-estado, cuja vida era mais intensa do que as ci- dades do período anterior. Havia uma classe urbana de comerciantes e artesãos ricos que reclamavam seus direitos perante os senhores de terra. A efervescência da vida econômica, cultural e política da cidade eclodia na ágora, praça central. As classes ricas urbanas, excluídas do poder político, pouco a pouco obtinham seu espaço no comando da cidade. Símbolo dessa repartição gradativa do poder foram as leis escritas em tábuas que fi cavam à vista de todos. Ao serem escritas, as leis tornaram-se públicas. A escrita passou a ser instrumento de documentação pública, tornando-se elemen- to transmissor de tradições e saberes. As moedas são contemporâneas da escrita. Elas são a prova concreta da capacidade comum dos homens de convencionarem conceitos mitologia Grega e educação Fundamentos FilosóFicos da educação 16 Em destaque, a G récia e as C olônias G regas da M agna G récia (esquerda) e da Ásia M enor (direita) - século V a.C . 17 abstratos; elas requerem uma abstração do valor das coisas e um certo treino e exercí- cio para lidar com valores abstratos. O logos é contemporâneo das ciências abstratas. As cidades-estado teriam se formado por volta do século VIII a.C. Eram tempos em que se manifestava certo desprendimento de alguns homens em relação à visão reli- giosa de mundo; os dogmas e preceitos religiosos já não eram sufi cientes para resolver os problemas que se multiplicavam na intensa vida da polis. Para isso, os homens recorriam ao debate, o qual, pouco a pouco, invadia todas as instâncias da vida, inclu- sive tocava em questões sagradas. É provável que seja desse espírito de discussão que nasça o logos e, com ele, a ciência, como pesquisa livre que obedece apenas a critérios racionais e humanos. Nos mitos, ao contrário, impõe-se certa autoridade religiosidade. O logos, enquanto “razão”, é uma fala ou uma palavra, com sentido diferente da fala mítica, porque pressupõe conceitos abstratos ou justifi cativas demonstradas, e isso provém de operações mentais de um determinado indivíduo e não da memória coletiva, como no mito. Conceitos são abstrações criadas por indivíduos, mas que pretendem ser universais. Um logos tem sempre uma autoria: foi esse ou aquele quem deu tal argumento. A autoria da fala faz-se presente particularmente no âmbito do debate. No caso das cidades-estado gregas, as polis, o logos deve ter se desenvolvido em meio às discussões econômicas e políticas. A fala, nesse contexto, necessita de uma justifi cativa, uma razão de ser e uma autoria. A ciência, tal como a entendemos na atualidade, surgiu da negação do mitos, en- quanto fala sem justifi cativa e sem autoria, e da afi rmação do logos, a fala que tem razão e autor. Então, como é possível haver conhecimento dos mitos? Alguns autores assinalam que não há qualquer espécie de conhecimentos científi cos, tal como os con- cebe a ciência moderna, explícitos ou velados no universo mitológico. Ou seja, não é possível extrair ciência dos mitos. Neste sentido, a palavra “mitologia” é impossível. Se há dúvidas de que haja ciência nos mitos, isso não signifi ca que neles não haja sabedoria. Aprendemos muita coisa com os mitos. Quem não vê neles aspectos políti- cos? Aliás, é possível que os mitos tenham sido primeiramente políticos, consagrados à imortalização de grandes feitos, conquistas, grandes governantes que uniram seu povo. Orfeu amansou as feras com sua lira: não signifi caria isso que os homens, separa- dos, são como feras selvagens; se um líder, porém, os encanta com sua eloquência, como que por música, e os convence a seguir um propósito comum, não se tornam mais dóceis e mais humanos e solidários? Não signifi caria a mesma coisa o mito de Anfi ão, que, com sua música, moveu as pedras até formarem uma muralha, vale dizer, homens unidos em prol da proteção da cidade? E a titanomaquia, a guerra que Zeus chefi ou contra os Titãs, não seria uma referência à luta contra os tiranos? Urano, o céu, e depois Cronos, o tempo, governaram o cosmos sem partilhar o poder com ninguém. mitologia Grega e educação Fundamentos FilosóFicos da educação 18 Zeus, após a vitória que derrubou Cronos, repartiu o poder, atribuindo a cada deus uma função, cabendo-lhe a liderança. Dividiu as instâncias de poder em quatro partes: coube-lhe a soberania sobre o céu; sobre o mar, concedeu-a a seu irmão Poseidón; sobre o mundo subterrâneo a soberania era de seu outro irmão Hades2; a terra era comum a todos. Quem não se dá conta, também, dos aspectos morais que há em alguns mitos? Não são a Ilíada e a Odisséia duas histórias que enfatizam a virtude da coragem? Por outro lado, não apontam para duas perspectivas de vida diferentes? A coragem de Aquiles, toda em nome da glória e da imortalização de seus feitos, à custa de uma breve vida. A coragem de Ulisses, toda em busca de uma vida longa ao lado de sua mulher e fi lho. Notamos também os valores da amizade, hospitalidade e religiosidade, que permeiam ambos os poemas homéricos: emblemáticas são a amizade entre Aquiles e Pátroclo, a prestimosa recepção do forasteiro Ulisses entre os Feáceos, bem como todos os rituais realizados pelos gregos antes de cada empreitada, a fi m de se conquistar a boa vontade dos deuses. Hefesto, deus da metalurgia, concebeu uma cilada que fl agrou o adultério de sua esposa, Afrodite, deusa do amor, com Ares, deus da guerra. Por meio de uma rede inquebrantável, armada no leito da desonra, prendeu os amantes em pleno concur- so sexual, expondo-os aos deuses. Compareceram Poseidón, deus dos mares, Apolo, deus da luz, e Hermes, o deus mensageiro. As deusas, por decência, fi caram em casa. Vendo aquilo, os deuses soltaram uma gargalhada inextinguível, e Apolo perguntou a Hermes se ele não desejaria estar no lugar de Ares, e aquele respondeu positivamente, acrescentando que gostaria que a rede estivesse três vezes mais apertada. Além da castidade das deusas, esse mito serve para lembrar que, se até os deuses riem, por que nós não riríamos? Ícaro e seu pai Dédalo foram encerrados por Minos, rei da ilha de Creta, no labi- rinto do Minotauro, ser fantástico com o corpo de homem e cabeça de touro. Dédalo, hábil artífi ce de suma engenhosidade, concebeu e construiu dentro do labirinto gran- des asas feitas com cera e penas, e de tal maneira manipuláveis que tornavam possível voar com elas e fugir daquela ilha. Ícaro foi advertido de que não poderia voar nem muito alto, do contrário as asas derreteriam com o calor do sol, nem muito baixo, pois elas poderiam fi car pesadas com a umidade do mar. Contudo, Ícaro, maravilhado com seu voo, subia cada vez mais alto, até que, vítima de seu exagero, caiu. Não estaria esse mito representandoo consagrado princípio moral da moderação e da via do meio? 2 Hades é frequentemente utilizado na mitologia grega para designar tanto o deus do submundo, o inferno, como o próprio local. 19 Esse mandamento, tão importante para os gregos, foi inscrito no pórtico do oráculo de Delfos com as palavras “Nada em excesso”, ao lado do célebre mandamento “Co- nhece-te a ti mesmo”. Por que Atenas, deusa da sabedoria, opondo-se a Afrodite, tem aversão a sexo e está sempre armada? Supondo que ela represente a faculdade da razão, não seria por que a razão busca sempre estar neutra, evitando ser infl uenciada por apetites e desejos, e frequentemente lutando contra eles? Além disso, não seria a razão, ao contrário da sensibilidade, uma faculdade não passiva, mas impositiva, que está sempre querendo se fazer valer? Não é esse um aspecto psicológico do mito? Por que Psiqué, a alma, não consegue viver sem Eros, o amor? Não seria porque a alma não consegue viver sem o impulso sexual? Por que o Minotauro está preso no labirinto? Não seria porque os homens com cabeça irracional não conseguem resolver os problemas que se lhes apresentam na vida, e fi cam enredados e sem saída? Por outro lado, existem também casos nos quais os que têm razão conseguem vencer os labirintos da vida, como o do episódio do fi o que a princesa Ariadne, fi lha do rei Minos, dera a Teseu e que, tendo sido amarrado à entrada do labirinto, permitiu que ele voltasse pelo mesmo caminho e saísse dali. É difícil medirmos o quanto as interpretações dos antigos mitos estão carregadas de projeções de conhecimentos e noções modernos. Há inserções de fragmentos de histórias reais, pormenores acrescentados como ornamento, épocas confundidas, pe- daços de uma fábula enxertados em outra e alegorias introduzidas. Tais coisas não po- deriam deixar de se produzir em histórias criadas por homens que vivem em diferentes épocas e que tinham desígnios diferentes – uns mais antigos, outros mais recentes; uns mais interessados na natureza, outros nas coisas civis; uns mais bárbaros, outros mais civilizados; levando-se em consideração que os mitos se processam ao longo de uma tradição oral que perpassa séculos. A matéria do mito é maleável, é puxada de um lado a outro e, sobretudo, pode ser forjada. Seu uso desde há muito está contaminado: muitos, a fi m de que as suas pró- prias invenções e seus preceitos se tornassem veneráveis pela antiguidade, tentaram arrastar para suas próprias ideias as fábulas dos poetas. Os fi lósofos Bacon (1561-1626) e Vico (1668-1744) acusaram essa vaidade de alguns de quererem tornar suas próprias ideias mais respeitáveis, deduzindo-as artifi cialmente dos mitos e servindo-se do ex- pediente de lhes encontrar antigas e ilustres origens. Assim, as ideias ganham ares de tradição e um argumento de autoridade. Quem sabe a luz dos mitos não esteja justamente nos cruzamentos entre as interpre- tações e a “verdade primeira” dos mitos? É possível usar da mesma licença para interpre- tarmos as fábulas que os poetas tiveram para inventá-las. Talvez nunca nos seja possível mitologia Grega e educação Fundamentos FilosóFicos da educação 20 conhecer inteiramente a “verdade” dos mitos, o que eles querem dizer, qual sua fi nali- dade, a quem se dirigem, por quem são ditos. Mas alguma coisa é possível cogitar. Não se sabe por quem foram ditos pela primeira vez, mas é bem provável que tenham sido transmitidos pelos rapsodos (poetas cantores), verdadeiros veículos da tradição oral. Como, sem escrita, estes podiam memorizar tantas histórias? Desenvol- ve-se aquilo que se usa e se exercita: sem escrita, usa-se muito a memória. É como a necessidade dos cegos, que precisam memorizar com muito mais atenção os dados fornecidos pelo tato, olfato e audição, para suprir a falta dos dados visuais. Podemos enunciar que os rapsodos, ou poetas cantores, serviam-se de versos mais ou menos prontos para costurar suas histórias. Havia menos espaço para improvisa- ções do que podemos imaginar. Seria mais ou menos como o conhecido repente: os repentistas têm já à disposição um arsenal de versos prontos, com medidas e rimas fi xadas, que eles arranjam conforme o contexto. Também os rapsodos serviam-se da musicalidade e da métrica de versos fi xos para memorizar melhor e serem capazes de costurar histórias mais longas, mantendo o ritmo da fala. Esses versos fi xos são chamados de fórmulas “mnemônicas”. Mnemônico vem de mnemosine, que signifi ca memória em grego; ou seja, são fórmulas para memorização. Notemos como a memória é importantíssima para a tradição oral: Mnemosine, deu- sa da memória, é a mãe das Musas, deusas que inspiram para cantar as histórias dos povos e deuses. A tradição oral é fi lha da memória coletiva. Vejamos um trecho da tradução que Haroldo de Campos fez da Ilíada. Zeus decide trazer sofrimento aos gre- gos para vingar a ofensa de Agamêmnon, o chefe dos gregos, a Aquiles, o mais bravo guerreiro grego. Agamêmnon havia tomado a prenda de guerra de Aquiles, a bela Bri- seida. Zeus concebe enviar um sonho enganador para incitar o chefe grego ao ataque imediato contra Tróia, que o levaria inadvertidamente ao fracasso desastroso. À noite, enquanto todos dormem, o Sonho (deus) apresenta-se a Agamêmnon nesses termos: Dormes, fi lho de Atreu, bravo doma-corcéis? Quem toma decisões não dorme noite a fi o! Dele o povo confi a o ônus de ações pendentes! Agora ouve-me atento. Anjo-de-Zeus, o núncio, Eis o que sou. De longe, Zeus te vela, inquieto, E ordena-te: Arma, rápido, os Aqueus, cabelos- -longos. Podes tomar hoje Tróia, a de ruas amplas. Não mais discrepam no Olimpo os eternos. Todos, dobrou-os Hera, toda-suplicante. A dor, vinda de Zeus, paira sobre os Troianos! Guarda o aviso em teu ânimo... (CAMPOS, 2001, p. 1-2). A tradução de Haroldo de Campos pode ser de difícil compreensão, mas ela re- vela o uso da teoria das fórmulas “mnemônicas”. Ele tentou recriar a métrica, com o 21 número fi xo de sílabas no verso, bem como sua musicalidade, e o resultado foi esse. Os mitos são costurados. Há histórias mais longas, repletas de pequenos episódios, ricos em elementos narrativos, imagens, conteúdos éticos e culturais. Por exemplo: a Ilíada de Homero retrata não mais que um mês de eventos da guerra de Tróia, após estarem ali os gregos há vários anos; nem sequer é contada a tomada de Tróia. Uma história que poderia ser contada em poucas páginas. Entretanto, são tantas as batalhas, tantos os diálogos, tantas as referências a outros mitos, que ela acaba se tornando uma narrativa colossal. Esse é um dos maiores poemas escritos no mundo, ao lado da mais antiga literatura indo-europeia dos povos arianos que dominaram o norte da Índia a partir de 2500 a.C.: o Mahabharata, a imensa epopeia dos Vedas com 200.000 versos escritos em sânscrito arcaico. A Ilíada mais longa que a Odisséia, que conta o demorado retorno de Ulisses, de Tróia a seu lar, os dez anos de fadigas e peripécias vividos pelo herói. A Odisséia é uma grande viagem pelo mar mediterrâneo, de sul a oeste. Contém uma fantástica descrição de povos e lugares por onde o herói passa: uma incrível geografi a. Sem dúvida, o maior mito e que oferece a mais ampla indicação geográfi ca é o de Hércules, que, em grego, é chamado de Héracles e signifi ca “Glória de Hera”, porque dedicou os seus doze trabalhos a aplacar o ódio e o ciúme que a deusa Hera, mulher de Zeus, nutria em relação a ele. Outro mito geografi camente riquíssimo é o de Jasão e os argonautas. O de Teseu (o mesmo do labirinto do Minotauro) também é repleto de episódios fantásticos e inúmeros personagens. Cada um tem uma história particular, mas eles frequentemente se cruzam em suas aventuras com outros personagensmito- lógicos, a tal ponto que é difícil discernir a que mito pertence o episódio em questão. A mitologia é uma grande teia de mitos, de tal modo costurados que é impossível contar o mito de um personagem sem contar o de outros. Uma questão que diz respeito à natureza dos poetas cantores é saber, por exemplo, se a Ilíada ou a Odisséia foram compostas por uma só pessoa, ou por várias. Supondo que Homero tenha sido essa pessoa e as tenha concebido, não há como negar que ele tivesse um talento diferenciado, uma individualidade genial, como se costuma achar que os artistas têm. No entanto, se ele fosse uma pessoa comum, não seria mais um a reproduzir o senso comum de um povo, estando mais próximo do vulgar do que do diferenciado? Não há hoje o costume de discutir se Homero realmente existiu, mas a verdade é que não existe unanimidade sobre isso. É possível asseverar que a Ilíada tem uma razoável unidade de composição, tanto no que se refere à amarração e à continuidade dos eventos, quanto aos seus aspectos estilísticos, o que sugere que esse poema pode ter sido confeccionado por uma só pessoa. O mesmo já não acontece com a Odisséia, mitologia Grega e educação Fundamentos FilosóFicos da educação 22 que, sobretudo no que tange ao estilo, apresenta muitas variações, o que dá certa impressão de “colagem”. De onde é Homero? A ação da Ilíada se passa no oriente grego, enquanto a da Odisséia se desenrola no ocidente. A julgar pela Ilíada, é provável que Homero tenha sido da Jônia (ver no mapa), do outro lado do mar Egeu, na costa oeste da atual Tur- quia. O mundo conhecido da Odisséia é diferente do mundo conhecido da Ilíada, o que suscita a hipótese de que o autor da Odisséia teria sido do ocidente da Grécia, um grego da península itálica, e não da Jônia, como o autor da Ilíada. É possível que tenha havido dois ciclos poéticos, ambos mitifi cados na pessoa de Homero. A idade de Homero é mais uma grande dúvida a seu respeito. Os valores que estão em jogo na Ilíada contrastam com os da Odisséia. A Ilíada parece corresponder a uma Grécia mais bárbara e primitiva, de costumes belicosos, coléricos, ressentidos, im- placáveis, violentos, que arrogam toda razão à força. Na Odisséia, por sua vez, apare- cem sinais característicos de tempos mais civilizados: os palácios suntuosos, as delícias das inúmeras ceias retratadas atestam que os gregos já admiravam o luxo e o fausto. Na Odisséia, muitas vezes podemos perceber uma crítica a culturas bárbaras: os povos mais bárbaros não cultivam o costume da hospitalidade. Ulisses, às vezes, não é bem recebido e tem até de escapar de povos canibais, como é o caso dos Lestrigões (gigan- tes canibais) e Ciclopes (gigantes de um só olho no meio da testa). Por outro lado, os povos civilizados são claramente os povos hospitaleiros. A discrepância é visível no contraste entre os dois heróis homéricos, Aquiles, o herói central da Ilíada, e Ulisses (ou Odisseu) o herói central da Odisséia. Aquiles é im- petuoso, passional, franco. Ulisses é eloquente, astuto, dissimulado, irônico. Podemos afi rmar que os primitivos povos bárbaros possuíam uma mentalidade ingênua. Ora, a mentira e a ironia são privilégios dos homens civilizados. Substituir a verdade por uma mentira implica a capacidade de abstrair o discurso daquilo a que ele se refere: uma coisa é o discurso, outra coisa é o fato ao qual se refere. Feita essa separação, é possível fazer um discurso falso se passar pela realidade, enquanto esta passa a ser encoberta. Ser irônico é dizer exatamente o contrário daquilo que se pensa. Portanto, a mentira e a ironia requerem um desenvolvimento da abstração da linguagem e de uma menta- lidade capaz disso, de modo que seja possível reconhecer e manipular a distância que há entre o discurso e a realidade, a palavra e a coisa. Diferentemente, os povos primi- tivos fabulam e ao mesmo tempo acreditam; não percebem seus mitos como fi cções, mas como a mais pura verdade do que percebem acerca do mundo. É possível pontuarmos que em alguns momentos a Odisséia parece fazer uma crí- tica à Ilíada, algumas vezes até parodiando-a. Vejamos, por exemplo, o encontro de Ulisses e Aquiles no Hades. Na Ilíada, enquanto vive, Aquiles despreza a vida e só 23 pensa em honra e glória. Mas eis que, na Odisséia, depois de morto, ao avistar Ulisses no mundo subterrâneo, Aquiles lamenta-se por sua curta vida, sente saudades de seu fi lho e revela preferir ser um escravo vivo a um herói morto. Quanta diferença! Para dissimular a diferença de temáticas e estilos entre os dois poemas, já foi dito que Homero, sendo jovem, compôs a Ilíada, e, velho, a Odisséia. Na Ilíada apresenta a cólera e o orgulho de Aquiles, que são propriedades dos jovens; na Odisséia valoriza a prudência e a cautela de Ulisses, qualidades dos velhos. Tantas dúvidas não recaem sobre Hesíodo. Ao contrário de Homero, Hesíodo for- nece dados autobiográfi cos em seus dois poemas, a Teogonia e Os trabalhos e os Dias. Por exemplo, na Teogonia apregoa-se que as Musas ensinaram um canto a Hesíodo enquanto este pastoreava ovelhas ao pé do monte Hélicon. Em Os Trabalhos e os Dias, tomamos conhecimento que Hesíodo tinha um irmão com o qual disputava a herança do pai. Censura no irmão a ganância ociosa e faz desse livro um elogio ao trabalho. Nos textos de Hesíodo, o poeta se mostra presente (usa inclusive a primeira pessoa), enquanto nos de Homero ele some por trás das histórias. A quem se dirigem os poetas cantores? Não sabemos se eles cantavam em festas po- pulares ou nas cortes reais para aristocratas, ou em ambos os eventos. É bem provável que ocorressem festas, nas quais havia a ocasião para a reatualização dos mitos, sob a forma de concursos de poesia, ou mesmo demonstrações para entretenimento. As festas eram todas religiosas; nelas é possível encontrar quatro elementos: uma reatua- lização dos mitos, que são representados e imitados; uma brincadeira de disfarces, a mascarada; uma prática da inversão das hierarquias e das convenções sociais, na qual é necessário brincar de mundo ao contrário; e uma fase de transbordamento e excesso, em que a transgressão das normas é a regra, terminando em caçoada, danças e orgia. Há signifi cados muito evidentes nos mitos, especialmente nos nomes, pois não podemos negar a estreita conexão entre o signifi cado do nome e a história do perso- nagem. Quem são as Musas, a própria essência dos mitos? Quais são suas atribuições? As festas e o canto. Além, é claro, dos rituais religiosos, (o contexto social próprio dos mitos são as festas religiosas). O nome das Musas pode esclarecer alguma coisa. Kleió (Clio), ou “Glória”, é a própria função do mito: glorifi car algum herói ou deus, fazer ecoar seu nome aos quatro ventos; mais tarde viria a ser celebrada como musa da epopeia e da história. Alguns propalam que Euterpe, cuja tradução aproximada pode ser “Atraente”, é a musa da dança. Apesar de o nome Thaleia (Thalia), ou “Festa”, já dizer tudo, alguns se referem a ela como musa da comédia. Melpomene, que pode ser traduzida aproximadamente por “Cantora”, foi incumbida por alguns de ser a musa da tragédia. Terpsicore, cuja tradução é praticamente impossível, pode ser grosseira- mente chamada de “Canto-Feliz”; seria a musa de uma modalidade de expressão que mitologia Grega e educação Fundamentos FilosóFicos da educação 24 conjuga canto e dança. Erato, ou “Amorosa”, poderia ser, quem sabe, a musa da lírica. Polímnia, que pode ser traduzida por “Hinária”, talvez seja a musa dos cantos corais. Uranía (Urânia), ou “Celeste”, tem tudo para ser a musa da astrologia e da astronomia. Por último, a que vem à frente das outras, Kalíope (Calíope), que pode sertraduzida por “Bensoante” ou “Belavoz”, pode ser a deusa da eloquência, porque é ela quem acompanha os reis louváveis. Juntemos todas, e o que encontramos? Músicas, danças, cantos líricos, corais, hi- nos, histórias, teatros. É o que encontraríamos nas festas religiosas da Grécia Antiga, que ocorriam sempre em épocas determinadas por ocasiões importantes para a vida social, como é o caso das colheitas e dos plantios, tratando-se de uma sociedade agrí- cola como era aquela. Tais ocasiões eram marcadas, geralmente, em acordo com o posicionamento dos astros. Seriam Homero e Hesíodo sábios fi lósofos? Para confi rmar essa ideia, é necessário sustentar que por trás da mitologia há uma sabedoria fi losófi ca cuidadosamente escon- dida. Seu sentido fi losófi co teria sido desde o início refl etido e de propósito posto à sombra. Francis Bacon, fi lósofo do século XVII, desenvolve duas teorias distintas acer- ca do mito: ele é tanto o produto de uma humanidade tosca e ingênua que se expressa mediante similitudes, quanto o invólucro de uma verdade secreta. A primeira teoria postula que na Antiguidade vivia uma humanidade rude cuja linguagem se funda mais sobre as faculdades imaginativas do que sobre as lógicas. Trata-se de uma humanidade que vive na idade da fantasia, que só entende aquilo que é sensível, uma idade anterior à da razão, cuja forma de saber própria e exclusiva é a poesia. Enquanto a razão conforma o espírito à natureza das coisas, a fantasia submete as coisas aos seus desejos. A poesia é, portanto, antropomórfi ca e, também por sua ligação natural com a música, se desenvolve sobretudo em períodos e regiões bárbaras, prevalecendo sobre qualquer outro tipo de saber. Seu meio de expressão é uma linguagem por semelhança, por imagens que imitam as coisas a serem comunica- das; a comunicação dá-se por fi guras, hieróglifos, gestos, fábulas; seria uma linguagem que precede a linguagem por convenções abstratas e por discursos abstratos, como as letras e as demonstrações lógicas. Neste sentido, o uso das fábulas precede o dos argumentos lógicos, da mesma forma que o uso dos hieróglifos precede o das letras3. Nesse caso, segundo Bacon (2006), é mais fácil acreditar que a fábula é fruto da fantasia, que ela é mais antiga do que a interpretação conceitual, do que achar que ela tenha sido elaborada justamente para ilustrar ou esconder qualquer verdade de 3 Os hieróglifos e gestos constituem em uma linguagem mimética primitiva. Estes estão para as palavras faladas assim como aqueles estão para as escritas, cf. Bacon, 2006, p. 205. 25 conteúdo fi losófi co. Primeiro veio a fábula, e depois se pensou em como expô-la; não tem fundamento achar que se tenha partido de uma “moral” para, em seguida, sobre ela construir a fábula. Por esse ponto de vista, é mais fácil pensar que os mitos foram feitos para o deleite, feitos por capricho à semelhança de histórias reais, ou fruto da licença poética, como mero entretenimento. A segunda teoria sustenta que os mitos são parábolas ou alegorias, isto é, são com- parações e querem dizer outra coisa além do que foi dito. Nesse caso, são invólucros de conteúdos fi losófi cos. Bacon admite um duplo uso das parábolas e das alegorias: elas servem tanto para ilustrar, quanto para esconder conceitos. Então, o uso alegórico dos mitos, ou seja, aquele uso que aponta para um conceito que está por trás do mito, poderia ser feito para esclarecer uma verdade. A alegoria do mito poderia ter sido usada para fi ns pedagógicos, uma vez que era adequada à mentalidade imaginativa e rude dos homens primitivos. Mesmo que admitamos que as fábulas não passem de composições fantásticas cria- das para divertimento, não podemos negar que algumas tiveram um uso pedagógico legítimo para exprimir coisas que, hoje, parecem óbvias, mas que naqueles tempos eram estranhas e incomuns. Os homens não entendiam nada que não fosse sensível, encontravam-se em uma idade sensorial na qual as verdades se exprimiam sob a forma de imagens míticas. A natureza predominantemente sensível dos homens das épocas antigas tornava necessário, para exprimir conceitos originais e afastados da vulgarida- de, o recurso a uma variedade e riqueza de exemplos capazes de atingir a sua imagina- ção (BACON, 2006, p. 133). As parábolas, as alegorias, os símiles, as metáforas, e toda linguagem fi gurativa e imagética podem ter uma função pedagógica que visa a tornar mais claros conceitos de difícil acesso para mentes despreparadas. De acordo com Bacon, elas são úteis, quan- do não indispensáveis, principalmente para as ciências: às ideias novas, não familiares e complicadas, obtém-se por parábolas e metáforas um acesso mais fácil e agradável ao intelecto humano. Fábulas, parábolas e símiles, podem, por conseguinte, ser usados como método de ensinar. Se alguém quer esclarecer um novo conceito, por um cami- nho que não seja incômodo e áspero, deve insistir na linguagem fi gurada e recorrer, especifi camente, ao auxílio dos símiles. Entretanto Bacon, no fundo, parece acreditar que os mitos escondem, sob uma forma alegórica, antigos e profundos conceitos fi losófi cos. Para ele, entre o silêncio e o esquecimento da mais remota antiguidade e a memória e evidência dos documentos escritos há como que um véu de fábulas, que se interpôs entre o que pereceu e o que subsistiu. Desde a origem, e não em poucas fábulas dos antigos poetas, existe um mistério e uma alegoria que lhes são subjacentes. Não seriam as fábulas produto da mitologia Grega e educação Fundamentos FilosóFicos da educação 26 invenção de poetas conhecidos, mas relíquias sagradas e sopros sutis de áureos tem- pos, vindos de tradições de nações mais antigas e transmitidas às fl autas e às trompas dos gregos. Bacon oferece três argumentos para sustentar a tese da função alegórica dos mitos. Em primeiro lugar, em vários mitos é patente a conformidade do nome e do enredo a um signifi cado conceitual. Em segundo lugar, os absurdos dos relatos mitológicos, em alguns casos, não produzem qualquer deleite e não condizem com algum tipo de entretenimento, o que revela a presença de um signifi cado escondido. Em terceiro lu- gar, a maior parte dos mitos antigos não parece inventada por aqueles que os contam, pois são narrados como objeto de crença e como algo recebido, não como pensados pela primeira vez. Posto que são contados de modo diverso por escritores quase con- temporâneos, é possível perceber que aquilo que todas as versões têm em comum veio de fonte antiga, enquanto que aquilo em que variam é adicionado como ornamento de detalhes. A sabedoria dos antigos foi ou grande, ou feliz: grande, se a expressão fi gurada foi pensada de propósito; feliz, se aqueles homens, visando a outra coisa, ofereceram ma- téria e ocasião tão digna de contemplação (BACON, 2002, p. 21-22). Ambas as teses di- vergentes entre si, a da origem fantástica e primitiva e a da origem alegórica dos mitos, Bacon apresenta tanto no Progresso do conhecimento de 1605 quanto no A Sabedoria dos Antigos de 1609; mas neste último apenas acena à primeira tese e demonstra, de fato, a segunda, procurando delinear alegorias altamente sofi sticadas presentes em alguns mitos; naquele, dá mais ênfase à primeira tese. Há em Bacon razões religiosas e fi losófi cas para a crença em uma antiquíssima sabedoria (pré-homérica) desaparecida, que remonta a tempos áureos de uma vida feliz em que o homem reinava sobre a natu- reza, condição que foi perdida pelo pecado original e que deve ser reconquistada pelo trabalho e pela restauração daquela sabedoria. Bacon vislumbra a restauração de um originário domínio da natureza que cabe ao homem. Mas, mesmo defendendo a tese alegórica, Bacon jáesboça a vinculação histórica entre poesia, imaginação e barbárie, ligada à tese de uma idade da fantasia em que as verdades se exprimem sob a forma de mitos, antes da idade da razão. Em contrapartida, Vico, fi lósofo do século XVIII, sugere que a alegoria no mito sem- pre foi suposta e imposta, e não original e genuína, como adverte o próprio Bacon. Ele desenvolve a teoria de Bacon de uma etapa histórica dominada pela fantasia, na qual os homens rudes se valem de uma linguagem por semelhanças, por fi guras, por imi- tações, por imagens. Todavia, não admite que os mitos, em sua origem, tenham sido criados em função de algum uso alegórico, pedagógico ou de entretenimento. O mito alegórico, seja para esconder, seja para ilustrar um conceito, é sempre um artifício e 27 implica uma elaboração refl exiva. Por outro lado, os mitos não deviam ser fruto do capricho ou ocasião de diversão, porém objeto de consagração, repletos de sentido religioso, político e social. Por isso, na visão de Vico, Homero e Hesíodo não foram fi lósofos, no sentido de serem cientes de conceitos abstratos. Não há nos mitos ciência refi nada, mas sabedo- ria vulgar, senso comum. Não há razão, mas fantasia, imaginação. Não há universais abstratos, conceitos, mas universais fantásticos, imagens universais. Os nomes míticos são prova dos universais fantásticos: elevam algo particular à condição de universal, designam univocamente uma multiplicidade de coisas através de um particular. Os mi- tos não conteriam uma sabedoria fi losófi ca, mas uma sabedoria poética. Ao contrário da fi losofi a, a mitologia é uma sabedoria vulgar, isto é, popular. Nos tempos em que a imaginação e a engenhosidade resolviam os problemas do homem, antes dos tempos da razão, a linguagem também refl etia esse vigoroso uso da imaginação. Portanto, se- gundo Vico, originariamente a linguagem é fi gurada, e a poesia é uma língua própria. A primeira língua foi, então, poética. Essa inferência é crucial para Vico. No início, não existia a distinção entre língua própria (prosa) e imprópria (poesia), porque a única língua que havia era naturalmente poética. Vico recusa a teoria de que a lin- guagem é originariamente convencional e de que a poesia épica, como a de Homero, é fruto da escolha deliberada de artifícios e estratégias de composição. A primeira e grande poesia não teria nascido de artifícios, mas da própria indigência da língua, que, por necessidade, deve recorrer à linguagem por semelhanças, sendo, portanto, natu- ralmente metafórica e poética. Para Vico, o fato mesmo de os primeiros povos terem sido bárbaros, limitados, sem razão, e, por isso, inteiramente imersos nos sentidos e na imaginação, é a causa da força fantástica da sua linguagem poética. Desse modo, ele reitera a tese polêmica de que Homero foi grande justamente por ter sido bárbaro. Vico nega que a poesia homérica é fi losófi ca ou fruto de uma refl exão refi nada, mas propala ser excelente por seu vigor poético e por constituir um tesouro do direito e da história dos povos primitivos. Pela eterna indigência da língua, e especialmente em seu início, isto é, por causa da pobreza de nomes para designar as coisas, a primeira língua foi necessariamente construída por transportes, foi fi gurada, metafórica. Os homens, em sua ignorância das causas, tomam-se como medida das coisas, e, por comparação consigo mesmos, as expressam; dominados pela fantasia e por paixões violentas, ex- pressam-nas de maneira fantástica e passional; sendo o canto o modo natural e primiti- vo de expressão dos sentimentos, então, podemos assinalar que a primeira linguagem foi metafórica, antropomórfi ca, fantástica e cantada. Os mitos não foram criados artifi cialmente por meio de uma refl exão refi nada. São o produto de uma linguagem naturalmente fi gurada, que, por sua vez, é resultante mitologia Grega e educação Fundamentos FilosóFicos da educação 28 necessário de uma mentalidade naturalmente fantástica. Os antigos criadores dos mi- tos não escondem aí conceitos, simplesmente porque não eram capazes de abstração, mas pensavam por imagens. Aqueles homens simples da Antiguidade, assim como o senso comum de qualquer época, não eram dotados de uma sabedoria refi nada, porém capazes de uma sabedoria poética. Vico pontua que a poesia é historicamente anterior à prosa, assim como o desenvolvimento da imaginação é anterior ao da razão, seja no indivíduo, seja na humanidade. As primeiras formas de cultura teriam sido poéticas4; por isso, as refl exões de Vico dão ensejo à tese da origem poética de todas as religiões. A sabedoria da idade da razão seria o refi namento da sabedoria poética da idade da fantasia. A fonte da criatividade humana estaria justamente na imaginação. Por uma razão natural, um programa de estudos, para Vico, também deveria primeiro exercitar a imaginação. O estudo da mitologia convém exatamente a esse propósito. A riqueza da mitologia pode permitir a compreensão da riqueza da sabedoria popular. Os mitos revelam um complexo jogo, esquecido pelo homem moderno, imerso que está no jogo da razão. Pela mitologia é possível reanimar a faculdade da imaginação, atrofi ada pela vida mo- derna. A mitologia talvez possa funcionar como meio de advertir o homem de que a vida, para que seja feliz, não basta que seja racional, mas tem de ser movida também por fantasia e paixão, que sempre foram despertadas pela poesia: a vida precisa ser poética também. Além de ser útil para o exercício da imaginação e para o conhecimento da pro- fundidade da sabedoria popular, o estudo da mitologia tem um valor histórico: sem isso, não há como compreender o nascimento da fi losofi a. Embora, em certo sentido, a fi losofi a nasça em contraposição ao pensamento mitológico, há muitos temas que se conservam na passagem da mitologia à fi losofi a, entre eles, o tema da virtude e o tema da constituição do universo a partir de elementos simples. Apesar das rupturas evidentes, ambas são formas de paideia, isto é, de educação. De fato, a fi losofi a como forma de paideia, tal como é apresentada por Platão, preserva vivo o sentido social do saber, presente na velha paideia da mitologia. 4 Os poemas homéricos são dois tesouros dos costumes da Grécia arcaica; são teologias poéticas que contêm ver- dades civis; são as primeiras histórias dos povos gregos. 29 BACON, F. A sabedoria dos antigos. São Paulo: Unesp, 2002. ______. O progresso do conhecimento. São Paulo: Unesp, 2006. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. CAMPOS, H. Ilíada de Homero. São Paulo: Arx, 2001. GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. 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Proposta de atividades Fundamentos FilosóFicos da educação 30 anotações 31 célio Juvenal costa Costuma-se afi rmar que a fi losofi a é fi lha da periferia, pois os primeiros fi lósofos eramhabitantes das cidades da Ásia Menor e da Magna Grécia, bem distantes das cidades gregas mais importantes. Pitágoras defi niu a nova forma de compreender o mundo como algo ligado à sabedoria. Portanto, aquele que se dedicava a tal arte era o fi lósofo, ou seja, aquele que buscava ser íntimo da sabedoria, alcançá-la e agir com base nela era tido como o amigo da sabedoria (sofhias = sabedoria, philos = amor). Essa nova forma de sabedoria, não mais ligada às lendas e mitos explicativos próprios da religião e da cultura helênicas, não tardou a se imiscuir na vida peninsular dos gregos e, aos poucos, encontrou lugar privilegiado na mais importante polis1, Atenas. Assim, podemos afi rmar que a fi losofi a apareceu nas cidades das colônias gregas, mas se consolidou no centro da vida grega. A fi losofi a é a refl exão do homem sobre o homem. Uma refl exão diferente da reli- giosa, porque busca, por vias racionais, chegar a concepções que expliquem a existên- cia do ser humano em si e em suas relações e ambientes. Dessa forma, seja em um viés mais naturalista ou mais político, ou mesmo ainda mais metafísico, sempre é do ser humano que se está falando. Durante aproximadamente cinco séculos, que compreendem os períodos de cres- cimento, auge, crise e dissolução da sociedade grega baseada nas Cidades-Estado, a fi losofi a passou, a rigor, por três fases, mais ou menos distintas. 1 Polis é o nome grego que designa cidade. É muito comum encontrarmos polis como sufi xo de nomes de muitas cidades brasileiras (Petrópolis, Teresópolis, Anápolis etc.). No sentido grego, tal palavra signifi cava a cidade que era ao mesmo tempo um Estado, ou seja, uma cidade com autonomia legal e jurídica em seu território. Portanto, mais do que grego, o homem da época vai se caracterizar como ateniense, espartano, tebano e assim por diante. o nascimento da fi losofi a: os fi lósofos da natureza e sócrates 2 Fundamentos FilosóFicos da educação 32 Na primeira fase, a fi losofi a se caracteriza como sendo uma ciência da natureza, na qual a cosmologia (o estudo do cosmos, do universo material) praticamente delineava as maiores preocupações dos fi lósofos. Aqueles que se dedicavam a esses estudos fo- ram chamados posteriormente de fi lósofos da natureza. A segunda é dominada pela preocupação com a vida do homem em sociedade, as formas de sociedade, os valores e virtudes individuais e coletivos e, também, com a possibilidade de o conhecimento humano chegar a conceitos e categorias explicativas da vida. Os pensadores desse período são chamados, genericamente, de fi lósofos sis- temáticos ou antropológicos. Na terceira fase, o principal objetivo da fi losofi a é apontar caminhos para a feli- cidade humana; não se trata mais do homem social e político, mas sim do homem individual. Esses fi lósofos são chamados de éticos. Resumindo: a primeira fase é marcada pela cosmologia, a segunda pela antropolo- gia e a terceira pela ética. A primeira corresponde aos séculos VII, VI e V (construção e consolidação da sociedade grega), a segunda, aos séculos V e IV (início e auge das crises das Cidades-Estado) e a terceira, aos séculos IV e III a.C. (dissolução da socieda- de das polis). É praticamente consensual a ideia de que a fi losofi a tenha se iniciado, de fato, somente com Sócrates (470-399 a.C.), caracterizando-se pelas refl exões sobre o ser humano e não mais sobre a natureza. Considerando Sócrates como um divisor de águas, os fi lósofos gregos são normalmente divididos em pré-socráticos e pós-socrá- ticos. Regra geral, os pré-socráticos, divisão mais lógica que cronológica, são identifi - cados como os fi lósofos da natureza, a ponto de os termos serem empregados como sinônimos. A ideia geralmente aceita é a de que os pré-socráticos gestaram, pariram e embalaram a fi losofi a, mas quem a pôs a andar e a fez amadurecer foram Sócrates e os pós-socráticos. os PRÉ-socRÁticos A forma fi losófi ca de apreender o mundo, forma diferente da mitológica (com con- sequências para a própria estrutura do pensamento humano e do desenvolvimento da ciência), não ocorreu ao acaso, como fruto tão-somente de mentes brilhantes, de espíritos especulativos ou mesmo de homens inquietos e inconformados com explica- ções já tradicionais. A curiosidade humana, para ser catalisada para empreendimentos proveitosos, necessita de um terreno favorável, de uma cultura que possibilite, ou pelo menos que não atrapalhe o seu pleno desenvolvimento. É exatamente isso o que ocorreu nos domínios gregos com a decadência da chamada civilização micênica – a mesma que produziu as epopeias homéricas – e o aparecimento 33 da civilização dórica a partir do século X a.C. O desenvolvimento da sociedade grega gerou uma nova mentalidade, que passou a valorizar, principalmente, as individualida- des. A chegada dos dórios representou a constituição de uma civilização de base agrária e guerreira, o que fez com que muitos gregos fugissem para a região da Ásia Menor, fundando cidades, buscando preservar a essência das cidades micênicas. No entanto, a região onde os gregos se instalaram caracterizou-se, principalmente a partir do século VII, por um movimento social intenso, com o desenvolvimento regular do comércio e com a introdução do uso da moeda, da escrita e do artesanato. Essas novas condições fi zeram desaparecer o que restava da civilização micênica e, ao mesmo tempo, fi zeram aumentar as diferenças com os povos dóricos. Ao se propagar, entre aqueles gregos, o uso da moeda, da escrita e do artesanato, inaugurou-se uma mentalidade que descobre e valoriza a abstração humana como esforço de uma inteligência individual. A moeda, como equivalente dos preços e, portanto, como facilitadora das trocas, é produto da abstração humana, pois o valor lhe é atribuído convencionalmente, di- ferente do valor da moeda medido pelo seu peso em ouro. É diferente de se trocar uma camisa por uma calça, uma vez que, com a introdução do dinheiro, troca-se a camisa por uma moeda, e a moeda por qualquer outro produto, por exemplo, uma calça. Atualizando essa percepção, notemos que uma nota de cem reais, em si, não vale praticamente nada; é o valor estampado no papel, um valor convencionado, que permite que, com esse pedaço de papel, compremos produtos ou serviços. A moeda é produto humano, é resultado do esforço de abstração da realidade para compreender e desenvolver essa mesma realidade. A difusão da escrita revela, também, uma cultura que estimula a medida e a abstração humanas, porque escrever sempre é mais difícil do que simplesmente falar. O ato de es- crever requer uma compreensão da língua e de sua estrutura gramatical, é um exercício intelectual. O processo de síntese, de utilização de conceitos, categorias, metáforas etc., inerente ao ato de escrever, e sem o qual não existe a marca da clareza na mensagem a que se procura dar forma, é resultante, também, de um esforço de abstração. Já o artesanato, em uma cultura mercantil e não mais de subsistência, transforma o domínio da técnica de modifi car a natureza em algo a ser trocado, vendido. O domínio da técnica é o conhecimento da natureza que, transformada e dominada, passa a servir ao homem como bem de uso e também como bem de troca. Somente um sapateiro, por exemplo, tem o conhecimento de quais os tipos de couro ou outros materiais são mais adequados para se fazer um sapato. Já postulava Platão que o artesão tem uma sabedoria (restrita, é verdade, ao domínio de sua especialidade), pois é senhor de um processo em si complexo. Marx alertava que a diferença entre a mais perfeita teia de aranha e a mais imperfeita cadeira era que a aranha tecia por instinto, fazendo sempre o nascimento da fi losofi a: os fi lósofos da naturezae sócrates Fundamentos FilosóFicos da educação 34 as teias perfeitas, mas iguais; o artesão antecipa em sua mente o produto fi nal e, por isso, pode inovar, pode melhorar. A fi losofi a surge, como vemos, em um ambiente propício: a moeda, a escrita e o artesanato compõem essa espécie de terreno fértil para a germinação e o desenvolvi- mento da semente fi losófi ca. Fruto da progressiva valorização da “medida humana” e da laicização da cul- tura efetuada pelos gregos, despontou, nas colônias da Ásia Menor, uma nova mentalidade, que coordenou racionalmente os dados da experiência sensível, buscando integrá-los numa visão compreensiva e globalizadora. Dentro desse espírito surgiram, na Jônia, as primeiras concepções científi cas e fi losófi cas da cultura ocidental, propostas pela escola de Mileto (PRÉ-SOCRÁTICOS, 1989, p. XV ). Em Mileto, na Jônia, apareceram os primeiros fi lósofos de que se tem notícia. Ta- les (640-546 a.C.) é tido como o primeiro fi lósofo e o primeiro chefe da Escola de Mi- leto; Anaximandro (610-547 a.C.) e Anaxímenes (585-528 a.C.) foram seus discípulos. Para estes e outros fi lósofos, o mais importante é conhecer a natureza, a physis, cujo objetivo é entender e explicar os fundamentos primeiros de que o mundo foi feito e que o vêm mantendo da forma como está. Neste sentido, um conceito importante para entendermos a ciência dos primeiros fi lósofos é o de arkhé, que signifi ca, apro- ximadamente, um princípio primordial, originário, constitutivo, dirigente e ordena- dor de todas as coisas e de todo o universo, até em sua diversidade e contraditórios aspectos. Delimitar a arkhé signifi cava buscar explicações racionais para o universo. A Escola de Mileto funda o entendimento de que as qualidades sensíveis, aquelas que são experimentadas pelos sentidos, como frio e calor, leve e pesado etc., são realidades em si e não apenas sensações individuais. Como essas qualidades são abso- lutas, moldam, de certa forma, o universo, fazendo dele um espaço eterno em que os opostos se contrapõem, se contrabalançam e dão equilíbrio à existência do mundo. Tales afi rmava que tudo estava cheio de deuses, ou seja, que as qualidades sensíveis que cercam os homens têm uma existência independente da vontade humana e o seu domínio está fora do alcance humano. Um parêntese importante é necessário aqui: a fi losofi a não é uma simples ruptu- ra com o pensamento mítico. Isto quer dizer que os primeiros fi lósofos não faziam propagandas ateístas, negando qualquer possibilidade religiosa para o homem. O que eles fi zeram foram tentativas, umas mais e outras menos consequentes, de entender o mundo com base em explicações racionais e não como resultado da ação de um ou mais deuses. A fi losofi a contribui, sim, para a crítica a uma religiosidade simplista ou mera- mente ritualista, mas não signifi ca, necessariamente, um rompimento com a religião. 35 Voltando à Escola de Mileto, encontramos o seu primeiro líder, Tales, às voltas com sua arkhé. Para ele, o princípio fundamental das coisas vivas no universo é a água. Para chegar a tal conclusão, observa que as coisas, para se manterem vivas, necessitam, antes de tudo, de água, ou, mais genericamente, de líquido. O homem se mantém pelo sangue que corre em suas veias; as plantas necessitam da seiva; a água é necessária para que as coisas (inclusive o ser humano) cresçam e frutifi quem; até para que o calor exista é necessário ter água. Enfi m, para Tales, a água está na origem e constitui todas as coisas vivas que existem no cosmos. Tales é lembrado também como matemático e astrônomo. Esse não é somente o caso dele, mas de praticamente todos os autores chamados pré-socráticos, uma vez que eles foram concebidos pelas gerações posteriores não apenas como fi lósofos, no sentido estrito do termo, mas como cientistas: físicos, matemáticos, astrônomos, mú- sicos, médicos. Isto se explica pelo fato de que não existia uma divisão das ciências à época, e todo o pensamento investigativo de cunho racional, especulativo e/ou empí- rico, atendeu, em princípio, pelo nome de fi losofi a Dos escritos de Tales nada se guardou. As informações a seu respeito provêm de Aristóteles e de outros fi lósofos que fi zeram, já na Antiguidade, uma espécie de história da fi losofi a. Antes de passarmos aos outros líderes da Escola de Mileto e aos demais fi lósofos da natureza, é preciso alertar que não é nossa intenção neste capítulo fazer qualquer julgamento dos autores, no sentido de aferir a verdade ou a falsidade em suas con- clusões. Mais do que concordar ou discordar deles, o que nos importa é perceber o imenso esforço intelectual que fi zeram para estabelecer uma forma de compreender o mundo, diferente da religiosa. Mais do que avaliar, por exemplo, se Tales estava certo ao atribuir à água a arkhé do universo, o que nos interessa é entender que as suas conclusões decorriam de uma racionalidade diferente da mítica. Anaximandro, discípulo de Tales, chega a conclusões diferentes das de seu mestre quanto ao estabelecimento da arkhé, já que não acreditava que o mundo tinha como princípio original um elemento limitado. Dessa forma, para ele, existia, antes de qual- quer coisa, o Ápeiron, que podemos traduzir por ilimitado ou indeterminado. É desse algo ilimitado, mas de certa forma material, porque não se trata de nenhuma espécie de deus, que decorrem todas as coisas, principalmente os quatro elementos – água, ar, terra e fogo – que, juntos, compõem o universo. Assim como Tales, Anaximandro também é considerado um astrônomo eminente, pois teria elaborado teorias a res- peito da mecânica celeste. Anaxímenes, discípulo de Anaximandro, é o terceiro e, ao que consta, último líder da Escola de Mileto. Encontrando-se em uma posição a meia distância entre Tales e o nascimento da fi losofi a: os fi lósofos da natureza e sócrates Fundamentos FilosóFicos da educação 36 Anaximandro, Anaxímenes conclui que o princípio originário e constitutivo de todas as coisas é o Pneuma Ápeiron, ou seja, um ar infi nito, um ar ilimitado. O ar como arkhé é menos abstrato do que o ilimitado de Anaximandro, porém é menos palpável do que a água de Tales. Para Anaxímenes, o ar é o princípio de tudo, na medida em que permite a vida das pessoas, que, sem ele, perecem. O ar possibilita a existência do fogo; todas as coisas existentes são formas do ar; mais rarefeito ele é fogo; mais condensado é água, é pedra, enfi m, é a terra. Todas as coisas provêm do processo de rarefação e condensação do ar. O ar é vida, pois, como afi rma o próprio Anaxímenes: “Como nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o cosmo sopro e ar o mantém” (PRÉ-SOCRÁTICOS, 1989, p. 23). Da região da Jônia, da cidade de Samos, perto de Mileto, vem Pitágoras (580-497 a.C.), talvez o mais célebre e ao mesmo tempo enigmático pensador pré-socrático. Também dele não resta nada do que escreveu, até porque, envolto em uma seita órfi ca – em honra ao deus Dionísio – que ele próprio teria criado, seus escritos deveriam ser guardados e a eles apenas os iniciados teriam acesso, proibindo-se a divulgação para o público em geral. Nessa seita religiosa e mística, uma das doutrinas dizia respeito à transmigração das almas, ou seja, para sua purifi cação, a alma teria um ciclo sucessório de reencarnações. Essa ideia da alma distinta do corpo, como dois seres diferentes, tem repercussões fi losófi cas que vão encontrar em Platão um acabamento lógico, o chamado dualismo metafísico, no qual a alma é concebida como integrante do mundo das ideias e o corpo, do mundo sensível. Pitágoras defendia a ideia de que existia uma diferença entre o mundo dos astros (o mundo celeste) e o mundo terrestre:
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