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A Clínica Como Prática Política. Deleuze, G. e Guattari, F. Kafka. Por une littérature mineure. Paris Minuit, 1975, p.32.

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125
A cl ín ica como prát ica po l í t ica
Jô Gondar
Certa vez, numa sessao de análise de grupo - prática comum durante os
anos 70 e 80 - uma senhora muito distinta expressou ao psicanalista Hélio Pelle-
grino a sua preocupaçao com a fome do Nordeste, demonstrando pesar com o
descaso da classe política brasileira diante do problema. Conhecido por seus
artigos e ações contra a ditadura militar, Pellegrino interrompeu a paciente,
taxativo: "Nao estou interessado nas suas opiniões sobre o Nordeste. Quero
saber é do seu Nordeste interior". 
Haveria neste comentário uma separaçao entre a clínica e política?
Estaria ele indicando que a atividade política só poderia se exercer fora da clínica,
devendo esta se restringir à resoluçao de conflitos individuais? Para o senso
comum, e talvez para alguns psicanalistas, é justamente deste modo que as
coisas se passam: de um lado teríamos os sofrimentos individuais, tratados pela
psicanálise; por outro os sofrimentos coletivos, demandando a ação política.
Ou, o que é mais grave: se crê que a prática psicanalítica tenderia a reforçar a
divisão, ou reduzindo a vontade política a figuras edipianas, ou extrapolando
para a esfera social problemas da intimidade familiar - baseando-se, por exemplo,
na idéia de que os sujeitos revolucionários estariam atuando um conflito com o pai. 
Reduzir o social ao Édipo ou engordar o Édipo fazendo-o abranger o
campo social são procedimentos semelhantes. Mas o trabalho purificador, aquele
que separa o sofrimento individual do coletivo ou o espaço clínico do sócio-
político, segue os mesmos princípios. Em todos esses casos, parte-se de uma
cisão entre a economia desejante e a economia política. Ora, a intervenção de
Pellegrino age justamente contra essa cisão: ela convoca uma paciente que se
ocupa de questões políticas, mantendo incólumes as questões do seu desejo, a se
confrontar com um terceiro mundo íntimo, a não separar o desejo da política. A
fome e a pobreza não são assuntos de salão, nem temas exteriores à subjetivi-
dade. Trata-se sempre de uma mesma economia, na qual o desejo é político e
toda revolta é desejante.
LUGAR COMUM No19, pp. 125-134
Há um primeiro vetor que faz da clínica psicanalítica uma prática
política: o seu compromisso com o desejo. Este é o eixo da psicanálise, e nao o
Édipo ou o significante. O desejo não é algo que se busque lá atrás, na história
de vida familiar, nem algo que se expresse unicamente através da palavra. Não
é algo que esteja pronto, aguardando a descoberta, mas um Rubicão a ser
atravessado, um espaço social e político a conquistar. Kafka escreve de forma
revolucionária, segundo Deleuze e Guattari, porque é capaz de "encontrar seu
próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro
mundo, seu próprio deserto".1 Desterritorialização e criação se conjugam na
obra de Kafka, mas poderíamos dizer que também se conjugam, com mais ou
com menos pujança inventiva, em qualquer processo desejante, individual ou
coletivo. O que está em questão é a possibilidade de desejar a partir do próprio
desapossamento. Não porque falte algo ao desejo, mas porque ao afirmá-lo
somos lançados num jogo sem o suporte de qualquer regra prévia. Por este motivo,
tentamos nos esquivar de uma afirmação desejante de maneiras diversas - às vezes
sob a forma de uma preocupaçao política sem investimento libidinal, como num
chá de senhoras. É porque lançar-se e afirmar o seu lance, sem a garantia dos
códigos que protegem pela sujeição, desestabiliza os jogos de poder e as regras
que os sustentam. Nesse sentido, as questões com as quais a clínica psicanalítica
se defronta são inevitavelmente políticas, mesmo quando surgem no seio de
uma família, numa escola ou numa relação amorosa: trata-se sempre do quanto
e do como o desejo pode se produzir e se expressar diante das injunções de
assujeitamento.
Mas a clínica também é uma prática política a partir de um segundo
vetor. É que orientada pelo desejo, ela visa uma mudança. Um modo de ação e
relação que pretende transformar a condiçao dos homens - eis uma definição
que serve, ao mesmo tempo, para a clínica e para a política. É verdade que o
exercício clínico ocupa uma pequena parte dos jogos de poder. Entretanto também
é verdade que esses jogos se realizam, a cada instante, através de pequenas
partidas. Neste sentido, pode se dizer mais rigorosamente que a prática clínica
se realiza num plano micropolítico. 
A CLÍNICA COMO PRÁTICA POLÍTICA126
1 Deleuze, G. e Guattari, F. Kafka. Por une littérature mineure. Paris: Minuit, 1975, p.32. 
Etimologicamente, a palavra clínica remete ao ato de inclinar-se sobre
o leito de quem sofre. Porém quem se inclina pretende curar, e uma cura, a
despeito da diversidade de sentidos que lhe sejam atribuídos, jamais pode ser
realizada de modo desinteressado ou neutro. Como nos lembra o etnopsiquiatra
Tobie Nathan, "curar é um ato de pura violência contra a ordem do universo. E
nenhuma terapêutica é mais violenta do que aquela que se dedica a curar a
alma."2 De fato, quando o sofrimento reside na alma, na subjetividade, aquele
que se inclina não o faz simplesmente para despojar alguém de suas dores, mas,
principalmente, das estratégias de existência associadas a essas dores, engajando
todo o ser daquele que sofre. Deste modo, uma cura é algo muito diverso de uma
decupagem: para além da eliminação do sintoma ou do sofrimento, está em
questão um novo modo de subjetivar-se. 
Tomar parte na fabricação de uma outra maneira de viver não é desvelar
verdades estabelecidas no passado. Bem mais que isso, trata-se de combater o
sistema de crenças sobre as quais essas verdades se erigiram, para que outras
crenças e outras escolhas se tornem possíveis. Muitas vezes, é preciso propiciar
o surgimento do próprio registro da crença, da possibilidade de acreditar, princi-
palmente quando o clínico se depara com indivíduos cuja estratégia existencial
consiste em tomar a situação dada, presente ou passada, como uma fatalidade
diante da qual ele nada pode fazer - uma estratégia da impossibilidade de escolha,
ou, melhor dizendo, um modo de vida no qual o indivíduo escolheu não escolher.
Investir em mudanças no campo subjetivo é combater práticas de assujeitamento
que fecham ou esgotam o campo de possíveis, propiciando a criaçao de outros
possíveis ou mesmo do próprio possível, quando o campo parece esgotado.3
É claro que este combate e esta abertura não se travam no plano indi-
vidual. Um indivíduo solitário não produz por si mesmo uma mutaçao subjetiva,
seja qual for o espaço em que isso se dê. No espaço clínico, esta mutação se
processa num encontro, num entre-dois - não entre um indivíduo e outro, mas
numa terra de ninguém - ou, em termos propriamente psicanalíticos, numa
Jô Gondar 127
2 Nathan, T. L´influence qui guérit. Paris: Odile Jacob, 1994, p.13.
3 A idéia é de Deleuze. Ver, por exemplo, L´épuisé, que se segue a Quad et autres piéces pour
la télévision, de Samuel Beckett. Paris: Minuit, 1992.
A CLÍNICA COMO PRÁTICA POLÍTICA128
relação transferencial. Relação entendida como um campo de experimentações
subjetivas, de acolhimento e combate, onde se violenta a ordem do mundo para
criar, dentro deste mundo, um modo singular de existência. A transferência não
implicaria simplesmente uma suposiçao de saber, nem tampouco atualizaria
uma realidade inconsciente pré-existente; ela trabalharia para criá-la e extrair o
máximo de consequências possíveis dessa criação, favorecendo, neste sentido,
a reapropriaçao dos modos de produção da subjetividade. 
Desejo e controle
Evidentemente, nem toda clínica, e nem mesmo toda clínica psica-
nalítica, é exercida ou, pelo menos, norteada desta maneira. Afirmá-la como
prática políticanao significa dizer que ela é sempre revolucionária, e sim que
ela é necessariamente comprometida. Hoje, mais do que nunca, o biopoder e a
produção padronizada da subjetividade são as formas pelas quais o capitalismo
globalizado busca se espraiar e se perpetuar. O trabalho sobre o qual ele se
assenta é cada vez mais imaterial: agora a força de trabalho é extraída da alma,
o que faz do capitalismo um modo de produção de subjetividade. A vida
humana em sua dimensão mais íntima - saúde, sexualidade, reprodução, mas
também afetos, percepções, sensibilidade - tornou-se um foco privilegiado das
estratégias e dos cálculos do poder. Justamente por isso, as mudanças subjetivas
que implicam, de fato, uma singularização - e nao uma diferença rapidamente
fagocitada pela lógica do mercado - aparecem como eixo de mudança e como
núcleo de resistência política. Neste momento, as profissões que se interessam
pelo discurso do outro e os lugares de experimentação subjetiva encontram-se,
como escreve Guattari, "numa encruzilhada política e micropolítica fundamental.
Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que nao nos permitem criar
saídas para os processos de singularizaçao, ou, ao, contrário, vão estar trabalhando
para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades e dos
agenciamentos que consigam pôr para funcionar."4
4 Guattari, F. e Rolnik, S. Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986, p.36.
Jô Gondar 129
De uma maneira ou de outra, todos nós, clínicos ou nao, estamos
implicados em processos de produção subjetiva. A questão está em inventar
modalidades clínicas de enfrentamento dos problemas políticos com os quais
hoje nos deparamos, construindo saídas para a singularização num momento em
que o socius trabalha, mais fortemente do que nunca, para esvaziar o potencial
desejante das subjetividades, o seu potencial de crítica e de revolta. O mercado
mundial demanda indivíduos maleáveis, fluidos, rapidamente adaptáveis às
mudanças, para que não se criem obstáculos ao rolo compressor da nova ordem.
Negri e Hardt falam do Império como um poderoso vórtice, "uma espécie de
espaço liso pelo qual deslizam subjetividades sem resistência ou conflito
substanciais." 5
Num primeiro olhar, o que a clínica contemporânea nos oferece são
mostras incisivas deste alisamento: os indivíduos padecem sem fazer de suas
dores uma questão sobre si próprios ou o que os cerca, sofrem com a invasão de
sensações e sentimentos que não sabem nomear nem detectar porquê e de onde
vêm, dificilmente afirmam um desejo ou o endereçam a algo, e muitas vezes
respondem à invasão de afetos com passagens ao ato sem mediações ou intervalos
de elaboração. O existir é por eles experimentado como solidão e desamparo
diante de uma fatalidade inexorável, com a qual se confrontam sem qualquer
mediação: "é assim, e não há nada a fazer." Como então exercer hoje uma clínica
combativa, comprometida com o desejo, quando justamente o desejo parece ter
saído do combate?
Contudo, um sintoma ou um sofrimento subjetivo não deixam de ser
uma denúncia de que a produção de uma subjetividade padronizada falhou em
algum lugar. A máquina emperra, vaza, ou se desgoverna. Sem dúvida, a nova
ordem se alimenta dos desequilíbrios, modulando-os e controlando-os para se
reequilibrar, como um funâmbulo numa corda bamba - e a sofisticação cres-
cente da indústria de medicamentos e das classificaçoes psiquiátricas que a
legitimam são um exemplo de sua capacidade de inclusão do desgoverno. Mas,
5 Negri, A. e Hardt, M. Império. Rio de Janeiro/Sao Paulo: Record, 2001, p.218. Cabe acres-
centar que Negri e Hardt assim descrevem um primeiro momento do controle imperial, o da
incorporação das diferenças. Num segundo momento, o Império afirma as diferenças aceitas
em seu domínio para, em seguida, administrá-las e hierarquizá-las.
A CLÍNICA COMO PRÁTICA POLÍTICA130
e o desejo? Nenhuma DSM o considera, e sobretudo na última - DSM IV 6 -
mesmo a dignidade do sofrimento desaparece em funçao de um porte dessubje-
tivado de transtornos: para a American Psychiatric Association, ninguém mais
sofre de neurose obsessiva; ao invés disso, torna-se um portador de TOC
(transtorno obsessivo-compulsivo), categoria bem mais fluida e descompro-
metida, já que quem o porta pode facilmente, com a medicação adequada,
deixar de portá-lo. A psiquiatria medicamentosa não visa a cura, e sim a elimi-
nação do transtorno. 
Todavia, um sintoma não é um transtorno, não é um problema; é, de
fato, uma tentativa de solução, uma estratégia de existência diante de problemas
colocados para um sujeito que pôde, de algum modo, percebê-los, mas que
talvez não tenha encontrado palavras ou ações mais afirmativas para enfrentá-
los. Nesse sentido, um sintoma ou um modo de sofrimento podem ser vistos
como tentativas de traçar linhas de fuga, como formas particulares de criar
derivas ante os imperativos universais ou, em suma, como uma possibilidade de
resistência aos projetos homogeneizadores. A partir dessas brechas, desses
intervalos de liberdade que o sofrimento instaura, pode-se exercer, na clínica,
um trabalho de subjetivação.
Mas essas brechas se modificam. Não se sofre nem se resiste hoje
como no início do século, quando a psicanálise surgiu. Freud tomou como
paradigma dois modos de subjetivação - a histeria e a neurose obsessiva - cuja
produção sintomática se pautava no desafio (histeria) e na transgressao (neurose
obsessiva) endereçados às instâncias de poder. O sofrimento ganhava então a
forma de um conflito psíquico - entre eu e inconsciente, eu e outro, lei e trans-
gressão, desejo e imperativos morais. Uma lógica que, segundo Eherenberg,
seria tributária das sociedades disciplinares: "O homem do conflito relacionava-
se com um fora que lhe era superior, estava submetido a uma lei e a uma hierarquia
fortes, seu corpo docilizado pelas disciplinas".7 Este modo subjetivo ainda
6 A DSM é um manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais elaborado pela American
Psychiatric Association em 1952, tornando-se desde então a referência para a classificação dos
distúrbios mentais no campo da psiquiatria. Este manual sofreu revisoes em 1968 (DSM-II),
1980 (DSM-III) e 1994 (DSM-IV).
7 Ehrenberg, A. La fatigue d´être soi. Dépression et societé. Paris: Odile Jacob, 1998, p.234.
Jô Gondar 131
existe, mas tem perdido terreno para outras estratégias existenciais. Para haver
conflito, é preciso delimitar os lugares e circunscrever a seara do inimigo - seja
um patrão ou uma classe, uma autoridade simbólica ou uma instância psíquica
recalcante.
Isso não ocorre nos modos de padecimento cada vez mais presentes na
atualidade. Nas compulsões, no pânico, nas disposiçoes depressivas e nos fenômenos
psicossomáticos os fluxos afetivos deslizam de um ponto a outro desconhecendo
fronteiras que os organizem em oposições; o funcionamento subjetivo se frag-
menta e dispersa, e a economia psíquica não mais se regula por instâncias
limitadoras ou intervalos de elaboração. O que nos leva de volta à questao
colocada mais acima: que outras formas de resistência se forjam nestes novos
modos de sofrer? Neste controle a céu aberto, onde encontrar brechas para
exercer um trabalho clínico? Por onde passaria o desejo?
Tomemos como exemplo as compulsões - por comida, drogas, álcool,
etc. Estes indivíduos não ingerem por prazer ou desejo; eles obedecem a um
comando imperioso que os impele sofregamente a agir, sem que se interponha,
entre a ordem e o ato, um intervalo de tempo, uma zona de indeterminação, um
momento de escolha. Este comando é um imperativo categórico, no sentido
kantiano: a ordem se impõe de maneira totalizante, desconsiderando as incli-
naçoes subjetivas particulares, os prazeres ouas posições de desejo. É preciso
agir a qualquer preço, para além de toda escolha singular que poderia fornecer
a esse ato uma consistência desejante. Neste caso, não estamos mais diante de
um imperativo disciplinar, visando o adestramento do excesso ou a regulação
do desejo, mas de um imperativo de controle que incita e se alimenta da dester-
ritorializaçao permanente. A transgressão aqui se torna impossível, já que todo
desregramento termina por nutrir a instância ordenadora. Acossado por este carrasco
íntimo que não lhe deixa brechas ou possíveis, o indivíduo é conduzido a práticas
auto-destrutivas.
À primeira vista, os funcionamentos compulsivos parecem uma
produção direta do poder, exemplos máximos do acachapamento de singulari-
dades ao qual nos encontramos todos expostos. Os compulsivos seriam indivíduos
impossibilitados de escolher ou, de outro modo, indivíduos que não conseguem
contrair possíveis. Há, contudo, uma escolha que por eles foi feita: a escolha de
A CLÍNICA COMO PRÁTICA POLÍTICA132
um modo de padecer, com sua parcela de protesto e de denúncia. A cada época
e a cada sociedade correspondem formas de sujeição e formas de resistir ao
assujeitamento. Elas não podem ser separadas, assim como a flanerie de Baude-
laire é impensável sem os aglomerados urbanos da modernidade. Da mesma
maneira - ou melhor, de maneira diferente - as compulsões são tentativas de
singularização, ainda que sob uma forma inusitada...
Agir a qualquer preço é um imperativo de controle que não se impõe
apenas aos compulsivos. Estamos imersos numa cultura da iniciativa, na qual os
indivíduos são maciçamente convocados a distinguir-se por seus atos individuais
sem que o socius lhes forneça tempo ou referenciais subjetivos para fazê-lo.
Instado a agir de qualquer maneira, por sua própria conta e a partir de um ter-
ritório existencial precário, o indivíduo jamais se sente à altura do que lhe é
exigido. Ora, o que fazem os compulsivos é exibir o potencial suicida da
proposta, estendendo sua implementaçao ao último grau da lógica. Vivemos
numa economia do excesso? Os compulsivos estão sempre dispostos a esticar
a corda um pouco mais. Estamos submetidos a um imperativo impossível de ser
cumprido? Os compulsivos fazem dele o motor do seu movimento. Exacerbam
um dispositivo para constituir sua estratégia de resistência, como se uma trans-
formação só pudesse se dar pela extremidade da forma. De fato, esses indivíduos
fazem mais do que obedecer cegamente a um imperativo de controle; é justa-
mente por levá-lo às últimas consequências que eles se tornam incontroláveis.
Resistem às injunções amplificando a sua lógica e instaurando uma hiperbológica,
para utilizar a expressao de Lacoue-Labarthe: "a lógica da troca indefinida entre
o excesso de presença e o excesso de perda, a alternância da apropriação e da
desapropriação".8 Buscam assim extrair, da própria violência de uma ordem, o
seu momento de virada.
Qual a política na clínica, hoje?
Não se trata aqui de fazer o elogio de uma linha de fuga suicidária. Se
o compromisso da psicanálise é com o desejo, não há como compactuar com a
8 Lacoue-Labarthe, P. A imitação dos modernos. Ensaios sobre arte e filosofia. Sao Paulo: Paz
e Terra, 2000, p.203.
133
auto-destruição presente nesta forma de deriva. Entretanto, uma linha de
fuga, qualquer que ela seja, é sempre uma tentativa de singularização. A
questão não seria a de combater a linha de fuga em si mesma, impondo limites
ao que se encontra desgovernado, tentando, talvez, fazê-lo recuperar o governo
pelo retraimento da deriva. A questão tampouco seria a de produzir um recal-
camento ou um conflito onde ele não ocorre, ou, em suma, a de estabelecer
marcações ou fronteiras num espaço liso, visando transformá-lo num espaço
estriado. Seria inútil, no plano clínico e político, buscar o retorno de um
modo contemporâneo de subjetivação às suas formas modernas, como se
pudéssemos, através da reinstauração da disciplina, combater imperativos de
controle.
Neste ponto, é importante precisar o adversário: a luta é contra os
imperativos, e não contra as linhas de fuga que dele tentam se esquivar. Se
nos contrapomos a estas, fechamos a única possibilidade de escape vislum-
brada por aquele que sofre. A acolhida do sofrimento é, assim, concomitante
ao esvaziamento dos imperativos. Combatê-los implica criar um campo de
possíveis no sufocamento a céu aberto que os pacientes vivenciam, seguindo
mais adiante pelas pistas que seu próprio sofrimento indica.
Mas o que quer dizer, nesse caso, ir mais adiante? Significa fornecer
uma escuta e um olhar atentos para que a tentativa de singularização expressa
numa modalidade de sofrimento - mesmo se auto-destrutiva - possa trans-
formar-se numa alternativa consistente. Com efeito, ao hiperbolizar a lógica
vigente, o compulsivo age nas possibilidades que lhe são dadas, mas não cria
outras possibilidades. Ele resiste levando às últimas consequências os pos-
síveis existentes, sem, contudo, inventar um possível para si mesmo. Desse
modo, seu intento de traçar uma linha de fuga se mantém no plano do
protesto e da denúncia, porém não chega à criação de um modo de vida: a
resistência às injunções se faz por um vetor agressivo que retorna sobre o
próprio indivíduo.
E contudo há aí uma escolha - por um modo de sofrer e resistir, ainda
que não exitoso. Aliás, aqueles que lidam com compulsivos não deixam de
notar a enorme potência vital que esses indivíduos dispõem: é preciso ter
muita energia para escolher passagens ao ato como estratégia existencial.
Jô Gondar
A CLÍNICA COMO PRÁTICA POLÍTICA134
Esta escolha é um sinal de vida, sem dúvida aflito e aturdido, mas mesmo assim
um índice de que a condição desejante se mantém, a despeito da violência dos
imperativos. Nesse caso, o acolhimento e as intervenções do psicanalista precisariam
ir além da mera escuta de palavras ou da produção de interpretações. Os
pacientes contemporâneos expressam uma revolta que ainda não encontrou suas
palavras,9 motivo pelo qual as interpretações que buscam desconstruir significados
tornam-se inócuas, quando não perigosas. As intervenções desterritorializantes e o
encurtamento do tempo das sessões trabalhariam, de fato, a favor do fortalecimento
dos imperativos de controle. Ao invés disso, seria preciso apostar nas chamas de vida,
nos lampejos desejantes que muitas vezes brotam em pequenos gestos, mudanças
na tonalidade do olhar e da voz, agindo mais diretamente no campo pulsional. 
Trata-se de construir um território a partir do qual o indivíduo possa
experimentar sua capacidade de crer - não apenas em alguém, mas em si mesmo,
na legitimidade de suas percepções sobre si e o entorno, e naquilo que o singu-
lariza. Esse território se constrói no encontro transferencial. Em sua dupla vertente
de acolhimento e combate, a transferência se torna um campo de experimentação
de signos e afetos, de discriminação de sensações e, sobretudo, de espera. É
preciso haver tempo para que os ínfimos lampejos desejantes possam encontrar
uma chance de expressão, articulação e reconhecimento. São essas fagulhas que
o trabalho clínico procura reverberar e fazer persistir, permitindo que o desejo
ganhe mais densidade e consistência. Nenhuma montagem a priori sustenta este
trabalho; ele é tático, processual, exercido no próprio movimento, abrigando e
aproveitando as menores oportunidades de ativação do desejo. 
O que significa curar, hoje? Nao significa, evidentemente, combater a
estratégia de resistência de quem sofre, pois esta estratégia lhe permite manter-se
desejante. Curar é seguir adiante nessa possibilidade mesma, dando-lhe um
pouco mais de ar, para que uma vida que resiste pelo sofrimento possa inventar,
no mundo e contrao mundo, o seu próprio modo de ser. 
Jô Gondar é filósofa e professora da Uni-Rio.
9 Ver Kristeva, J. Sentido e contra-senso da revolta: poderes e limites da psicanálise. Rio de
Janeiro: Rocco, 2000.

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