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SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 80 • ANGLO VESTIBULARES IDÉIAS DE UM POETA SEM IDÉIAS Conforme a ficção poética de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro teria escrito três livros: O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso e Poemas Inconjuntos. Alberto Caeiro é um poeta bucólico de estilo modernista, isto é, embora retome uma espécie antiga de poesia (o buco- lismo ou pastoralismo), escreve em versos li- vres, valoriza o prosaico, despreza a rima e ama as coisas espontâneas e primitivas da natureza de maneira que só o século XX poderia conce- ber. Todavia, não se trata propriamente de um poeta, mas de um pensador que raciocina em versos. Há nisso um enorme paradoxo, pois toda a filosofia de Caeiro consiste em negar o pensamento, combater as convenções nomina- listas da tradição e recusar as generalizações conceituais operadas pela cultura. Embora afir- me que os sentidos são a única fonte legítima de conhecimento, parece ser, antes, um poeta de negativas, sempre preocupado em contrariar noções cristalizadas pelo senso comum. Mesmo quando afirma, transmite a impressão de que o faz para demonstrar uma tese contrária aos princípios dominantes no pensamento por- tuguês sobre conhecimento, natureza e rea- lidade. Visto dessa maneira, pode parecer que se trata de um escritor árido e sem atrativo poé- tico. Nada mais enganador. Alberto Caeiro, mesmo quando não compreendido em todas suas implicações, é um poeta agradável, que sabe cativar o leitor desde o primeiro até o último verso de seus livros. Possui perícia invulgar na conquista da adesão do leitor a favor do ponto de vista que defende. Isso se deve, sobretudo, à força de seus argumentos, sempre fundados em imagens simples, porém inesperadas. Seu encanto decorre também da sintaxe elementar, fundada preferencialmente na justaposição ou parataxe, sem jamais gerar impressão de banalidade. Ao contrário, seu jeito simples de unir as palavras nas orações e estas nos períodos possui a surpresa de coisas conhecidas e das quais o leitor já tinha se esquecido. O jogo lógico de seus textos, fun- dado em repetições imprevistas e em paradoxos engenhosos, espanta pela coerência e pela exatidão, o que produz o efeito de inteligência aguda e de grande capacidade dialética, no sentido de convencer pelo argumento, e não pela autoridade do discurso. PPOOEEMMAASS DDEE AALLBBEERRTTOO CCAAEEIIRROO Fernando Pessoa ANALISE DA OBRA IVAN TEIXEIRA´ Levando em conta a divisão clássica dos estilos em humilde, médio e sublime, Caeiro enquadra-se no estilo humilde, porque seus pensamentos, sua sintaxe e seu vocabulário são todos extraídos da experiência com os componentes da natureza: as flores, as pe- dras, as árvores, os montes, o rebanho, o sol, o luar, as borboletas, os riachos, a chuva, o calor, o frio, o céu, a terra e o homem, entre outros. Além disso, fundamen- ta a beleza de suas imagens na concretude e na sim- plicidade das coisas menos pretensiosas: o vôo de uma borboleta, o rio de sua aldeia, as brincadeiras do menino Jesus, a bolha de sabão do brinquedo de uma criança ou o carro de bois quebrado à beira da estra- da. Outro motivo de sua eficiência em conquistar, de imediato, a adesão do leitor à sua posição franca- mente incomum consiste na permanente simulação de um alerta contra o grande perigo conceitual que as pessoas correm, caso não adotem sua filosofia sem filosofia. O POEMA 9 DE O GUARDADOR DE REBANHOS: A FUNÇÃO DO PARADOXO O poema 9 de O Guardador de Rebanhos (“Sou um guardador de rebanhos”), que, em vez de negar, afirma, talvez seja um bom início para o conhecimento das idéias desse poeta que recusa as idéias, mas que as tem em larga escala. Esse texto de 14 versos sinte- tiza quase todo seu pensamento. A voz poética come- ça por se anunciar como um guardador de rebanhos. Em seguida, informa que o rebanho são os seus pen- samentos. Imediatamente, explica que seus pensa- mentos não são senão sensações. Os três versos se- guintes, que arrematam a primeira estrofe, ratificam a noção de que os verdadeiros pensamentos se identifi- cam com as sensações: pois o poeta deve pensar com os olhos e com os ouvidos, com as mãos e com os pés, com o nariz e com a boca. Isto é, deve pensar com os cinco sentidos em conjunto, jamais com o cérebro. A segunda estrofe, constituída por um dístico, en- sina que pensar uma flor é vê-la e cheirá-la, assim como, para entender um fruto, é preciso comê-lo. A estrofe final, composta de seis versos, apresenta uma conclusão lógica para a felicidade do pastor imagi- nário, pois em vez de pensar, ele experimenta a natu- reza. Por isso, quando o dia está quente e agradável, deita-se na erva, fecha os olhos e sente a realidade por todos os poros. Isso o inunda de felicidade, pois, pelos sentidos, entra em contato direto com a própria ver- dade, sem nenhuma mediação cultural. O segundo verso da terceira estrofe do poema apresenta um paradoxo fundamental para a compre- ensão do estilo de Alberto Caeiro, pois esse poeta é a encarnação do próprio paradoxo, conforme se verá adiante. Nesse verso, o pastor diz que chega a ficar triste de tanto gozar as delícias de um dia de calor. O paradoxo, que é uma espécie de antítese que conduz a uma conclusão absurda, possui a função de ressal- tar a idéia de que não basta sentir a natureza apenas por meio dos raios do sol, quer dizer, somente pela sensação do tato. É preciso algo a mais: é necessário pôr em funcionamento os cinco sentidos de uma só vez. Por isso, deita na grama e funde-se com a natu- reza, regressando à condição de animal natural. So- mente assim consegue apreender a verdade do cos- mos. Sendo básica no ideário de Caeiro a noção de que, para aprender, é preciso desaprender, recorre em diversos poemas de seus livros. Conforme se vê, sua visão das coisas funda-se numa construção para- doxal, pois propõe o conhecimento humano pelo re- torno à condição animal. No poema 46 de O Guarda- dor de Rebanhos, tratando do modo correto de sentir e escrever, o pastor afirma que deve esquecer tudo o que lhe ensinaram e deixar de ser Alberto Caeiro para retornar ao estágio de animal humano que a Natureza produziu. Em certo sentido, os 49 poemas do livro desen- volvem e ilustram essa idéia, isto é, a noção de que o verdadeiro conhecimento não se dá pela inteligência, e sim pelos sentidos. A inteligência, responsável pela cultura, cria símbolos, mitos e mediações desnecessá- rios ao convívio do homem com a natureza, fonte de prazer e do verdadeiro conhecimento. Esse convívio só se torna possível por meio da sensação espontâ- nea, oriunda do contato imediato com as coisas. Observe que o poema 9 inicia-se pelo verso Sou um guardador de rebanhos, em franca oposição com o primeiro verso do primeiro poema do livro: Eu nunca guardei rebanhos. Isso prova que a idéia da poesia bucólica, nesse livro, não passa de uma metáfora sobre o conhecimento. De fato, O Guardador de Re- banhos propõe uma teoria do conhecimento (episte- mologia ou gnosiologia), em desfavor de uma outra. Qual seria a teoria contra qual esses poemas se colo- cam? Tal resposta — básica para a compreensão his- tórica e estilística de Alberto Caeiro como persona- gem literária — será apresentada mais adiante. UNIDADE LÍRICO-NARRATIVA A tênue estória implícita em O Guardador de Re- banhos pode-se resumir nos seguintes termos. Um pastor solitário habita o cimo de um outeiro, numa casa que tanto pode ser isolada quanto se situar nu- ma aldeia. Ele passa os dias a escrever versos, em casa ou pelos caminhos do campo. Antes de os escre- ver, convive intensamente com a paisagem, sem se preocupar com nada, a não ser em se comunicar sen- sorialmente com os componentes da natureza. Um dia, da janela mais alta de sua casa, envia os versos à humanidade. Depois, recolhe-se e alguém lhe traz o candeeiro (poema 49). Ele o deixa aceso, deita-se e — sem dormir nem ler ou pensar em nada — perma-nece imóvel, sentindo a vida correr por ele como um rio corre por seu leito. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 81 • ANGLO VESTIBULARES ADESÃO E REAÇÃO DE PESSOA AO MISTICISMO DE TEIXEIRA DE PASCOAIS Em 1905, aos 17 anos, Fernando Pessoa, retorna da África do Sul para Lisboa, de onde jamais sairá, tendo vivido no estrangeiro desde os cinco anos de idade, por causa do segundo casamento de sua mãe com o cônsul português em Durban. Em 1910, procla- ma-se a República portuguesa. Teófilo Braga, escritor de largo peso no período realista, amigo de Eça de Queirós, Guerra Junqueiro e Antero de Quental, entre outros, é eleito o primeiro presidente de Portugal. Di- versos escritores e intelectuais assumem postos admi- nistrativos na nova república, que pretende restaurar uma certa dignidade cultural perdida no país. Estabelece-se a crença de que Portugal precisava de uma nova diretriz cultural, moral e filosófica, que pudesse sustentar um sólido desenvolvimento polí- tico e econômico. O nacionalismo foi um dos pilares dessa diretriz. Nesse clima de euforia e esperança, surge, em 1912, na cidade do Porto, um grupo de ar- tistas, poetas e pensadores que se reúne em torno de uma sociedade intelectual denominada Renascença Portuguesa, cujo órgão de imprensa era a revista A Águia, publicada mensalmente. O líder do grupo e da revista era Teixeira de Pascoais, um dos poetas de maior prestígio em Portugal na época, ao lado de Guerra Junqueiro, também ligado à Renascença Por- tuguesa e integrante do governo Teófilo Braga. O próprio Antônio Sérgio, o maior ensaísta português da primeira metade do século XX, pertenceu a essa so- ciedade em seu primeiro ano de existência. A Águia. No primeiro número de A Águia, em janeiro de 1912, Teixeira de Pascoais, publica o manifesto de seu grupo, dando ao texto uma tonalidade de filosofia mís- tica, que agradou a muitos e desagradou a poucos, que logo se afastaram do grupo, como foi o caso de Antô- nio Sérgio, entre outros. Dizia o texto-programa de Teixeira de Pascoais: O fim desta Revista, como órgão da “Renas- cença Portuguesa”, será, portanto, dar um senti- do às energias intelectuais que a nossa Raça possui; isto é, colocá-la em condições de se tor- narem fecundas, de poderem realizar o ideal que neste momento histórico abrasa todas as almas sinceramente portuguesas. [...] Criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Por- tuguesa, arrancando-a do túmulo onde a sepul- taram alguns séculos de obscuridade física e mo- ral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram. [...] Mas não imagine o leitor que “renascença” significa simples regresso ao pas- sado. Não! Renascer é regressar às fontes origi- nais da vida, mas para criar uma nova vida. [...] A Saudade e Viriato, Afonso Henriques e Camões, desmaterializados, reduzidos a um sentimento, postos em alma estreme. A Saudade é o próprio sangue espiritual da Raça: o seu estigma divino, o seu perfil eterno.1 Nascia, assim, o Saudosismo Transcendentalista, fundado na idéia metafísica da mitificação da na- tureza, da qual o homem é parte integrante e da qual jamais se deve separar. Essa corrente acreditava que cada povo possui uma alma coletiva ou uma essência, que, uma vez evocada pelos integrantes da nação, seria capaz de elevar esse povo a grandes conquistas civilizacionais. No caso do povo português, essa essência seria a Saudade, associada à idéia de que tudo emana de Deus e tudo converge para Deus, cuja maior manifestação não se consubstanciaria apenas na natureza, mas também nas criações, nas lendas, nas crenças populares e na história da pátria. É o que se percebe, por exemplo, na última estrofe do poema “Sombra de Deus”, do livro Sombras (1907), de Tei- xeira de Pascoais: Assim, o mundo, ó Deus, é tua sombra! E tudo quanto, neste espaço, existe É a tua estranha dor e imperfeição: Tua parte mortal, noturna e triste E frágil, mentirosa e transitória! E onde estás, mais presente e verdadeiro E mais vivo, talvez, que em tua glória, Em teu deslumbramento e luz divina!2 SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 82 • ANGLO VESTIBULARES 1 Em João Gaspar Simões. Vida e Obra de Fernando Pessoa: História de uma Geração. Vol. I. Lisboa, Livraria Bertrand, [1951] p. 139. 2 Obras Completas de Teixeira de Pascoais. volume III. As Sombras. Senhora da Noite. Marânus. Introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho. Lisboa, Livraria Bertrand, s/d, p. 130. Como se vê, trata-se de uma retomada da teoria platônica segundo a qual o mundo aparente não passa de sombra das verdades essenciais, com a diferença que o poema acrescenta algo tomado ao Idealismo Romântico dos filósofos alemães (sobretudo Fichte e os irmãos August e Friedrich Schlegel), na medida em que as imperfeições humanas, sendo reflexo da per- feição divina, constituem o aspecto mais interessante de Deus ou do Eu-Absoluto. Em última análise, essa será também a base teórica do Simbolismo místico de Teixeira de Pascoais, que o faz dialogar com as plan- tas, identificar-se com as estrelas, com as pedras, com o sol, com o luar e com as névoas do infinito. A partir disso, o poeta constrói uma poesia a que se poderia verdadeiramente chamar metafísica, porque acredita que cada coisa do cosmos possui um significado que transcende sua especificidade enquanto coisa. Teixeira de Pascoais O conhecimento metafísico funda-se na idéia da transcendência do significado do mundo. Seu verda- deiro sentido estará sempre além do alcance senso- rial do indivíduo. Tudo é símbolo de alguma coisa su- perior, sendo por isso que, em sua poesia, as plantas e as pedras sentem como se fossem seres humanos, tal como se observa no poema “Elegia de Amor”, de Vida Etérea (1906): A flor medita A pedra chora e reza, E desmaiam de mágoa As cristalinas fontes.3 Além disso, suas imagens, sempre nebulosas e abstratas, tendem para as generalizações alegóricas, com o propósito de sugerir um certo mistério do mundo, apreensível apenas aos iniciados na teoria do Saudosismo Panteísta. Como se viu, a própria história dos povos inte- graria o projeto da glória divina. Por isso, Teixeira de Pascoais, embora essencialmente lírico e abs- trato, procurava atribuir uma função filosófico-social às suas idéias e a seus poemas. Sua doutrina costuma também ser designada pela expressão Transcen- dentalismo Panteísta. Seguido, em parte, pelo último Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais é, sem dúvida, o grande representante dessa corrente do Simbo- lismo em Portugal, tendo influenciado toda a poesia do país em seu tempo, com ecos até mesmo na gera- ção de Orpheu, que criaria o Modernismo em Portu- gal, a partir de 1915. O livro mais típico do misticismo poético de Pas- coais é Marânus (1911). Trata-se de um poema alegó- rico, dividido em 19 unidades mais ou menos autôno- mas, em que o pastor que dá título ao volume anda à procura do sentido último das coisas (o sentido trans- cendente ou metafísico: a essência), em constantes diálogos com entidades abstratas que representam conceitos ou noções importantes ao Saudosismo pro- posto como medida regeneradora da “alma por- tuguesa”, tais como Eleonor, a Primavera, a Mon- tanha, o Outono, Apolo (o Sol), a Paisagem e Jesus, entre outros. No final, Eleonor, pastora de rara e su- prema beleza, com quem Marânus se liga amoro- samente, identifica-se com a Saudade, cuja presença, depois de unificar conceitualmente o texto, ressurge no final, nos seguintes termos: [...] E em companhia De aquele ser, anímico e perfeito, Inefável, extática, vivia... Vivia, de encantada, e viverá! Pois tudo, tudo há de passar, enfim, O homem, o próprio mundo passará, Mas a Saudade é irmã da Eternidade. Fernando Pessoa, então com 24 anos, tendo po- dido se tornar cidadão britânico, preferiu alinhar-se ao projeto de Teixeira de Pascoais. Por isso, escreveu uma série de ensaioscríticos, apoiando a idéia geral do movimento e elogiando a poesia decorrente dele. Dois desses ensaios causaram grande impacto entre os intelectuais portugueses, tanto pelo exagero das idéias quanto pelo poder lógico de argumentação, verdadeiramente espantoso. Tais ensaios eram “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Conside- rada” (o primeiro texto publicado em toda a vida do autor, abril de 1912) e “A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico”. Em ambos os escritos, SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 83 • ANGLO VESTIBULARES 3 Obras de Teixeira de Pascoais. Prefácio de A. Fernandes da Fonseca. Vol. XVII. Para a Luz. Vida Etérea. Elegias. O Doido e a Morte. Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p. 148. Fernando Pessoa demonstra amplo conhecimento de literatura internacional, sobretudo a inglesa e a fran- cesa, ao lado de invulgar capacidade de racicionar em termos lógicos e apologéticos. A adesão ao ideário do nacionalismo místico da Renascença Portuguesa foi tão imaginária e enge- nhosa como tudo em que Fernando Pessoa acredi- tou. Na continuação do primeiro dos ensaios men- cionados, intitulado “Reincidindo”, o grande simula- dor chegou ao extremo de escrever o seguinte, sobre dois poetas daquele prestigioso grupo: Tomemos isto, de Teixeira de Pascoais, A folha que tombava Era a alma que subia, e isto, de Jaime Cortesão: E mal o luar os molha, Os choupos, na noite calma, Já não têm ramos nem folha, São apenas choupos de Alma. Em nenhuma literatura do mundo atingiu nenhum poeta maior elevação que estas ex- pressões, e especialmente a extraordinária pri- meira, contêm. E elas são representativas. Ci- tamo-las não só para comprovação da eleva- ção, como também para indicação da origina- lidade do tom poético da nova poesia portu- guesa.4 Em seguida, no mesmo artigo, Fernando Pes- soa, partindo do argumento de que o momento his- tórico lusitano, fecundado pelos integrantes da Re- nascença Portuguesa, afirma que o país se prepara- va para: [...] um ressurgimento assombroso, um pe- ríodo de criação literária e social como poucos o mundo tem tido. [...] Paralelamente se con- clui o breve aparecimento na nossa terra do tal supra-Camões. Supra-Camões? A frase é humil- de e acanhada. A analogia impõe mais. Diga-se ‘de um Shakespeare’ e dê-se por testemunha o raciocínio, já que não é citável o futuro.5 Essa idéia é retomada e intensificada no ensaio seguinte, “A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico”, em cujas conclusões se encontram afirmações determinadas pelo jogo do raciocínio in- terno do texto, mas em completa dissonância com a realidade histórica de Portugal e da Europa, o que é facilmente demonstrável pela leitura do seguinte trecho: Deve estar para muito breve, portanto, o aparecimento do poema supremo da nossa raça, e, ousando tirar a verdadeira conclusão que se nos impõe, pelos argumentos que já o leitor viu, o poeta supremo da Europa, de todos os tempos. É um arrojo dizer isto? Mas o ra- ciocínio assim o quer. Como se percebe, mesmo fazendo ensaio, Fer- nando Pessoa não abandonava a lógica da criação literária, isto é, a coerência imaginosa dos argumen- tos, que obedeciam antes à lógica intrínseca das premissas do próprio texto do que a qualquer com- promisso objetivo com a história ou com a dinâmica dos acontecimentos extratextuais. Depois de muitas críticas recebidas e de diver- sos desacordos com os integrantes da Renascença Portuguesa, em dezembro de 1914, Fernando Pes- soa rompe definitivamente com essa sociedade lite- rária. Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Cam- pos já estavam criados e estrategicamente “se- pultados” num secreto baú em que o poeta costuma- va depositar seus inéditos. Mário de Sá-Carneiro, seu melhor amigo, retornara de Paris. Haviam se es- treitado as relações com Almada Negreiros, pintor de quem Pessoa fizera questão de publicar traba- lhos em A Águia. Enfim, o grupo de Orpheu e sua poética já estavam plenamente formados. Em abril do ano seguinte, sairia o primeiro número da nova re- vista, em consonância com o Futurismo e com o Cubismo europeus, e em franca oposição ao Simbo- lismo saudosista, metafísico, transcendental, pan- teísta e nebuloso da Renascença Portuguesa. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 84 • ANGLO VESTIBULARES 5 Idem, p. 57. 4 Fernando Pessoa. A Nova Poesia Portuguesa. Prefácio de Álvaro Ribeiro. Cadernos Culturais. Lisboa, Editorial Inquérito, s/d., 51. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 85 • ANGLO VESTIBULARES Caeiro, Reis e Campos, imaginados por Almada Negreiros. ORIGEM FICCIONAL DE ALBERTO CAEIRO Não contente em compor seus imaginosos poe- mas, Fernando Pessoa dedicou-se também à inven- ção de poetas que seriam os supostos autores de seus textos e, ainda, compôs estórias para justificar e ex- plicar o surgimento de cada um de seus poetas e de alguns poemas em particular. Assim, ao longo da vida, foi criando um discurso mítico e engenhoso sobre cada heterônimo, cercando a própria existência de mistério e de ares de superioridade genial. Em certo sentido, Fernando Pessoa tomou a si mesmo como personagem principal de sua arte, dividindo-se em diversas outras personagens literárias. Parece ter feito um pacto de vida e morte com a arte. Em sua breve existência de quarenta e sete anos praticamente não fez outra coisa senão cuidar da construção de um perfil literário de si mesmo, preen- chido por poemas, por contos, por traduções, por no- tas de teoria e de crítica literária, por fragmentos enig- máticos sobre a própria personalidade, por páginas de diário íntimo e de auto-interpretação e por gestos inusitados para a média das pessoas. Em tudo quanto escreveu, aplicou sempre a imaginação e a lógica ar- gumentativa, sem jamais recorrer ao sentimentalismo. Nunca se preocupou com a verdade, que para ele não passava de uma espécie de mito inacessível aos ho- mens de inteligência e cultura. Em vez disso, mante- ve-se fiel à verossimilhança e à coerência interna dos argumentos, das estórias e das explicações para a criação dos heterônimos e dos poemas a eles atri- buídos. Segundo o discurso biográfico organizado pelo próprio poeta, o heterônimo Alberto Caeiro teria sur- gido no dia 8 de março de 1914. Querendo escrever uma série de poemas jocosos ao amigo Mário de Sá- Carneiro, então residente em Paris, Fernando Pessoa teria se colocado em pé, diante de uma cômoda alta, e ali, de um só jato, teria composto mais de trinta dos 49 poemas que compõem O Guardador de Rebanhos, o livro mais importante atribuído a Alberto Caeiro. Percebendo que o estilo do novo texto era diferente dos poemas que vinha escrevendo com o próprio no- me, Fernando Pessoa julgou que deveria pensar em outro autor e, assim, concebeu Alberto Caeiro, a quem imaginou uma biografia, um corpo e um tem- peramento, como se fosse uma personagem de ro- mance ou de teatro. Essa estória foi concebida por Fernando Pessoa, 21 anos depois da invenção de Alberto Caeiro, em carta ao jovem crítico Adolfo Casais Monteiro, da geração seguinte à sua. Adolfo Casais Monteiro vinha se preparando para organizar e editar a numerosa obra inédita do misterioso poeta e amigo. Escrita em Lisboa, a carta é datada de 13 de janeiro de 1935. Assim como Casais Monteiro, João Gaspar Simões, entre outros, andava preocupado em recompor os passos da vida e da obra do grande escritor da ge- ração anterior, interessados ambos em trazer o gran- de nome do Modernismo português para o núcleo de um novo grupo literário que então se formava e que seria conhecido como o da Geração da Revista Pre- sença, cuja maior contribuição foi, com efeito, orga- nizar, oferecer certa unidade e divulgar a poesia de Fernando Pessoa, praticamente inédita até 1935, ano de sua morte. De fato, além de editar diversos textos do poeta na Revista Presença, Adolfo Casais Monteiro produziu ensaios importantes sobre suapoesia. Gas- par Simões escreveu a melhor biografia que se co- nhece do criador de Alberto Caerio: Vida e Obra de Fernando Pessoa: História de uma Geração, publicada no início dos anos 1950. Na referida carta sobre a gênese dos heterônimos, Pessoa dá razões de caráter psiquiátrico para a cria- ção de suas personagens, considerando-se um histé- rico-neurastênico, com inclinação para a despersona- lização e para a simulação. Segundo ele, desde crian- ça inventava amigos, com quem conversar ou trocar correspondência. Depois, detém-se em aspectos esti- lísticos e na estória da criação de seus poetas. Leia-se o trecho específico daquela carta em que inventa o surgimento de Alberto Caeiro: Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à idéia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos), mas num estilo de meia regularidade, e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penum- bra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse o Ricardo Reis). Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei- me um dia de fazer uma partida ao Sá-Car- neiro — de inventar um poeta bucólico, de es- pécie complicada, apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de reali- dade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 —acer- quei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escre- vo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja na- tureza não conseguirei definir. Foi o dia triun- fal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Re- banhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absur- do da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 86 • ANGLO VESTIBULARES papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o re- gresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a rea- ção de Fernando Pessoa contra a sua inexis- tência como Alberto Caeiro.6 Pela perspectiva da teoria literária atual, essa car- ta não deve ser tomada como documento do pro- cesso criativo de Fernando Pessoa, mas sim como mais uma das diversas manifestações de seu processo criativo. Isto é, não se trata de uma explicação pro- priamente dita, mas de uma peça artística, de um tre- cho ficcional em que o poeta adota o estilo documen- tal como forma de criação. Existem inúmeros textos dessa natureza na obra de Fernando Pessoa, geral- mente tomados como “documentos verdadeiros” pelos estudiosos tradicionais para interpretar a arte e a personalidade do poeta. Esse não parece mais um caminho adequado para a leitura de textos dessa es- pécie. Trata-se, antes, de mais uma simulação artís- tica, espécie genial de paródia do texto de auto-aná- lise, em que o poeta põe em cena seu intenso e contí- nuo interesse em levar a arte de imaginar às últimas conseqüências. Conforme se disse antes, Fernando Pessoa não se interessava pela verdade, mas pela verossimilhança e pela lógica interna dos textos. Apontamentos sobre o nascimento de A. Caeiro. Se bem lida, essa carta não passa de uma peque- na estória para justificar a invenção de uma perso- nagem artística, que afinal jamais existiu senão como um ser imaginário, da mesma espécie de Capitu ou de Diadorim, criados por Machado de Assis e Gui- marães Rosa, respectivamente. Esses artistas não se explicaram como histéricos ou neurastênicos apenas por terem inventado figuras opostas à sua condição real. A diferença básica entre eles consiste em que, sendo pouco sistemático, Fernando Pessoa não con- cluiu o livro de poemas em que unificaria as persona- gens que inventou. Por outro lado, não é comum os poetas inventarem estilos e personalidades tão dis- tintos entre si, embora jamais se possa ver identidade entre a personagem lírica de Camões, o enunciador épico de Os Lusíadas e as personagens de seus autos. Conforme a mesma linha de raciocínio, a personali- dade artística que escreveu Alguma Poesia não é a mesma que escreveu, digamos, a Rosa do Povo ou o Claro Enigma. Sem fazer do processo de despersona- lização o centro de sua obra, Drummond também pro- duziu diversas vozes poéticas distintas. Isso quer dizer que, em arte, fingir é sinônimo de imaginar. Todavia, o caso de Pessoa, além de mais concentrado, integra um projeto artístico mais coeso de dispersão, mas não é algo essencialmente diferente da criação artística dos grandes nomes da literatura, sobretudo se se consi- derar sua vocação para a poesia dramática, tal como se percebe, por exemplo, em Shakespeare, que se di- vidiu ao mesmo tempo numa infinidade de seres dis- tintos entre si e diferentes dele mesmo. UM POETA DA NATUREZA CONTRA A NATUREZA Afirmou-se, acima, que Alberto Caeiro é poeta paradoxal. Um dos principais paradoxos — e tam- bém dos mais interessantes — de sua condição poé- tica decorre do fato de ele, mesmo negando a cul- tura e seus signos, escrever versos, refletir sobre eles nos poemas, preocupar-se em os publicar e aca- bar editando boa parte deles, ainda que apenas em revistas. Na quinta estrofe do primeiro poema de O Guardador de Rebanhos, tentando neutralizar os as- pectos culturais da poesia, afirma Caeiro: Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É minha maneira de estar sozinho.7 Como tudo quanto Pessoa escreveu, prevalece aqui uma sutil argumentação em favor da tese ado- tada. De fato, o argumento de que não ele não é poeta, e sim autor de versos, harmoniza-se com a tese do antinominalismo de Caeiro. Enfim, a idéia desses três versos é muito compatível com um pastor que considera a cultura e seus símbolos um embaraço para a real compreensão das coisas, que só ganha- riam sentido quando conhecidas em sua singulari- dade empírico-sensorial. Como se sabe esse é o tema central de seu livro. Todos os demais funcionam co- mo variantes desse motivo ou como argumentos de apoio. No conjunto, os poemas de O Guardador de SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 87 • ANGLO VESTIBULARES 6 Em Fernando Pessoa. Páginas de Doutrina Estética. Seleção, prefácio e notas de Jorge de Sena. Lisboa, Editorial Inquérito, [1946], pp. 263-264. 7 Em Poemas de Alberto Caeiro. Nota explicativa e organização de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor. Lisboa, Edições Ática, 1946, p. 20. Rebanhos apresentam-se como justaposição de dife- rentes prismas da mesma questão. Daí, sua grande unidade, não só de pensamento, mas, sobretudo, como livro de poesia lírica, pois os poemas podem ser encarados como falas reflexivas em diferentes mo- mentos da vida de um homem simples e solitário que vive numa casinha modesta, retirado no topo de um outeiro no interior de Portugal. Caeiro é tão radical na defesa da idéia central de seu livro, que chega a recusar a atribuição de nomes aos componentes da natureza. No poema 45 de O Guardador de Rebanhos (“Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.”), combate a nomeação das coisas, afirmando que não existe “renque de arvores”, há apenas árvores. Com isso, pretende dizer que a idéia de floresta é uma abs- tração inventada pela cultura, e não um componente sensível do real. O que existe são árvores, jamais floresta. No poema 27 do livro (“Só a Natureza é divina, e ela não é divina...”), desenvolve o mesmo argumento a propósito do vocábulo natureza. Se adota o termo em seus poemas, é porque precisa se comunicar com os homens que dão nome e personalidade às coisas.Todavia, argumenta que, em vez de se referir à natu- reza, as pessoas sensatas deveriam se referir ao céu, à terra e ao sol. Se procedessem assim, conheceriam, de fato, o que é a natureza; não sentiriam necessidade de nomeá-la. O poema 31 de O Guardador de Rebanhos (“Se às vezes digo que as flores sorriem”) deve ser entendido como uma variante mais radical e explícita do pro- blema do nominalismo. Aí, Caeiro penitencia-se por dizer em seus versos que “as flores sorriem” e que “os rios cantam”. Depois, justifica-se dizendo que pratica essa espécie inaceitável de metáfora, porque possui a função de ensinar aos “homens falsos” a verdadeira linguagem da natureza, que, aliás, não possui nenhu- ma linguagem.8 O poema 47 (“Num dia excessivamente nítido”), o antepenúltimo do livro, Caeiro é mais contundente na defesa daquele princípio. Aí, afirma que, por força da claridade de um dia especial, concluiu, sem nenhuma intenção filosófica ou desejo reflexivo, que o vocábulo natureza é inaceitável para designar a pluralidade da partes que a compõe: montes, vales, planícies, árvo- res, flores, ervas, rios e pedras. Por isso, reitera a no- ção de que natureza não existe, pois ela “é partes sem um todo”. Ainda uma vez, Caeiro coloca sua poesia a serviço da polêmica contra o misticismo totalizante da Renascença Portuguesa, em particular de certos poe- mas de Teixeira de Pascoais, que, alguns anos antes, Fernando Pessoa exaltara como uma das maiores expressões poéticas do mundo. Enfim, Caeiro depara-se inúmeras vezes com o paradoxo de negar a cultura, sem poder abandoná-la para se comunicar com os homens. Em certo sentido, poder-se-ia exigir dele que se limitasse a falar aos ho- mens sobre o modo correto de perceber e conviver com a realidade. Por outro lado, poderia apenas pen- sar em vez de escrever. Mas se procedesse assim, não seria poeta. Mais ainda, não poderia participar do de- bate poético com a recente tradição instaurada pelo simbolismo místico da Renascença Portuguesa. E a função básica de um poeta é fazer versos, ainda que diga o contrário. Logo, a negação da linguagem em Caeiro não é uma convicção, e sim um tema literário, que pode ser traduzido como a tópica do constante questionamento da linguagem. Em outros termos, trata-se da retomada do sentido básico de O Guar- dador de Rebanhos: a problematização da noção de cultura, de natureza, de conhecimento e de felicidade. O PARADOXO DA POESIA Já no primeiro poema de O Guardador de Reba- nhos (“Eu nunca guardei rebanhos”), Caeiro introduz o tema da poesia, de sua veiculação e de sua função social. Em rigor, esse poema merece especial aten- ção, porque nele se condensam as principais tópicas do livro, sendo que uma delas é a da condição para- doxal de um pastor que nega o valor das palavras — um símbolo cultural —, mas escreve três livros de poemas. Para dar mais densidade à sua reflexão sobre as relações da cultura com a natureza, explica que, quando senta para escrever seus versos, ou os faz andando pelos caminhos e atalhos do campo, ele os escreve num papel que traz no seu pensamento. A última estrofe do poema é inteiramente dedicada ao desenho do perfil do leitor ideal, que deverá ser um homem simples, mas dado ao hábito das letras, a ponto de ter em casa uma cadeira predileta ao lado de uma janela destinada às horas de lazer despreo- cupado, à qual deve se recolher para a leitura dos textos. Mas tal leitor não interpretará o livro como manifestação nobilitante da cultura, como fazem os homens vulgares. Ao contrário, deveria entendê-lo como se fosse algo tão natural como uma árvore. Da mesma forma, o ato da leitura seria praticado como gesto inocente e espontâneo, confundindo-se com um movimento distraído de qualquer dia. Esse final é plenamente compatível com os antecedentes do poe- ma, em que se sintetizam, como se anunciou acima, as grandes linhas temáticas do livro: a negação do pensamento, associado à tristeza existencial do indi- víduo; a eleição do conhecimento sensorial, fonte de alegria e plenitude. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 88 • ANGLO VESTIBULARES 8 Como intérprete da natureza aos homens estúpidos, considera- se “uma coisa séria”. Na edição da Companhia das Letras, que fornece uma nova leitura dos manuscritos, a expressão entre aspas surge da seguinte maneira: “essa coisa odiosa”. Essa segunda lição faz mais sentido, no conjunto do poema. Afinal, a significação geral do texto é que Caeiro interpreta a natureza aos homens falsos sem concordar com isso. Em última análise, o tema do poema é a inevitabilidade da linguagem, mesmo para um homem como Caeiro. O poema 48, o penúltimo de O Guardador de Re- banhos (“Da mais alta janela da minha casa”), retoma o primeiro poema do livro, pois redimensiona a tó- pica da relação dos poemas com o leitor, da natureza com a cultura e da alegria com a tristeza. Nele, Caeiro despede-se de seus versos, dizendo que os envia à humanidade, porque uma flor, uma árvore e um rio também se dispersam no cosmos em cumprimento de sua função existencial. Assim, os poemas não podem deixar de ser lidos. Deixar de publicá-los seria como admitir que uma flor ocultasse seu perfume; que uma árvore se negasse a frutificar ou um rio re- cusasse a correr para o mar. Conclui-se daí que a fun- ção da poesia em Caeiro é dispersar-se pelo universo, visto que não se considera um ser cultural, e sim um integrante da natureza, sendo por isso que sua poesia recusa todas as pretensões místicas e filosóficas do grupo da Renascença Portuguesa. Por serem pura matéria, os seus versos imitam o contínuo movimento físico das coisas: transformam-se e permanecem, como o próprio Universo. Em um dos Poemas Incon- juntos, Caeiro demonstra preocupação em editar seus versos, mesmo que isso venha a ocorrer depois de sua morte: Se eu morrer novo, Sem poder publicar livro nenhum, Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa [...]9 Há diversos outros poemas em O Guardador de Rebanhos, que abordam especificamente o tema da poesia e da linguagem (poemas metalingüísticos, conforme a terminologia tradicional). O conjunto deles funciona como sistematização de uma poética conscientemente assumida a favor da objetividade pagã de Caeiro e contra a poesia do nacionalismo místico de Teixeira de Pascoais. Além dos poemas co- mentados acima (o primeiro, o trigésimo primeiro e o antepenúltimo), devem-se destacar os seguintes: • O poema 3 (“Ao entardecer, debruçado pela janela”) é uma homenagem ao poeta do perío- do realista Cesário Verde (1855-1886), que in- troduziu um novo olhar estético na poesia por- tuguesa, principalmente por seu estilo con- creto e objetivo. Trata-se de um dos modelos de Alberto Caeiro. Embora Cesário Verde fosse um poeta principalmente urbano, Caeiro iden- tifica-se com ele, porque julga que “andava pela cidade como quem anda no campo”, isto é, olhava para tudo como se cada coisa tivesse uma individualidade inconfundível. A singu- laridade de seu olhar contrastava com as limi- tações culturais da cidade: por isso Caeiro afirma que Cesário Verde “andava preso em liberdade pela cidade”. O poema pode ser interpretado como uma poética do novo olhar, pois o poeta homenageado encontra-se no limiar de um novo estilo. • O poema 14 (“não me importo com as rimas. Raras vezes”) funciona como um manifesto li- terário contra o uso de rimas em poesia, por- que raramente existem duas árvores regu- lares. Em vez de fazer poesia rimada, Caeiro procura imitar a espontaneidade da água e do vento, que seguem o rumo imposto pelas condições casuais do terreno ou do clima. • O poema 28 (“Li hoje quase duas páginas”) alude quase diretamente a Teixeira de Pas- coais, dizendo que os poetas místicos são “ho- mens doentes”, pois eles dizem que a pedras, os rios e a flores possuem sentimentos hu- manos. Caeiro, ao contrário, contenta-se em respeitar as dimensões objetivasdos com- ponentes daquilo que os “filósofos doentes” chamam de natureza, negando-lhe qualquer interioridade ou sentido oculto. Por isso, sen- te-se contente e se satisfaz com a prosa de seus versos. Ao associar poesia e prosa, o poeta incorpora o prosaísmo da poesia moderna, fator decisivo em sua relação com o grupo da revista Orpheu e com os demais heterôni- mos, que o tomavam como mestre. • O poema 29 (“Nem sempre sou igual no que digo e escrevo”) desenvolve a tópica clássica segundo a qual o encanto da poesia consiste na manutenção da unidade na diversidade. Ao dizer que nem sempre seus poemas são iguais, Caeiro defende-se com a idéia de que as flores também assumem aspectos dife- rentes conforme a variação da luz. Assim, mesmo quando o poeta parece discordar de si mesmo, mantém a unidade, pois sua diver- sidade é aparente e não essencial. A unidade intrínseca de suas poesias decorre da simpli- cidade de seu ser, que imita a constituição do céu e da terra. • O poema 36 (“E há poetas que são artistas”) contém um manifesto a favor da poesia es- pontânea, escrita sob o impulso de uma ins- piração intelectual que garante ao texto coe- rência de estilo e de pensamento, tal como se observa no próprio Guardador de Rebanhos, que Caeiro, a dar crédito na estória que Fer- nando Pessoa compôs para explicar a gênese desse heterônimo, teria sido escrito pratica- mente de uma só vez. O texto desenvolve uma espécie de metáfora floral, pois preconiza um poeta que escreve sem ter consciência de que o faz, manifestando-se como uma entidade SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 89 • ANGLO VESTIBULARES 9 Em Poemas de Alberto Caeiro. Edição citada, p. 83. da natureza. No início do poema, lamenta que haja poetas que escrevem como se fossem carpinteiros, cujo trabalho depende de medida e de consciência artesanal. A esses poetas, Caeiro aplica o epíteto pejorativo de artistas, porque, em vez de escrever com espontanei- dade, compõem com razão e consciência. O poema 36 funciona, ainda, como uma poética contra a poesia construtivista, tal como a con- cebe João Cabral de Melo Neto, por exemplo. • O poema 46 (“Deste modo ou daquele modo”) apresenta uma idéia nova relativamente aos demais poemas desta série: a noção de que para escrever de modo simples é preciso de- saprender, isto é, é necessário esquecer os velhos ensinamentos, que vestem a alma de falsas noções.10 Surge também a consciência de que a espontaneidade absoluta é impos- sível, mas nem por isso o poeta deve deixar de procurá-la, como um cego que vai caindo e se levantando ao caminhar. Sabe o que deve sen- tir e escrever, mas nem sempre escreve o que sente. Além disso, este poema contém a céle- bre imagem de que Caeiro pretende deixar de ser ele mesmo para retornar à condição de “um animal humano que a natureza produziu”. O fi- nal do poema é glorioso, porque termina com alegoria colorida de que nenhum verso vale a contemplação do nascer do sol. Por isso, Caeiro julga trazer ao Universo um novo Universo: o Universo-ele-próprio, isto é, uma poesia que procura falar dele em seus próprios termos. POEMAS ANTOLÓGICOS Contrariando o conceito clássico de antologia, esta não visa a relacionar os melhores poemas de O Guardador de Rebanhos. Procura apenas relacionar e comentar brevemente os poemas mais consagrados pela tradição, que eventualmente são dos melhores do volume: • Poema 2 (“O meu olhar é nítido como um gi- rassol”): funda-se na imagem de que o poeta deve possuir o espanto que tem uma criança ao ver as coisas pela primeira vez, isto é, deve se encantar com o mundo, sem se preocupar com sua compreensão. O poeta não deve pos- suir filosofia, mas sim sentidos. Deve amar a natureza, sem se preocupar com a razão desse amor. O poema incorpora de forma muito particular a vertente do Primitivismo moder- nista, criado pelo Cubismo de Picasso e muito bem aclimatada na primeira fase do Moder- nismo brasileiro, como deixam ver as obras de Oswald de Andrade, de Mário de Andrade, de Manuel Bandeira e de Raul Bopp. Como se sabe, o segundo livro de poemas de Oswald chama-se o Primeiro Caderno de Poesias do Aluno Oswald de Andrade. Tal como no segun- do poema de O Guardador de Rebanhos, o Pri- mitivismo internacional valoriza a espontanei- dade e o frescor das imagens do inconsciente coletivo, tal como se percebe, em perspectiva diferente, em Macunaíma e em Cobra Norato. Em “Evocação do Recife”, Manuel Bandeira não quer saber da parte histórica ou turística de sua cidade, mas dos aspectos ligados à par- ticularidade de sua infância. No final do segun- do poema, Alberto Caeiro afirma que “amar é a eterna inocência e que a única inocência é não pensar”. Esse final remete ao começo, que apresenta imagens da inocência associadas ao olhar infantil. De modo geral, não só este poe- ma, mas todo O Guardador de Rebanhos é uma singularíssima versão da vertente primitivista do Modernismo europeu. • O poema 5 (“Há metafísica bastante em não pensar em nada”) é um dos mais importantes de O Guardador de Rebanhos. E também um dos mais extensos. Associa-se diretamente aos versos de Teixeira de Pascoais e de Jaime Cor- tesão, citados acima. Como se viu, esses auto- res atribuem alma às árvores, isto é, interpre- tam a natureza como manifestação da grande- za de Deus. Acreditam que cada ser possui mistérios e sentidos profundos, muito além da compreensão do homem: é a isso que se cha- ma “visão metafísica do mundo”, cujo sentido verdadeiro está sempre um pouco mais além do que o homem pode alcançar. O quinto poe- ma de O Guardador de Rebanhos, sintetizando o pensamento antimetafísico do livro, começa por atribuir densidade semântica à negação do pensamento enquanto atividade nobilitante do espírito. Ao afirmar que “Há metafísica bastan- te em não pensar em nada”, o poeta pretende dizer que o intelecto não é a única forma de conhecimento, e que o sentido do mundo não precisa ser necessariamente profundo ou mis- terioso. Consiste nisso o sensorialismo mate- rialista e ateu de Alberto Caeiro. Se Deus fosse acessível pelos sentidos, o poeta acreditaria nele. Mas como Deus não passa de um con- ceito cultural — e, portanto, invisível, inodoro, inaudível, intangível e insosso — nem sequer é considerado como parte da realidade. Os poe- mas 6 (“Pensar em Deus é desobedecer a Deus”) e 39 (“O mistério das coisas, onde está ele?”) podem ser interpretados como variantes SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 90 • ANGLO VESTIBULARES 10 A certa altura, a voz poética diz que sente o peso do fato que lhe impuseram. Como se sabe, fato quer dizer roupa, no sentido de que a educação tradicional veste a alma de falsas noções, das quais o poeta novo tem de se libertar. da mesma tópica: isto é, negam o conhecimen- to metafísico da realidade (“o sentido último das coisas”). Em seu lugar, propõe o experimen- talismo sensorial e materialista como forma mais franca e mais direta de conhecimento. • O poema 8 (“Num meio-dia de fim de primave- ra”) talvez seja o mais escandaloso de todos es- critos por Alberto Caeiro. Pensou em publicá- lo na revista Athena, mas desistiu em respeito ao fato de Ruy Vaz, seu sócio, ser católico. Tra- ta-se de uma alegoria, segundo a qual, Jesus, cansado da monotonia do céu, fugiu para a terra em forma de criança humana. Hospeda- do no casebre de Alberto Caeiro, dizia que Deus era um velho estúpido e mal educado: dizia indecência e escarrava no chão. Fora ge- rado sem amor, pois seus pais se uniram por vontade alheia. Revista Presença, em que foi publicado o poema 8. Agora, integrado à humanidade tornou-se uma criança alegre e espontânea. Praticava toda sorte de arte própria de sua idade, tendo a ino- cência e o amor como guia. A visão primitiva e sensorial que Jesus possui da natureza harmo- niza-se com a de Alberto Caeiro, que aprende uma infinidade de coisas simples com esse Deus tornado homem.A ingenuidade da crian- ça confunde-se com a vida do poeta, que o to- ma como o verdadeiro menino Jesus, por opo- sição ao da tradição, cuja origem e constituição se caracterizam pelo mistério e pela incom- preensão aos homens despretensiosos. • O poema 10 (“Olá, guardador de rebanhos”) apresenta-se sob a forma de breve diálogo entre um transeunte e o pastor. O transeunte pergunta-lhe o que lhe diz o vento. Ele explica que o vento apenas se manifesta: passa agora, como passou antes e passará depois. O outro retruca que o vento lhe falava de memórias, de saudades e de coisas que nunca existiram. Irri- tado, o pastor corrige o interlocutor, afirman- do-lhe que ele atribuía ao vento um sentido transcendente, totalmente incompatível com a verdade imanente do fenômeno. O que ouviu do vento era mentira resultante de interpreta- ção metafísica (hermenêutica). Esse tipo de mentira encontra-se no intérprete, e não na na- tureza. Mais de um dos Poemas Inconjuntos re- toma e combate essa idéia, como se observa na seguinte estrofe, tomada aqui como exemplo para o núcleo semântico dessa tópica recor- rente em toda a poesia de Alberto Caeiro: Tu, místico, vês uma significação em todas as coisas. Para ti tudo tem um sentido velado. Há uma coisa oculta em cada coisa que vês. O que vês, vê-lo sempre para veres outra coisa.11 • O poema 20 (“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”) é uma alegoria sobre a experiência pessoal contra a abstração dos conceitos. Dominada pela retórica do parado- xo, a voz poética afirma que o Tejo possui mais importância histórica, geográfica, cultural e econômica do que o rio de sua aldeia. Carrega- do de significação cultural, deixou de ser um rio natural para se transformar num rio cultu- ral, longe da realidade empírica do pastor. Por isso, embora reconheça a importância objetiva do Tejo, prefere o rio de sua aldeia. Quem está perto do Tejo pensa em muitas outras coisas acumuladas pela história cultural do rio, ao passo que o rio de sua aldeia, sendo natureza, não faz e nem pensa em nada. Por isso, é mais importante como realidade pessoal. • O poema 24 (“O que nós vemos das coisas são as coisas”) retoma e amplia noções do poema 5 e antecipa tópicas do poema 39. Sua singulari- dade mais importante, além das imagens, que são sempre novas em cada poema, consiste na explicação de que a simplicidade do conhe- cimento sensorial, que recusa a idéia de sím- bolo (uma coisa em lugar de outra), exige um grande esforço em abandonar as noções consa- gradas pela tradição secular do conhecimento convencional, que consiste numa “aprendi- zagem de desaprender”. No final, Alberto Caeiro ironiza o Saudosismo metafísico de Teixeira de Pascoais, que metaforiza a estrelas em “freiras eternas” do convento cósmico; e as flores, em “penitentes convictas de um só dia” de uma abadia celeste. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 91 • ANGLO VESTIBULARES 11 Em Poemas de Alberto Caeiro. Edição citada, p. 78. • O poema 32 (“Ontem à tarde um homem da ci- dade”) parece introduzir o tema da poesia so- cial em O Guardador de Rebanhos. Põe em cena um agitador social falando das desigual- dades dos homens, a favor dos oprimidos. Mas Caeiro, que integrava a multidão em torno do orador, não lhe dá a menor importância, expli- cando que, ao ouvi-lo, pensava nas metáforas absurdas dos poetas metafísicos. Quanto aos problemas sociais, julga que o mal do mundo decorre da preocupação de umas pessoas com outras, tanto para praticar o bem quanto para praticar o mal. Logo, considerava inútil o pro- pósito do orador da cidade. Nos Poemas Incon- juntos, há retomada dessa tópica, em poema bem semelhante, cujos primeiros versos di- zem: “Ontem o pregador de verdades dele / Falou outra vez comigo.” Tal como no poema anterior, Caeiro, neste, nega a hipótese da poe- sia social, dizendo que a existência da injustiça é tão inevitável quanto a existência da morte ou de uma pedra redonda. Em outros termos, ele quer dizer que o desejo dos homens não al- tera a constituição da realidade objetiva dos fatos. O PASTOR AMOROSO Assim como em O Guardador de Rebanhos, há uma pequena estória oculta nos versos de O Pastor Amoroso. A estória deste último pode ser resumida nos seguintes termos: um pastor, cuja função, em princípio, é cuidar de suas ovelhas, esquece-se de seu ofício por ter se apaixonado por uma linda pastora. Durante os momentos de amor, julgava que a com- panhia dela não só aprimorava seu trabalho, como também o tornava mais sensível aos encantos da paisagem. Quando ela o abandonou, deu-se conta de que nunca fora amado e que traíra o seu destino de pastor, tendo sido repreendido pelos companheiros de profissão. Os textos são petrarquistas, no sentido de apre- sentarem uma concepção idealista do amor, que se manifesta em descrições encarecedoras da amada. No poema 7, por exemplo, o pastor a descreve nos se- guintes termos: “Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro”. Se bem que a dominante do elogio à amada recai sobre a revelação das mudanças posi- tivas que ela promoveu na sensibilidade do pastor, o que, no final se prova falso, porque o afastaram da contemplação isenta da natureza. Sendo petrarquis- tas, os poemas de O Pastor Amoroso seguem a tradi- ção platônica e camoniana, integralmente adaptada ao estilo e às concepções criadas por Alberto Caeiro em O Guardador de Rebanhos. Óculos de Fernando Pessoa POEMAS INCONJUNTOS Os poemas deste livro retomam as tópicas e o estilo de O Guardador de Rebanhos. Em certo senti- do, poderiam perfeitamente integrar o mesmo con- junto, sem perda, no geral, da identidade estilística e temática. Nesse sentido, O Pastor Amoroso guarda maior autonomia, por causa do tema do amor, ausen- te nos dois outros. Um traço exclusivo dos Poemas Inconjuntos é a tópica da morte, que oferece ocasião para reflexões tão materialistas quanto as observadas em O Guar- dador de Rebanhos. Nesse sentido, convém destacar os seguintes poemas (dos quais se oferecem os dois primeiros versos para identificação, a partir do texto das Edições Ática). Requerem leitura, pela singula- ridade temática que atribuem ao livro: Quando tornar a vir a Primavera Talvez já não me encontre no mundo. * Se eu morrer novo, Sem poder publicar livro nenhum [...] * Quando vier a Primavera, Se eu já estiver morto. * Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples. * Quando a erva crescer em cima da minha sepultura [...] * Mas a guerra inflige a morte. E a morte é o desprezo do Universo por nós. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 92 • ANGLO VESTIBULARES Ainda no tema da morte, o poeta mantém a objeti- vidade materialista observada nas demais tópicas de- senvolvidas nos Poemas Inconjuntos e nos outros li- vros de Alberto Caeiro. O poeta a encara como um fe- nômeno geral, e não como algo singular e indesejável que pode surpreendê-lo a qualquer hora. A noção de que as leis que regem a vida humana são as mesmas que regem os demais movimentos da natureza é abordada de forma especial num longo texto dos Poe- mas Inconjuntos, cujo primeiro verso é “Ser real quer dizer não estar dentro de mim”. Esse texto possui par- ticular interesse, porque, nele, o poeta desenvolve o argumento de que o corpo humano é mais real do que a alma, que, conforme ele, não passa de uma inven- ção dos filósofos. Retomando a idéia básica de O Guardador de Rebanhos, esse texto ratifica o conceito de que somente o mundo exterior é real, pois so- mente ele é passível de ser conhecido pelos sentidos. O CONCEITO DE UNIDADE EM CAEIRO Alguns estudiosos negam unidade aos Poemas Inconjuntos, partindo, talvez, do sentido específico do adjetivo que qualifica tais textos: desconexos, soltos. Essa idéia é discutível. Pois, tal como se observa nos dois outros livros de Caeiro, Poemas Inconjuntostam- bém possui unidade, não só estilística quanto temá- tica, mas também unidade construtiva. Todavia, é preciso ressaltar que não se trata de uma unidade aristotélica (princípio, meio e fim bem definidos). Tra- ta-se, ao contrário, da unidade cubista, fundada na justaposição de partes aparentemente desiguais e desconexas, tal como se observa, por exemplo, no qua- dro Guernica. É o mesmo tipo de unidade contido tam- bém em “Poema de Sete Faces”, com que Drummond abre Alguma Poesia. Algo semelhante se observa nos poemas do livro Dispersão, de Mário de Sá-Carneiro, que, em consonância com certos traços do simbo- lismo de Camilo Pessanha e da vanguarda européia, adota a poética do fragmentário e do elíptico, em que as conexões se subentendem e não se explicitam. Esse é o tipo de unidade que se observa nos três livros de Alberto Caeiro, sendo certo que em O Guar- dador de Rebanhos e em O Pastor Amoroso ela assu- me configurações mais evidentes do que nos Poemas Inconjuntos. Aliás, esse tipo de unidade é espelho da preferência pela justaposição sintática em lugar da subordinação — traço decisivo para a impressão de simplicidade e espontaneidade do estilo de Alberto Caeiro. Dispersão, de Mário de Sá-Carneiro ALGUMAS EDIÇÕES DA POESIA DE CAEIRO Fernando Pessoa guardou os poemas de Alber- to Caeiro no baú de inéditos e iniciou diversos pro- jetos de editar suas poesias, tanto as assinadas com o próprio nome (poesia ortônima) quanto as assina- das pelos poetas que inventava, entre os quais se destacam Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos (poesia heterônima).12 Concebidos como personagens de um grande livro de poemas, esses heterônimos seriam unificados sob o título genérico de Ficções do Interlúdio, para as quais chegou a re- digir um prefácio. Mas tal edição jamais ocorreu, senão depois de sua morte. Ele próprio não possuía um plano definitivo em como unificar a diversidade de sua produção, pois deixou inúmeros projetos edi- toriais, quase todos divergentes entre si. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 93 • ANGLO VESTIBULARES 12 Outro heterônimo bem conhecido é Bernardo Soares, que escreveu em prosa o Livro do Desassossego, publicado em separado postumamente, em 1982. Baú de Fernando Pessoa. Depois da aventura da revista Orpheu, de 1915, Fernando Pessoa uniu-se a Ruy Vaz para criar outra revista, cuja duração seria mais extensa e sistemática que aquela. Trata-se de Athena: Revista de Arte, que circulou mensalmente em Lisboa, de outubro de 1924 a fevereiro de 1925. Nos dois últimos números dessa revista, o poeta finalmente editou boa parte da pro- dução de Alberto Caeiro, tantas vezes anunciada em bilhetes íntimos, cartas a amigos ou em conversas. De fato, no nº- 4, do volume I de Athena, saíram em or- dem crescente 23 dos 49 poemas de O Guardador de Rebanhos, sob o título geral de “Recolha de Poemas de Alberto Caeiro”, entre as páginas 145-156.13 O fa- moso poema oitavo de O Guardador de Rebanhos, que começa com o verso “Num meio-dia de fim de primavera”, seria publicado bem mais tarde, no nº- 30 da Revista Presença, em Janeiro-Fevereiro, de 1931. Pessoa publicou, ainda, 16 fragmentos dos Poemas Inconjuntos no número seguinte da Athena, entre as páginas 197-204,14 também com o título genérico de “Recolha de Poemas de Alberto Caeiro”. Um pouco mais tarde, igualmente, a Revista Presença publicaria outro dos Poemas Inconjuntos, no número de março- junho, de 1931, cujo primeiro verso é “Todos os dias agora acordo com alegria e pena”. Depois, esse poe- ma seria transferido para o conjunto de O Pastor Amoroso. Athena. A primeira edição de Alberto Caeiro em volume foi organizada por um integrante da geração Orpheu e por outro integrante da geração Presença: Luiz de Montalvor e João Gaspar Simões, respectivamente. O livro saiu em 1946, pela Edições Ática, de Lisboa, como o terceiro volume da série “Obras Completas de Fernando Pessoa”, com o título de Poemas de Al- berto Caeiro. Por ser a primeira tentativa de orga- nização dos originais, essa edição não separa os poemas de O Pastor Amoroso, publicando-os em meio aos Poemas Inconjuntos. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 94 • ANGLO VESTIBULARES 13 Athena: Revista de Arte. Diretores Fernando Pessoa e Ruy Vaz. Edição Fac-similada. Prefácio de Tereza Sousa de Almeida. Lisboa, Contexto Editora, 1983. 14 Edição citada, pp. 197-204. 1ª- Edição de Poemas de Alberto Caeiro, 1946. A segunda edição dos Poemas de Alberto Caeiro apareceu em Obra Poética de Fernando Pessoa, em alentado volume de 786 páginas, lançado no Rio de Janeiro pela Companhia José Aguilar Editora, em 1960, com estabelecimento de texto, estudos e notas de Maria Aliete Galhoz. Além de diversos textos em prosa atribuídos a outros heterônimos de Pessoa, até então pouco acessíveis ao leitor brasileiro, essa edição contém uma cronologia da vida e obra do grande poeta, organizada por João Gaspar Simões. Como o espólio de Fernando Pessoa ainda não se encontrava disponível aos pesquisadores, o texto dessa edição segue, em princípio, a lição das “Obras Completas de Fernando Pessoa”, da editora Ática, de Lisboa. Para a análise de O Guardador de Rebanhos, o presente es- tudo adotou esta edição como base de leitura e tam- bém para as citações. A partir de 1980, a Editora Nova Fronteira des- membrou o enorme volume de Maria Aliete Galhoz em diversos pequenos livros, entre os quais se conta Ficções do Interlúdio 1: Poemas Completos de Alberto Caeiro, em cuja abertura se reproduz o prefácio que Fernando Pessoa esboçou para o sonhado volume em que reuniria a produção de seus heterônimos. Se- guem-se as notas da organizadora. Na reprodução de O Pastor Amoroso, a edição da Nova Fronteira agrupa apenas cinco poemas nesta série, em vez de oito. Não os numera, e a seqüência adotada para os poemas pre- judica a compreensão da tênue unidade lírico-narra- tiva do pequeno livro. No final do volume, reproduz- se a cronologia de João Gaspar Simões, muito desa- tualizada. Em 2003, a Companhia das Letras, de São Paulo, reproduziu no Brasil uma ótima edição lançada em Portugal, em 2001, pela editora Assírio & Alvim: Poesia, Alberto Caeiro, com estabelecimento de texto, notas e dois estudos de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. Destinada a iniciados no universo pes- soano, essa edição recorre aos manuscritos, donde resultam algumas soluções divergentes do cânon tra- dicional. Além de alguns poemas inéditos, apresen- tam-se fragmentos em prosa atribuídos a Alberto Caeiro. No final do volume, cada organizador assina um ensaio de interpretação literária, ambos úteis e estimulantes.15 Há um pormenor nesta edição que a torna supe- rior a todas mencionadas anteriormente: trata-se da organização dos poemas de O Pastor Amoroso. Em- bora na nota explicativa os organizadores neguem unidade a esse livro, a maneira que adotam na dispo- sição dos textos é a única que ressalta a inegável coe- são entre os poemas, a começar pela inclusão da nu- meração dos textos, que somam oito. Por outro lado, a edição não deixa de apresentar erros tipográficos, que adulteram o sentido de alguns poemas ou invia- bilizam a formação de sentido em outros, tal como se observa, por exemplo, no terceiro verso da terceira es- trofe do poema 3 de O Guardador de Rebanhos: “Mas andava na cidade como quem não anda no campo”, em vez de “Mas andava na cidade como quem anda no campo”. No poema VII de O Pastor Amoroso, há o seguinte verso, incompatível com a lógica do estilo de Alberto Caeiro: “E prefiro pensar dela, porque dela como é tenho qualquer medo”. LEITURA E EXERCÍCIOS 1. Leia o poema 11 de O Guardador de Rebanhos para responder às perguntas que o seguem: Aquela senhora tem um piano Que é agradável mas não é o correr dos rios Nem o murmúrio que a árvores fazem... Para que é preciso ter um piano? O melhor é ter ouvidos E amar a Natureza. SISTEMA ANGLO DEENSINO • 95 • ANGLO VESTIBULARES 15 Em Portugal, há outras edições das obras de Fernando Pessoa. Como são praticamente inacessíveis no Brasil, seu registro neste estudo torna-se secundário. Quanto à produção de Alberto Caeiro em particular, os mais interessados poderão consultar a bibliografia completa organizada por José Blanco, em Portuguese & Cultural Studies 3, University of Massachusetts Dartmouth, 1999. a) Pode-se dizer que o poema é composto por uma tese e por uma antítese, enfeixadas respectiva- mente em cada uma das estrofes. Em termos semânticos, como se traduz cada um desses dois momentos da argumentação do poema? b) Esse poema pode ser entendido como mani- festação do sensorialismo primitivista de Al- berto Caeiro? Justifique brevemente. 2. No poema 48 de O Guardador de Rebanhos, Caeiro argumenta que prefere o vôo de uma ave, porque não deixa rastro, à passagem de um ani- mal, que deixa rastro. Sem rastros, o vôo da ave não anuncia sua pretérita presença; com ras- tros, o animal indica que pretérita presença, já não existe. Responda: a) Qual o tema específico abordado por meio desses exemplos? b) Pela lógica do poema, qual o tempo preferido pelo pastor: o passado ou o presente? Mencio- ne outro poema de O Guardador de Rebanhos em que ressurge o tema do tempo. 3. Os críticos António José Saraiva e Óscar Lopes, em sua História da Literatura Portuguesa (Porto, Porto Editora, 12ª- ed., 1982, p. 1047) afirmam que a criação de Alberto Caeiro é uma reação contra o transcendentalismo saudosista (alusão clara ao nacionalismo metafísico do grupo Renas- cença Portuguesa e a Teixeira de Pascoais). Assi- nale os versos de Caeiro que não podem ser en- tendidos como manifestação desse debate cul- tural: a) O que nós vemos das coisas sãos as coisas. Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra? b) Os poetas místicos são filósofos doentes, E os filósofos são homens doidos. c) Leio até me arderem os olhos O livro de Cesário Verde. d) O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mis- tério. Pensar em Deus é desobedecer a Deus, Porque Deus quis que o não conhecêssemos, Por isso se nos não mostrou... 4. (UNIFESP-2004) Considere as seguintes informa- ções sobre o heterônimo Alberto Caeiro, do poeta Fernando Pessoa, extraídas de Literatura Portuguesa — da Idade Média a Fernando Pes- soa, de José de Nicola: “Para [ele], as coisas são como são. (...) Por isso mesmo, seu mundo é o mundo do real-sensível (ou real-objetivo), é tudo aquilo que existe e que percebemos através dos sentidos. (...) ele ‘pensa’ com os sentidos.” Os versos que ilustram o heterônimo apresenta- do são a) Sou um guardador de rebanhos. / O rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensa- mentos são todos sensações. / Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz e a boca. b) Amemo-nos tranqüilamente, pensando que po- díamos, / Se quiséssemos, trocar beijos e bra- ços e carícias, / Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro / Ouvindo correr o rio e vendo-o. c) Não matou outros deuses / O triste deus cris- tão. / Cristo é um deus a mais, / Talvez um que faltava. d) Dizem que finjo ou minto. / Tudo que escrevo. Não. / Eu simplesmente sinto / Com a imagina- ção. / Não uso o coração. e) Já disse: sou lúcido. / Nada de estéticas com coração: sou lúcido. / Merda! Sou lúcido... RESPOSTAS 1. a) Na primeira estrofe exaltam-se as virtudes de um instrumento da cultura, o piano, que pode conviver com a natureza, embora em condi- ções inferiores de qualidade. Na segunda, o piano é excluído como produtor agradável de sons. Em lugar dele, propõe-se o contato di- reto do homem com os sons da natureza, e não com os da cultura, que os imita sem a mesma autenticidade. b) Sim, pode, porque insinua que é melhor ou- vir o ruídos da natureza (riachos e árvores) do que as harmonias artificiais de um piano. O piano, quando muito, poderia conduzir à apre- ciação da arte (cultura); ao passo que o con- vívio com as árvores e com os rios aguçaria os sentidos para o conhecimento da própria vida, sem mediações culturais. O poema fun- ciona como uma pequena alegoria sobre as supostas vantagens da natureza sobre a cultu- ra, porque uma gera a técnica; a outra, o amor. 2. a) O tema do tempo, implícito na idéia da recor- dação deixada pelas marcas do animal. b) O presente, pois o vôo da ave indica sua pre- sença, uma manifestação inequívoca do mo- mento presente e da realidade. O passado ex- clui a presença do animal, deixando apenas sua recordação na subjetividade do homem. Por isso, é irreal. Outro texto do livro que fala do tempo é o poema 44 (“Acordo de noite subi- tamente, / E o meu relógio ocupa a noite toda.”) Em rigor, esse poema é uma alegoria da idéia de que a imensidão do tempo não cabe nas en- grenagens de uma pequena máquina cultural. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 96 • ANGLO VESTIBULARES 3. C Comentário: Cesário Verde é um dos modelos para a criação do estilo de Alberto Caeiro, com cuja objetividade prosaica a personagem pes- soana se identifica. Por isso, faz um poema-ho- menagem a ele em O Guardador de Rebanhos. 4. A Comentário: A percepção sensorial do mundo conduzia Alberto Caeiro a uma valorização das sensações, o que é confirmado pelos versos da alternativa A: “E os meus pensamentos são to- dos sensações / Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o na- riz e a boca.”. Além disso, é de se notar que o tí- tulo do livro de Caeiro que Pessoa concebeu na ocasião em que viu surgir o heterônimo é O Guardador de Rebanhos, expressão que igual- mente aparece no trecho do poema transcrito. BIBLIOGRAFIA SELETA COELHO, Jacinto do Prado. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. 3ª- ed., Lisboa, Editorial Verbo, 1969. GAMA, Rinaldo. O Guardador de Signos: Caeiro em Pessoa. São Paulo, Perspectiva / IMS, 1995. GOMES, Álvaro Cardoso. “O Retorno à Inocência”. Em Fernando Pessoa: as Muitas Águas de um Rio. São Paulo, Pioneiro / Edusp, 1987. PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro. Or- ganização de João Gaspar Simões e Luiz Mon- talvor. Lisboa, Edições Ática, 1946. . Obra Poética. Organização, in- trodução e notas de Maria Aliete Galhoz. 3ª- ed. Rio de Janeiro, José Aguilar Editora, 1969. . Ficções do Interlúdio 1: Poemas Completos de Alberto Caeiro. Organização de Maria Aliete Galhoz, com cronologia de João Gaspar Simões. 10ª- impressão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, s/d. . Poesia. Alberto Caeiro. Edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. . Páginas de Doutrina Estética. Se- leção, prefácio e notas de Jorge de Sena. Lis- boa, Editorial Inquérito, [1946]. . A Nova Poesia Portuguesa. Prefá- cio de Álvaro Ribeiro. Cadernos Culturais. Lis- boa, Editorial Inquérito, s/d. SARAIVA, António José e Óscar Lopes. História da Literatura Portuguesa (Porto, Porto Editora, 12ª- ed., 1982). SIMÕES, João Gaspar. Vida e Obra de Fernando Pessoa: História de uma Geração. Vol. I. Lisboa, Livraria Bertrand, [1951]. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 97 • ANGLO VESTIBULARES