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J A^>intiwi FC>jw»T*^> 2 ,00 Capítulo I Os direitos do homem segundo a Declaração de 1789 40. Os dezessete artigos da Declaração adotados em 27 de agosto de 1789 pela Assembleia Constituinte não fazem mais do que traduzir em fórmulas todo um conjunto de tendências e ideias, por sua vez oriundas de uma longa ela- boração. É essa génese da Declaração que examinaremos pri - meiro (seção 1), para compreender melhor a concepção dos direitos do homem nela consagrada (seção 2). 1. GÉNESE DA DECLARAÇÃO 41. Antes de analisar as fontes diretas da Declaração (§ 2), nas quais os constituintes se inspiraram amplamente, é ne- cessário evocar suas fontes remotas (§ 1), igualmente impor- tantes, na medida em que moldaram lentamente as menta- lidades que a tomaram possível. 1) As fontes remotas 42. Um a herança da civilização oc idental . A mito- logia política por muito tempo apresentou a Declaração como um mandamento absoluto, início de uma nova era em total ruptura com o passado. Essa visão, por mais s im- 36 LIBERDADES PÚBLICAS plificadora que seja, encerra uma verdade essencial: duran- te niilênios, a ideia de que o homem, como tal, tem direitos oponíveis aos outros homens e à sociedade ficou ampla- mente alheia ao espírito humano. Costuma-se esquecer, quando se deplora o freqijente desprezo dos direitos do homem no mundo contemporâneo, que o reconhecimento deles data apenas de um pouco mais de dois séculos e que eles rompem com práticas niultisseculares. Contudo, a Declaração, embora marque um começo, é também um ponto de chegada e o fruto de uma longa gesta- ção. Os constituintes de 1789 são herdeiros, modelados por uma civilização. As sucessivas correntes de pensamento que ao longo dos séculos se chocaram ou se misturaram, forma- ram as mentalidades, as estruturas intelectuais, sem as quais a Declaração seria inconcebível. O apetite de liberdade por ela atestado só pode manifestar-se num meio que já teve uma experiência da liberdade: não se deseja o que, por não o ter provado, não se poderia imaginar. Com mais razão ainda, não se pode fazer sua teoria. De fato, a França do Aiitigo Re- gime curiosamente aliou a intolerância e a arbitrariedade, às vezes levadas ao extremo, ao hábito, e ao gosto, das audácias do pensamento e da linguagem. A liberdade com que se ex- pressam, mesmo sobre temas que poderiam irritar o poder, mesmo sob o mais autoritário dos reis franceses, um Molière ou um L a Fontaine, basta para atestá-lo. Inventariar as fontes remotas da Declaração seria, por- tanto, analisar todos os componentes da civilização ociden- tal no século XV I I I : sobrevivências do pensamento antigo, tal como gerações o haviam conhecido e refratado, movi- mentos intelectuais do século XV I , com a dupla contribui- ção do humanismo e da Reforma, prolongados, através da época clássica, pelos questionamentos dos liberhnos, pelo racionalismo cartesiano; não poderíamos enumerar tudo nem analisar tudo. Destacaremos desse conjunto apenas dois elementos fundamentais: a contribuição cristã, de um lado, e, do outro, a influência da Escola do direito da natu- reza e das pessoas. LIVRO 1 37 A. A contribuição cristã 43. A Declaração francesa, ao contrário das declara- ções americanas que estudaremos mais adiante, não pro- cede de uma inspiração religiosa, e a vaga referência ao "Ser supremo" que nela encontramos parece ser mais uma formalidade do que ato de fé. Com maior razão ainda, não se pode detectar nela uma influência cristã direta. E , no entanto, a obra decerto só podia emanar de um meio mo- delado por séculos de cristianismo, principalmente em dois pontos essenciais. 44.1?) A dignidade humana. A própria noção de "direi- tos do homem" supõe uma civilização em que a dignidade da pessoa humana se mostra uma evidência. Alguns filó- sofos do mundo anrigo a haviam pressenrido. Mas o cris- rianismo, nesse ponto herdeiro da tradição judaica enrique- cida e renovada, deu-lhe os fundamentos que progressiva- mente a impuseram. Segundo o ensinamento cristão, o ho- mem deve sua dignidade à sua origem e, a um só tempo, ao seu fim: criado por Deus, à imagem de Deus, e chamado a um destino eterno que transcende a tudo o que pertence ao campo temporal. Como origem e fim são comuns a todos, todos participam igualmente da dignidade que eles funda- mentam. É o que São Paulo ensina {Gálatas, E l , 28): "Já não há grego, nem judeu, nem escravo, nem homem Uvre." Igualdade e universalismo que a prática das sociedades des- mentirá com muita freqiiência, mas cujo princípio, pelo me- nos, vai impor-se às consciências, a ponto de sobreviver, para muitos espíritos contemporâneos, ao fundamento reli- gioso que, historicamente, determinou-lhe o advento. 45. 2?) Cr i s t ian ismo e limitação do poder. Na concep- ção antiga, o homem, parte da Cidade*, nela encontra sua * No original, cilé, com o sentido de cidade-éstado. Para marcar a dis- tinção com o outro sentido de cidade, meio geográfico e social, cité será tradu- zida por Cidade (inicial maiúscula). (N. da T.) 38 LIBERDADES PÚBLICAS razão de ser e não lhe pode opor as exigências de sua cons- ciência pessoal: o poder é fundamentalmente totalitário. O protesto de Antígona invocando, contra a tirania das leis da Cidade, as leis "não escritas" dos deuses, é apenas uma exceção, que não desperta muito eco nos espíritos. Ao con- trário, o preceito evangélico "Da i a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" fundamenta a limitação dos d i - reitos da Cidade. César, ou seja, o poder, excede sua com- petência se atenta contra "o que é de Deus" . O súdito, nes- se ponto, já não é obrigado à obediência: sua resistência se torna legítima, já que o poder se aventurou num campo que escapa à sua jurisdição. Desde então há, portanto, um limite ao poder. De fato, essa vontade de subtrair à vontade do Estado o campo da consciência religiosa se manifestará, a despeito dos incessantes conluios entre autoridade tem- poral e autoridade espiritual que tentarão restabelecer na cristandade a anriga unidade do poder, ao longo de toda a história, desde os primeiros mártires até a Reforma e a to- dos os seus prolongamentos. A distinção entre o temporal e o espiritual, subtraindo à ação do poder a área da cons- ciência, tornou possível e necessária a limitação da onipo- tência estatal. Portanto, se a Declaração não extraiu nada diretamen- te do ensinamento cristão, pelo menos deve-ihe o essen- cial: a formação das mentalidades que a tornavam possível. B. A Escola do direito da natureza e das pessoas 46. Es tado de natureza e Contrato social . Esse im - portantíssimo movimento de pensamento pôs em circula- ção os temas fundamentais que, depois de os ter elaborado, seus inspiradores diretos, principalmente Rousseau, trans- mitirão aos constituintes de 1789. A Escola se limita a dar prosseguimento a certas elabo- rações doutrinárias anteriores, mormente a teoria do direito natural, oriunda do pensamento antigo, que adquiriu toda a sua relevância com Santo Tomás de Aquino. Síntese de ele- LIVROl 39 mentos extraídos dos juristas de Roma e de elementos cris- tãos, a teoria do direito natural afirma que existe um Deus anterior à formação do Estado, um corpo de regras que a ra- zão pode descobrir ao analisar a natureza do homem tal co- mo Deus a criou. Esse direito, por conseguinte, impõe-se ao poder, que deve respeitá-lo. As regras prescritas pela auto- ridade pública, que formam o direito positivo, recebem sua força obrigatória de sua conformidade ao direito natural. Elas a perdem quando dele se afastam. Prosseguida no século XV I pelos espanhóis Suarez e Vitoria, a concepção medieval do direito natural adquire, com Grócio (Hugo de Groot), que publica em1624 seu De jure belli ac pacis, e mais tarde com Pufendorf {Direito da na- tureza e das pessoas, 1672) traços novos, que grande número de juristas vai difundir e que, embora interessem a todos os ramos do direito, notadamente o direito internacional, terão repercussões essenciais na teoria dos direitos do homem. Com Grócio, o direito natural se separa de seu funda- mento religioso. Claro, a concepção anterior admitia que a razão humana sozinha podia, afora qualquer revelação, des- cobrir suas regras. Mas estas eram apenas o reflexo do de- sígnio de Deus sobre o mundo. Para Grócio, ao contrário, o direito natural é cognoscível sem nenhuma referência a um princípio sobrenatural. Esse racionalismo, que se parece muito com o de Descartes, marcará fortemente os espíritos. A Escola, por outro lado, difunde amplamente as duas teses fundamentais do estado de natureza e do contrato so- cial, necessárias, a seu ver, para explicar a existência da So- ciedade, que não lhe parece um dado primeiro que dispen- se justificação. O estado de natureza precede a formação da sociedade. Nele o homem não é sujeito a nenhuma autori- dade, é livre. A sociedade nasce de um acordo firmado en- tre os homens, desejosos de sair do estado de natureza: é o contrato social, frmdamento de todo grupo humano. 47. Controvérsias . A partir desses temas comuns a todos, os autores divergem sobre o sentido e o conteúdo. 40 LIBERDADES PÚBLICAS tanto do estado de natureza como do contrato social. Para Hobbes (Leviatã, 1651), o estado de natureza gera apenas uma intolerável anarquia: a liberdade só traz proveito aos fortes, que esmagam os fracos e dilaceram uns aos outros. O contrato social atende, pois, a uma necessidade: se os homens criam um poder, é para escapar ao caos. Por conse- guinte, não puderam subtrair, ao jugo do poder assim cria- do, nenhuma parcela de sua liberdade original: entregaram- se inteiros a ele, para sobreviver. O contrato social funda, portanto, uma alienação total e um poder totalitário, s im- bolizado por Leviatã, o monstro bíblico. Se a doutrina do contrato social redunda, com Hobbes, na justificação do absolutismo, com Locke, ao contrário, ela conduz à limitação do poder (Ensaio sobre a origem, a exten- são e o verdadeiro fim do governo civil, 1669). Para ele, o esta- do de natureza não é um inferno do 'qual se deva evadir, ainda que à custa de uma alienação total. A passagem para o estado de sociedade marca somente a busca refletida de um maior bem-estar. Portanto, o homem pode, antes de firmar o pacto social, calcular e dosar o que deb<a à socieda- de e o que guarda para si. O objetivo do contrato é precisa- mente fazer a partilha entre o que o homem reserva para si de sua liberdade inicial e o que entrega à autoridade do po- der que ele cria. Assim aparece a ideia de que o homem recebe, da na- tureza, direitos fundamentais que ele conserva, em virtude do contrato, no seio da sociedade, e que são oponíveis ao poder. Sob essa forma, a Escola do direito da natureza e das pessoas contém em germe os princípios fundamentais das declarações americanas e francesas do final do século XVI IL 2) As fontes diretas 48. Na origem imediata da Declaração de 1789, há, aci- ma de tudo, a influência de certo número de mestres do pensamento, dos quais devemos citar, em primeiro lugar. LP/ROl 41 Jean-Jacques Rousseau. Há, de outro lado, o precedente constituído pelas declarações já elaboradas nos Estados Un i - dos, no momento da independência. A. Os mestres 49. Influência de Jean-Jacques Rousseau. Foi ela que marcou mais profundamente os autores da Declaração. É clássico comparar seu artigo 1°: "Os homens nascem livres" com a frase com que se inicia O contrato social: "O homem nasceu livre". Mas O contrato social é uma obra de grande complexidade: a Declaração, obra de uma assembleia polí- tica, não podia seguir todos os seus matizes. Só conservou um esquema seu, simplificado e amplamente deformado. Além disso, outras influências, principalmente a de Montes- quieu, vão equilibrar e por vezes contrariar a de Rousseau. 50.1?) A doutrina do Contrato social. Não é neces- sário entrar aqui na análise profunda de um pensamento sobre o qual, aliás, os melhores intérpretes não são unâni- mes. Mas é preciso, não obstante, esboçar suas linhas mes- tras para compreender o que a Declaração conservou dele e o que descartou. Rousseau parte dos postulados fundamentais da Esco- la do direito da natureza e das pessoas: o estado de nature- za, no qual o homem é livre, e a conclusão do contrato so- cial que funda o estado de sociedade. Mas o contrato social tal como Locke o concebera - um pacto pelo qual os ho- mens determinam os direitos que reservam para si e aque- les que deixam à sociedade que criam - , Rousseau o critica por mutilar a liberdade integral que caracterizava o estado de natureza. Sua ambição é superar a cota mal dividida en- tre poder social e liberdade com que Locke se contentava e construir uma sociedade na qual o homem recuperasse a plena liberdade da natureza. Pensa consegui-lo dando, ao poder inerente à sociedade, um alicerce tal que lhe seja im - possível tornar-se opressivo. Pretende substituir a oposição 42 LIBERDADES PÚBLICAS tradicional entre poder e liberdade por uma síntese que re- concilie liberdade e poder. Para Rousseau, a superação do antagonismo entre po- der e liberdade pressupõe primeiro que, pelo contrato so- cial, o homem se envolva por inteiro, sem nada guardar para si. Sob essa condição, de fato, os homens, no seio da sociedade, tornam a ser todos iguais, como o eram no esta- do de natureza. Nenhum deles pode pretender impor aos outros sua própria vontade. A igualdade, tornando impos- sível a subordinação do honiem a outro homem, funda a l i - berdade. Nessa sociedade de iguais, onde estará então o poder? Na vontade geral. No contrato social, os homens decidiram submeter-se a ela. Obedecendo-lhe, cada qual faz, pois, o que escolheu fazer e, assim, obedece apenas a si mesmo: é livre. O que será a vontade geral? O ideal seria, é evidente, que ela refletisse a unanimidade das vontades particulares. Mas Rousseau sabe que, num gmpo, a unanimidade é ex- cepcional. A vontade geral será, portanto, a da maioria. Mas então, a minoria, obrigada a obedecer a uma decisão que não aprovou, será ainda livre? Rousseau descarta a objeção: o que todos os homens escolheram no contrato social é, de fato, a obediência à vontade geral. O voto revela à minoria que ela se enganou sobre o que era a vontade geral no caso considerado. Desse modo, liberta de seu erro, ela tem de aliar-se à verdadeira vontade geral, aquela que a maioria definiu. Aliás, a vida na sociedade regenerada pelo contra- to social tem necessariamente o efeito de remodelar o ho- mem, de tal modo que todas as vontades caminhem es- pontaneamente no mesmo sentido. Aí também esse tema do novo homem gerado por uma sociedade enfim justa será encontrado no marxismo. Mas, para que o homem possa reconhecer sua vontade na vontade geral, ainda é preciso que tenha participado pessoalmente de sua elaboração. Para Rousseau, a vontade não se delega: ninguém pode pretender querer em nome e em lugar de outro. A decisão tomada por uma assembleia t/VRO 1 43 de representantes eleitos reflete apenas suas vontades par- ticulares, não a vontade geral: obedecer a essa decisão é obedecer a outros homens, portanto, dei:<ar de ser livre. A liberdade supõe necessariamente a democracia direta, na qual cada um concorre pessoalmente para a vontade geral e, obedecendo a esta, só obedece a si mesmo. A democra- cia representativa não passa de uma falsa aparência. Se a elaboração pela vontade geral das regras da vida em sociedade, ouseja, a lei, é a condição necessária da l i - berdade, ela também é sua condição suficiente. A estrutura dos órgãos que asseguram a gestão da sociedade é, para Rousseau, um problema secundário: já que a ação deles se limita à execução das leis, ou seja, à tradução da vontade ge- ral, ela não pode ser opressiva. Pouco importa, por conse- guinte, o modo de designação deles. O soberano, ou seja, o povo, que evidentemente não pode acrescentar ao encargo da elaboração das leis o da execução delas, pode, pois, de- sonerar-se dele sobre um monarca. Assim, a submissão total e exclusiva dos homens à vontade geral, objeto do contrato social, faz com que esca- pem a qualquer sujeição a uma vontade particular. Obede- cendo à lei, expressão da vontade geral para cuja formação eles concorreram, é a si mesmo que cada um deles obede- ce: logo, é livre. 51. 2?) Influência de Rousseau sobre a Declaração. Uma assembleia polírica não é um cenáculo de intelectuais. Do esquema que acabamos de esboçar, os homens de 1789 conservaram alguns temas. Descartaram outros, não menos essenciais. a) O que foi conservado foi acima de tudo o ponto de partida, ou seja, a necessidade de atribuir, como objetivo à sociedade, a proteção da liberdade natural do homem, e o ponto de chegada: a ideia de que a lei, expressão da vonta- de geral, não pode, por natureza, ser um instrumento de opressão. Esse culto da lei dominou todo o pensamento l i - beral. Inspirou o direito positivo, que reserva ao legislador, com a exclusão do executivo, a elaboração do estatuto das 44 LIBERDADES PÚBLICAS liberdades públicas, ou pelo menos, a partir de 1958, de suas "garantias fundamentais". b) O que foi perdido de vista, em compensação, foi o pro- cesso que liga, em Rousseau, o ponto de partida ao ponto de chegada. A ideia - fundamental em seu sistema - segun- do a qual o homem, no contrato social, se entrega inteiro à sociedade sem nada guardar para si, teria condenado o pró- prio princípio de uma Declaração dos direitos, uma vez que esta não é mais do que um catálogo dos direitos que o ho- mem pode opor ao poder. Decidindo redigir a Declaração, os constituintes se juntavam ao pensamento de Locke, atra- vés do exemplo das Declarações americanas por ele inspi- radas, contra a doutrina de Rousseau. Afastaram-se mais ainda dela atribuindo à lei elabora- da pelos representantes da nação o poder de exprimir a vontade geral, que Rousseau lhe negava formalmente. Era difícil a eleitos segui-lo no terreno da democracia direta: te- ria sido, da parte deles, uma renúncia à sua própria missão, o que seria quase impossível esperar deles. Mas, transferindo do povo para a Assembleia dos representantes o poder de traduzir a vontade geral, a Declaração deturpou gravemen- te o pensamento de Rousseau. 52. 3P) Outras contribuições doutr inais . A geração de 1789 estava imersa no clima intelectual do século XV I I I : a "filosofia das Luzes" de que ela se nutrira sintetiza, vu l - garizando-os, temas próprios de autores no entanto muito diferentes. a) De Montesquieu foram extraídos sua desconfiança fundamental para com o poder e o princípio, dela decor- rente, da separação dos poderes. O otimismo de Rousseau condenava ambos: a reconciliação, por ele esperada, entre o poder e a liberdade o conduzia a descartar as precauções contra a arbitrariedade que Montesquieu julga necessárias seja qual for o detentor do poder, já que "todo homem que detém poder é levado a abusar dele". Os constituintes de 1789, na verdade, são sensíveis às duas influências: o oti- LIVRO 1 45 mismo de Rousseau, a esperança de um poder seividor da liberdade, eles o aplicam à Assembleia e à lei que ela elabo- ra. O pessimismo de Montesquieu se concentra, na mente deles, no executivo, encarnado, em 1789, no rei e na corte, cuja tradição arbitrária eles temiam. Assim, as influências doutrinais se juntam às preocupações concretas, a separa- ção dos poderes e a subordinação do executivo à lei entram, pela Declaração, na tradição política francesa. b) Ao lado de Montesquieu, a influência dos fisiocratas é perceptível no culto da propriedade e também no libera- lismo económico que, embora não se afirme no texto da Declaração, domina o espírito de seus autores. O teísmo de Voltaire, com a invocação liminar ao "Ser supremo", e, so- bretudo, o eco de sua ação em prol da tolerância religiosa, que inspira a proclamação da liberdade de consciência, são igualmente perceptíveis. É toda a "filosofia das Luzes" que se encontra na Declaração. 6. Os precedentes: as declarações americanas 53.1?) Origens das declarações americanas. No mo- mento em que se revoltam contra sua metrópole, as colónias inglesas da América do Norte, que vão tornar-se em 1776 os Estados Unidos da América, são marcadas por três influên- cias, que vão convergir nas declarações dos direitos que pre- cedem suas consrituições. a) Foi sobretudo a tradição puritana, que os "pais pere- grinos" desembarcados do Mayflower, primeiros imigran- tes, verdadeiros fundadores, legaram aos seus descenden- tes. Profundamente religiosa, ela implica a liberdade da consciência diante do Estado, já que foi para preservar sua fé perseguida pela autoridade do soberano, chefe da Igreja anglicana erigida em religião de Estado, que eles fugiram de seu país. b) Nem por isso renegaram a tradição do liberalismo in- glês. A história da Inglaterra é balizada por uma série de atos que vêm restringir os direitos da Coroa, inicialmente 46 LIBERDADES PÚBLICAS onipotente, tanto perante o Parlamento, cuja autoridade aumenta a cada ato, como perante o conjunto dos súditos, impondo ao rei certo número de proibições limitadas, mas precisas. A Carta Magna, imposta em 1215 a João sem Terra por seus barões revoltados, abre a série. Vêm em seguida a Petição dos di- reitos (1627), o ato de habeas corpus (1679) que, coroando uma evolução anterior, organiza de maneira eficaz a proteção dos sú- ditos contra as prisões arbitrárias, o Bill ofRights (1688), que con- dena principalmente a criação pelo rei de tribunais de exceção, enfim, o Act of Statlement, imposto em 1701 à dinastia de Hanover como condição de seu acesso ao trono da Inglaterra. Todos esses textos têm traços em comum. 1? Acima de tudo, tratam ao mesmo tempo da liberdade política, ou seja, do respei- to ao Parlamento e aos seus direitos pela Coroa, e da liberdade das pessoas. Assim, a ênfase é dada, já na origem do liberalismo, à relação entre o regime constitucional e a garantia dos direitos do súdito diante do poder. 2? De outro lado, e sobretudo, todos esses textos não procedem de nenhuma ideologia: respondendo a abusos precisos, procuram afastá-los por meios eficazes. Esses meios são essencialmente procedimentos, segundo a tradição in- glesa que não concebe que um direito possa ser afirmado abstra- tamente, fora de um procedimento que lhe permita a aplicação efetiva. Daí resulta que os atos que fundamentam a liberdade na Grã-Bretanha sejam inseparáveis do meio institucional e jurídico no qual se inserem. Seu pragmatismo, ao mesmo tempo que lhes assegura a eficácia, limita-lhes, portanto, a influência fora de seu país: são por demais especificamente ingleses para obter uma au- diência universal, e os procedimentos são menos exportáveis do que as ideias. Por isso não exerceram uma influência direta sobre os autores da Declaração de 1789. No entanto, através de Montes- quieu e de Voltaire, que haviam estudado, aliás não sem alguns erros de interpretação, as instituições inglesas, a ideia de uma se- gurança jurídica organizada pelos textos não é estranha à Decla- ração. Mas foi sobretudo através dos modelos americanos, fiéis à tradição liberal inglesa, que esta exerceu suainfluência na França. c) Enfim, as declarações americanas são, como a decla- ração francesa, muito inspiradas pela filosofia do século XVIII. LIVRO 1 47 Seus autores participam do espírito do tempo: conheciam Locke, Montesquieu e Rousseau. Por isso os documentos que elaboram, sem abandonar o pragmatismo e a preocupação de criar procedimentos eficazes herdados dos atos ingleses, vão ampliar as perspectivas e afirmar princípios que têm um alcance geral, que lhes garantirá a propagação. 54. 2?) Textos. Os principais documentos que concreti- zam essas tendências são: 1 / A Declaração de independência dos Estados Un i - dos, de 4 de julho de 1776, redigida por Jefferson. Ela se abre com um preâmbulo, cuja perspectiva universalis- ta é impressionante, e que continua uma das bases do espírito pú- blico americano: "Consideramos evidentes por si sós as seguintes verdades: todos os homens são criados iguais; são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; dentre esses direitos en- contram-se a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Os gover- nos são estabelecidos pelos homens para garantir esses direitos." 2 / As Declarações dos direitos que precedem a maioria das Constituições elaboradas por cada uma das treze coló- nias, assim que a independência as faz alcançar a qualidade de Estados. A mais importante é a primeira cronologica- mente, a da Constituição do Estado de Virgínia de 12 de j u - nho de 1776. Nela encontram-se a inspiração religiosa da Declaração da independência e da tradição puritana, mas também a influência da filosofia do século, notadamente Locke, que inspira as afirmações iniciais: "Todos os homens são por natureza livres e independentes." Mas a tradição inglesa reaparece com o enunciado de regras precisas e de procedimentos próprios do meio jurídico local. Devemos deixar de lado as dez primeiras emendas à Consti- tuição federal de 17 de setembro de 1787. Em seu texto inicial, de fato, ela não. comportava declaração dos direitos. O Estado fede- • ral não parecia destinado a ter relações diretas com os cidadãos. 48 LIBERDADES PÚBLICAS Somente a partir de 1789 é que aparece a necessidade de lhes as- segurar proteção contra ele, afirmando e regulamentando certo número de liberdades. Essa é a razão de ser das dez primeiras emendas elaboradas entre 1789 e 1791. Posteriores à Declaração francesa, não puderam, portanto, influenciá-la. Aliás, a preocu- pação processual fica ainda mais nítida aqui do que nas declara- ções dos Estados: por exeniplo, a IV emenda prescreve que o mandado necessário para toda busca ou apreensão "sempre de- verá conter a descrição do lugar onde deve ser feita a busca, assim como a das pessoas ou das coisas que devem ser aprendidas". Mas, embora as emendas não interessem ao estudo das fontes da Declaração francesa, conservam uma importância capital como disposições sempre atuais do direito positivo dos Estados Unidos. 55. 3?) Influência das declarações americanas sobre a Declaração francesa, a) Foi decisiva no que tange ao pró- prio princípio de uma Declaração na abertura da Constituição. Aos constibiintes, a Aniérica fornecia um modelo, muito mais taxativo do que poderiam ter sido os resultados das contro- vérsias relativas às ideias de Locke e de Rousseau. O mode- lo era conhecido, e admirado. A participação da França na Guerra da Independência, a estada de Franklin em Paris ha- viam criado laços estreitos entre os dois países. L a Fayette, um dos chefes da nobreza liberal, cujo papel foi importante por ocasião da redação da Declaração, reunira em seu es- critório, numa mesma moldura, o texto da Declaração de Virgínia e, ao lado, uma folha em branco, reservada à futura Declaração francesa. h) A influência americana fica muito menos sensível sobre o conteúdo da Declaração. Não só a inspiração religio- sa está ausente, mas, sobretudo, o pragmatismo e a preo- cupação processual desaparecem em favor das afirmações de princípio. As analogias se devem acima de tudo à iden- fidade das fontes ideológicas em que se abeberaram os constituintes dos dois lados do Atiântico. Parece haver mais paralelismo do que imitação, o que se explica pela diferen- ça das mentalidades e dos meios. LÍVRO 1 49 Não seria pertinente inventariar as obras consagradas às di- versas correntes de pensamento analisadas nesta seção. Assinala- remos somente: Sobre a evolução geral das doutrinas, as obras clássicas de Prélot, Histoire des idées politiques, Dalloz, 1959, e de Jean-Jacques Chevalier, Les grandes ceuvres politiques, Armand Colin, " U " , 1970. Sobre a dimensão cristã dos direitos do honiem: J . -F . Six, Religion, Église et Droits de 1'homme, Desclée de Brouwer, 1991; G . Thils, "Droits de l'homme et perspectives chrétiennes", Cahiers de la Revue théologique de Louvain, 2 ,1981. Para uma abor- dagem jurídica geral da noção de dignidade humana, sobretudo através do pensamento de J . Maritain: H . Moutouh, " L a dignité et le droit", RDP, 1999, p. 159. Sobre J . -J . Rousseau: a edição do Contrai social por B. de Jouvenel, precedida de um Essai sur la po- litique de Rousseau, 1947, e a apresentada, em 1971, por R. G . Schwartzenberg; Deratré, Rousseau et la société philosophique de son temps, 1950. Para uma síntese pessoal das origens e da evolu- ção: J . Mourgeon, Les droits de 1'homme, PUF , "Que sais-je?", 1990; entre as inúmeras obras coletivas suscitadas pelo bicente- nário da Declaração de 1789, citaremos: A . de Baeque, Uan I des droits de 1'homme, CNRS , 1988; G . Conac, M . Debène, G . Teboul, La Déclaration des droits de 1'homme et du citoyen de 1789, histoire, analyses et commentaires. Económica, 1993; St. Riais, La Déclara- tion des droits de Lhomme et du citoyen, Hachette, "P lur ie l " , 1988; número especial, " L a Déclaration des droits de 1'homme et du ci- toyen", Droits, n? 8,1988; número especial, ' L e bicentenaire de la Révolution française", RDP, n° 3, 1989. 2. CARACTERÍSTICAS DA DECLARAÇÃO 56. Não é possível compreender a Declaração sem an- tes ter tomado consciência do sentido e da função que seus autores lhe atribuíam. O que pretenderiam fazer ao elabo- rar uma "declaração dos direitos do homem e do cidadão"? O que punham sob esse rótulo? Somente essa análise pré- via permite evitar os contra-sensos que se costumam co- meter a propósito da Declaração (§ 1) e compreender seu espírito (§ 2) . 50 LIBERDADES PÚBLICAS 1) A noção de "Declaração dos direitos" 57. O título adotado pelos constituintes diz muito cla- ramente o que pretenderam fazer: basta comentar as pala- vras que o compõem. A. Uma Declaração 58. Observações gerais. O preâmbulo da Declaração revela a intenção de seus autores: eles "expõem", "declaram", "lembram". Isso acarreta, no tocante à nabireza e ao alcance do ato elaborado, consequências essenciais. a) A Declaração, ato recognitivo. A Declaração não pre- tende ser um ato criador. Os direitos que ela enuncia exis- tem, são inerentes à natureza do homem. Logo, seria ab- surdo pretender criá-los. Basta constatar sua existência e registrá-la. b) Caráter pedagógico da Declaração. Mas esses direitos foram "esquecidos" ou "ignorados". Cumpre então torná- los "incontestáveis". F^ra isso, um simples enunciado não poderia bastar: também é necessária uma exposição que traga uma explicação adequada para convencer. A Decla- ração propõe, portanto, uma sistematização das relações entre o homem e a sociedade. Seu caráter doutrinal, sua preocupação de ensinar contrastam com o empirismo que marca os documentos mais recentes, pelo menos no mun- do liberal. c) Ausência de caráter organizador. Os constituintes sa- bem perfeitamente que a constatação dos direitos do ho- mem não basta para assegurar o respeito aeles. Quando foram "declarados", falta "garanti-los". Mas as duas opera- ções, para eles, são distintas: a Declaração indica os direi- tos que reclamam uma garantia, mas a organização dessa garantia compete à Constituição, segundo a formulação do artigo 16 da própria Declaração: "Toda sociedade na qual... a garantia dos direitos não é assegurada não tem constitui- ção." De fato, o Título 1° da Constituição de 3 de setembro LIVRO 1 51 de 1791 é consagrado a essa garantia. Trata-se, portanto, de um procedimento em dois tempos, e não poderíamos criti- car os autores da Declaração por terem, nesta, ignorado os problemas trazidos pela inserção dos direitos na realidade, uma vez que se reservavam tratá-los numa segunda etapa. Ocorre, porém, que sua confiança na bondade da natureza humana levou-os a esperar muito, no terreno prático, da própria Declaração. Contar apenas com a adesão das mentes aos "princí- pios simples e incontestáveis" que lhes são expostos para preve- nir a volta das "infelicidades públicas" é dar prova de um otimis- mo raramente confirmado pelos fatos. 59. Autoridade da Declaração. As características que acabamos de ressaltar levaram certos representantes da Dou- trina a se recusar a ver na Declaração um ato jurídico no sentido preciso do termo. Na realidade, seus autores a consideraram indissociável da Conshtuição de 1791. Foi publicada em sua abertura, o que lhe conferia um valor constitucional. Perdeu esse valor com a ab-rogação da Constitijição. As do ano I e do ano I I I foram precedidas de sua própria Declaração. Mas, na falta de autoridade jurídica, ela adquiriu uma autoridade inte- lectiial, que não parou de crescer e que justifica sua reintegra- ção no direito positivo com a Constituição de 1958 e a juris- pmdência do Conselho Constitucional. B. A Declaração, exposição dos direitos naturais 60. Como acabamos de ver, os direitos que a Declara- ção constata são "direitos naturais": não é a sociedade que os confere, mas a natureza; são inerentes à essência do ho- mem, fazem parte, de certo modo, da própria noção de ser humano. Isso traz uma série de consequências. 61. 1?) Conseqiiência sobre as características dos direitos, a) Por serem "naturais" , os direitos são necessa- riamente inalienáveis: o homem não pode renunciar a eles, 52 LIBERDADES PÚBUCAS mesmo voluntariamente, sob pena de deixar de ser homem. Afortiori, os terceiros não podem dispor deles. b) A natureza humana é idêntica em todos os homens: assim, os direitos que dela decorrem encontram-se igual- mente em todos. "Os homens nascem ... iguais em direitos" (art. 1°) porque nascem todos igualmente homens. A igualdade é o corolário necessário do caráter natural dos direitos. c) A universalidade está diretamente vinculada a isso. Esse caráter universalista garantirá a propagação da Decla- ração no tempo e no espaço. Afirmando os direitos ineren- tes à natureza do homem, ela valia para todos os homens. A rejeição das discriminações de todo tipo decorria neces- sariamente do texto de 1789. 62. 2?) Consequências sobre o conteúdo dos direitos. Os direitos "naturais" preexistem à sociedade. Isso determi- na-lhes essencialmente o conteúdo. a) Não poderia haver crédito quando não existe credor. Anteriores à sociedade, os direitos "naturais" não podem consistir em créditos do homem para com ela. Logo, não é de espantar não encontrar, na Declaração, direitos que per- mitam ao homem pedir à sociedade prestações positivas, tais como as encontramos nos documentos contemporâ- neos (direito ao emprego, à cultura, e tc ) . Seria contrário à noção de "direitos naturais" tal como a entendiam. Os di - reitos de 1789 impunham à sociedade só uma obrigação negativa: nada fazer que paralisasse seu exercício. Traçam limites para a ação do poder que, tendo vindo depois deles, deve respeitá-los. São poderes de fazer, não poderes de exigir, liberdades, não créditos. Os constituintes, entretanto, não ignoraram totalmente a obrigação, da sociedade, de prover às necessidades fundamentais cuja insatisfação paralisa o exercício das liberdades. Mas é no Tí- tulo 1? da Constituição, consagrado à garantia dos direitos, que tratam disso: solução conforme à lógica deles, e que mostra que haviam percebido a necessidade, para que os direitos ficassem LIVRO 1 53 "garantidos", ou seja, pudessem exercer-se de modo efetivo, de um mínimo de prestações sociais. Aliás, eles definem estas com uma precisão e uma preocupação com realidades que obrigam a amenizar a crítica, muitas vezes dirigida à Declaração, de ter ig- norado o homem concreto: "Será criado e organizado um estabe- lecimento geral de assistência pública para educar as crianças abandonadas, aliviar os pobres enfermos e fornecer trabalho aos pobres válidos que não tenham conseguido encontrá-lo... Será criada e organizada uma Instrução pública, comum a todos os ci- dadãos, gratuita no tocante às partes de ensino indispensável para todos os homens e cujos estabelecimentos serão distribuídos numa relação combinada com a divisão do Reino." Sobre as res- ponsabilidades do Estado em questão de assistência social, de trabalho, de instrução, muitas constituições recentes não foram nem mais precisas nem mais generosas. Mas, curiosamente, es- ses textos - decerto porque não obtiveram muito efeito, o que é explicado suficientemente, contudo, pelo curso dos acontecimen- tos - são o mais das vezes tratados com desprezo. b) Os direitos, anteriores à sociedade, não podem ser postos por ela a seu serviço. Existem para o homem, não para ela. Portanto, ela não pode atribuir-lhes fins e subordi- nar-lhes o exercício ao respeito a essas finalidades: cabe ao homem escolher os objetivos que pretende perseguir. Os direitos do homem se apresentam, assim, como absolutos. Os únicos limites que a sociedade pode impor-lhes são os exigidos por seu exercício simultâneo por todos. C. Direitos do homem e direitos do cidadão 63. Distinção. Os direitos do homem são, como vimos, anteriores à sociedade. Mas os direitos do cidadão, por sua vez, só se concebem uma vez fundada a Cidade. Logo, há en- tre eles uma diferença de natureza. Se a Declaração não os separa é porque, no espírito de seus autores, os direitos do cidadão são os corolários ne- cessários dos direitos do homem: estes só podem conser- var-se, uma vez constituída a Cidade, se nela o poder se exerce segundo o esquema definido pelos direitos do cida- dão. Encontramos aí a influência direta de Rousseau. 54 LIBERDADES PÚBLICAS 64. Ideias diretr izes . Os direitos do homem são li- berdades. Permitem a cada qual conduzir sua vida pessoal como bem entender. Conferem-lhe uma esfera de autono- mia na qual a sociedade não pode imiscuir-se. É o que se dá com a liberdade individual (art. 7), a liberdade de opinião (arts. 10 e 11), a propriedade (art. 17). Os direitos dos cida- dãos são poderes: asseguram a participação de todos na con- dução da Cidade. Por isso, excluem qualquer possibilidade de opressão da parte desta: tais são "o direito de concorrer para a formação da vontade geral" (art. 6), o direito de con- sentir no imposto (art. 14), etc. 65. L iberdade dos Ant igos e l iberdade dos Moder- nos. Essa distinção corresponde, na realidade, a duas con- cepções diferentes da liberdade, que Benjamin Constant sistematizou opondo a liberdade política, ou liberdade dos Antigos, à liberdade civil, ou liberdade dos Modernos. Na Cidade grega, a participação na decisão políhca no seio da assembleia do povo era a única expressão da liberdade. A regra democradcamente elaborada podia, como em Espar- ta, entrar em todos os pormenores da existência cotidiana a ponto de privar o cidadão de toda autonomia, ainda assim este se consideravaum homem livre. Os Modernos, por sua vez, aspiram menos a participar do poder do que a sub- trair ao seu domínio a condução de sua existência: a liber- dade " c iv i l " (no senhdo em que se fala de direito " c iv i l " em oposição ao direito "público") é para eles a verdadeira l i - berdade. É essa mesma distinção fundamental que visamos hoje ao opor a "liberdade-autonomia", à qual correspon- dem os direitos civis, e a "liberdade-participação", à qual correspondem os direitos políticos. 66. Na Declaração, as duas categorias, longe de se opo- rem, são indissociáveis: somente o reconhecimento dos d i - reitos do cidadão pode, na sociedade política, assegurar a conservação dos direitos do homem. Ass im fica fortemen- te marcado, já na origem do Estado liberal, o vínculo entre LIVRO 1 55 certa forma de organização do poder - a democracia - e o respeito à liberdade dos indivíduos. Compreende-se, en- tão, por que os constituintes fizeram da Declaração muito mais do que um mero catálogo das liberdades fundamen- tais: o esquema da estrutura à qual deve corresponder toda sociedade para que nela os direitos do homem sejam ga- rantidos pelos direitos do cidadão. 2) O espírito da Declaração 67. Já encontramos as principais características que de- finem o espírito da Declaração. Não voltaremos ao seu uni- versalismo. Em contrapartida, o caráter abstraio que muito amiúde lhe reconhecem e o individualismo que a domina reclamam algumas precisões. A. O espírito de abstração 68. Ele se manifesta no vocabulário empregado: o Ho - mem, o Cidadão, a Vontade geral, a Sociedade, todos eles conceitos que não se referem a nenhuma situação particular 69. 1.°) Um caráter aparentemente desencarnado. Este é inerente à perspectiva universalista em que se situa a Declaração e que lhe assegurou a propagação, mas costu- mam vincular-lhe outras características que, estas sim, oca- sionam crítica. a) Abstrata, a Declaração o é na medida em que acre- dita ter feito o bastante ao reconhecer ao homem certos poderes, sem se preocupar com os meios materiais exigidos para seu exercício efetivo. Essa é uma das críticas essenciais formuladas pelo marxismo a propósito das liberdades de 1789: liberdades "formais", poderes puramente teóricos e, por isso mesmo, privados de todo conteúdo real para todos os que não têm os meios necessários ao seu exercício. De tal modo que, concretamente, os que dispõem desses meios são os únicos a tirar proveito das liberdades: sob sua apa- 56 LIBERDADES PÚBLICAS rência abstrata, elas são portanto, de fato, as liberdades de uma classe, os meios que os burgueses de 1789 se concede- ram para dominar as outras classes sociais. Jean-Paul Sartre, para justificar sua recusa do prémio Nobel que lhe fora conferido em 1964, declarava, a propósito das inter- pretações da palavra "liberdade": "No Oeste, entende-se (por essa palavra) apenas uma liberdade geral. Quanto a mim, enten- do uma liberdade mais concreta que consiste no direito de ter mais de um par de sapatos e de comer até matar a fome." b) A abstração se encontra até no terreno puramente jurídico: a Declaração, dizem, afirma direitos, mas se desin- teressa dos procedimentos que permitem seu exercício efe- tivo, diferentemente dos textos anglo-saxões que, mais rea- listas, não separam o direito e as garantias procesçuais sem as quais é impossível valer-se deles. 70. 2?) Matizes. Essas afirmações reclamam muitos es- clarecimentos. a) Em primeiro lugar, a abstração das palavras e das fórmulas em geral deixa transparecer preocupações muito concretas e ligadas a uma situação determinada: a da Fran- ça no final do século XV I I I . Cada um dos direitos proclama- dos mostra-se a condenação de uma prática arbitrária à qual se deve pôr fim: por trás da afirmação da segurança i n - dividual, há a condenação das lettres de cachet*; o direito de imprimir livremente condena a censura, e a liberdade de consciência, as perseguições contra os protestantes. Mais concreto ainda, o preceito segundo o qual "ninguém pode ser privado de sua propriedade a não ser quando a necessi- dade pública, legalmente constatada, o exija com evidência, e mediante justa e prévia indenização" pretende dar fim às expropriações desordenadas e arbitrárias autorizadas pela teoria do domínio eminente do rei sobre o conjunto do rei- * Carta com o selo régio contendo em geral ordem de prisão ou de exí- lio. (N. da T.) LIVRO 1 57 no. E o igual acesso às funções públicas abre a todos os car- gos reservados à nobreza. b) Em segundo lugar, a denúncia do caráter " formal" dos direitos do homem não é inteiramente justa. Alguns deles têm um caráter muito efetivo, e beneficiam a todos, na medida em que sua aplicação não implica meios mate- riais. Como a segurança: a certeza de não ser arbitrariamente jogado na prisão tem o mesmo preço para todos os homens e, assim também, a liberdade de pensamento: todos os que tiveram a experiência dos regimes totalitários estão bem a par desse ponto. Essas liberdades fundamentais definem a atmosfera geral de uma sociedade. Só se toma consciência de sua necessidade quando se está privado delas. Por outro lado, certos direitos que hoje são, efetiva- mente, vazios de conteúdo para a maioria das pessoas por causa da evolução das técnicas, e que por essa razão justifi- cam a crítica marxista, podiam, em 1789, ser amplamente exercidos: como a "comunicação dos pensamentos e das opiniões" numa sociedade em que cartazes manuscritos, canções cuja difusão não exigia nenhum lançamento publi- citário, um discurso pronunciado em cima de uma cadei- ra nos jardins do Palais-Royal eram meios eficazes de i n - fluenciar os espíritos, e em que mesmo a impressão de um jornal só exigia um mínimo de capital, assim como o comprova o florescimento das folhas públicas nos primór- dios da Revolução. Enfim, vimos que, se a Declaração igno- ra os direitos-créditos, a Constituição, em contrapartida, inserindo na "garantia dos direitos" a organização da assis- tência pública e do ensino, atesta que os homens de 1789 não haviam ignorado esse aspecto essencial do problema das liberdades. c) Quanto à indiferença da Declaração para com a or- ganização jurídica e a sanção efetiva dos direitos, sua expli- cação é conhecida: é no corpo da Conshtuição, no título da "garanfia dos direitos", que essa organização encontra seu lugar, e não na própria Declaração. 58 LIBERDADES PÚBUCAS B. O individualismo 71. Uma ideia fundamenta l . Ele ocupa um lugar es- sencial na Declaração. Afeta a um só tempo o sujeito dos di - reitos, o objeto deles e a visão de conjunto da sociedade. a) O único sujeito ao qual a Declaração reconhece di - reitos é o Homem, ou seja, o indivíduo considerado isola- damente. Direitos "naturais" poderem ser reconhecidos a grupos sociais - a fan-iOia, a coletividade local ou profissio- nal - é uma ideia que não pode encontrar lugar no sistema de 1789. b) O individualismo afeta também as liberdades reco- nhecidas: todas têm como característica comum poderem ser exercidas pela vontade de um só. As liberdades coled- vas, que supõem que vários se entendam para exercerem juntos - liberdade das associações e grupamentos diversos - são ignoradas pela Declaração. A liberdade de reunião só aparece - e ainda timidamente - no Título 1° da Constitui- ção, como se não achassem possível reconhecer nela, dado seu caráter coletivo, um direito "natural" . c) Mais amplamente, a visão da sociedade que domina a Declaração exclui a interposição, entre o indivíduo e a co- munidade nacional, de qualquer grupo que possa deturpar a elaboração da "vontade geral". E la condena toda autori- dade emanante de um corpo particular. Se ela subordina a coletividadetotal ao indivíduo, que permanece sua finali- dade e a quem deve servir, não aceita, entre eles, nenhum intermediário. Esse individualismo desabrocha, fora da Declaração, no terreno económico e social. O preâmbulo da Constitui- ção de 1791 afirma: "Já não há jurandas nem corporações de profissões, artes e ofícios", e a lei de 14-17 de junho de 1791 (lei Le Chapelier) tira, de sua recusa de admitir a rea- lidade dos "interesses comuns" às "pessoas de ofício", a proibição dos grupamentos profissionais. A contrapartida dessa condenação é o reconhecimento, pelo decreto de A l - larde de 2-17 de março de 1791, da liberdade de exercer qualquer negócio, profissão ou ofício, que é uma liberdade LP/RO 1 59 individual. Ainda que alheios à Declaração, esses textos lhe dão seguimento e lhe esclarecem o espírito. Na realidade, o individualismo de 1789, se tem um funda- mento ideológico, explica-se também pelos dados políticos. A or- dem antiga baseava-se essencialmente em corpos e comunidades apegadas às suas tradições e aos seus privilégios. Seu desapareci- mento era necessário ao sucesso da Revolução. As condenações dos grupamentos eram acima de tudo as das células que consti- tuíam o tecido da Antiga França. O individualismo doutrinal fica- va, portanto, reforçado por um individualismo circunstancial, l i - gado aos imperativos da ação revolucionária. 3. OS TEMAS PRINCIPAIS DA DECLARAÇÃO 72. A ideologia de 1789 organiza-se em torno de qua- tro temas fundamentais, que ainda impregnam o direito po- sitivo, e que estudaremos sucessivamente: a liberdade, uma certa concepção da associação política, uma certa concepção da lei e, enfim, a igualdade. Evocaremos depois um quinto tema, ao qual a Declaração - o que se coshjmou criticar-lhe - faz só uma alusão: o dos deveres do homem. 1) A liberdade 73. O princípio. Esse é o tema fundamental da Decla- ração. Vem à frente dos direitos do homem enunciados no art. 2, sendo os outros três a propriedade (retomada no art. 17), a segurança, ou seja, a proteção jurídica contra a arbitrarie- dade do poder, mormente em matéria repressiva (arts. 7, 8 e 9), e, por fim, a resistência à opressão, ou seja, o direito que o homem tem de romper o vínculo de obediência que o une ao poder quando este se afasta de seu papel e oprime em vez de proteger. Este último tema, que só é enuncia- do em 1789, ocupará um lugar de primeiro plano na Declara- ção de 1793. 60 LIBERDADES PÚBLICAS A liberdade, o primeiro dos direitos do homem, encon- tra seu fundamento na natureza: "Os honiens nascem l i - vres." A afirmação é capital: faz da liberdade um dado in i - cial, anterior ao poder, e que se impõe a ele, ao passo que o pensamento marxista verá nela, inversamente, um objetivo por atingir ao cabo de um longo e difícil processo. A definição da liberdade é dada no arhgo 4: ela "con- siste em poder fazer tudo o que não prejudica o outro". A fórmula pode parecer muito ampla, sobretudo comparada com o artigo 5: "Tudo o que não é proibido pela lei não pode ser impedido." Assim está estabelecido o princípio das sociedades liberais: o homem tem o direito de inventar seus próprios comportamentos e de empreender em todos os campos, desde que não se subestime a exigência ética que a definição traz em si: "prejudicar o outro" é sair do campo aberto à liberdade. Seu exercício é, portanto, para cada qual, indissociável do respeito pelo outro. Mas os atos sus- cetíveis de causar um dano a terceiros são muitos: daí a ne- cessidade de definir com precisão os que são atingidos pela proibição: esse é o papel da lei. J . Rivero, "La liberte consiste à faire tout ce qui ne nuit pas à autmi", KEDP, 1990, n° 1, p. 11. 74. A s aplicações. A partir dessa noção global da l i - berdade, que abrange todos os setores da atividade huma- na, a Declaração vai se concentrar em alguns desses setores para explicitar, a respeito deles, a aplicação do princípio ge- ral por ela estabelecido. A lista das liberdades particulares assim consagradas pode parecer curta: liberdade indivi- dual, que se confunde com a "segurança" (arts. 7, 8 e 9), l i - berdade de opinião (art. 10), liberdade das manifestações do pensamento (art. 11). Mas esse reconhecimento explíci- to nem por isso deixa de ser importante no terreno dos princípios: ele fundamenta a distinção entre a liberdade em geral, garantida pelo artigo 5, e suas aplicações nos setores em que ela aparece, quer particularmente importante, quer especialmente ameaçada, e em que, por conseguinte, fica LIVRO 1 61 necessário assegurar-lhe uma proteção especial. São essas liberdades nomeadas, ou definidas, que estão na origem da lista das "liberdades públicas" no sentido do direito positi- vo. Sua importância não deve, porém, mascarar o essencial, ou seja, o princípio geral da liberdade de todos os compor- tamentos em todos os campos, pano de fundo contra o qual se destacam as liberdades explicitamente consagradas. 2) A associação política: objetivo e estrutura 75. É no âmbito da sociedade política que a liberdade é chamada a exercer-se. O esquema que a Declaração propõe é inteiramente regido por essa consideração. A. O objetivo da sociedade política 76. Um meio e não um fim. É, segundo o artigo 2, "a conser-vação dos direitos naturais e imprescritíveis do ho- mem". A afirmação é capital. E la exclui, em primeiro lugar, toda subordinação do homem à sociedade. Esta não tem fins próprios, a cuja perseguição poderia sujeitar o homem. É ela, ao contrário, que não passa de um instrumento a serviço do homem, e de sua "felicidade", segundo o termo do preâmbu- lo, que nesse ponto reflete a Declaração de Independência dos Estados Unidos em que "a busca da felicidade" toma l u - gar entre os direitos do homem. Mas a finalidade da sociedade é mais precisa ainda: não só o serviço do homem em geral, mas também, de modo mais estrito, a conservação de seus direitos. Logo, a socie- dade está a serviço da liberdade. B. As estruturas da sociedade 77. A organização do poder. As estruturas da socieda- de são inteiramente regidas por sua finalidade. O homem dei- xaria de ser livre se, na sociedade, estivesse sujeitado à vonta- de de um outio. É por isso que a soberania, ou seja, o poder de 62 LIBERDADES PÚBLICAS comandar, está Inteiramente nas mãos de uma entidade abs- trata perante a qual todos ficam iguais; a nação. Obedecer à nação, e somente a ela, não é, portanto, obedecer a alguma vontade humana, seja a de um indivíduo ou de um grupo. É até, no limite, obedecer apenas a si mesmo. O artigo 6 completa o artigo 3: todos os cidadãos, tendo o direito de concor- rer para a formação da vontade geral, podem reconhecer-se nas decisões desta. Reconhece-se nisso a concepção de Rousseau, duplamente alterada, porém, pelo recurso à noção de "nação" e, sobretudo, pela interposição dos representantes entre os cida- dãos e a formação da vontade geral. O poder, assim entregue à nação, deve, entretanto, as- sumir formas concretas e traduzir-se em instituições. Mas todas aquelas que a Declaração passa em revista são orien- tadas para a mesma finalidade: o respeito à liberdade. A disposição essencial é a do artigo 16, que extrai de Montes- quieu o princípio da separação dos poderes, chave da pro- teção das liberdades contra a arbitrariedade de uma autori- dade onipotente. Dentro da mesma perspectiva, as contri- buições devem ser "livremente consentidas pelos cidadãos" (arts. 13 e 14), os agentes públicos devem "prestar contas de sua administração" (art. 15). A própria força pública só en- contra sua justificação na "garantia dos direitos do homem" e na "vantagem de todos". O poder, portanto, é organizado não com o fito de as- segurar sua eficácia, mas, ao contrário,de maneira que freie as ameaças à liberdade nela contidas. 3) A lei 78. D a confiança na le i à soberania da lei . E la apare- ce, na Declaração, como o ponto de articulação das relações entre a liberdade e a sociedade política. O lugar que ocupa no texto é de surpreender: está em todos os artigos, ou quase. Determina os limites dos direi- tos naturais (art. 4), só ela pode defender, ordenar e fundar LIVRO 1 63 a repressão e a coerção (arts. 5, 7, 8 e 9), assegura a igualda- de (art. 6), define as exigências da ordem pública (arts. 10 e 11). É dela, efetivamente, que depende, de modo exclusivo, o exercício efetivo dos direitos do homem na sociedade. A inspiração liberal dos autores da Declaração resulta- rá então, de fato, numa ditadura da lei? Conhecemos os elementos da resposta, extraídos, essencialmente, de Rous- seau: expressão da vontade geral, a lei, por definição, não pode ser opressiva. A ditadura da lei, longe de ir contra a l i - berdade, é a sua melhor garantia. Esse tema da virtiide liberal da lei é fundamental: por muito tempo dominou o direito positivo. Por certo, a justi- ficação doutrinal que Rousseau lhe dava, já perdida de vis- ta, aliás, pelos próprios constituintes de 1789, já não é ad- missível hoje. Mas a confiança na lei sobreviveu a seu fun- damento, e até aos desmentidos da experiência. Ficou um dos postulados da teoria jurídica liberal. No entanto, a confiança na lei, na Declaração, não é um absoluto. Paradoxalmente, a desconfiança para com ela aparece em alguns artigos. Atribuem-lhe limites: isso é su - bentender que ela poderia ultrapassá-los. A lei "não tem o direito de proibir senão as ações nocivas à sociedade" (art. 5), "não deve estabelecer senão penas estrita e evidente- mente necessárias". Para que esses limites que o constitiain- te impõe ao legislador, se a Vontade geral que este traduz não pode enganar-se? A desconfiança fica mais evidente ainda na disposição do Títijlo I que veda ao poder legislati- vo "fazer qualquer lei que atente e obste ao exercício dos direitos naturais e civis". Há, portanto, na Declaração, os dois temas opostos da liberdade pelo reinado da lei e o da defesa da liberdade contra a onipotência da lei. Mas o primeiro, extraído de Rousseau, será o único a perpetuar-se. Inspirou por muito tempo o direito positivo, e a reserva ao campo da lei da ga- rantia das liberdades públicas. O segundo tema, ao contrá- rio, que poderia ter ftmdamentado, logicamente, um con- trole de conformidade da lei à Constituição, fiadora das l i - berdades, não encontrara muito eco nas instituições. A so- 64 LIBERDADES PÚBLICAS berania da lei entrara na tradição do direito público francês. Defendida contra o executivo pelo reinado da lei, a liberda- de não estará defendida contra a eventual arbitrariedade do legislador, até a jurisprudência do Conselho Constitucional que procede do segundo tema da Declaração, e da necessi- dade, revelada pela experiência, de assegurar a proteção das liberdades contra a lei. 4) A igualdade 79. Importância do princípio. A igualdade, na Decla- ração, aparece como um corolário das noções de natureza humana e de direitos naturais. O que é da essência do ho- mem não pode não pertencer a cada homem. É o artigo 1?: "Os homens nascem livres e iguais em direitos." Dessa afir- mação inicial se deduz um conjunto de consequências con- cretas: as desigualdades jurídicas ligadas ao nascimento são suprimidas, trate-se da hierarquia social (art. 1?), do aces- so aos empregos públicos (art. 6) ou da contribuição para os encargos públicos (art. 13). A noção de privilégio (ou seja, etimologicamente, de lei privada, própria somente a alguns) é banida: "A lei deve ser a mesma para todos", todos são iguais a seus olhos (art. 6). É todo o Antigo Regime, funda- mentado na hereditariedade e nas desigualdades de esta- tuto ligadas ao nascimento, que tem fim. Mesmo afora essas aplicações precisas, a ideia de igual- dade é subjacente ao conjunto do texto: a liberdade de cada um encontra seus limites nos direitos iguais de todos os outros (art. 4), todos os cidadãos concorrem para a forma- ção da lei (art. 6), todos os direitos reconhecidos o são em favor de "todo homem". O princípio assim afirmado, e suas conseqiiências, perma- necem a base do direito público francês; igualdade perante a lei, perante os cargos públicos, igual acesso aos empregos públicos, regras que a jurisprudência administrativa considera "princípios fundamentais do direitopúblico francês", e dos quais tira múlti- LIVRO 1 65 pias aplicações (a teoria da responsabilidade do poder público, por exemplo), mesmo quando sua execução concreta - é o que ocorre em matéria fiscal, ou no campo do intervencionismo eco- nómico - apresente problemas difíceis. O Conselho Constitucio- nal consagrou o valor constitucional desses mesmos princípios. O atentado contra a igualdade é uma das queixas amiúde formula- das perante ele e foi objeto de uma farta jurisprudência. 80. Limites. Mas o caráter reconhecido à igualdade 11- mita-lhe estreitamente o alcance: igualdade de natureza, ela é exclusivamente limitada apenas aos direitos. Não se es- tende às situações concretas: a igualdade de fato, com efei- to, não está na "natureza", que consagra, ao contrário, a de- sigualdade das "capacidades, das virtudes e dos talentos". Aliás, o exercício da liberdade, que permite a cada qual, a partir dos mesmos direitos, alcançar situações de fato dife- rentes, proscreve qualquer aspiração a uma igualdade con- creta. E a sacralização da propriedade se opõe a ela com mais força ainda no terreno económico. Nada, na ideologia de 1789, permite passar da igualdade jurídica por ela esta- belecida para a igualdade das situações concretas. Assim desenha-se uma sociedade liberal, individualis- ta e concorrencial, em que cada um joga sua sorte, a partir da base dos mesmos direitos, sem que a atenção se dirija às condições materiais que, no início, tornam essa igualdade amplamente teórica, sendo a igualdade dos direitos apenas um dos componentes da igualdade das possibilidades. 5) Direitos do homem e deveres do homem 81 . A questão do enunciado dos deveres. A Decla- ração, segundo seu preâmbulo, deve lembrar constante- mente a "todos os membros do corpo social seus direitos e seus deveres". Mas, sobre a natureza e o conteúdo desses deveres, a sequência do texto mantém silêncio: os membros da Assembleia que julgavam necessário explicitá-los não fo- ram seguidos pela maioria. Essa recusa de equilibrar o enun- ciado dos direitos pelo dos deveres é uma das principais crí- 66 LIBERDADES PÚBUCAS ticas formuladas contra a Declaração pelos meios conserva- dores do século XIX. Na realidade, a crítica não tem fundamento: a afirmação dos deveres, paralelamente aos direitos, é contestável, iniitil, e as ex- periências posteriores a 1789 mostram que podem pôr em perigo as liberdades. 1 / Ela é contestável no plano teórico: os direitos e os deveres não têm a mesma natureza. O conceito de dever se vincula ao campo da moral, o de direito, mesmo aplicado aos direitos natu- rais, à ordem jurídica. A contrapartida dos direitos, do ponto de vista jurídico, não são deveres, mas sim obrigações. Enunciar direi- tos e deveres no mesmo texto pode criar uma dúvida sobre o va - lor jurídico dos direitos e levar a pensar que, como os deveres, eles se vinculam somente à ética. 2 / A afirmação dos deveres, por outro lado, é inútil, pois o simples reconhecimento dos direitos define uma ética. A princi- pal crítica que se pode dirigir aos defensores da Declaração é de não terem salientado o fato de que os direitos do homem acarre- tam obrigações que lhes são indissociáveis: o respeito aos direitos iguais dos outrosse impõe a cada um, a obrigação de "não preju- dicar o outro" está incluída na definição da liberdade, o direito à vida condena o homicídio, a liberdade de expressão impõe a tole- rância, etc. Uma moral exigente decorre do simples enunciado dos direitos. Só que é preciso explicitá-lo, o que durante muito tempo negligenciaram fazer. 3 / Várias Constituições, desde 1789, na França e no exterior, desenvolveram o tema dos deveres. A Declaração do ano I I I , o Preâmbulo de 1848 enunciam a um só tempo deveres puramente morais - "bom pai, bom esposo, bom amigo..." - em termos insí- pidos e vagos, e deveres para com o Estado - pagamento do im - posto, serviço militar, obediência à lei - que pertencem ao direito positivo, e não à ética. A Constituição soviética de 1977 não dis- tinguia entre as duas categorias: a das regras que ela enuncia e que parecem referir-se às relações privadas constituíam, enquan- to "regras da vida em sociedade socialista", verdadeiras obriga- ções, pela mesma razão que as referentes diretamente ao Estado. O perigo, para o respeito aos direitos e às liberdades, era então evidente, porquanto o artigo 59 subordina-lhes o exercício à exe- cução de suas obrigações pelo cidadão. Ass im, na lógica liberal de LIVRO 1 67 1789, os direitos do homem fundamentam suas obrigações, na lógica totalitária, a execução das obrigações é que fundamenta os direitos. Todos os historiadores da Revolução consagram estudos à Declaração, à sua elaboração e às suas fontes. Cf. mais especial- mente: J . Godechot, La pensée révolutionnaire (1780-1799), A r - mand Colin, 1964. Sobre o princípio de igualdade: J . Rivero, "Les notions d'égalité et de discrimination en droit public trançais", Travaux de 1'Association Capitant, t. X IV , 1965, p. 343; Conseil d'État, Rapport public, Sur le príncipe de 1'égalité, L a Documenta- tion française, 1996. Sobre os deveres: D . Colard, " L e príncipe de rindivisibilité des droits et des devoirs de Thomme", Le Supplé- ment, revue d'éthique et de théologie morale, n° 168, 1989, p. 17; P . Delvaux, La controverse des droits de Lhomme de 1789, apothéose des droits et bannissement des devoirs de 1'homme?, tese. Paris I I , 1985; B. Jeanneau, "Vra i ou fausse résurgence des déclarations des de- voirs de rhon-ime et du citoyen", Mélanges Y. Madiot, Bruylant, 2000, p. 295; J . Rivero, "Une éthique des droits de 1'homme", Mé- langes Ph. Végléris, ed. Ant . N . Sakkoulas, 1988,1, p. 627; "Droits, devoirs, un faux diptyque", in Les enjeux des droits de Lhomme, L a - rousse, 1988, p. 178.
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