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Che Guevara em quadrinhos

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CHE GUEVARA EM QUADRINHOS 
Obra omite aspectos da vida do guerrilheiro 
 
 
Capa do álbum de história em quadrinhos 
Che, do coreano Kim Yong-Hwe 
A figura de Che Guevara, um dos principais protagonistas da revolução que implantou 
o socialismo real em Cuba, tornou-se, ironicamente, um dos mais rentáveis produtos 
de consumo da sociedade capitalista. Sua figura e nome já foram estampados nos 
mais diversos produtos no mundo inteiro, até em lata de cerveja. 
 
Mais recentemente, um outro produto trazendo o nome e a imagem de Che chegou às 
nossas livrarias: uma história em quadrinhos escrita e desenhada pelo roteirista e 
desenhista sul-coreano Kim Yong-Hwe. Intitulada "Che: uma Biografia", a obra conta 
a trajetória do jovem argentino que viajou de motocicleta por cinco países da América 
Latina (período que também foi retratado no filme "Diários de Motocicleta"), e de 
como trocou a carreira de médico pela de guerrilheiro, participando de movimentos 
revolucionários em Cuba, Angola e na Bolívia, onde veio a ser executado. 
Morte precoce = "Juventude eterna" 
O que o guerrilheiro Che Guevara tem em comum com a atriz Marilyn Monroe, o ator 
James Dean e os roqueiros Jim Morrison e Kurt Cobain? Todos são exemplos de 
celebridades que morreram ainda jovens e que, por isso mesmo, acabaram sendo 
transformadas em ícones pela indústria cultural. 
 
Como não envelheceram, permaneceram "eternamente jovens" no imaginário 
popular alimentado pela reprodução das imagens dessas celebridades em pôsteres, 
camisetas, souvenires etc. No caso específico de Che Guevara, a biografia em 
quadrinhos do guerrilheiro escrita e desenhada por Kim Yong-Hwe é mais um 
exemplo desse fenômeno. 
 
Ao transformar Che Guevara em personagem de história em quadrinhos, o autor sul-
coreano demonstra que o famoso guerrilheiro pode ser tão "eterno" quanto Batman, 
Super-Homem e Homem-Aranha, heróis da ficção que nunca envelhecem e morrem 
(ou quando "morrem", como é o caso do Super-Homem, são logo ressuscitados). 
 
A diferença é que enquanto as aventuras dos heróis citados ajudaram a divulgar 
valores do american way of life (o estilo de vida norte-americano), Kim Yong-Hwe 
utiliza a linguagem dos quadrinhos para divulgar os ideais marxistas. Logo no início de 
sua narrativa, Kim Yong-Hwe faz uma comparação entre Che Guevara e um outro 
herói de ficção da indústria cultural norte-americana: Neo, protagonista do filme 
"Matrix" (interpretado pelo ator Keanu Reeves). Segundo o autor sul-coreano, 
enquanto Neo era "um herói imortal", Guevara teve "uma morte heróica". 
Ícone cultural na Coréia do Sul 
Ao nos depararmos com a obra de Kim Yong-Hwe, podemos nos perguntar o que leva 
um autor sul-coreano a produzir uma história em quadrinhos sobre a vida de um 
guerrilheiro que participou de uma revolução ocorrida há décadas atrás num distante 
(do ponto de vista coreano) país latino-americano. Talvez, se Kim Yonh-Hwe tivesse 
prestado mais atenção ao que acontece na sua própria vizinhança, mais 
especificamente na vizinha Coréia do Norte, ele teria produzido uma obra bem 
diferente. 
 
É bastante contraditório um autor que vive na Coréia do Sul, país com economia de 
mercado e altos índices de desenvolvimento (exemplo de país que investiu seriamente 
na educação e que hoje é um dos maiores fabricantes de celulares e outros produtos 
tecnológicos), produzir uma obra que louve uma revolução que implantou em Cuba 
um regime semelhante ao adotado na Coréia do Norte, país que se encontra no 
ostracismo. 
 
Provavelmente, a explicação para a fascinação do autor sul-coreano por Che Guevara 
pode ser mais de natureza psicológica ou cultural do que política ou ideológica. A 
sociedade sul-coreana, assim como outras do Extremo Oriente (independentemente 
do regime político ou econômico) é extremamente hierarquizada (em parte pela 
influência da filosofia de Confúcio que pregava o respeito aos mais velhos e a 
obediência aos superiores hierárquicos), o que significa rigidez tanto na vida escolar 
quanto no ambiente de trabalho. 
 
Para um jovem sul-coreano, estressado de tanta cobrança nos estudos, a idéia de um 
guerrilheiro se aventurando nas selvas de um país distante pode parecer 
extremamente convidativa, um sonho de liberdade. 
 
Na história em quadrinhos, Kim Yong-Hwe afirma que Che se tornou um ícone cultural 
entre os jovens sul-coreanos ao mesmo tempo em que a banda de rock norte-
americana Rage Against the Machine se popularizava na Coréia do Sul. Vale lembrar 
que a banda é conhecida não apenas pelo seu som pesado, mas também pelas letras 
de suas composições, caracterizadas pelo seu teor político, especialmente pelos 
protestos dirigidos ao governo do presidente norte-americano George W. Bush. 
Assim, podemos dizer que tanto Che quanto a banda Rage Againt the Machine são 
ícones culturais no imaginário esquerdista. 
Visão parcial 
Na edição publicada pela Conrad, há um breve texto introdutório escrito pelo 
quadrinista coreano onde ele afirma que quanto às fontes de pesquisa para sua obra 
ele utilizou "quase todos os livros disponíveis sobre Che Guevara e a também a 
internet". Provavelmente, essa declaração é um exagero, pois existem muitos livros 
sobre Che Guevara e a Revolução cubana e seria muito difícil alguém pesquisar todos 
ou quase todos. 
 
O maior problema é que ele não diz quais livros e nem quais sites pesquisou. A 
historiografia sobre o assunto é vasta e abrange obras escritas por historiadores das 
mais diversas correntes (incluindo a marxista), o que inclui tanto simpatizantes quanto 
críticos do governo de Fidel Castro. 
 
Entre os que produziram um retrato mais favorável do regime de Fidel estão o 
jornalista brasileiro Fernando Morais, autor de "A Ilha", livro-reportagem sobre a Cuba 
pós-Revolução. Entre os que já expressaram opiniões desfavoráveis ao regime cubano 
estão o também brasileiro Paulo Roberto de Almeida, diplomata e doutor em Ciências 
Sociais, autor de um artigo intitulado "A História Não o Absolverá", uma crítica à 
tolerância de grande parte dos intelectuais brasileiros ao governo ditatorial de Fidel. 
 
A julgar pelo tom panfletário da história em quadrinhos, podemos concluir que o autor 
utilizou apenas fontes favoráveis ao guerrilheiro, a começar por testemunhos de 
amigos e parentes, pessoas que tinham ligações afetivas com Guevara e que, 
portanto, jamais poderiam descrevê-lo com mais objetividade e isenção. 
 
Em vários momentos, a história em quadrinhos chega a lembrar uma hagiografia, isto 
é a biografia de algum santo católico, apesar do fato de que, como marxista, Guevara 
era declaradamente ateu. 
Narrativa "cinematográfica": influência dos mangas 
Apesar desse tom panfletário e do fato de o autor não ter citado a bibliografia 
pesquisada, a biografia em quadrinhos de Che Guevara é uma obra que merece ser 
conferida. Um dos méritos da obra é o fato de que o autor conhece e domina a 
linguagem narrativa dos quadrinhos. 
 
As histórias em quadrinhos se constituem numa arte que possui características muito 
específicas: diferente de um livro ilustrado, no qual as ilustrações apenas reproduzem 
o que está descrito no texto, os quadrinhos são mais parecidos com o cinema, no qual 
uma série de imagens são colocadas numa determinada seqüência para contar uma 
história. Os desenhos também devem ser "lidos", tal como as cenas de um filme. 
 
O caráter "cinematográfico" dos quadrinhos é mais evidente nos mangás, os famosos 
quadrinhos japoneses, que exerceram forte influência na Coréia do Sul, onde os 
quadrinhos são chamados de manhwas. Essa influência dos mangás é bastante visível 
no trabalho de Kim Yong-Hwe. 
As várias facetas de Che Guevara 
"Che: uma Biografia" acerta ao mostrar que o guerrilheiro era um indivíduo com 
profundas convicções políticas, disposto a lutar pelos ideais em que acreditava. Se tais 
ideais valiam a pena,é uma outra discussão, cuja resposta pode variar conforme as 
opiniões ou simpatias políticas de cada leitor. A história em quadrinhos destaca alguns 
traços da personalidade de Che Guevara: seu carisma, sua capacidade de liderança. 
 
A obra mostra ainda algumas das diversas facetas de Guevara: o filho atencioso, o 
guerrilheiro carismático, o pai carinhoso que escreve cartas para os filhos e também a 
do médico que prestava assistência aos necessitados, dentre os quais vítimas da 
hanseníase e até inimigos feridos. 
 
No entanto, "Che: uma Biografia" omite outros aspectos da trajetória de Guevara. 
Não menciona que, obedecendo às ordens de Fidel Castro, Che Guevara foi o 
responsável pela execução de pelo menos duzentos condenados nos "tribunais 
revolucionários". Essas execuções ocorreram na forma de fuzilamentos e teriam 
rendido a Guevara o apelido, na época, de "carnicerito". 
 
Os julgamentos não passavam de fachada, pois os réus, independentemente de terem 
de fato ou não colaborado com o governo do ditador cubano Fulgêncio Batista, já 
estavam condenados à morte antes mesmo de serem julgados. Bastava a simples 
suspeita de traição para alguém ser preso e condenado em um julgamento sumário, 
como costuma acontecer em qualquer revolução. 
 
Em um desses julgamentos, pilotos das forças de Batista foram acusados de terem 
bombardeado vilarejos e cidades, mas foram absolvidos por falta de provas. O 
veredicto não agradou Fidel que ordenou a exoneração dos juízes e a realização de um 
novo julgamento que condenou os pilotos. Nem mesmo partidários da Revolução 
Cubana foram poupados: o guerrilheiro Huber Matos, colega de Guevara, foi preso e 
condenado à vinte anos de prisão apenas por ter discordado dos rumos tomados pelo 
regime de Fidel e a aproximação de Cuba com a União Soviética. 
Mais omissões 
Outro aspecto omitido em "Che: uma Biografia" é o fato de que a atuação de Guevara 
no Ministério da Indústria e na presidência do Banco Nacional de Cuba foram 
desastrosas para a economia cubana. A passagem de Guevara por esses dois órgãos 
foi caracterizada pela desorganização e pelo improviso. Guevara demonstrou que não 
tinha para a administração pública o mesmo talento que tinha para manejar o fuzil. 
 
Jamais saberemos o que teria acontecido se Guevara ainda estivesse vivo. Talvez, ele 
tivesse se mantido fiel às suas convicções ou se tornado um crítico ainda mais radical 
do capitalismo e do que chamava de "imperialismo norte-americano". Por outro lado, 
talvez ele tivesse revisto suas opiniões, se tornado mais "moderado" ou mesmo 
renunciado ao marxismo e se arrependido de seus feitos de guerrilheiro. Nunca 
saberemos. 
 
Seja como for, o mito criado em torno de Che Guevara permanece vivo e, ao que tudo 
indica, continuará assim por muito tempo. "Che:uma Biografia" é um exemplo da 
sobrevivência desse mito. 
 
O subtítulo da biografia em quadrinhos é bastante apropriado, pois se trata de "uma" 
biografia, e não da biografia definitiva de Ernesto "Che" Guevara. Vale lembrar que 
existe uma obra homônima, uma biografia do guerrilheiro escrita pelo jornalista 
norte-americano Jon Lee Anderson, fruto de um trabalho de cinco anos, publicada no 
Brasil pela Editora Objetiva. 
 
A versão em quadrinhos lançada pela Conrad pode ser uma interessante (e divertida) 
introdução ao assunto Revolução Cubana, mas sua leitura deve ser complementada 
com a de obras historiográficas mais atualizadas, de preferência, confrontando as 
opiniões de diferentes autores. 
Túlio Vilela, formado em história pela USP, é professor da rede pública do Estado de 
São Paulo e um dos autores de "Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de 
Aula" (Editora Contexto).

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