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Oliveira, SANTOS, Norma Suely d., ROMANOS, Maria Villela, WIGG, Dutra. Virologia Humana, 3ª edição. Guanabara Koogan, 03/2015. VitalBook file. ▶ História da Virologia Surtos abruptos, muitas vezes de proporções epidêmicas, marcaram o início da história das doenças infecciosas. Os avanços científicos no final do século XIX e início do século XX resultaram no sucesso da prevenção e do controle de muitas doenças infecciosas, particularmente nas nações industrializadas. Apesar dessa melhoria na saúde, surtos de doenças infecciosas continuam a ocorrer e novas enfermidades surgem. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), dentre as doenças infecciosas que afligem o ser humano, cerca de 60% são de etiologia viral. A dimensão desse problema tem sido exaustivamente discutida no meio científico e foi brilhantemente sintetizada pelo médico e biólogo molecular americano Joshua Ledeberg, laureado com o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1958, que disse: “Os únicos reais competidores da humanidade pelo domínio do planeta são os vírus, os quais podem servir como parasitas e elementos genéticos nos seus hospedeiros. Os vírus não só apresentam uma plasticidade genética que os capacita a evoluir em novas direções, como também mostram a capacidade de interação genética e metabólica com as células infectadas, que os coloca em posição de mediar alterações evolucionárias cumulativas nas células hospedeiras. Contudo, o efeito das infecções virais não é sempre sutil; os vírus podem também dizimar uma população.” ■ Pré-história | Primeiros indícios da existência dos vírus As evidências sobre as infecções virais surgiram desde os primeiros registros de atividades humanas, sendo empregados vários métodos para combatê-las, mesmo antes do conhecimento da existência da partícula viral como agente etiológico de doenças. É possível afirmar que a Virologia desempenha um importante papel na história da evolução humana devido ao caráter predatório dos vírus, o que contribui para a seleção natural das espécies. As implicações médicas das infecções virais demandaram esforços extraordinários por parte dos pesquisadores, culminando com o desenvolvimento da Biologia Molecular, erradicação de várias doenças e elucidação dos processos celulares, vitais para o funcionamento do organismo vivo. Desde que os primeiros seres humanos deixaram de ser nômades, domesticando animais e invadindo terras, os variados contatos intra e interespécies tornaram-se mais frequentes, possibilitando que diversos tipos de patógenos, dentre eles os vírus, fossem transmitidos e mantidos nas populações. Nesse tempo, os vírus extremamente virulentos, como os vírus do sarampo e da varíola, responsáveis por epidemias que dizimavam rapidamente as comunidades não imunes, provavelmente não seriam capazes de permanecer infecciosos por um longo período. Nesse caso, somente quando a densidade demográfica tornou-se mais consistente, esses vírus foram capazes de subsistir. Consequentemente, os vírus que apresentavam uma relação mais benigna e que puderam manter um contato mais intenso com o hospedeiro foram os primeiros a se adaptar no início da civilização, tais como os vírus do papiloma, os herpesvírus e os retrovírus. As doenças virais começaram a ser registradas nas civilizações egípcias e greco-romanas. Na Mesopotâmia, no ano 1000 a.C., já existiam leis que descreviam a responsabilidade dos donos de animais domésticos e suas consequentes obrigações, caso esses animais ficassem raivosos. As leis estabeleciam, para os donos displicentes, pesadas multas ou até mesmo morte. O poeta grego Homero, no século XX a.C., em sua obra Ilíada, descreve a personalidade “raivosa” do personagem Heitor e o “cuidado” necessário em lidar com ele, referindo-se à conduta dos donos de animais daquela época. Esses fatos demonstram o conhecimento da natureza contagiosa das doenças e o medo do contato com animais doentes para a sua propagação. Foi encontrada uma tábua com origem na civilização egípcia, datada do século XIV a.C., que mostra o desenho de um cidadão com deformidade anatômica semelhante àquela causada pelo vírus da poliomielite, e a múmia do faraó Ramsés V, falecido no século XII a.C., apresentando sequelas de varíola na face, além de hieróglifos relatando sua morte em virtude dessa doença. Outras doenças virais, conhecidas desde os tempos remotos, são a caxumba, a influenza e a febre amarela, esta última descrita desde a descoberta da África pelos europeus. É possível que o vírus da febre amarela (que provoca febre elevada e delírios, podendo levar à morte) tenha sido o responsável por dizimar as tripulações dos grandes barcos comerciais, sendo provavelmente o verdadeiro responsável pela lenda do navio fantasma O Holandês Voador, que, naquela época, assustava as tripulações dos navios em alto-mar. Os seres humanos não foram apenas acometidos por doenças virais durante a maior parte da sua história, eles também manipularam esses agentes, ainda que não soubessem disso. Um exemplo clássico é o cultivo de tulipas com diferentes padrões, as quais eram extremamente valiosas na Holanda do século XVII. Esse cultivo incluía a disseminação deliberada de um vírus (vírus do mosaico da tulipa) que, agora se sabe, causa o padrão listrado nas pétalas das tulipas tão cobiçadas naquela época. Os esforços para controlar as doenças virais têm uma história ainda mais impressionante. É provável que a varíola já fosse endêmica na Ásia e Europa no século V e tenha tido um papel importante na história humana. Os colonizadores do Velho Mundo, no século XV, disseminaram o vírus da varíola entre os povos das Américas Central e do Sul, o que provocou uma epidemia letal, considerada um fator importante nas conquistas realizadas por um pequeno número de soldados europeus. A primeira medida de controle utilizada contra essa doença foi a variolação, que consistia na inoculação de material coletado de pústulas de varíola em uma escarificação realizada no braço de indivíduos saudáveis. No século XI, a prática era comum na China e Índia e baseava-se no fato de que os sobreviventes da varíola eram protegidos contra infecções subsequentes (boxe “História da varíola”). Este procedimento foi introduzida na Inglaterra em 1721 por Lady Mary Montague, esposa do embaixador britânico no Império Otomano. Em 1776, George Washington introduziu a variolação entre soldados do exército americano. As consequências da variolação eram imprevisíveis e podiam levar a óbito 1 a 2% dos indivíduos submetidos ao procedimento, porém os riscos eram aceitáveis no século XVIII quando 1 em cada 10 pessoas (10%) morria de varíola. Edward Jenner, médico inglês, observou que ordenhadores que eram expostos a cowpox (varíola de bovinos, branda em humanos) passavam a ser protegidos contra a varíola humana. Ele demonstrou que a inoculação de um garoto com extrato de lesões de cowpox induzia apenas lesões brandas e o protegia contra a varíola humana. Desses experimentos com cowpox, surgiu o termo vacinação (vacca = vaca em latim). Desenvolvimento do conceito de vírus Na segunda metade do século XIX, já era conhecida a existência de bactérias, fungos e protozoários, e a comunidade científica debatia a questão da origem desses microrganismos. Alguns acreditavam que os microrganismos surgiam espontaneamente (p. ex., em virtude de matéria em decomposição); outros acreditavam que os microrganismos eram gerados por reprodução, a exemplo do que ocorre com os organismos macroscópicos. A teoria da geração espontânea foi desconsiderada quando o médico francês Louis Pasteur demonstrou que o meio de cultura esterilizado permanecia livre de microrganismos enquanto fosse mantido em um recipiente especial com pescoço longo e curvo, projetado para impedir a entrada de ar contendo “micróbios”. Em 1840, o médico alemão Jacob Henle sugeriua hipótese da existência de agentes infecciosos capazes de causar doenças, mas muito pequenos para serem observados ao microscópio óptico. Na ausência de evidências diretas desses agentes, suas ideias não foram aceitas. Na segunda metade do século XIX, três importantes avanços da Microbiologia levaram à aceitação da teoria dos “germes como causadores de doença”. O primeiro foi protagonizado por Louis Pasteur, em 1867, que estudou o fenômeno da fermentação e demonstrou que diferentes tipos de microrganismos estavam associados a diferentes tipos de processos, tais como a produção de álcool, ácido láctico ou ácido acético. Essa ideia foi fundamental para a concepção das teorias sobre o desenvolvimento das doenças. No segundo evento, Joseph Lister, cirurgião inglês, admirador do trabalho de Pasteur, teorizou que as infecções de feridas abertas eram causadas por microrganismos presentes no ambiente. Lister introduziu as técnicas assépticas, tendo realizado a primeira cirurgia nesse contexto e demonstrado a importância da antissepsia para reduzir as infecções durante cirurgias; além disso, ainda contribuiu para o estabelecimento da técnica de diluição para obter culturas puras de bactérias. O terceiro evento foi protagonizado por Robert Koch, médico alemão e estudante de Jacob Henle. Koch desenvolveu a metodologia de isolamento de colônias bacterianas em meio sólido e demonstrou que o bacilo antraz (Bacillus anthracis) era o causador do carbúnculo (ou antraz) em bovinos. Ele usou essa metodologia para estabelecer culturas puras de uma única espécie de bactéria a partir de material de uma vaca infectada. Posteriormente, injetou uma amostra da cultura pura em animais saudáveis, os quais desenvolveram a doença; finalmente, isolou a mesma bactéria a partir dos animais inoculados. Koch também demonstrou que um bacilo era o causador da tuberculose em humanos. Embora vários cientistas tenham contribuído para os conceitos anteriormente mencionados, foram basicamente os estudos de Pasteur, Lister e Koch que criaram uma nova abordagem experimental para a ciência médica e deram origem aos quatro postulados de Koch, para definir se um microrganismo é o causador de uma doença. Os postulados de Koch são: • O organismo deve ser regularmente associado à doença e a suas lesões características • O organismo deve ser isolado do indivíduo doente em cultura pura • A inoculação da cultura pura do organismo em um hospedeiro saudável deve reproduzir a doença • O mesmo organismo deve ser isolado da lesão desse novo hospedeiro. Ao final do século XIX, esses conceitos se tornaram um paradigma na comunidade médica e delinearam um método experimental para ser utilizado em todas as situações. O não preenchimento de todos os postulados de Koch na identificação do agente causal de diversas doenças culminou com o desenvolvimento do conceito de uma nova classe de agentes infecciosos submicroscópicos – os vírus. ■ Descobertas pioneiras Em 1876, Adolf Mayer, químico alemão, verificou que uma das doenças que acometia o tabaco apresentava natureza infecciosa e podia ser transmitida de uma planta para outra por inoculação de plantas saudáveis com o sumo extraído de plantas doentes. Além disso, ele observou que o agente infeccioso era inativado quando aquecido a 80°C. Essa foi a primeira transmissão experimental de uma doença de planta. Embora a natureza infecciosa da doença tivesse sido estabelecida, não foi possível isolar bactéria ou fungo desse extrato e os postulados de Koch não puderam ser cumpridos. Em um comunicado preliminar de seus achados, publicado em 1882, Mayer especulou que a causa da doença poderia ser “solúvel, possivelmente uma enzima”. Contudo, em 1886, quando publicou as conclusões finais do estudo e denominou a infecção descrita por ele de doença do mosaico do tabaco (devido ao aspecto das lesões presentes nas folhas doentes), concluiu que essa doença era causada por uma bactéria que ele não havia conseguido isolar. História da varíola Da varíola à primeira vacina Através dos séculos, a varíola foi uma doença muito conhecida pela população mundial. Houve relato do primeiro caso identificado em 2000 a.C., na China e leste da Ásia. No Egito, hieróglifos relatam que o faraó Ramsés V morreu em decorrência de varíola, em 1157 a.C. Esse vírus chegou à Europa em 710 d.C. por meio das batalhas das antigas Cruzadas e de migrações populacionais. A varíola veio para as Américas em 1519, quando Hernan Cortêz foi nomeado para conquistar o império Asteca; alcançou a proporção de praga epidêmica nas cidades europeias, durante o século XVIII, e permaneceu amedrontando a população com o passar dos séculos, até ser considerada erradicada. O último caso da doença foi relatado na Somália, em 26 de outubro de 1977. Prevenção Na tentativa de evitar e curar a varíola, curandeiros chineses inventaram um método, denominado variolação, que envolvia a técnica de coletar crostas das lesões de vítimas da doença, transformar em pó e fazer com que os pacientes o inalassem. Eventualmente, esse procedimento apresentava resultado satisfatório; outras vezes, não, principalmente devido às diferenças entre estirpes que eram divididas em virulentas (25 a 30% de mortes) e menos virulentas (menos que 1% de mortes). A técnica de variolação era amplamente praticada na China e espalhou-se para muitos países do Oriente Médio. Durante muitos séculos, a variolação foi realizada por inoculação de fluido preparado de crostas da varíola nos braços dos pacientes, fazendo arranhões pequenos com uma agulha. Lady Mary Wortley Montague, esposa do embaixador britânico no Império Otomano, contraiu varíola em 1715, sofrendo de intensa escarificação facial e perda dos cílios, ficando quase cega. Em 1718, enquanto vivia na Turquia, ela permitiu que seu filho de 6 anos fosse variolado, mesmo sob rigorosos protestos do corpo diplomático da embaixada inglesa em Constantinopla. Contudo, as consequências da variolação eram imprevisíveis e desagradáveis, pois lesões sérias se desenvolviam, invariavelmente, nos sítios de inoculação, sempre acompanhadas de febre e exantema generalizado, com índice de mortalidade em torno de 1 a 2%. Em 1776, em Boston (EUA), a variolação foi colocada em prática nos soldados do exército americano pelo Reverendo Cotton Mather, com o consentimento de George Washington. No entanto, assim como na Inglaterra, esse método também encontrava resistência da classe médica. Edward Jenner (1749-1823) foi variolado em 1756 – uma experiência que nunca pôde esquecer. Por volta dos 13 anos, tornou-se aprendiz de cirurgia e estendeu seus estudos por 7 anos, continuando a trabalhar em Londres até a idade de 23 anos, quando se transferiu para Berkeley (Inglaterra). Jenner teve a ideia da vacinação quando um antigo professor de cirurgia, ao visitá-lo em sua pequena quinta, lhe disse que uma ordenhadora de vacas tornara-se protegida da infecção por varíola após ter contraído lesão branda nas mãos adquirida por contato direto com vacas portadoras de cowpox (varíola bovina). Além disso, em 1774, o fazendeiro Benjamin Jesty relatou sua experiência de inocular sua esposa e filhos com as lesões de vaca infectada com cowpox, do mesmo modo que era feito no Oriente Médio, por escarificação com agulhas nos braços. Não se sabe se Jenner tomou conhecimento daquele fato, mas em 14 de maio de 1796, ele vacinou um menino de 8 anos de idade, chamado James Phipps, com material de lesões de cowpox originadas das mãos de uma ordenhadora de vacas, Sarah Nelmes. Esse menino nunca adquiriu varíola, mas desenvolveu uma pequena lesão no local de inoculação, que regrediu em 2 semanas. Em 1 o de julho de 1796, o menino foi submetido a uma segunda inoculação, dessa vez com material de lesões de varíola de pessoas infectadas, e ele não ficou doente. Tal fato deu origem ao nome vacinação.Muitas pessoas influentes ficaram contra Jenner, inclusive Sir Joseph Banks, presidente da Real Sociedade Britânica, que se recusou a aceitar o seu manuscrito para publicação; além disso, Jenner era considerado uma fraude. Contudo, a vacinação tornou-se uma prática amplamente utilizada por dois motivos: devido aos benefícios óbvios e ao fato de que Jenner gastou o resto de seus dias promovendo as vantagens da vacinação por todo o mundo. No momento de sua morte, em 25 de janeiro de 1823, a vacinação estava aceita e amplamente praticada por todo o mundo, incluindo EUA e Inglaterra. Erradicação Jenner foi a primeira pessoa a propor a erradicação da varíola por meio da vacinação, em 1801. Em 1950, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adotou como meta a erradicação da varíola nas Américas; fato que, pelas projeções da Organização, levaria em torno de 8 anos. Em 1958, a OMS lançou o programa mundial, mas tornou-se real somente em 1965. Entre 200 e 300 milhões de doses da vacina antivariólica foram produzidas e aplicadas anualmente, e a vacinação alcançou o sucesso esperado pelo desenvolvimento do método por agulhas bifurcadas, em 1968, que tornou mais fácil e efetiva a administração das doses. O último caso natural relatado foi em 26 de outubro de 1977. Inicialmente, a única maneira de se conseguir manter e propagar o vírus cowpox para obtenção da vacina era por propagação seriada de um braço a outro, mantendo o vírus circulante. Mas esse método era associado também à transmissão de outras doenças, tais como sífilis e hepatite. Em 1845, descobriu-se que o vírus para produção de vacinas poderia ser conseguido em larga escala, por inoculação por escarificação dos flancos de bovinos, com a estirpe original retirada da mão das ordenhadoras; posteriormente, em ovelhas e búfalos (no século XIX). Posteriormente, a vacina passou a ser produzida, em larga escala, em cultura de células. Em um dado momento, o vírus isolado por Jenner foi inexplicavelmente substituído pelo vírus da vaccínia, relacionado com o camelpox (varíola do camelo), fato elucidado recentemente pela determinação de sua sequência genômica. Trata-se de um fato interessante a ser relatado, pois, mesmo após bilhões de doses de vacina terem sido aplicadas, ainda não se sabe o que ou como isso aconteceu. Certamente, a vacina original utilizada por Jenner era derivada do cowpox, mas o vírus utilizado posteriormente para a produção de vacinas, ainda é um mistério da ciência. Situação atual da varíola no mundo A varíola está considerada erradicada, e já é conhecida a sequência genômica do vírus desta doença, do vírus cowpox e do vírus da vaccínia. Alguns segmentos das comunidades científicas e governamentais propuseram que todo o estoque de vírus da varíola fosse eliminado com segurança. Entretanto, essa proposta é intensamente debatida, pois ainda há quem considere prudente a manutenção do vírus para estudos futuros. Desde a década de 1980, após a declaração de erradicação da doença, foram destruídas as culturas do vírus da varíola existentes em vários laboratórios do mundo. Somente dois laboratórios receberam permissão para manter suas amostras – um nos EUA e outro na Rússia. A data de 30 de junho de 1999, para alguns, seria o último prazo para destruição dos estoques de varíola; no entanto, em abril de 1999, o presidente americano Bill Clinton decidiu manter os estoques nos Centers for Disease Control and Prevention (CDC), sob o argumento de que isso seria “essencial para o desenvolvimento de novos fármacos antivirais e vacinas”. Em 1885, quase uma década antes do reconhecimento da existência dos vírus, Louis Pasteur desenvolveu uma vacina contra a raiva – a segunda desenvolvida para uso em seres humanos e a primeira produzida após a atenuação da patogenicidade do agente infeccioso. Tal atenuação foi obtida pela inoculação seriada do patógeno em coelhos. Em seguida, o material retirado de coelhos infectados foi “envelhecido” em frascos de vidro. Posteriormente, Pasteur mediu o grau de atenuação inoculando o material “envelhecido” em coelhos saudáveis. Após 2 semanas, a capacidade de o agente matar os animais foi completamente eliminada; entretanto, Pasteur nunca investigou a natureza do agente infeccioso. Em 1892, Dimitri Ivanovsky, biólogo russo-ucraniano, repetiu o experimento de Mayer com tabaco e confirmou que o sumo das folhas doentes continha um agente que podia transmitir a doença para plantas saudáveis. Ivanovsky demonstrou ainda que o agente infeccioso era capaz de passar pelo filtro de Chamberlain, filtro de porcelana que contém poros muito pequenos que impedem a passagem de bactérias. Assim como Mayer, ele não conseguiu cultivar o microrganismo e atribuiu o fato a alguma falha da sua metodologia, sugerindo até a possibilidade de uma toxina ser a causadora da doença. Entretanto, mais tarde, seu experimento tornou possível uma definição de vírus – agente filtrável – e uma técnica experimental pela qual um agente poderia ser definido como vírus. Em 1898, Martinus Beijerinck, um microbiologista holandês que trabalhou com Adolf Mayer e desconhecia o trabalho de Ivanovsky, também demonstrou a filtrabilidade do agente do mosaico do tabaco. Ele confirmou os experimentos de Mayer de que o agente poderia ser inativado pelo calor, aquecendo-o a 90°C, excluindo assim a possibilidade de ser um esporo. Contudo, Beijerinck deu um passo adiante e demonstrou que o extrato infeccioso poderia ser diluído e então readquirir sua potência após a inoculação em folhas saudáveis; ou seja, o agente era replicado (o que significava que não era uma toxina), mas precisava ser em tecido vivo. Isso explicava a falha de Meyer em cultivar o patógeno fora do hospedeiro. Beijerinck criou as bases para a descoberta de um microrganismo menor que uma bactéria, filtrável, não observado ao microscópio óptico e replicado apenas em células ou tecidos vivos. Denominou esse agente de contagium vivum fluidum, enfatizando sua natureza infecciosa e suas propriedades físicas e reprodutivas peculiares. Nesse ponto, duas propriedades fundamentais das características dessa nova classe de patógenos já estavam estabelecidas: eles eram menores que as bactérias, uma vez que conseguiam atravessar os poros de filtros que retinham bactérias, e precisavam de células vivas para a sua propagação. Esses patógenos passaram a ser chamados de agentes filtráveis. Mais tarde, o termo virus, do latim, que significa veneno, passou a ser utilizado para denominar os patógenos que se enquadravam nos critérios estabelecidos por Mayer, Ivanovsky e Beijerinck, com base na descoberta do agente da doença do mosaico do tabaco, que foi o primeiro patógeno que não cumpria os postulados de Koch naquela época. No mesmo ano de 1898, os cientistas alemães Friedrich Loeffler e Paul Frosch, ambos estudantes e assistentes de Robert Koch, demonstraram a filtrabilidade do agente causador da febre aftosa, uma doença de bovinos. Em 1901, em Cuba, Walter Reed, médico militar americano, isolou pela primeira vez um vírus patogênico para seres humanos: o vírus da febre amarela, cuja identificação propiciou uma nova e importante descoberta – era um vírus transmitido por mosquitos. De fato, a hipótese de transmissão da doença por artrópode já havia sido levantada em 1881 pelo médico cubano Carlos Juan Finlay de Barres. Esse mesmo pesquisador, em 1882, identificou o mosquito do gênero Aedes como o agente transmissor da febre amarela, mas somente 20 anos mais tarde os estudos de Walter Reed confirmaram essa teoria. Em 1908, os cientistas dinamarqueses Vilhelm Ellerman e Oluf Bang descobriram que era possível transmitir leucemia de uma galinha para outra por meio da inoculação de extrato de células sanguíneas. Na ocasião, não foi dada a devida importância ao trabalho, pois, naquela época, a leucemia não era considerada uma doença maligna e,além disso, o estudo com galinhas não era “interessante”. Em 1911, Francis Payton Rous, médico americano, demonstrou que o sarcoma de galinhas poderia ser transmitido pela inoculação de um extrato do tumor e, portanto, deveria ser causado por um agente transmissível, provavelmente um vírus. Como câncer não é contagioso, a descoberta da etiologia viral de câncer de galinha foi rapidamente relegada à condição de “curiosidade científica”. Assim, Rous desistiu de seus estudos sobre vírus oncogênicos e, nos quase 20 anos subsequentes, houve pouco progresso na área de oncovirologia. Em 1966, Rous foi laureado com o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina por seus estudos sobre câncer. A descoberta de uma categoria de agentes diferentes de todos os microrganismos conhecidos foi revolucionária. Essa ideia enfrentou uma oposição forte, e não foi aceita rapidamente, dando origem a um ciclo de 25 anos de debate sobre a natureza desses agentes (os vírus são sólidos ou líquidos?), que só terminou após a descoberta dos bacteriófagos e da primeira observação por microscopia eletrônica do vírus do mosaico do tabaco (TMV). Era dos bacteriófagos Em 1915, Frederick Twort, médico e bacteriologista inglês, ao tentar isolar o vírus de uma amostra de vacina da varíola, inoculou o material em ágar nutritivo; ele não conseguiu isolar o vírus, mas bactérias contaminantes cresceram rapidamente no meio. Twort notou que algumas colônias bacterianas sofreram alteração, tornando-se mais transparentes. Essas colônias não mais podiam ser cultivadas, indicando que as bactérias estavam mortas. Twort denominou o fenômeno de “vitrificação”; ele ainda demonstrou que a infecção de uma colônia normal de bactérias com esse material transparente poderia matá-las. Essa entidade era filtrável, poderia ser diluída e readquirir a potência ao ser novamente inoculada em bactérias. Twort publicou uma nota descrevendo o fenômeno e sugerindo que se tratava de um vírus de bactéria. Seu trabalho foi interrompido pela I Guerra Mundial, na qual ele serviu; ao retornar a Londres, não retomou a pesquisa sobre o assunto. Nesse mesmo tempo, Felix d’Herelle, médico e bacteriologista franco-canadense, estava trabalhando no Instituto Pasteur em Paris (França). Em 1915, ocorreu um surto de disenteria causado por Shigella em um esquadrão da cavalaria do exército francês, em Maisons-Lafitte, nos arredores de Paris. Felix d’Herelle isolou a bactéria que estava causando a doença e observou áreas circulares translúcidas nas quais não havia crescimento bacteriano, denominando esse fenômeno de plaque (ou placa); ele também observou que, quando as placas apareciam, as bactérias morriam. Uma emulsão filtrada das fezes dos pacientes foi misturada à cultura da bactéria e inoculada em placas de ágar e, novamente, as áreas translúcidas apareceram. No hospital do Instituto Pasteur, ocorreram diversos casos de disenteria e d’Herelle acompanhou o caso de um paciente, desde a admissão até a convalescença, a fim de determinar em que momento da doença ocorria o surgimento das placas, notando que o tempo de aparecimento das placas era o mesmo que o paciente levava para ficar curado. Felix d’Herelle atribuiu a cura à atividade dos vírus de bactérias e denominou-os de bacteriófagos ou fagos (phagos, em grego, significa ato de comer). Em 1918, d’Herelle realizou o primeiro experimento com fagos em seres humanos sofrendo de disenteria, com sucesso, dando origem ao que posteriormente passou a ser denominado de fagoterapia (boxe “Fagoterapia | Passado e presente”). Entretanto, somente a minoria dos pesquisadores da época reconheceu a importância dos bacteriófagos. Outros interpretaram os resultados de d’Herelle de forma distinta; alguns achavam que as placas eram produzidas pelas próprias bactérias, enquanto outros consideravam a possibilidade de ser alguma substância produzida pelo corpo em virtude da infecção bacteriana. Em 1919, ocorreu uma epidemia de tifo aviário na França; assim, Felix d’Herelle teve a oportunidade de estudar o comportamento dos fagos em animais. Na tentativa de comprovar sua hipótese de que os fagos eram responsáveis pela cura da doença, d’Herelle tratou inicialmente os animais infectados e, posteriormente, utilizou uma mistura de culturas de bacteriófagos ativos contra Salmonella na água das aves em que a epidemia estava em curso. As aves infectadas foram curadas e a epidemia foi extinta. Em 1920, durante uma epidemia de cólera, d’Herelle observou que caso não fosse detectado um bacteriófago ativo contra o Vibrio cholerae nas primeiras 48 h da doença, os pacientes sucumbiam. Por outro lado, ao ser detectado um fago ativo contra a bactéria, o paciente se recuperava rapidamente, independentemente da intensidade dos sintomas. Novamente, d’Herelle atribuiu a cura à atividade dos fagos. Os estudos de Felix d’Herelle levaram ao desenvolvimento da metodologia de titulação viral por placas, o primeiro método de quantificação de vírus. Ele também argumentou que o surgimento das placas evidenciava que os vírus eram partículas em vez de líquidos. Além disso, d’Herelle demonstrou, por meio de experimentos de cossedimentação de vírus e células bacterianas, que a primeira etapa da infecção viral era a adsorção do agente à célula hospedeira e que esse processo somente ocorria se a bactéria fosse suscetível ao vírus – demonstrando assim a especificidade do hospedeiro ao vírus. Devido à importância dos seus achados, Felix d’Herelle é considerado o Pai da Virologia. Contribuições da química e da bioquímica para a elucidação da natureza dos vírus No início da década de 1920, começaram as pesquisas com enzimas (proteínas) e métodos para sua purificação. A noção de que os agentes filtráveis eram constituídos por proteínas começou a se intensificar entre 1927 e 1931; em 1929, C. G. Vinson e A. W. Petre, do Boyce Thompson Institute for Plant Research, em Nova York (EUA), aplicaram o processo de separação de proteínas ao sumo de folhas do tabaco que apresentavam a doença do mosaico. Eles observaram que, após tratamento prévio com etanol, acetona e sais, as partículas precipitadas migravam em um gel de eletroforese submetido a um campo magnético, de modo semelhante ao que acontece a uma proteína. Esse foi outro passo importante na Virologia, pois provou a existência de proteínas nos agentes filtráveis. No mesmo ano, Helen Purdy, também do Boyce Thompson Institute, realizando análises de precipitação, demonstrou que o antissoro produzido em coelhos contra o sumo das plantas infectadas com TMV apresentava comportamento diferente do antissoro contra o sumo de plantas saudáveis. Purdy também demonstrou que o antissoro contra o sumo de planta infectada era capaz de neutralizar 90% da infecciosidade do TMV; seus experimentos reforçaram a teoria de que os vírus eram constituídos por proteínas. Após a purificação do TMV, foi possível estudar suas propriedades físico-químicas. Em 1933, o bioquímico alemão Max Schlesinger, trabalhando com preparações de bacteriófagos em Frankfurt (Alemanha), demonstrou que eles eram formados por proteínas e também continham fosfato e ácido desoxirribonucleico (DNA). Em 1935, Wendell Meredith Stanley, bioquímico americano, do Rockefeller Institute em Nova Jersey (EUA), purificou o TMV, o que resultou em uma preparação infecciosa formada por cristais em formato de agulhas, cuja análise química mostrou a existência de proteína. Essa realização rendeu a Stanley o Prêmio Nobel de Química, em 1946; 1 ano depois, Frederick C. Bawden e Norman W. Pirie, trabalhando na Rothamsted Experimental Station, em Londres (Inglaterra), mostraram que os cristais de TMV também continham fósforo e ácido ribonucleico (RNA). Em 1939, os alemães G. A. Kauche, E. Pfankuch e H. Ruska obtiveram a primeira micrografia eletrônica de um vírus – o TMV. Os achados de Stanley trouxeram uma nova perspectivanão somente para a Virologia, mas também para a Biologia. Uma vez que os vírus podiam ser cristalizados e manter sua capacidade replicativa, talvez a natureza biológica da replicação pudesse, então, ser explicada em termos químicos. Independentemente da natureza do material genético, este tinha que conter informações, além de apresentar a capacidade de ser copiado com precisão. Até a descoberta de Stanley, a estrutura das macromoléculas celulares ainda não era conhecida e muitos acreditavam que o material genético fosse composto de proteínas e que, portanto, não seria possível compreender a hereditariedade em termos químicos. Os achados de Stanley colocaram fim a esse pensamento e marcaram o início da Biologia Molecular. Virologia moderna Como os vírus são dependentes da célula hospedeira, eles devem usar as mesmas regras, sinalizações e vias regulatórias do hospedeiro. Essa ideia começou com o grupo dos fagos e continuou com o grupo de Virologia animal; em pouco tempo, os virologistas começaram a fazer grandes contribuições para todas as áreas da Biologia. Mecanismos importantes da maquinaria de transcrição eucariótica foram elucidados pelos estudos com vírus; a maioria dos dados experimentais sobre fatores de transcrição foi obtida a partir de estudos in vitro, com o vírus de símios SV40 e com os adenovírus. O conhecimento atual dos mecanismos de reconhecimento dos promotores da RNA polimerase III foi obtido, em parte, por meio de estudos com adenovírus. Quase todo o conhecimento sobre as etapas de processamento do RNA mensageiro começou com observações feitas em vírus. Os estudos sobre a regulação da tradução utilizando poliovírus e TMV foram bastante produtivos. Os vírus de animal também tiveram papel central no desenvolvimento da tecnologia de DNA recombinante. A descoberta da enzima transcriptase reversa nos retrovírus ajudou a explicar o processo de replicação desse vírus e disponibilizou uma ferramenta essencial na produção do DNA complementar (DNAc). O primeiro mapa de enzima de restrição de um cromossoma, Hind III, foi produzido com DNA do SV40; alguns dos primeiros experimentos de clonagem de DNA foram feitos com o DNA do SV40 inserido em fago λ (lambda) ou o gene da β-hemoglobulina humana inserido no DNA do SV40 para a construção do primeiro vetor de expressão de mamíferos. Grande parte do conhecimento sobre as origens dos cânceres provém de dois grandes grupos de vírus de animal: os retrovírus e os vírus tumorigênicos de DNA. Os oncogenes foram descritos inicialmente em vírus e, posteriormente, no genoma da célula hospedeira, usando o vírus do sarcoma de Rous. Foi também demonstrada associação entre vírus tumorigênicos de DNA e genes supressores de tumor; a proteína p53 foi descrita pela primeira vez em associação ao LT-Ag do SV40. Além disso, por meio de estudos com o SV40, adenovírus e poliomavírus humanos, observou-se que eles codificam oncogenes que produzem proteínas que interagem e inativam as funções dos produtos de dois genes supressores de tumor, Rb e p53. Bibliografia Creager ANH. The life of a virus: tobacco mosaic virus as an experimental model 1930 – 1965. The University of Chicago Press Ltd., Chicago, EUA, 2002. d’Hérelle F. Sur un microbe invisible antagoniste des bacilles dysentérique. Acad Sci Paris. 1917; 165: 373-5. Dublanchet A, Bourne S. The epic of phage therapy. Can J Infect Dis Med Microbiol. 2007; 18: 15-8. Ellis EL, Delbrück M. The growth of bacteriophage. 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