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Este livro está disponível gratuitamente no site: www.servicosocialparaconcursos.net 5Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 5-6, jan./mar. 2013 Editorial O tema da proteção social é retomado neste número sob diferentes ângulos, num momento histórico de crise do capitalismo presente de forma globalizada tanto nos países centrais como nos periféricos. No artigo de abertura, contempla-se em sentido abrangente, uma densa aná- lise comparativa entre as distintas realidades da proteção social na França e no Brasil. Consideradas as condições sócio-históricas desses países, são apontadas tendências de alocação do fundo público, o impacto da dinâmica da dívida pública e da financeirização no conjunto das despesas e, sobretudo, as semelhanças e dife- renças entre as experiências de cada um deles, que se entrelaçam na totalidade, nas palavras da autora. Detendo-se na realidade latino-americana, especificamente na Argentina, um segundo artigo toma como objeto de reflexão, a política social naquele país, num contexto de disputa das perspectivas da proteção social. Tendo como foco um pro- grama de Transferência Monetária Condicionada, são analisadas as tensões entre as condições e formas de organização do trabalho, as desigualdades contemporâneas, bem como a controversa questão das condicionalidades presentes em programas dessa natureza, que os distancia de perspectivas universalistas de proteção social. Ainda na temática da proteção social, uma análise da política de assistência social brasileira e suas funcionalidades face às estratégias neodesenvolvimentistas de crescimento econômico e justiça social é apresentada em artigo que tem como cenário a inserção da economia brasileira na totalidade do capital. Dando seguimento a este número da Revista, dois artigos trazem reflexões sobre o trabalho do assistente social e seu arcabouço jurídico-político. O primeiro deles apresenta a discussão sobre a complexa relação entre a Educação como polí- tica pública e a sua vinculação ao Serviço Social, em especial, sua integração à escola pública neste momento de crise do capital. Trata-se de um debate relevante e crescente, por seu aprofundamento recente e pela ampliação de vagas na área, além de contribuir para a luta histórica pelo reconhecimento da política de educação pública como locus de exercício profissional do assistente social. O outro artigo, relevante e oportuno para o debate profissional, é fruto de pesquisa documental e tem por escopo avaliar criticamente se o aparato e as salvaguardas jurídico-político, construídos historicamente pelos assistentes sociais, principalmente pelo conjunto 6 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 5-6, jan./mar. 2013 CFESS-CRESS, tendo em vista seu estatuto de trabalhador assalariado, são sufi- cientes para melhor qualificar seu fazer profissional e contrapor-se aos níveis de desemprego e precariedade do trabalho, possibilitando a ampliação do espaço sócio- -ocupacional e condições de trabalho e remuneração adequadas. Os últimos artigos trazem uma contribuição à reflexão de temas presentes na construção heurística das Ciências Sociais e da teoria social. O primeiro deles aborda as polêmicas e contradições que têm acompanhado as discussões acerca da cientificidade no campo das Ciências Sociais e suas controvérsias paradigmáticas no intuito de pensar a realidade social, e que nos convida a refletir sobre esse tema no âmbito do Serviço Social, seja na perspectiva da formação de profissionais ou dos espaços sócio-ocupacionais nos quais a profissão se insere. O outro artigo, que tem por base o pensamento de Marx, Engels e Lukács, problematiza as categorias de práxis, gênero humano e natureza, sustentando que a generidade humana se funda sobre a práxis e evolui segundo uma dinâmica que reforça os elementos sociais, reduzindo as determinações naturais sobre a forma de vida humana. Completando este número da Revista, apresenta-se a resenha do livro de Ri- cardo Lara, A produção de conhecimento no Serviço Social. O mundo do trabalho em debate, resultado de sua tese de doutoramento. Nessa obra, de cunho bibliográ- fico, o autor realiza interlocução com alguns dos mais significativos intelectuais que influenciaram e continuam influenciando, a produção de conhecimento e a práxis do Serviço Social. Trata-se, conforme conclusão da autora da resenha, de um livro que expõe com clareza a opção ideológica e política em favor do trabalho, da classe trabalhadora e do ser social, de interesse de todos(as) que se debruçam sobre as temáticas relativas ao mundo do trabalho numa perspectiva crítica e eman- cipatória. 7Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 França e Brasil: realidades distintas da proteção social, entrelaçadas no fluxo da história* France and Brazil: different social security realities interwoven in the historical flow Elaine Rossetti Behring** Resumo: Este artigo analisa a destinação de recursos dos orçamen- tos nacionais do Brasil e da França no ano de 2010, com destaque para a seguridade social, mostrando tendências da alocação do fundo pú- blico, o impacto da dinâmica da dívida pública e da financeirização no conjunto das despesas e, sobretudo, as semelhanças e diferenças entre as experiências e condições históricas distintas de um país capitalista periférico e outro central, mas que se entrelaçam na totalidade. Palavras-chave: Fundo público. Orçamento público. Seguridade social. França. Brasil. Abstract: This article analyzes the allocation of resources of 2010’s Brazilian and French national budgets, with emphasis on social security, by showing trends in the allocation of public funds, the impact of the dynamics of public debt and the finance of all expenditure. Above all, it analyzes the similarities and differences between the different historical experiences and conditions of a peripheral capitalist country and a central one, which are, however, involved in the whole capitalist logic. Keywords: Public fund. Public budget. Social security. France. Brazil. * O presente artigo é uma síntese dos principais resultados de nossos estudos quando da realização do pós-doutorado na Universidade de Paris VIII, Cresppa-CSU, a partir da gentil recepção do prof. Yves Sinto- mer — a quem expresso meu agradecimento —, e com suporte da Capes — Brasil, desenvolvendo projeto intitulado Fundo Público, Orçamento e Seguridade Social: um estudo comparado Brasil — França. ** Doutora em Serviço Social (UFRJ) e professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Ja- neiro (UERJ), Brasil. É autora de vários trabalhos sobre o tema da política social. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social — Gopss — CNPq e bolsista de pós- -doutorado da Capes na Universidade de Paris VIII, Cresppa-CSU. E-mail: elan.rosbeh@uol.com.br. ARTIGOS 8 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 Introdução A proteção social está, neste momento histórico de crise do capitalismo, no olho do furacão, tanto no espaço geopolítico onde mais se desen-volveu, a Europa, como também no Brasil e demais países da Améri-ca Latina. No velho continente, a crise se manifesta hoje1 de forma contundente por meio da dívida dos Estados, que evoluiu de maneira explosiva após as operações de salvamento das instituições financeiras entre 2007 e 2009.2 A res- posta a esse crescimento da dívida, ilegítima e odiosa, dependendo da história dos países (Chesnais, 2011), vem sendo programas de austeridade, o que inclui cortes ou redimensionamentos dos gastos públicos, com destaque para os sociais, proces- so que unifica o novo e o velho continente. Mas inclui também, e destacadamente, processos de mercantilização e privatização nesse campo, sendo estes últimos uma espécie de marca do período. Este é ummomento em que estão exponenciadas as expressões da questão social, com destaque para o desemprego endêmico que assola a Europa,3 acompanhado da precarização e superexploração do trabalho. Nessa região, a era do pleno emprego combinado à política social abrangente, e de um capitalismo supostamente controla- do e organizado, parece uma espécie de miragem, de sonho cada vez mais distante. A tendência da política social tem sido deslocar-se para políticas de combate à po- breza, esta última em visível crescimento. A transferência de renda submetida a tetos, critérios de renda e contrapartidas “ativas” tornou-se um carro-chefe, em detrimento do emprego e da universalização do acesso a serviços gratuitos, embora essa direção 1. Já tivemos a oportunidade de discutir o ciclo longo de estagnação do capitalismo que se arrasta desde o início dos anos 1970, adotando a análise de Ernest Mandel. Portanto, a crise não é recente, mas coloca-se como tendência de larga duração, de período. Contudo, inúmeras análises mostram a sua intensificação brutal a partir de 2007, tendo como polo dinâmico os países do centro do capitalismo, especialmente os Estados Unidos, e o capital financeiro. Conferir Mandel, 1982 e nossas análises em Behring, 1998, 2008a e 2010. 2. A relação dívida pública bruta-PIB nos países da zona euro (dezessete países) evoluiu de 69,2% em 2000 para 87,2%, em 2011. O momento explosivo após um período de oscilações foi exatamente a passagem de 2007 (70,2%) para 2008 (80%), a partir do qual essa relação não parou de crescer globalmente e em alguns países de forma destacada, a exemplo da Grécia, cuja relação dívida-PIB passou de 103,4 para 165,3%. Disponível em: <http://epp.eurostat.ec.europa.eu>. Acesso em: 28 maio 2012. 3. Em março de 2012, a taxa de desemprego na zona euro (dezessete países) encontra-se na média de 10,9% da população economicamente ativa, segundo a definição da OIT, mas em alguns países ultrapassa a marca dos 20%, a exemplo da Espanha (23,8%) e da Grécia (21,4%). Disponível em: <http://epp.eurostat. ec.europa.eu>. Acesso em: 28 maio 2012. 9Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 seja disputada em cada espaço nacional e mediada pela história de cada país. Assim, produziram-se múltiplas realidades e cenários da proteção social, ou seja, há um efeito de heterogeneização da proteção social, numa direção geral de menos proteção social universal, em vez do sentido social-democrata clássico dos anos de crescimen- to. O anunciado fim do Estado Social não ocorreu como previsto, mas certo nível de desmonte foi inevitável no contexto da ofensiva neoliberal.4 Por outro ângulo, se o Estado Social europeu dos anos do pós-guerra tinha seu fundamento no pleno emprego (em sentido keynesiano), também o tinha nas lutas dos trabalhadores, já que os direitos sociais têm uma natureza contraditória e resultam das pressões e contrapressões da luta de classes e seus segmentos (Behring e Boschetti, 2006). Anos de neoliberalismo fragilizaram as organizações políticas dos trabalhadores, derruindo a resistência à perda de direitos nos vários países, ainda que de forma diferenciada. As deslocalizações (Chesnais, 1996) e a reestru- turação produtiva produziram fortes impactos na consciência e organização políti- ca em todos os espaços nacionais (Antunes, 2009). O que dizer do crescimento da direita mais reacionária na Áustria e na França?5 A fragilidade da força política do campo do trabalho implica a vulnerabilidade dos direitos e das políticas sociais, produzindo processos de expropriação contundentes (Fontes, 2010),6 inclusive com a mercantilização clara dos serviços de saúde e educação, além do crescimento da previdência privada aberta e fechada em articulação com as instituições financeiras. Os tempos contrarreformistas7 (Behring, 2003) insistem em perdurar e até se apro- 4. Estudo de Boschetti (2012) sobre as contrarreformas na Europa mostra claramente as tendências em curso com mudanças regressivas na esfera previdenciária e da saúde, e o crescimento das prestações sociais submetidas a critérios de renda, diga-se, assistenciais, no sentido brasileiro. 5. Nas eleições presidenciais francesas, apesar da débâcle de Nicolas Sarkozy bastante comemorada nas ruas e do crescimento e vitória no segundo turno da candidatura de François Hollande, do Partido Socialista, foi preocupante a inserção nas hostes populares da candidatura de Marine Le Pen, que representa uma direita reacionária e com forte conotação fascista no espectro político francês. Houve reflexo desse crescimento nas legislativas com o retorno da Front Nacional ao Parlamento após 24 anos de ausência, mas registrando que o PS conquistou maioria absoluta, o que oferece à Hollande uma forte base parlamentar de sustentação. 6. Vale a pena conferir a rica e interessante polêmica entre Fontes (2010) e Harvey (2004) em torno da caracterização deste último de que estaríamos num processo de acumulação por espoliação. A discussão envolve a atualidade do conceito de acumulação primitiva do capital. Ambos estão focados em compreender a dinâmica contemporânea da acumulação num diálogo com Marx, mas, por caminhos analíticos diferentes, esclarecem os processos que atingem duramente as condições de vida e trabalho das maiorias, incluindo as perdas no campo dos direitos sociais. 7. Outros autores da literatura francesa utilizam essa caracterização: Chesnais, 2011, Duval, 2008 e Bensaid, 2009; Dourille-Feer et al. (2011). 10 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 fundar no contexto da crise do capital — que ademais vai muito além de uma “crise da finança” ou de uma “desordem financeira” como querem fazer crer alguns analistas e periodistas.8 O momento que mais requisita um choque de civilização e rupturas profun- das com a lógica mercantil é exatamente aquele onde são aplicados choques de barbárie. Exemplo disso são os planos de ajuste grego,9 espanhol e irlandês, im- postos pela troika,10 diga-se, União Europeia (EU), Banco Central Europeu (BCE) e Fundo Monetário Internacional (FMI), em nome do equilíbrio das contas públi- cas, mas para efetivamente assegurar o fluxo de recursos para o capital financeiro. Sabemos que essas medidas implicam continuar realizando uma dramática punção do fundo público (Behring, 2010) para especuladores e proprietários, além de quadros intermediários que se beneficiam dessa conjuntura para seus luxos pessoais (Lordon, 2008).11 8. A revista brasileira Carta Capital publicou recentemente um dossiê sobre a “desordem financeira mundial” (27/5/2012). Pela via acadêmico-profissional, muitos são os trabalhos que caracterizam o mo- mento como crise da finança. Destacamos o trabalho de Frédéric Lordon, que tem o sugestivo título Jusqu’à quand? Pour en finir avec les crises financières (Raisons D’Agir, 2008. Tradução: Até quando? Para acabar com as crises financeiras). Trata-se de uma imprescindível pesquisa e análise crítica sobre o uni- verso da finança, sua dinâmica interna competitiva e destrutiva, sua novilíngua e seu ethos. Apesar das precauções do autor ao admitir que a lógica atual da finança seja um sintoma por excelência de uma crise estrutural (2008, p. 202), ele não foge a duas tentações: de prescrever medidas de regulação para acabar com as crises financeiras; e de autonomizar a finança da, equivocadamente, chamada economia real, o que limita sua análise. No entanto, as medidas sugeridas são importantes numa perspectiva de transição para outra sociabilidade, considerando os impactos que poderiam ter sobre a dinâmica contemporânea do ca- pitalismo. Lordon é um dos signatários do Manifeste D’Economistes Atterrés, articulação de mais de 600 economistas franceses que identifica dez falsas evidências no discurso econômico corrente e propõe um programa de ruptura com essa lógica, a partirde 22 orientações de medidas. É, a nosso ver, uma perspecti- va que vai muito além da social-democracia, ainda que não assuma claramente uma perspectiva anticapi- talista. Uma visita detida ao Manifeste revela, na verdade, um conjunto muito interessante de medidas de transição. 9. A respeito dos impactos da crise e do plano de austeridade na Grécia, consultar o excelente documen- tário Debtocracy (direção de Aris Hatzistefanou e Katerina Kitidi, 2011). Um debate sobre a questão da dí- vida odiosa e sobre a estratégia das auditorias das dívidas também é central nesta película. 10. Sobre a troika, os mesmos diretores citados na nota anterior realizaram o imprescindível documen- tário Catastroika (2012), que mostra a pilhagem neoliberal ao redor do mundo, por meio das privatizações, até chegar à Grécia de hoje, com impressionante riqueza de detalhes e dados. 11. O cinema, mais uma vez, produz uma forte metáfora da barbárie: Cosmopolis, de David Cronenberg (2012), é um impactante relato sobre o ethos do capitalismo contemporâneo e os obscuros lugares objetivos e subjetivos a que pode levar a dinâmica do tempo presente, a partir do frio olhar de um especulador que praticamente vive e realiza suas operações em uma limusine nas ruas de Nova York. 11Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 Enquanto isso, o Brasil aparece ao mundo como um “eldorado”,12 terra do novo desenvolvimentismo, onde parte da população pobre migrou para a classe média,13 resultado de políticas públicas consistentes, e de uma política econômica bem conduzida e pouco vulnerável aos fortes abalos externos, como sustentam o governo, agências internacionais e alguns intelectuais. Cabe problematizar esse novo mito brasileiro,14 e o quanto de verdade e de mera propaganda existe em sua difusão. E o caminho de mostrar o que é efetivamente investido em políticas sociais pelo Estado, bem como a lógica persistente que preside a construção do orçamen- to público no Brasil há alguns anos, é bastante profícuo. Afinal, a tarefa da ciência, especialmente do pensamento social crítico, é a de ir além das aparências, descon- fiar das opiniões formadas e desconcertá-las, desnudar a aparente irracionalidade de determinados processos, desmistificar os fetichismos que perduram e se renovam. Nosso percurso inicia comentando alguns traços gerais dos dois países, cons- truindo um patamar de observação sobre a dinâmica da alocação do fundo público no ano de 2010, escolhido como marco da pesquisa por ser o último ano com dados completos disponíveis da prestação de contas dos dois Estados nacionais. Em se- guida realizamos uma incursão sobre a dinâmica do orçamento público e do finan- ciamento das políticas públicas nos dois países, em comparação com a carga da dívida pública, para na sequência compreender a construção do padrão de proteção social e da seguridade social, e seu financiamento nos dois países. Veremos que a evolução recente expressa tendências gerais para a política social no capitalismo central e periférico, mediadas por suas particularidades. O debate sobre o Brasil15 12. Consultar, por exemplo, publicação sobre o Brasil, intitulada Brésil — Um géant accessible, da Chambre de Commerce et d’Industrie de Paris destinada aos investidores franceses, onde este termo aparece mais de uma vez, apesar das recomendações de prudência (CCIP, 2010). 13. Segundo o jornal Folha de S.Paulo (29 maio 2012), a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Pre- sidência da República definiu: “as pessoas com renda familiar per capita entre cerca de R$ 291 e R$ 1.019 são as que formam a classe média brasileira”, o que representa 54% da população. Os dados estão disponíveis em: <http://sae.gov.br/novaclassemedia/numeros/>. A publicação francesa citada na nota 14 também faz referência a esse mesmo termo. Considerando o poder de compra desse corte de renda e os serviços públicos disponíveis no Brasil, bem como a elevadíssima concentração de renda e riqueza, é no mínimo surpreenden- te e, no limite, constrangedora essa caracterização oficial amplamente difundida no mundo dos negócios, com o olhar voltado para a capacidade de consumo. 14. Não é o primeiro nem o único. Conferir o belo livro de Marilena Chaui, 2000, lançado por ocasião dos 500 anos do descobrimento, e que utiliza a categoria de mito fundador para explicar dinâmicas recorrentes na história brasileira. 15. A partir dos estudos que vimos desenvolvendo desde 2003 no Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (Gopss), FSS-UERJ, CNPq. 12 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 será pontuado ao longo do texto, buscando elementos comparativos. Essa opção de perscrutar a proteção social francesa e pontuar correlações com a brasileira deve-se ao nosso próprio movimento intelectual, que buscou apreender a dinâmica france- sa de forma mais sistemática, considerando o conhecimento mais bem consolidado que dispomos sobre a proteção social brasileira e seu financiamento. Ao longo do texto vamos estabelecer inferências e relações entre essas duas experiências histó- ricas tão diferentes, mas que se articulam na dinâmica complexa do capitalismo contemporâneo, a partir de seus lugares diferenciados na hierarquia dos países na economia política mundial. No entanto, cabe aqui uma advertência. Para estabelecer aproximações com- parativas, é necessário delimitar o campo efetivamente comparável. O estudo de Elbaum (2011) chama a atenção para a prudência que as comparações internacionais requisitam, pois sob os números podem não estar os mesmos conceitos e critérios — e em geral não estão. Portanto, faz-se necessário harmonizar os conceitos para delimitar o campo mais comum possível, a partir do qual será desdobrada a análise. A referida autora está discutindo a comparação entre países da União Europeia, mas entendemos que o cuidado deve ser redobrado quando estão em foco experiências históricas tão díspares quanto a francesa e a brasileira. E aqui encontramos proble- mas reais no nosso caminho de pesquisa, pois a complexidade do sistema francês de proteção social faz o pesadelo dos pesquisadores estrangeiros (Barbier e Théret, 2009, p. 16), tornando árduos os estudos comparados e colocando em questão os “modelos” que vêm orientando boa parte desses estudos.16 Há diferenças significa- tivas entre o padrão de proteção social francês e brasileiro, especialmente no que- sito financiamento, mas não só. Estas dificultam sobremaneira a comparação de seus traços gerais quanto à concepção, cobertura efetiva, relação entre direitos e políticas, e estrutura institucional; bem como quanto às incidências das orientações neoliberais para a política social no período e impactos da crise. No entanto, em que pesem essas dificuldades, o estudo comparativo permite identificar tendências 16. Em geral as grandes referências são os parâmetros de Titmuss (1974) e de Esping-Andersen (1991). De nossa parte, já fizemos referência à importância de buscar nas relações entre as classes, na estrutura produtiva, na configuração do Estado, na cultura política, enfim, na história das formações nacionais, as raízes das trajetórias da política social em cada país, sem abrir mão da sua relação com a totalidade da vida social, política e econômica que marca os vários períodos históricos. A inserção das experiências particulares na totalidade é o que permite inferências comparativas (Cf. Behring, 1998 e Behring e Boschetti, 2006). A intrincada lógica francesa confirma que esse é um caminho mais fecundo que o dos tipos ideais, ainda que permaneça na literatura a justificação e defesa de sua utilidade (Elbaum, 2011, p. 49-60). 13Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 gerais, estabelecer correlações, apanhar mediações que se produzem na totalidade concreta, e identificar novos elementosa partir de um patamar de observação re- posicionado. O presente trabalho resulta de uma pesquisa sobre o eixo do financiamento, mas para avançarmos fez-se necessário mapear o desenho específico da proteção social à francesa (Barbier e Théret, 2009, p. 7), buscando eventualmente traçar linhas de encontro e desencontro entre esta e o que temos no Brasil. Veremos que deter- minadas lógicas percorrem a experiência francesa contemporânea e a brasileira, já que esses países construíram experiências híbridas de proteção social, desdobradas daqueles dois momentos originários (bismarckiano e beveridgeano), o que também os aproxima, à despeito das diferenças. 1. França e Brasil: parâmetros constitutivos da análise Estamos aqui tratando de países que ocupam lugares diferenciados na econo- mia e na geopolítica mundial: a França entre os países do centro do capitalismo, segunda economia da Zona Euro e membro do G7; e o Brasil: na periferia imedia- ta do mundo do capital, integrando o grupo dos mercados emergentes, os chamados Brics17 (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), membro do G20, considerado como a sexta economia do mundo, com um PIB pujante, porém combinado à alta concentração da riqueza e à desigualdade perene. Alguns elementos são ilustrativos do lugar diferenciado e da relação desigual entre esses dois países que possuem um partenariat stratégique (parceria estratégica) e liens irréversibles (ligações irrever- síveis), do ponto de vista econômico. Enquanto existem cerca de 450 empresas francesas em ação direta no Brasil e esse país é o quarto ou quinto fornecedor de mercadorias, em geral bens manufaturados, o Brasil é o 15. fornecedor da França, em geral de matérias-primas, e possui poucas empresas atuando em solo francês (Entrevista do embaixador Philippe Lecourtier, In: CCIP, 2010). A França tinha, em 2010, uma população de 64,7 milhões de habitantes, com um PIB per capita em torno de € 29.900,00 (Eurostat, 5/6/2012). O Brasil con- tava no mesmo ano, com 190,7 milhões de habitantes e um PIB per capita de 17. Termo criado em 2001 pelo Banco Goldman Sachs e que se tornou corrente no mainstream econô- mico (cf. Rol, 2010, p. 112, In: CCIP, 2010). 14 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 R$ 19.073,26 (IBGE, 3/3/2011), ou seja, para efeito de comparação, o PIB per capita brasileiro em euros pode ser calculado em € 8.562,06.18 Sabemos que os cálculos per capita são sempre limitados, já que quase nada revelam sobre o efetivo acesso à riqueza socialmente produzida e à propriedade, considerando as classes e seus segmentos. De outro ângulo, na situação em foco, abordamos po- deres de compra diferentes das duas moedas.19 Contudo, esse dado torna eviden- te que, com um PIB menor, um território de dimensões continentais e longas fronteiras, e uma população quase três vezes maior e com mais necessidades historicamente insatisfeitas, o Brasil, apesar das aspirações de potência econô- mica hoje mais próximas de sua realização, está longe de condições de vida e trabalho dignas para a maioria de seus habitantes. A França conviveu com o pleno emprego fordista-keynesiano (Harvey, 1993) do pós-guerra e desenvolveu um Estado Social com ampla cobertura e direitos, mesmo considerando a natureza híbrida de seu padrão de proteção social, que ire- mos comentar adiante. No contexto da hegemonia neoliberal e da onda longa de estagnação aberta nos anos 1970, houve perdas de direitos, crescimento do desem- prego e aumento contundente da pobreza. Nos últimos anos, no ápice da crise, a taxa de desemprego oscilou entre 9% e 10% da PEA (em junho de 2012, segundo dados do Eurostat), chegando em 9,4% da PEA (esta última, em torno de 28,1 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos em 2010),20 o que corresponde a cerca de 2,6 milhões de desempregados,21 dado que seria impensável nos chamados anos de ouro. Em 1975, a taxa de desemprego na França era de 3,5% da PEA.22 Quanto à pobreza, cuja relação com a condição do trabalho é decisiva, tem-se que as pessoas 18. Data da cotação utilizada: 31/12/2010. Taxa: 2,228 reais, Brasil (790) = 1 Euro (978), Banco Central do Brasil. Acesso em: 5 jun. 2012. 19. Vamos utilizar no texto a comparação simples com base na taxa de câmbio no último dia do ano em foco, 2010. A OCDE vem desenvolvendo um indicador para análises internacionais comparadas, o PPA — Parité de Pouvoir d’Achat (Schcreyer e Koechlin, 2002), que não será utilizado neste trabalho, considerando a complexidade de seu cálculo e aplicação. O Eurostat também fornece dados sobre índices de preços com base nesse indicador em sua base estatística. Não encontramos estudos sobre o Brasil em comparação com outros países com base nesse índice. 20. Disponível em: <http://www.insee.fr/fr/themes/tableau.asp?reg_id=0&ref_id=NATCCF03170>. Acesso em: 7 jun. 2012. 21. Disponível em: <http://www.insee.fr/fr/themes/tableau.asp?reg_id=0&ref_id=NATASF03362>. Acesso em: 7 jun. 2012. 22. Disponível em: <http://www.insee.fr/fr/themes/tableau.asp?reg_id=0&ref_id=NATnon03337>. Acesso em: 7 jun. 2012. 15Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 que possuíam um rendimento abaixo de 60% da média nacional (parâmetro: € 876,00), em 2009 representavam 18,4% da população e em 2010, 19,3% (Eurostat, 14/6/2012), o que revela uma tendência ascendente e visível, sobretudo no espaço urbano francês. O Brasil não conheceu a situação de pleno emprego fordista-keynesiano, aproximando-se, na melhor das hipóteses, do que alguns economistas regulacionis- tas caracterizaram como fordismo periférico (Lipietz, 1988, e Saboia, 1988). Este termo-síntese procura mostrar que a apropriação dos ganhos de produtividade nos acordos coletivos de trabalho foi sempre parcial ou mesmo residual no Brasil, em virtude de uma correlação de forças bastante desfavorável ao trabalho, especial- mente no auge desta experiência, o regime militar pós-1964. Acrescente-se que o acesso aos serviços sociais e direitos foi sempre limitado, por longo tempo segmen- tado, deixando largas parcelas da população sem qualquer proteção mesmo após a Constituição de 1988, que institui a seguridade social no país (cf. Boschetti, 2003; Boschetti e Salvador, 2006; e Lopes, 2011). Na verdade, existe uma forte informa- lidade no mundo do trabalho e grande precariedade do emprego, com repercussões duradouras na proteção social brasileira, seja do ponto de vista da arrecadação, seja da cobertura, considerando a intrínseca relação entre trabalho e proteção social, tanto do lado da despesa, quanto da receita, para a política social (Boschetti, 2003 e 2006; Mota, 1995). Por outro lado, os indicadores brasileiros sobre a questão do emprego são polêmicos. O IBGE, instituto público oficial que produz o Censo e a maior parte dos dados estatísticos do país, indicava, em novembro de 2010, uma taxa de desocupação de 5,7%, referente a um universo de seis regiões metropolita- nas do país, e não ao conjunto da população economicamente ativa. Envolve, portanto, cerca de 1,5 milhão de desocupados (mas em busca de ocupação) e 22,3 milhões de pessoas ocupadas, das quais cerca de 10,3 milhões possuem carteira assinada, o que significa emprego com direitos, ainda que dentro das condições de proteção do país. Isto significa que aproximadamente 50% da força de trabalho ocupada se encontra em condições precárias, na informalidade e sem direitos ad- quiridos de proteção social. O Dieese, órgão de assessoria e estudos ligado ao movimento sindical, por sua vez, considera sete principais regiões metropolitanas e opera com um conceito mais amplo de desocupação, o que leva a números dife- rentes e, a nosso ver, mais próximos da realidade. Segundo essa instituição, existia 11,9% de desemprego aberto em relação à PEA em sete regiões metropolitanas,num contexto de tendência de queda do desemprego, se comparado com outros anos. Não existe um cálculo global unificado da taxa de desemprego no país, pos- 16 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 sivelmente em virtude das dificuldades geradas pela alta ocupação na informalida- de e na precariedade. Mas o Dieese23 revela uma PEA de 107 milhões de pessoas entre dez e 65 anos. Ao subtrair dessa conta 1,7 milhão de crianças e adolescentes entre dez e catorze anos, que não deveriam ser consideradas como em condições de trabalhar,24 teremos uma PEA de 105,3 milhões de pessoas, o que mostra a fra- gilidade dos nossos indicadores de desemprego nos cálculos das duas instituições, os quais abrangem cerca de um quinto da PEA, ainda que esta seja uma amostra significativa, de regiões metropolitanas importantes, e que revele tendências. No que se refere à pobreza no Brasil, diretamente relacionada à condição do trabalho, o IBGE (novembro de 2011)25 esclarece os critérios para sua apuração: o Programa Bolsa Família, de transferência de renda, considera extremamente pobres famílias com renda domiciliar per capita de até R$ 70, e pobres, aquelas com até R$ 140. O Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC-Loas), programa constitucional de transferência de renda que dá direito a um salário míni- mo para idosos e pessoas com deficiência, estabelece como critério de acesso um rendimento domiciliar per capita inferior a um quarto de salário mínimo, também de pobreza extrema. O Plano Brasil Sem Miséria, recentemente lançado pelo go- verno Dilma Roussef, combina a linha de R$ 70 de rendimento domiciliar per ca- pita com outras dimensões, como falta de saneamento básico. O IBGE informa ainda que: “o valor de meio salário mínimo per capita, por sua vez, é o valor refe- rencial no Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal, que consi- dera a pobreza absoluta. Já os países europeus, em geral, publicam indicadores de pobreza monetária a partir do valor de 60% da renda mediana nacional”. Evidente- mente, nossos critérios levam à constatação do pauperismo extremo e absoluto, orientando políticas fortemente focalizadas e seletivas, o que institui uma diferença conceitual central a ser considerada em qualquer análise dos dois universos aqui pesquisados, a França e o Brasil. O salário mínimo legal é um parâmetro para aferir a pobreza, bem como para destinar prestações sociais nos dois países. Vejamos seu valor em 2010: na França, € 1.343,77 (Eurostat, 18/6/2012); no Brasil, R$ 510,00, 23. Disponível em: <http://www.dieese.org.br/anu/AnuTrab2010/Arquivos/indicadores_mercadotraba- lho_estruturamerctrabalho_t47.html>. Acesso em: 30 jun. 2012. 24. O que consideramos injustificável nas estatísticas oficiais brasileiras, especialmente após a entrada em vigor, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente. 25. Documento do IBGE (Brasil) intitulado “Indicadores Sociais Municipais 2010: incidência de po- breza é maior nos municípios de porte médio”, nov. 2011. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/ presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2019&id_pagina=1>. Acesso em: 14 jun. 2012. 17Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 o que corresponde a € 228,90.26 Temos então que o salário mínimo na França é 5,87 vezes maior que o brasileiro. Esta é uma diferença marcante, mesmo considerando que o salário mínimo brasileiro recuperou parcialmente seu poder de compra nos últimos anos com aumentos acima da inflação, base inclusive da melhoria suave dos indicadores sociais brasileiros no último período. Este impacto nos indicadores sociais (ex. coeficiente de Gini) deu-se inclusive porque o salário mínimo é indexa- dor das aposentadorias, pensões e do BPC, o que evidentemente não justifica, a nosso ver, a existência de uma nova classe média brasileira.27 Por outro lado, poder- -se-ia argumentar um custo de vida menor no Brasil. Sobre isso, cabe ponderar que a oferta de serviços públicos na França, a exemplo da água e dos suportes à moradia e transporte, educação e lazer, bem como as alocações familiares para infância e dependência, torna muito frágil o argumento. O peso desses itens no consumo diá- rio dos trabalhadores brasileiros é efetivamente muito maior. Para adensar nossa reflexão acerca das diferenças entrelaçadas, cabe conside- rar alguns traços do processo histórico da formação social dos dois países. A Fran- ça realizou uma revolução burguesa clássica (Moore Jr., 1983), com um conjunto de implicações econômicas, políticas e culturais de longa duração daí decorrentes. Existe no país um impregnado sentido republicano de nação, de cidadania e auto- nomia, e uma relação com o mundo do trabalho marcada pelo contrato social (no mais profundo sentido rousseauniano), e por direitos adquiridos e assegurados pelo Estado, mesmo com as reconhecidas perdas recentes. É um país que realizou uma reforma agrária ampla, é estruturado sobre a pequena e média propriedade rural, em articulação com uma forte indústria de ponta de manufaturados. Por outro lado, a intensa experiência histórica das lutas de classe — a Revolução de 1789 e seus desdobramentos, as lutas de 1848, a Comuna de Paris em 1871, o Maio de 1968, a greve geral de 1995, entre outras — marca profundamente a vida política e as lutas sociais, com intensos debates nacionais. Há grandes manifestações de rua, à esquer- da e à direita, numa sociedade onde esses termos guardam sentido, mesmo com todos os esforços empreendidos para diluir essas fronteiras, no contexto do neoli- beralismo e da restauração capitalista no Leste europeu. Mas há também grandes e violentos paradoxos na terra de nascimento da Declaração dos Direitos do Homem, 26. Data da cotação utilizada: 31/12/2010. Taxa: 2,228 reais, Brasil (790) = 1 euro (978). 27. É impressionante como essa construção ideológica da “nova classe média brasileira” se tornou uma espécie de verdade corrente, em especial na caracterização do mundo dos negócios, que veem estes segmentos pouco acima das linhas draconianas de pobreza como novos consumidores. Cf. Rol (In: CCIP, 2010, p. 121). 18 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 a exemplo do governo colaboracionista de Vichy, durante a ocupação nazista na França, ou da relação com os argelinos durante a guerra de independência desse país, entre 1956 e 1962, entre outros. Assim, não se pode nem romantizar a França nem subestimar o potencial de mudança que a luta de classes desencadeia no país, toda vez que vem à tona com suas barricadas.28 Essas características, várias análises indicam (Duval, 2008; Barbier e Théret, 2009), tiveram no último período um papel importante em certa contenção da ofensiva neoliberal sobre os direitos sociais e as políticas que lhes dão materialidade, ainda que tenham ocorrido perdas. O Brasil, por sua vez, chegou à modernidade por uma via não clássica, uma espécie de revolução burguesa sem revolução e pelo alto, repleta de processos de modernização conservadora pelo menos até a autocracia burguesa de 1964-84 (Fer- nandes, 1987). Suas marcas de longa duração são: o peso do escravismo, especial- mente sobre a relação com a força de trabalho, localizada entre a tutela e a força; a heteronomia e a dependência, que expressam um sentido de inserção na economia- -mundo voltado para fora e não para um mercado interno de massas, este último sempre contido, diante de suas potencialidades; uma cultura política antidemocráti- ca, antipública e patrimonialista na relação com o Estado, profundamente enraizada na burguesia brasileira, com desdobramentos para o conjunto da sociedade (Prado Jr., 1942 e 2011; Fernandes, 1987; e Behring, 2003). Esses processos deixaram fulcros importantes no mundo do trabalho, onde o conformismo e a cooptação to- maram e tomam muitas vezeso lugar da resistência, ainda que esta última exista. São marcas que fragilizam a luta pelos direitos e para além deles. Tais características propiciaram obstáculos aos avanços democráticos preconizados pela Constituição de 1988, que foram atropelados pela contrarreforma neoliberal avassaladora a partir de 1995, como tivemos a oportunidade de demonstrar (Behring, 2003), dentre os quais a constituição de um padrão de proteção social efetivamente abrangente. Esses traços gerais, e que já geraram tratados inteiros e clássicos sobre os dois países, são aqui apenas pontuados, com o objetivo de constituir nosso patamar de observação para a análise da lógica da alocação do fundo público,29 realizada por 28. Tive a oportunidade de traçar algumas linhas sobre meu recente aprendizado acerca dos paradoxos franceses em: “Outubro. 1961. O silêncio sobre a repressão à resistência argelina em Paris”, publicado no blog Mídia e Questão Social, em 7/4/2012, a convite de Mione Hugon. Disponível em: <http://midiaeques- taosocial.blogspot.com.br/2012/04/editoria-volta-do-mundo-mundo-da-volta.html>. 29. Sobre o fundo público, vimos adensando esta categoria a partir de uma compreensão de seu lugar estrutural no circuito do valor, tendo como referência a crítica marxista da economia política. Conferir Behring, 2008a, 2010 e 2012a [no prelo]. 19Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 meio do orçamento público nos dois países, que não pode ser vista sem a dinâmica da política e da cultura. Afinal, sob os números do orçamento público encontram-se disputas tensas e intensas entre as classes e seus segmentos. 2. A lógica da alocação do fundo público: orçamento no Brasil e na França Estabelecidos os parâmetros, trata-se agora de perscrutar semelhanças e dife- renças na organização do orçamento público, o qual revela o sentido da alocação do fundo público nos dois países, buscando identificar os pesos percentuais das despesas públicas em alguns itens centrais, bem como algumas características das receitas. Nosso objetivo é o de identificar tendências da composição e da alocação de recursos, na perspectiva de observar onde essas experiências se entrelaçam e se afastam. No Estado nacional francês, desde 2006, entrou em vigor a Lolf (Loi Organi- que Relative aux Lois de Finances), que rege a construção do orçamento e a pres- tação de contas, reformando uma lei de 1959 que até então orientava esse processo. Segundo a LOLF, o orçamento é construído a partir de missions (missões), o maior nível de agregação de despesas, seguido de programmes (programas) e actions (ações), níveis de agregação menores, em escala decrescente. Essa organização geral corresponde às funções no orçamento brasileiro, às quais se seguem as subfun- ções e programas, que, por sua vez, se desdobram em projetos, atividades e ações. Existem na França 32 missões, 123 programas e em torno de 500 ações (Didier, 2011, p. 9; Baslé, 2004, p. 26-7). Já no Brasil, temos 28 funções, 43 subfunções, e após esse nível de desagregação, os diversos programas seguidos de atividades, projetos e ações (MTO, 2010, p. 108-111). Para efeito de comparação geral da ló- gica de alocação do fundo público nos dois países, vamos estabelecer correlações entre os níveis maiores de agregação dos recursos, ou seja, missões e funções, podendo recorrer eventualmente aos níveis imediatamente subsequentes para es- clarecer dinâmicas determinadas ou aproximar agregados entre os dois países. Diferente do Brasil, onde existem três orçamentos que compõem o Orçamen- to Geral da União (OGU) desde a Constituição Federal de 1988 — Orçamento Fiscal, Orçamento da Seguridade Social e Orçamento das Estatais —, a França adota um orçamento do Estado Nacional, de natureza fiscal. A Sécurité Sociale, cuja complexidade será abordada no item subsequente deste texto, possui um or- 20 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 çamento separado e regulado pela LOLFSS (Loi Organique Relative aux Lois de Financement de La Securité Sociale), que orienta as LFSS (Lois de Financement de La Securité Sociale), leis anuais também aprovadas na Assembleia Nacional (Parlamento francês), mas cujo trâmite é diferente da Loi des Finances. No Brasil, criou-se, na Constituição de 1988, um Orçamento da Seguridade Social em sepa- rado, sob gestão do Estado, mas que sofre fortemente as injunções das disponibili- dades de caixa, o que significa estar em separado ma non troppo (mas não muito!), apesar dos desejos constituintes. Explicamo-nos: as incidências dos ajustes fiscais brasileiros, a exemplo da persistência da Desvinculação de Receitas da União (DRU) e do superávit primário, atingem profundamente os recursos da Seguridade Social brasileira.30 Isto não ocorre com a Sécurité Sociale francesa, em que esses meca- nismos de punção exclusivamente fiscal de recursos não existem, pelo contrário, há inversão crescente de recursos fiscais para a mesma. Essa dinâmica tem relação com a concepção da Sécurité Sociale na França, como veremos adiante. Mas, quanto ao Brasil, tal lógica guarda raízes profundas no seu lugar subordinado na economia-mundo, sua vulnerabilidade externa e, do ponto de vista político, suas dificuldades — que tem origem na dinâmica das classes sociais — de exercício da soberania, considerando as pressões heteronômicas a que fizemos referência ante- riormente. Por fim, quanto à prestação de contas, a França conta com uma Cour des Comptes, equivalente ao Tribunal de Contas da União no Brasil, e com objetivos bastante próximos: subsidiar o Parlamento na aprovação ou não das contas públicas, a partir de relatórios consubstanciados globais ou parciais e pareceres. O ciclo orçamentário francês tem duração de três anos, envolvendo o DOB (Débat d’Orientation Budgétaire), que inicia no Parlamento em junho no ano ante- rior ao exercício, e gera a apresentação pelo executivo do PLF (Projet de Loi de Finances) em outubro, culminando com a aprovação em dezembro da LFI (Loi de Finances Initiale). No ano de exercício o orçamento é executado, mas existe a possibilidade de propor retificações ao orçamento, por meio da apresentação ao Parlamento de uma LFR (Loi de Finances Rectificative). Concluída a execução, há a LR (Loi de Règlement), que mostra o montante definitivo de despesas e receitas e fecha o ciclo (Didier, 2011, p. 11; Baslé, 2004). Esta última é equivalente ao 30. Vimos mostrando essa dinâmica a partir das pesquisas desenvolvidas no âmbito do Grupo de Estu- dos do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS), acompanhando o Orçamento Geral da União desde o ano de 1997. Conferir: Behring, 2008b. Ver também: publicações de Análise da Seguridade Social da Anfip, disponíveis em: <http://www.anfip.org.br/> e Boschetti e Salvador, 2006. 21Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 Balanço Geral da União (BGU) e esses são os documentos base para o trabalho dos tribunais de contas dos dois países. Ambos os ciclos orçamentários são mistos, propostos pelo Executivo e apro- vados pelo Legislativo com suporte do Tribunal de Contas, e possuem uma dinâmi- ca anual semelhante: a LDO equivalendo ao DOB, mas com característica de Lei; a Lei Orçamentária Anual equivalendo à LFI, inclusive com a possibilidade de mudanças retificadoras; e o BGU equivalendo à LR. Porém o ciclo orçamentário brasileiro tem alguns traços diferentes, quando comparado ao francês. A Constitui- ção de 1988 introduziu o Plano Plurianual (PPA), que envolve um planejamento dos investimentos públicos e metas físicas por um período de quatro anos, orientando a formulação das leis anuais. Apenas recentemente, em função de exigências da União Europeia (EU), a França introduziu no ciclo orçamentário uma Loi de Programma- tion des Finances Publiques, com vigência de quatro anos e queorienta a construção dos ciclos anuais e a análise da prestação de contas (Cour de Comptes, maio 2011). A existência dos já referidos orçamento fiscal, da seguridade social e das estatais, e de um volume maior de programas, desagregados em níveis ainda menores de alo- cação de recursos torna o orçamento público brasileiro mais complexo. Pensamos que houve no Brasil uma louvável busca no texto constitucional de associar plane- jamento, orçamento e continuidade de ações, num país que precisa induzir esse processo pela dificuldade de enraizamento do sentido de público em sua burocracia e na sociedade — em especial se consideramos que a Constituição de 1988 marca o fim de vinte anos de opacidade da ditadura militar-civil. Mas, ao mesmo tempo, permanece grande a fragmentação dos recursos, o que torna árduo o acompanha- mento orçamentário, mesmo com os avanços tecnológicos no nível federal e em alguns entes federativos subnacionais.31 Para os objetivos deste estudo, tendo em vista realizar reflexões sobre a alocação do fundo público, com destaque para os gastos sociais, no Brasil e na França, vamos observar o ano de exercício de 2010 nos dois países, analisando suas prestações de contas nacionais, a partir das grandes linhas, ou seja, das mis- sions e das funções, que indicam tendências gerais do gasto público. Evidente- mente não é possível estabelecer correlações a partir de valores correntes, consi- 31. Os estados e municípios brasileiros não têm a mesma transparência do Orçamento da União, o que torna bastante difíceis os caminhos das pesquisas nesses níveis da federação. Vale lembrar que apenas em 2002 o conjunto dos municípios brasileiros passou por força legal a adotar o ciclo constitucional, aqui apresentado. 22 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 derando que não trabalhamos aqui com o poder de compra das respectivas moedas no período estudado. Estabelecemos termos de comparação possíveis entre percentuais, utilizando o euro (€) como referência, ou seja, convertendo os valores correntes em reais para o euro. Analisaremos os dados levantados sobre a execução orçamentária no ano de 2010, a partir dos percentuais em missions e funções mais importantes e comparáveis entre si, como parte do gasto total efe- tivamente alocado no ano de exercício de 2010 pelo Estado Nacional e adminis- tração da Sécurité Sociale — Régime Générale (França) e pela União (Brasil), considerando Orçamento Fiscal e da Seguridade Social, sendo que este último engloba o Regime Geral da Previdência Social (trabalhadores do setor privado). Assim, é importante deixar claro que não estamos considerando a alocação de re- cursos dos entes subnacionais, o que tem algumas implicações, a exemplo da saúde, da assistência social e da educação no Brasil, bem como em aide e action sociale, entre outras, na França, que recebem recursos importantes dos entes fede- rativos subnacionais, ainda que esse fato não altere grandes tendências, cuja iden- tificação é o que perseguimos neste estudo. Não estamos considerando também regimes especiais de previdência e do funcionalismo público nos dois países, mas o regime geral, que ademais reúne a maior parte dos recursos públicos em Previ- dência Social (assurance) nos dois países. Analisemos, então, as Tabelas 1 e 2, nas páginas seguintes. A Tabela 1 considera a execução orçamentária do ano de 2010, tomando como fontes os dados da LR, a análise da Cour de Comptes (maio de 2011) e documentos oficiais sobre a prestação de contas da Sécurité Sociale — Regime Géneral, na França, com destaque para Les Chiffres Clés de La Sécurité Sociale 2010 (Drees, 2011). No Brasil, trabalhamos com os dados sistematizados no Balanço Geral da União — BGU (Orçamento Fiscal e da Seguridade Social), a análise do TCU e outros documentos complementares, para mostrar o peso de determinadas despesas do orçamento nacional, comparáveis entre os dois países, sempre considerando os valores efetivamente despendidos no ano, ou seja, os Crédits de Paiements sur factures (CP) na França, e as Despesas Realizadas (Brasil). Realizamos o esforço de reunir despesas que equivalem a um mesmo universo nos dois países, de forma que, no caso francês, somamos o orçamento do Estado (fiscal), de € 412,6 bilhões e o da Sécurité Sociale — Regime General, de € 306,5 bilhões, que não aparecem assim reunidos nas contas nacionais, ao contrário das contas brasileiras. A Tabela 2 relaciona os mesmos dados com o PIB dos dois países do ano de 2010, de forma que podemos vislumbrar o gasto público como parte da riqueza nacional. Este dado 23Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 é importante porque reflete a parte da riqueza nacional que é investida em determi- nados eixos, dizendo sobre o nível de cobertura socializada das necessidades sociais e sobre a apropriação da riqueza nacional pelas classes e seus segmentos. A partir dos dados sistematizados nas duas tabelas, podemos desdobrar algumas considera- ções analíticas. A primeira é de natureza geral e um tanto óbvia: apesar de alguns dados quan- titativos serem aparentemente próximos — há uma diferença de cerca 100 bilhões de euros entre um orçamento e outro (a mais para a França), após a conversão do orçamento brasileiro para o euro — não se pode perder de vista que o impacto do gasto público francês será maior, considerando o tamanho da população, o grau de consolidação das políticas públicas, de estabelecimento de acordos com os partenai- res sociaux (empregadores e trabalhadores),32 e de continuidade administrativa. Se calcularmos o volume de recursos orçamentários per capita investidos na França e no Brasil em 2010, chegamos ao valor de € 11,2 mil (França) para € 3,5 mil (Brasil), ou seja, a França investe aproximadamente três vezes mais que o Brasil por habitan- te. Mas esse é um dado muito geral, pois não revela efetivamente a quais segmentos se destinam os recursos. Para extrair elementos menos superficiais precisamos nos aproximar mais dos dados. Nossa atenção volta-se então para o peso da dívida pública nos orçamentos dos dois países. A relação dívida/PIB tem sido um importante indicador de saúde econômica nacional, sobretudo quando se trata de fornecer indicadores ao merca- do financeiro e aplicar políticas de austeridade, justificadas em nome do controle dos gastos públicos por organismos como FMI ou Banco Mundial. A relação dí- vida/PIB da França, em 2010, encontrava-se na marca de 82,3% e saltou para 86%, em 2011 (Eurostat, 11/6/2012). Esse mesmo indicador para o Brasil foi, segundo o Relatório do TCU sobre o ano-exercício de 2010, de 55%, considerando o con- ceito de Dívida Bruta do Governo-Geral (envolvendo União, estados e municípios, mas excluindo estatais e o Banco Central), e de 40,3% conforme o conceito de Dívida Líquida do Setor Público (envolvendo apenas a União sem as empresas estatais federais). Outros números sobre o Brasil aparecem considerando concei- tos diferenciados: 78% em 2011, segundo a Auditoria Cidadã da Dívida;33 66,1% 32. O termo, muito utilizado no debate francês — acadêmico e midiático — sobre a política social, refere-se ao conjunto de organizações envolvidas na gestão da mesma e em mesas de negociação. No caso da Sécurité, trata-se das organizações patronais e dos trabalhadores, bem como do Estado. 33. Conferir: Os números da dívida (Fattorelli e Ávila, 2012). Ta b el a 1 Ex ec uç ão O rç am en tá ria B ra si l e F ra nç a 20 10 (% s ob re o O rç am en to G lo ba l) M is si on s (F ra nç a) Fu nç õe s (B ra si l) Or ça m en to F ra nç a Or ça m en to B ra si l Va lo re s co rr en te s – Bi € %Va lo re s co rr en te s – Bi R $ Va lo re s co rr en te s – Bi € 2 % C ul tu re ( F R A ) C ul tu ra 2, 9 0, 4 1, 4 0, 63 0, 09 É co lo gi e, d év el op pe m en t e t am én ag em en t d ur ab le s G es tã o am bi en ta l 15 ,4 2, 1 3, 7 1, 66 0, 24 E ng ag em en ts F in an ci er s de l’ É ta t (P ro gr am m e: C ha rg e de la d et te e t tr és or er ie d e l’ É ta t) E nc ar go s es pe ci ai s* ** ( su bf un çõ es re la ci on ad as à c ar ga d a dí vi da p úb li ca ) 40 ,5 5, 6 58 1, 3₃ 26 0, 91 38 ,6 E ns ei gn em en t s co la ir e et r ec he rc he e t en se ig ne m en t s up ér ie ur * E du ca çã o 73 ,8 ( 61 ,6 e 1 2, 2) 10 ,2 48 ,5 21 ,7 7 3, 22 Ju st ic e Ju di ci ár ia e E ss en ci al à J us ti ça 6, 9 0, 9 22 ,8 e 5 ,4 To ta l: 2 8, 2 12 ,6 6 1, 87 R ec he rc he e t e ns ei gn em en t s up ér ie ur ** C iê nc ia e T ec no lo gi a 34 ,6 4, 8 7, 5 3, 37 0, 49 R eg im es s oc ia ux e t d e re tr ai te P re vi dê nc ia S oc ia l ( R G P S ) 5, 6 (L R ) 95 ,3 ( B ra nc he V ei ll es se R eg im e G en er al ) 7, 9 (B ra nc he A T- M P R eg im e G en er al ) To ta l: 1 08 ,8 15 ,1 32 6, 5 14 6, 54 21 ,6 9 S an té S aú de 1, 1 (L R ) 14 2, 1 (B ra nc he M al ad ie , R eg im e G en er al ) To ta l: 1 43 ,2 19 ,9 61 ,8 27 ,7 4 4, 1 S ol id ar it é, in se rt io n et é ga li té d e ch an ce s A ss is tê nc ia S oc ia l e D ir ei to s da C id ad an ia 12 ,6 ( L R , i nc lu in do R S A ) 41 ,9 ( B ra nc he F am il le , R eg im e G en er al ) To ta l: 5 4, 5 7, 5 39 ,1 e 1 ,8 To ta l: 4 0, 9 18 ,3 6 2, 71 S po rt , j eu ne ss e et v ie a ss oc ia ti ve D es po rt o e la ze r 0, 8 0, 1 1 0, 45 0, 06 V il le e t l og em en t H ab it aç ão e u rb an is m o 8, 6 1, 2 0, 17 e 4 ,8 To ta l: 4 ,9 7 2, 23 0, 32 D éf en se D ef es a N ac io na l 39 ,1 5, 4 32 ,2 14 ,4 5 2, 13 T ra va il e t e m pl oi T ra ba lh o 14 ,7 2 31 ,4 14 ,0 9 2, 08 S éc ur it é S eg ur an ça p úb li ca 16 ,3 2, 2 9, 7 4, 35 0, 64 A ut re s m is si on s O ut ra s fu nç õe s 15 9 22 ,6 32 5, 8 14 6, 23 21 ,7 6 O rç am en to to ta l 41 2, 6 (L R ) 30 6, 5 (R G S S ) To ta l: 7 19 ,1 10 0 15 04 ,9 67 5, 45 10 0 Fo nt es : P ar a a F ra nç a, c on si de ra m os a s in fo rm aç õe s da L R 2 01 0 e do s se gu in te s do cu m en to s ofi ci ai s: D on né s B ud ge ta ire s 2 01 0 e C hi ffr es C lé s d e la S éc ur ité S oc ia le 2 01 0, c on si de ra nd o os v al or es d es pe nd id os p el o Re gi m e G en er al q ue c on ce nt ra a m ai or p ar te d as p re st aç õe s so ci ai s de s eg ur id ad e so ci al e r ec ol he o m ai or v ol um e de r ec ei ta s, q ue e st ão d is tr ib uí da s em s eu s qu at ro r am os ( br an ch es ): v ei lle ss e (a po se nt ad or ia s e pe ns õe s) , m al ad ie ( sa úd e) , A C -M P (a ci de nt es d e tr ab al ho ) e fa m ill e (p re st aç õe s fa m il ia re s) . E st as ú lt im as fo ra m a qu i e qu ip ar ad as c om a a ss is tê nc ia s oc ia l b ra si le ir a, m as v er em os a di an te q ue o B ra si l d es co nh ec e es se co nj un to d e di re it os e p re st aç õe s qu e es tã o en tr e o se gu ro c on tr ib ut iv o e pr es ta çõ es d e aj ud a so ci al . N o ca so d o B ra si l, ut il iz am os o s da do s do O rç am en to F is ca l e da S eg ur id ad e S oc ia l do B al an ço G er al d a U ni ão (B G U , 2 01 0) . E la bo ra çã o pr óp ri a. * P ar a ef ei to s de c om pa ra çã o do c on ju nt o do o rç am en to p ar a a E du ca çã o na F ra nç a in cl uí m os o P ro gr am a F or m at io ns S up er ie ur es e t R ec he rc he U ni ve rs it ai re ( F or m aç ão s up er io r e pe sq ui sa u ni ve rs it ár ia ). ** D at a da c ot aç ão u ti li za da : 3 1/ 12 /2 01 0. T ax a: 2 ,2 28 r ea is , B ra si l ( 79 0) = 1 e ur o (9 78 ). B an co C en tr al d o B ra si l. D is po ní ve l e m : < ht tp :/ /w w w 4. bc b. go v. br /p ec /c on ve rs ao /c on ve rs ao .a sp > . ** * C on ta bi liz ad os a pe na s os g as to s co m e nc ar go s e am or tiz aç õe s da d ív id a pú bl ic a in te rn a e ex te rn a. A fu nç ão E nc ar go s E sp ec ia is in cl ui o s ga st os p re vi de nc iá ri os d a U ni ão e tr an sf er ên ci as a os d em ai s en te s fe de ra tiv os e en gl ob ou e m 2 01 0 um v ol um e de r ec ur so s de c er ca d e R $ 86 0 bi lh õe s. Ta b el a 2 Ex ec uç ão O rç am en tá ria B ra si l e F ra nç a 20 10 (% s ob re o P IB ) M is si on s (F ra nç a) F un çõ es (B ra si l) Or ça m en to F ra nç a Or ça m en to B ra si l Va lo re s co rr en tes – Bi € % Va lo re s co rr en te s – Bi R $ Va lo re s co rr en te s – Bi € 2 % C ul tu re ( F R A ) C ul tu ra 2, 9 0, 14 1, 4 0, 63 0, 03 É co lo gi e, D év el op pe m en t e t am én ag em en t d ur ab le s G es tã o A m bi en ta l 15 ,4 0, 79 3, 7 1, 66 0, 1 E ng ag em en ts F in an ci er s de l’ É ta t (p ro gr am m e: C ha rg e de la d et te e t tr és or er ie d e l’ É ta t) E nc ar go s es pe ci ai s* ** ( su bf un çõ es re la ci on ad as à c ar ga d a dí vi da p úb li ca ) 40 ,5 2, 09 58 1, 33 ₃ 26 0, 91 15 ,8 1 E ns ei gn em en t s co la ir e et r ec he rc he e t en se ig ne m en t s up ér ie ur * E du ca çã o 73 ,8 ( 61 ,6 e 1 2, 2) 3, 8 48 ,5 21 ,7 7 1, 31 Ju st ic e Ju di ci ár ia e e ss en ci al à ju st iç a 6, 9 0, 35 22 ,8 e 5 ,4 To ta l: 2 8, 2 12 ,6 6 0, 76 R ec he rc he e t e ns ei gn em en t s up ér ie ur ** C iê nc ia e T ec no lo gi a 34 ,6 1, 78 7, 5 3, 37 0, 20 R eg im es S oc ia ux e t d e R et ra it e P re vi dê nc ia S oc ia l ( R G P S ) 5, 6 (L R ) 95 ,3 ( B ra nc he V ei ll es se R eg im e G en er al ) 7, 9 (B ra nc he A T- M P R eg im e G en er al ) To ta l: 1 08 ,8 5, 61 32 6, 5 14 6, 54 8, 88 S an té S aú de 1, 1 (L R ) 14 2, 1 (B ra nc he M al ad ie R eg im e G en er al ) To ta l: 1 43 ,2 7, 39 61 ,8 27 ,7 4 1, 68 S ol id ar it é, in se rt io n et é ga li té d e ch an ce s A ss is tê nc ia S oc ia l e d ir ei to s da c id ad an ia 12 ,6 ( L R , i nc lu in do R S A ) 41 ,9 ( B ra nc he F am il le R eg im e G en er al ) To ta l: 5 4, 5 2, 81 39 ,1 e 1 ,8 To ta l: 4 0, 9 18 ,3 6 1, 11 S po rt , j eu ne ss e et v ie a ss oc ia ti ve D es po rt o e la ze r 0, 8 0, 04 1 0, 45 0, 02 V il le e t l og em en t H ab it aç ão e u rb an is m o 8, 6 0, 44 0, 17 e 4 ,8 To ta l: 4 ,9 7 2, 23 0, 13 D éf en se D ef es a N ac io na l 39 ,1 2, 01 32 ,2 14 ,4 5 0, 87 T ra va il e t e m pl oi T ra ba lh o 14 ,7 0, 75 31 ,4 14 ,0 9 0, 85 S éc ur it é S eg ur an ça p úb li ca 16 ,3 0, 84 9, 7 4, 35 0, 26 A ut re s m is si on s O ut ra s fu nç õe s 15 9 8, 2 32 5, 8 14 6, 23 8, 86 O rç am en to G lo ba l 41 2, 6 (L R ) 30 6, 5 (R G S S ) To ta l: 7 19 ,1 37 ,1 2 15 04 ,9 67 5, 45 40 ,9 P IB 1. 93 7, 2 10 0 36 75 1. 64 9, 46 10 0 Fo nt es : P ar a a F ra nç a, c on si de ra m os a s in fo rm aç õe s da L R 2 01 0 e do s se gu in te s do cu m en to s ofi ci ai s: D on né s B ud ge ta ire s 2 01 0 e C hi ffr es C lé s d e la S éc ur ité S oc ia le 2 01 0, c on si de ra nd o os v al or es d es pe nd id os p el o Re gi m e G en er al q ue c on ce nt ra a m ai or p ar te d as p re st aç õe s so ci ai s de s eg ur id ad e so ci al e r ec ol he o m ai or v ol um e de r ec ei ta s, q ue e st ão d is tr ib uí da s em s eu s qu at ro r am os ( br an ch es ): v ei lle ss e (a po se nt ad or ia s e pe ns õe s) , m al ad ie ( sa úd e) , A C -M P (a ci de nt es d e tr ab al ho ) e fa m ill e (p re st aç õe s fa m il ia re s) . E st as ú lt im as fo ra m a qu i e qu ip ar ad as c om a a ss is tê nc ia s oc ia l b ra si le ir a, m as v er em os a di an te q ue o B ra si l d es co nh ec e es se co nj un to d e di re it os e p re st aç õe s qu e es tã o en tr e o se gu ro c on tr ib ut iv o e pr es ta çõ es d e aj ud a so ci al . N o ca so d o B ra si l, ut il iz am os o s da do s do O rç am en to F is ca l e da S eg ur id ad e S oc ia l do B al an ço G er al d a U ni ão (B G U , 2 01 0) . E la bo ra çã o pr óp ri a. * P ar a ef ei to s de c om pa ra çã o do c on ju nt o do o rç am en to p ar a a E du ca çã o na F ra nç a in cl uí m os o P ro gr am a F or m at io ns S up er ie ur es e t R ec he rc he U ni ve rs it ai re . ** D at a da c ot aç ão u ti li za da : 3 1/ 12 /2 01 0. T ax a: 2 ,2 28 r ea is , B ra si l ( 79 0) = 1 e ur o (9 78 ). B an co C en tr al d o B ra si l. D is po ní ve l e m : < ht tp :/ /w w w 4. bc b. go v. br /p ec /c on ve rs ao /c on ve rs ao .a sp > . ** * C on ta bi liz ad os a pe na s os g as to s co m e nc ar go s e am or tiz aç õe s da d ív id a pú bl ic a in te rn a e ex te rn a. A fu nç ão E nc ar go s E sp ec ia is in cl ui o s ga st os p re vi de nc iá ri os d a U ni ão e tr an sf er ên ci as a os d em ai s en te s fe de ra tiv os e en gl ob ou e m 2 01 0 um v ol um e de r ec ur so s de c er ca d e R $ 86 0 bi lh õe s. 26 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 em 2010, conforme o FMI;34 e 40,2% conforme estudo da OCDE35 e declarações do governo na imprensa, provavelmente referindo-se ao segundo conceito citado pelo TCU. Como se pode identificar, são índices díspares e que revelam um pro- blema de falta de consenso e de transparência do dado. Porém, a questãocentral é: apesar de a saúde econômica brasileira apresentar-se, segundo todos os índices, aparentemente melhor, o país canaliza 38,6%36 de seus recursos orçamentários para o pagamento de juros, encargos e amortizações da dívida pública, conside- rando na função “Encargos especiais” as subfunções que se referem aos “Serviços das dívidas interna e externa” e ao refinanciamento de ambas (Tabela 1). Como proporção do PIB, trata-se de um comprometimento de 15,81%, em 2010 (Tabe- la 2), ano em que o PIB teve um alto e atípico crescimento de 7,5%, dando a im- pressão de que o Brasil passaria incólume à crise, o que não se confirmou na se- quência, quando voltou a um crescimento do PIB em torno de 2,7%, em 2011 (TCU, Relatório Ano-Exercício 2011). A França realizou um dispêndio de 5,6% de seu orçamento público quanto aos seus compromissos com a dívida no mesmo ano de 2010 (Tabela 1), o que representou 2,09% do PIB (Tabela 2). No Brasil, os encargos com a dívida são o primeiro item do gasto público, estando à frente da seguridade social. Na França, estes passaram a ser o segundo maior item no gasto fiscal (Orçamento do Estado), depois da educação nacional. Se incluímos a Sécurité Sociale — Regime General, os encargos com a dívida caem para o quinto lugar. Mesmo assim, a evolução do endividamento e seu peso no gasto fiscal causam preocupa- ção e inquietação na França, onde também existem movimentos organizados em torno da auditoria da dívida pública, especialmente no que diz respeito às ope- 34. FMI, Perspectives de l’Économie Mondiale. Reprise, Risques et Réequilibrage, out. 2010. 35. OCDE, Estudos Econômicos da OCDE Brasil, out. de 2011. Disponível em: <http://fgvprojetos.fgv. br/sites/fgvprojetos.fgv.br/files/Overview%20Brasil%202011%20%28port%29_1.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2012. 36. Publicação da Auditoria Cidadã da Dívida estimou para 2010 um peso da dívida no orçamento público de 44,93% (Informativo da Auditoria Cidadã da Dívida, Brasília, 2011), maior que o dado aqui en- contrado. No entanto, vamos operar aqui com o dado a partir das fontes oficiais, o que não altera as tendên- cias que vamos apontar. Esta importante organização tem realizado um trabalho incansável de esclarecimen- to e denúncia do odioso endividamento brasileiro. Seu cálculo da relação dívida/PIB considera juros, encargos, amortizações e a rolagem da dívida, o que implica um dado maior que o oficial sobre essa relação, mas que torna mais transparente o peso do endividamento do país. Cabe esclarecer ainda que a função “En- cargos especiais” engloba outros gastos, a exemplo das transferências constitucionais a estados e municípios, que não entraram nessa conta. 27Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 rações de salvamento das instituições bancárias na sequência do estouro da crise, em 2008 (Chesnais, 2011). Estes números nos mostram que a França e o Brasil estão envolvidos no pro- cesso global de punção do fundo público pelo capital financeiro (Behring, 2010), mas em escalas e com patamares elevadíssimos de comprometimento dos recursos orçamentários diferentes e com impactos também diferenciados na sociabilidade. Ou, melhor dizendo: níveis desiguais de socialização dos custos desse processo. A França, ao que tudo indica, realiza uma gestão com maior soberania de sua dívida, dispondo de margens de manobra diferenciadas e maiores, inclusive porque compõe os núcleos decisórios das instituições multilaterais, com relações viscerais com os credores. Outro aspecto que possivelmente corrobora para essa margem maior de manobra é a natureza da dívida francesa, de médio e longo prazo, e menos sensível à especulação, em que pese as agências de notação de risco desferirem duros golpes sobre o país no último período, amplamente divulgados na imprensa. Um registro fundamental é o de que a França não pratica taxas de juros escorchantes: as taxas de juros estiveram em 2010 fixadas em 0,75% em curto prazo, e em 3,11% em longo prazo.37 Essa mesma orientação não se aplica aos países periféricos, dentre os quais o Brasil, que vem mantendo taxas anuais de juros em patamares elevadís- simos para manter seus níveis de atratividade dos capitais, com forte impacto na dívida pública e privada. As taxas de juros oscilaram, em 2010, entre 8,65% (janei- ro de 2010) e 10,66% (dezembro de 2010).38 A França não compromete, tão intensa e diretamente como no Brasil, o finan- ciamento da Sécurité Sociale e de outras políticas públicas nesse processo de favo- recimento ao rentismo, ainda que destine um volume de recursos orçamentários significativo para esses segmentos. Por outro ângulo, é possível afirmar que há um comprometimento indireto, a uma visível erosão e decadência de políticas públicas antes consistentes, bem como aprofundamento da desigualdade nos acessos antes concebidos para ser universais. Há estudos que mostram o impacto das políticas neoliberais na França, ainda que talvez seja o país que mais resistiu a essas políticas. Vejamos alguns elementos que ilustram os impactos em importantes políticas pú- blicas. A França adotou uma política, no contexto da contrarreforma do Estado, de 37. Insee, Taux d’intérêt à court et à long terme par pays. Disponível em: <http://www.insee.fr/fr/themes/ tableau.asp?ref_id=CMPTEF08205®_id=98>. Acesso em: 11 jun. 2012. 38. Conferir Banco Central do Brasil, Histórico das Taxas de Juros. Disponível em: <http://www.bcb. gov.br/?COPOMJUROS>. Acesso em: 11 jun. 2012. 28 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 não substituição dos funcionários aposentados na proporção de um para cada dois, extinguindo postos públicos de trabalho em nome do gerenciamento dos custos de pessoal para diminuir o déficit público. A Cour de Comptes (2011) pondera sobre a eficácia dessa política, mas não pelo aspecto que vem sendo sinalizado nas aná- lises mais críticas: sua preocupação é com a não ocorrência das aposentadorias previstas e a ausência de uma política coordenada com as remunerações. Do ponto de vista do acesso aos serviços públicos, o impacto dessa medida foi, por exemplo, a supressão, entre 2007 e 2012, de 80 mil postos de trabalho no ensino escolar, o que se tornou uma questão candente no debate das recentes eleições presidenciais. Numa clara combinação com o processo de empobrecimento da população, e sinal de que as políticas de proteção em curso não estão conseguindo fazer frente de forma suficiente, há na França o reaparecimento de focos de doenças erradicadas, a exemplo da tuberculose em Clichy-sous-Bois, noticiado em tom de denúncia pelo Le Monde (29/9/2011). Nesse mesmo mês, o Le Monde (21/9/2011) sinalizava um aumento de 4,6% do número de detentos no sistema carcerário — em torno de 63.602 pessoas em 2011, segundo o jornal. Mas a questão que chama a atenção nessa matéria é a diminuição do número de funcionários públicos e suas condições de trabalho, considerando o aumento da demanda, que mostra a face da criminali- zação dos pobres. Outra questão em foco no país é a moradia. Estudo da Fondation Copernic (2012) mostra que a França vive uma espécie de boom de especulação imobiliária desde 2000, com uma alta dos preços dos aluguéis em torno de 118,2% que não foi acompanhada pela renda das famílias dos locatários. O resultado foi um crescimento de 96,6% no número de expulsões de famílias de habitações entre 2000 e 2010. O mesmo estudo mostra os superlucros do setor imobiliário, que cresceram muito acima da evolução do PIB e foram alimentados também por me- didas fiscais favorecendo o setor.39 A Cour de Comptes recomendava, em fins de 2011, um aporte de recursos de urgência para os sem teto (Le Monde, 16/12/2011), criando mais vagas sociais nas zonas urbanas sob forte tensão. Enquanto isso, os movimentos sociais denunciam a existência de 2,12 milhões dehabitações vazias, dado oficial do Insee, o que mostra a falta de aplicação da lei de requisição e tam- bém o desengajamento financeiro do Estado, a partir do baixo financiamento da habitação social e das alocações de habitação. De fato, observa-se na Tabela 1 que a Mission Ville et Logement consome apenas 1,2% da despesa pública francesa, o que corresponde a apenas 0,44% do PIB. Ainda assim, o aporte público é maior 39. Estes e outros dados podem ser encontrados em: <www.contrelelogementcher.org>. 29Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 que no Brasil, onde os percentuais são 0,32% do orçamento e 0,13% do PIB e existem políticas bastante residuais, mesmo com seu gigantesco déficit habitacional, uma das razões de existência das conhecidas favelas brasileiras e de um sem-nú- mero de habitações chamadas subnormais. Em que pese esses impactos, a França não implementa o superávit primário como o Brasil, onde as consequências são evidentemente mais dramáticas. O Sol- de Budgétaire Primaire (SBP) é um parâmetro econômico e não uma obrigação a ser cumprida a qualquer custo, mesmo com os draconianos indicadores de susten- tabilidade da Commission Européene (Elbaum, 2011, p. 455-457). O saldo primá- rio da França vem se deteriorando tanto quanto o saldo global (Cour de Comptes, 2011, p. 34), mas não implica uma escolha política de deliberadamente produzir um saldo positivo para sinalizar ao mercado condições de pagamento de dívida. Um mecanismo tão perverso como a Desvinculação de Receitas da União (DRU) não existe na França. A DRU alimenta o superávit primário no Brasil, retirando 20% das receitas de impostos e contribuições sociais, sendo que estas últimas fi- nanciam a seguridade social (para além das cotizações de empregados e emprega- dores), para compor as reservas nacionais ou pagar diretamente juros e encargos da dívida que estão expressos neste percentual de 38,6% do orçamento federal. São medidas injustas e lesivas, que vêm sendo adotadas no Brasil desde o acordo com o FMI de 1999 (caso do superávit primário), e desde o Plano Real (1994), quando foi criado o Fundo Social de Emergência, depois Fundo de Estabilização Fiscal, e hoje, DRU, mecanismo cujo único objetivo — ainda que a legislação que a regula aponte outros itens — tem sido o de garantir reservas cambiais que assegurem os compromissos com os credores nacionais e internacionais, que especulam com o risco-país atribuído pelas agências de notação de títulos,40 de forma que qualquer alteração nessa arquitetura perversa produz fortes abalos na vulnerável economia política brasileira (Filgueiras e Gonçalves, 2007). Destacamos ainda outros dados para análise. As despesas com educação e pesquisa científica são centrais, já que são estruturantes para a autonomia de qual- quer país, haja vista o acesso à informação, a formação da força de trabalho e, muito especialmente, o lugar das patentes na economia mundo (Chesnais, 1996). A França alocou 10,2% de seu orçamento nacional em educação, considerando aqui os três níveis de ensino e 4,8% em pesquisa (com recursos para as universidades e 40. Para uma leitura crítica do papel dessas agências mantidas pelo grande capital financeiro e o impac- to de sua consultoria na economia-mundo, consultar Chesnais, 2011; Didier, 2011 e Lordon, 2008. 30 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 centros de pesquisa), ou seja, esses dois itens reunidos englobam 15% do investi- mento público (Tabela 1) e envolvem 5,78% do PIB (Tabela 2). O Brasil destinou 3,22% dos recursos orçamentários federais para a educação e 0,49% para ciência e tecnologia, o que resulta em 3,71% da despesa total do ano de 2010 (Tabela 1), que equivale a 1,51% do PIB nas duas rubricas (Tabela 2). Enquanto a França gasta duas vezes mais com educação e ciência e tecnologia que com a dívida pú- blica, o Brasil gasta dez vezes menos com educação e ciência e tecnologia, em comparação com os encargos da dívida. Além do evidente reforço da heteronomia brasileira, esse elemento significa mais duas constatações sobre o Brasil: a conde- nação à condição de dependência e hipoteca de seu futuro, bem como o enorme campo aberto para a mercantilização da educação, diretamente relacionado à baixa oferta da educação pública. Na verdade, é a oferta privada que cresce exponencial- mente, o que aponta um grave problema de acesso, sobretudo ao ensino secundário e universitário. Existe mercantilização da educação em curso também na França de hoje em uma escala que não tivemos condições de aferir, mas que é visível nos grandes centros urbanos, em geral articulada à empregabilidade, e que atinge, so- bretudo, o ensino superior, após os acordos de Bolonha. Como dissemos, essa é uma marca de período e que se relaciona aos processos de supercapitalização ana- lisados por Mandel (1982). No entanto, o baixo grau de oferta pública no Brasil, corresponde a um boom da oferta privada, muitas vezes de baixa qualidade, espe- cialmente nos níveis médio e superior. Portanto, se a mercantilização é um proces- so que entrelaça os dois países, a oferta pública nesse campo os diferencia absolu- tamente, já que na França a escalada da mercantilização na educação permanece sendo residual e encontra fortes resistências. Podemos chamar a atenção também para o gasto com a cultura. Os valores são baixos para os dois países, mas ainda assim a França investe o triplo dos recursos alocados no Brasil: 0,4% do orçamen- to e 0,14% do PIB, na França; e 0,09% do orçamento e 0,03% do PIB no Brasil. Evidentemente, os bens culturais sem o suficiente aporte público são apropriados pela indústria cultural e por dinâmicas privatistas e do espetáculo nos dois países, o que inclui renúncia fiscal para os mecenas da arte, dentre os quais muitas insti- tuições financeiras. No caso específico da França, o enorme fluxo do turismo cul- tural e uma dinâmica de produção cultural muito consolidada permitem, a partir do pagamento de taxas, receitas de manutenção do imenso e impressionante patrimô- nio artístico e cultural do país. No Brasil, são bastante conhecidas as dificuldades de conduzir uma política cultural consistente e que apoiem a cultura popular — que 31Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 ademais possui um componente de resistência no país — e mantenham o patrimô- nio histórico, artístico e cultural num país de dimensões continentais. Se observarmos ainda a questão militar, veremos que esse também é um ele- mento a ser comentado no gasto público dos dois países. Pelo seu lugar na geopo- lítica mundial, além da questão dos territórios de ultramar, herança do colonialismo, a França destina 5,4% de seu orçamento para a defesa. Já o Brasil destina 2,13% de recursos nessa rubrica, ou seja, duas vezes menos recursos, ainda que a partici- pação brasileira nas mobilizações de forças internacionais tenha crescido (Tabela 1). Como parcela do PIB dos dois países, temos que a França destina 2,01%, e o Brasil, 0,87% (Tabela 2). Exemplo desse novo lugar do Brasil é a presença de forças brasileiras no Haiti há oito anos e seu esforço diplomático para compor o Conselho de Segurança da ONU. Mas essa participação ainda pode ser considera- da residual frente à presença francesa no Afeganistão, dentre outras guerras locali- zadas, muitas delas relacionadas desde 2001 ao ambiente de “guerra ao terrorismo” induzido pela política norte-americana, com o apoio do G7. Por fim, um breve comentário sobre a questão ambiental. No exato momento em que escrevemos estas linhas acontece no Brasil a Conferência Rio +20, onde se constata que apenas quatro das noventa metas ambientais do planeta obtiveram avanços nos últimos quarenta anos (Carta Capital, 12/6/2012). Pois bem, nesse contexto, a França destinou no ano analisado2,1% (Tabela 1) de seus recursos para a ecologia e o desenvolvimento sustentável, o que significou um percentual de 0,79% do PIB (Tabela 2). O Brasil, com a responsabilidade ambiental de dispor de uma floresta tropical como a Amazônia e de um dos maiores reservatórios de água do mundo, investe na gestão ambiental 0,24% do orçamento (Tabela 1), o que implica 0,1% do PIB (Tabela 2). São cifras pífias nos dois países se pensarmos na importância da questão para a humanidade (Löwy, 2011). Se comparadas com o volume de recursos capturados pelo luxo dos burgueses, especialmente sua fração rentista, vemo-nos diante da racionalidade perversa do valor, da expropriação, da apropriação privada da riqueza que hoje envereda por uma lógica destrutiva que pode levar a caminhos sem retorno. Tal racionalidade, ademais irracional,41 se ex- pressa no orçamento dos estados nacionais, quando destinam um insignificante volume de recursos para a questão ambiental, a exemplo da França e do Brasil. 41. Goya diz numa de suas mais importantes gravuras que o sono da razão produz monstros. Ele fazia um triste libelo contra a guerra, mas pensamos que a frase aqui se aplica perfeitamente. 32 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 Do ponto de vista da receita, na França, as principais fontes do orçamento do Estado são, por ordem de importância: a TVA (taxa sobre valor agregado), o Im- posto sobre a Renda, Imposto sobre as Sociedades, Outras Receitas Fiscais e Taxas sobre Produtos Petrolíferos (Cour de Comptes, 2011, p. 90). A TVA, que corres- pondeu em 2010 a 50% da arrecadação líquida, tem como característica o impacto no consumo, ou seja, é um imposto regressivo, o que é compensado pela capacida- de extrativa sobre a renda, as sociedades e demais impostos. Este quadro de pesos se manteve proporcionalmente no projeto de Loi de Finances de 2012, conforme noticiava o Le Monde, em 29 de setembro de 2011. Do ponto de vista da Sécurité Sociale — Regime General, a receita advém, por ordem de peso em 2010: 59% de cotizações sociais de empregadores (45%) e empregados (45%); 21% da CSG — uma contribuição social que incide basicamente sobre a renda trabalhadores, em até 7,5%, a partir de determinados patamares (Elbaum, 2011, p. 425); 11% em impostos e taxas diversos (tabaco e álcool, por exemplo); 6% de transferências; e 3%, outros. Trata-se de uma estrutura fiscal que incide fortemente sobre os traba- lhadores, especialmente pelo crescimento da TVA e da CSG. No Brasil, a estrutura fiscal está constituída em grandes agregados, segundo documento do Ministério da Fazenda (2011), que analisa o desempenho de 2010. O Orçamento Fiscal arrecadou 25,04% dos impostos federais, na seguinte ordem de peso: Imposto de Renda 18,23% (com destaque para pessoa física retido na fonte em 9,48% e pessoa jurídica em 7,43%); o Imposto sobre Produtos Industria- lizados (IPI), com 2,63%; e o Imposto sobre Operações Financeiras, com apenas 1,82%. Na sequência aparecem outros vários impostos que somam, no conjunto 2,36% da arrecadação. Quanto ao orçamento da Seguridade Social, este arrecadou, em 2010, 37,28% dos recursos federais, sendo as principais fontes: as contribuições de empregados e empregadores (17,24%), a Cofins (10,99%) e a CSLL (4,13%). As demais fontes reúnem apenas 4,92% dos recursos. Como se pode observar, a Seguridade social arrecada mais que o orçamento fiscal no Brasil o que tem gerado mecanismos de transferência de recursos da seguridade para o orçamento fiscal, em especial para o pagamento de encargos da dívida, pesados como vimos, e consti- tuição de reservas, via superávit primário. Mas o que chama a atenção no conjunto dos destaques que fizemos acima é que a relação dívida/PIB brasileira é menor nos vários cálculos disponíveis. O que permite concluir que o impedimento da expansão da educação pública, do investi- mento de maiores recursos para a cultura e o desenvolvimento intensivo de tecno- logias e da ciência no Brasil é sua condição na economia-mundo, subordinada do 33Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 ponto de vista militar, de patentes e pelo endividamento ilegítimo e odioso. En- quanto a França, para além da capacidade de os trabalhadores franceses resistirem às investidas neoliberais mesmo na era Sarkozy, tem melhores condições estruturais e históricas de autodeterminação e soberania na geopolítica mundial. Retomaremos este elemento-chave na conclusão deste artigo. Vejamos então, de forma mais detida, a questão do financiamento e as despe- sas de proteção social nos dois países. 3. Financiamento da proteção e da Seguridade Social: elementos para reflexão A Sécurité Sociale (ou Sécu, como a tratam com intimidade os franceses) é o coração do padrão ou sistema de proteção social, mas não se confunde com ele. Desde o plano Laroque, de 1945, a França construiu um híbrido bastante original entre as fundadoras experiências bismarkiana (1883) e beveridgeana (1942),42 com fortes raízes em sua história. Sendo herdeiro de muitas tradições, o sistema de proteção social francês nutriu-se de influências que passam pelas corporações de ofício e a Revolução Francesa (Duval, 2008, p. 46-7; Barbier e Théret, 2009, p. 19; Elbaum, 2011), parecendo perseguir até hoje objetivos beveridgeanos com métodos bismarckianos (Palier, 2005). Assim, o conceito de proteção social engloba um espectro amplo de instituições: o conjunto dos regimes de seguros sociais obriga- tórios, dentre eles a Sécurité Sociale — Regime Generale, os regimes de seguro dos funcionários públicos, os regimes complementares de seguro, as previdências privadas, o seguro-desemprego e as intervenções sociais do Estado, o que inclui as prestações sociais, dentre elas para a habitação, e ações assistenciais. Este conjun- to cobre os riscos de doença, envelhecimento, maternidade, emprego, moradia e pobreza. Embora as tentativas de construção dos tipos ideais de sistemas de prote- ção social tentem enquadrar a experiência francesa, a exemplo de seu encaixe no conceito de modelo corporativo-conservador por Esping-Andersen (1991), ela tem mostrado que as coisas não são tão simples. O pilar do seguro e do corporativismo (bismarckiano) tem se revelado um elemento de resistência às políticas neoliberais, 42. Para uma compreensão mais detalhada acerca destes dois grandes parâmetros históricos da proteção social, ver: Behring e Boschetti, 2006; Boschetti, 2006; e Boschetti, 2003 e o clássico Polanyi, 2000. 34 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 apesar da existência de perda de generosidade do sistema (Barbier e Therét, 2009, p. 23), e participa da oferta do conjunto das prestações sociais, de tendência beve- ridgeana, ao lado do Estado. Por outro lado, o sistema de proteção social francês vem desenvolvendo uma espécie de capacidade adaptativa diferenciada, no con- texto da onda longa de estagnação, gerando fontes fiscais de financiamento global e criando prestações e direitos, na perspectiva de acompanhar novas necessidades (ou riscos). Estes elementos fazem com que teses sobre o desmonte do Estado social, ou crise do Estado providência (Rosanvallon, 1981), que tiveram ressonância nos anos 1980, ou de uma contrarreforma tão profunda a ponto de aproximar esse padrão da experiência anglo-saxônica, sejam no mínimo discutíveis, apesar das perdas reais existentes (Duval, 2008). Não há dúvida, portanto, sobre a natureza híbrida e compósita da proteção social francesa e de que a necessidade de acordos com os partenaires sociaux, ar- ticulada à cultura política e às lutas de rua — a proteção social é enraizada no imaginário coletivo e em comunidades políticas historicamente constituídas (Barbier e Therét, 2009, p. 24) — foram elementos de preservação de sua cobertura e espe- cialmente de umespraiar residual dos processos de supercapitalização no campo dos seguros. Exemplo disso é que os fundos de pensão e as previdências privadas, que operam por meio de regimes de capitalização, com forte vínculo com os mer- cados financeiros, não tiveram crescimento destacado nesse país, onde representa- vam apenas 1% do PIB no final de 2007, mesmo com a conversão dos socialistas ao monetarismo nos anos 1980,43 que efetivamente fragilizou os processos de re- sistência, ainda que sua presença tenha feito alguma diferença (Duval, 2008). Já em outros países da Europa, a exemplo dos Países Baixos, com 179%, e Reino Unido, com 79%, e nos Estados Unidos, 77%, esse crescimento foi estrondoso. Mantiveram-se na França os regimes por repartição e a solidariedade intergeracio- nal quanto às aposentadorias, ou seja, a França claramente recusou a estratégia da capitalização, fazendo com que hoje tenha melhores margens de manobra para manejar os efeitos da crise, seja no campo das coberturas sociais, seja no campo 43. Para compreender a conversão socialista e certa reprodução uníssona de determinados axiomas na esquerda e na direita francesas, conferir a interessante pesquisa de Hartmann (2011), que mostra os processos de formação e de circulação internacional das elites políticas europeias, a qual tivemos a oportunidade de conhecer em seminário realizado no Cresppa-CSU, em 24/1/2012. No caso francês, Hartmann constata grande homogeneidade e concentração desse processo de formação, nas grandes escolas de elite e de peque- no porte. No caso dos quadros da administração pública, 80% desta é recrutada numa pequena reserva, tem origem burguesa ou pequeno-burguesa, com forte predominância de Paris. 35Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 dos riscos financeiros relacionados à dinâmica da previdência complementar por capitalização (Cornilleau et al., 2010, p. 35; Boschetti, 2012). Embora seja fundamental explicitar o conceito de proteção social para com- preender melhor os desenvolvimentos da política social na França, não vamos adotá-lo globalmente como o campo empírico da pesquisa,44 no sentido de perseguir a perspectiva comparada de universos conceitualmente mais próximos. Para esse objetivo, cabe delimitar a Seguridade Social como universo que possui na França e no Brasil características semelhantes. Ademais, segundo Barbier e Théret (2009), a Sécurité Sociale absorvia, em 2006, 80,8% das despesas de proteção social e 83,1% do conjunto das prestações sociais. A Sécurité Sociale, portanto, é um pilar decisivo do sistema de proteção social francês, cobrindo grandes riscos relacionados ao trabalho, já citados anteriormente, na maior parte das vezes sob a forma do seguro. Trata-se de um conjunto institu- cional complexo e fragmentado, porém unificado. Sua unidade de base é o regime, e existem hoje no país mais de quinhentos regimes, ainda que a maior parte da população esteja vinculada ao Régime General, que engloba o conjunto dos traba- lhadores do setor privado (como no Brasil) e que estará no centro de nossa análise adiante. Estes regimes são geridos por caixas, sob tutela do Estado, e que possuem representação dos partenaires sociaux, que efetivamente decidem sobre seus rumos e realizam cotidianamente a gestão dos recursos. A Sécurité Sociale é dividida em quatro grandes ramos (branches): família, envolvendo as prestações familiares; seguro-doença (saúde); acidentes de trabalho; e seguro-velhice, relacionado às aposentadorias e pensões. O funcionalismo público possui regimes especiais, pro- cesso que advém também do espírito republicano da Revolução Francesa, que atribuía à função pública um lugar diferenciado. O seguro-desemprego é gerido por uma caixa própria pelos partenaires sociaux, a Unedic, cujos aportes de recursos são assegurados pelo Estado e pela Sécurité Sociale — Regime General, com 99% em cotizações de empregados e empregadores, com maior peso para esses últimos, segundo Elbaum (2011, p. 420). No entanto, há importante aporte de recursos para 44. Mesmo porque os estudos franceses parecem não ter chegado a um consenso sobre os universos englobados pelos conceitos de Estado Social, Proteção Social e Seguridade Social. Há momentos em que os dois primeiros são utilizados num sentido mais amplo, mas não fica clara a razão de não constituírem o mesmo universo (Elbaum, 2011). Há outros em que os dois últimos parecem constituir o mesmo universo (Barbier e Therét, 2009). Para efeito deste estudo, que não pretende esgotar um debate que parece estar longe do fim, vamos delimitar o campo da Sécurité Sociale — Regime General, tomando como referência a prestação de contas oficial, segundo a LFSS, mas em diálogo com estes e outros autores. 36 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 políticas relacionadas ao desemprego, ou de ativação do emprego e formação pro- fissional, na Mission Travail et Emploi, como pudemos constatar a partir da sínte- se de Aubin (2011, p. 71-86). O outro pilar da proteção social francesa e que deve ser considerado no campo empírico deste estudo, levando em conta a correlação com o conceito bra- sileiro de Seguridade Social, é a ajuda e a ação sociais, que poderia ser equipara- do ao que chamamos no Brasil de assistência social,45 mas com algumas precauções. Isto porque, na França, há um conjunto de direitos muito diversificado, envolven- do prestações sociais e ações, financiado pelo orçamento fiscal, mas também pela Sécurité Sociale, e gerido na maior parte das vezes pelos entes federativos subna- cionais (Départements e Communes),46 distribuídos em 27 regiões. Os chamados mínimos sociais na forma de transferência de renda são distribuídos pela Sécurité Sociale, ainda que financiados pelo orçamento fiscal. Este segmento da proteção social francesa consumia cerca de 10% das receitas fiscais, em 2006 (Barbier e Théret, 2009, p. 12). O Brasil não conhece um sistema de prestações familiares como o francês, que envolve habitação, educação primária, a exemplo de suportes para material escolar no início do ano letivo, entre inúmeras outras necessidades reconhecidas como direitos. Estas prestações são financiadas pelo Estado e pelas cotizações e poderiam estar classificadas exatamente entre o seguro e a assistência. Vão, portanto, muito além da transferência de renda assistencial — que ademais é muito mais consistente na França que o Bolsa Família brasileiro, e dos serviços sociais mais ou menos complexos, que no Brasil correspondem ao Suas. Tendo em vista a dificuldade comparativa aqui, optamos por relacionar a branche famille (ramo família) e a mission Solidarité, insertion et égalité de chances com a função Assistência Social no Brasil, mas com plena consciência de que os conceitos sob os números são neste caso muito diferentes, ao contrário da Saúde e da Previdên- cia Social. Além da Sécurité Sociale e da ajuda e ação social, há sistemas mutuais e de previdência privada facultativos e voluntários e, a princípio, com fins não lucrativos. 45. Há uma forte rejeição do termo assistência social no debate francês, renomeada aide sociale desde 1953 (Barbier e Théret, 2009, p. 86). Na interpretação corrente neste país, o termo assistência social remete à indignidade e à ausência do direito. Porém, eventualmente, os autores se referem a este ramo da proteção como assistência, a exemplo de Elbaum (2011). Essa relação tensa, de rejeição e interpenetração, entre as- sistência e previdência, fundada na condição do trabalho, é analisada em Boschetti (2003 e 2006). 46. O equivalente aos estados e prefeituras no Brasil. A França conta hoje com 36.781 Communes, e 101 Départements, incluindo os territórios de ultramar. 37Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 São herdeiros das estruturas mutualistasdo século XIX e assumem um papel crescentemente importante no campo da saúde. Os autores franceses são bastante cuidadosos ao qualificar esse setor como privado, já que há presença de grandes mutuais de funcionários públicos. Contudo, é evidente que existem no último período fortes pressões do capital financeiro para uma participação maior no sis- tema, considerando o volume de recursos que mobilizam, especialmente nessas grandes caixas do funcionalismo público e o apetite que estes despertam no mer- cado de capitais. Duval (2008, p. 40) mostra os esforços para introduzir uma dose de capitalização no sistema francês, especialmente na contrarreforma de 2003, com a criação dos planos de poupança-aposentadoria individuais (Perp) e coletivos (PPESVR), inclusive com incentivos fiscais. No entanto, conforme dado acima citado, vimos que seu impacto não é significativo. Esse campo não será conside- rado empiricamente, para efeito dos objetivos deste texto. Sobre a questão do financiamento, é exatamente aqui que cabe falar de um sistema de proteção social, apesar da sua fragmentação institucional. A unidade e a cobertura universal do sistema são asseguradas pelo financiamento cruzado (Bar- bier e Théret, 2009, p. 15): há transferências de compensação entre Estado e regimes de seguro social, para garantir a cobertura, suprindo as crescentes necessidades de financiamento; e há uma espécie de solidariedade interprofissional, quando os cruzamentos se fazem entre os regimes de seguro social de categorias diferentes de trabalhadores. Essa migração permanente de recursos para assegurar a cobertura dos diversos direitos constitui uma efetiva solidariedade nacional. Assim, estão em permanente convivência duas lógicas: a do seguro e a da solidariedade nacional (Barbier e Théret, 2009, p. 15). Cabe lembrar que a Sécurité Sociale não faz parte do orçamento do Estado, sendo regida por legislação própria, a Lei de Financia- mento da Seguridade Social (LFSS). Há previsão de recursos do orçamento fiscal nas Missions Santé e Regimes Sociaux e de Retraite, como mostram as Tabelas 1 e 2, mas como elemento complementar. Do ponto de vista da receita, a maior parte dos recursos é assegurada pelas cotizações dos trabalhadores e empregadores fundamentalmente, ainda que nos últimos anos tenham sido criados mecanismos universais de financiamento, que transferem recursos orçamentários fiscais para sua sustentação. Barbier e Therét (2009) mostram que tem ocorrido uma diminuição da contribuição dos trabalhado- res, em função da dinâmica do mercado de trabalho e especialmente do desempre- go, acompanhado de certa constância com leve tendência de baixa da contribuição dos empregadores, o que vem sendo acompanhado pelo aumento do aporte de 38 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 impostos e taxas especificamente criados para dar suporte à política social. Exemplo disso é a Contribution Sociale Généralisée (CSG), criada em 1991, e que incide sobre a renda em 7,5% a partir de um determinado patamar (Elbaum, 2011, p. 425), e que não compõe o orçamento do Estado (LFI), mas da Sécurité Sociale (LFSS). A CSG cresceu em importância como mecanismo de financiamento da proteção social francesa, acentuando um lado beveridgeano de solidariedade nacional. Em 2010, a CSG financiou 21% da Sécurité Sociale, ao lado das cotizações (59%), impostos e taxas, especialmente sobre tabaco e álcool (11%), transferências (6%) e outras re- ceitas (3%) (Drees, 2011). Essa composição mostra a importância crescente de impostos e contribuições em detrimento das cotizações. Apesar dos mecanismos de financiamento cruzado, a Sécurité Sociale vem mantendo um desempenho negativo, ou seja, na França também há um forte debate sobre o trou de la Sécu (déficit da Seguridade Social), especialmente com as orientações de Maastricht, segundo as quais os Estados nacionais devem manter um déficit público de, no máximo 3%, do PIB, implicando verdadeiras batalhas políticas desde os anos 1990, onde o falso argumento da fatalidade demográfica (Duval, 2008, p. 35) é recorrentemente reivin- dicado para sinalizar a possível falência futura do sistema. Nesse sentido, temos um ambiente bastante semelhante a envolver os dois países, pressionando pelo estabelecimento de tetos e controles das aposentadorias, haja vista a quantidade de publicações e matérias de mídia nesse sentido. Duval (2008) faz um interessante apanhado dessa dinâmica na França, criticando brilhan- temente a transformação da Sécurité Sociale em uma questão técnica de equilíbrio de contas, cuja gestão deveria ser semelhante à empresa, quando na verdade se trata de uma questão de economia política e de escolhas políticas e sociais. Para o autor, este debate acontece no contexto de uma ofensiva ideológica que persegue o objetivo de mudar a percepção da proteção social. Desloca-se o conceito de ne- cessidades de financiamento da Seguridade Social — necessidades geradas pela dinâmica de desemprego e baixa da renda no mundo do trabalho, que provocam queda das receitas combinada à alta das despesas, produzida pelo aumento das necessidades sociais — para a ideia de déficit. Tal deslocamento visa responsabi- lizar os direitos de Seguridade Social pelas dificuldades das finanças públicas e do investimento, mas também pelas deslocalizações e o desemprego, a partir do dis- curso corrente sobre o alto custo do trabalho (Idem, p. 21), o que também unifica os dois países. Em vez de propiciar a proteção, a Sécurité Sociale torna-se um fardo, e em vez de direitos, esse discurso preconiza contratos. Como já dissemos, o sucesso dessa pressão tem sido apenas pontual na França, em comparação com 39Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 outros países da Europa (Boschetti, 2012). Mas há uma ampla difusão desses argu- mentos, especialmente para a periferia do capitalismo, na qual princípios liberais como a neutralidade atuarial vem colocando governos de direita e de centro-esquer- da num mesmo diapasão: o do déficit da Previdência. Considerando esses traços gerais da proteção social e da Seguridade Social francesa, que relações, além das que procuramos apontar até aqui, se pode efetiva- mente traçar entre estes e a experiência brasileira? No Brasil, temos, desde a Cons- tituição de 1988, estabelecido que a Seguridade Social envolve políticas e direitos relacionados à Previdência Social, à Saúde e à Assistência Social,47 políticas públi- cas que foram posteriormente reguladas por leis orgânicas complementares. A Constituição também firmou o Orçamento da Seguridade Social como parte do orçamento do Estado, e foram criados mecanismos de inspiração beveridgeana para seu financiamento, para além da contribuição de empregados e empregadores, de inspiração bismarckiana. Exemplo disso foi a criação da Contribuição para o Fi- nanciamento da Seguridade Social (Cofins) e da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). Posteriormente, foi criada também a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) e há outros mecanismos fiscais com in- cidência mais residual no financiamento da seguridade social brasileira. As políticas e os recursos são geridos pela União, que concentra a maior parte da carga tributá- ria do país: 69,91% em 2010. A carga tributária nacional total representou, em 2010, 33,56% do PIB, sendo que 23,46% concentraram-se na União, o que justifica nosso movimento de considerar para efeitos da análise os recursos federais no Brasil. O governo federal transfere recursos, por obrigação constitucional, para estados e municípios, mas estes últimos também alocam recursos fiscais próprios nas políticas sociais, sobretudo na Saúde, Assistência Social e Educação, mas que não são considerados no âmbito deste estudo. Paraviabilizar a gestão das políticas e as transferências para os entes federativos subnacionais foram criados fundos especiais, nos quais são alocados os recursos orçamentários. Foram criados, por fim, instrumentos de controle democrático das políticas de Seguridade Social, os 47. Há um longo e interessante debate sobre a utilização do termo e o próprio estatuto da Assistência Social no Brasil, que difere da reflexão francesa anteriormente citada. Então, desde a Constituição de 1988 e a Lei Orgânica da Assistência Social, de 1993, fala-se sobre a assistência como direito. Evidentemente, esta é uma construção histórica atravessada por muitas tensões. Para este debate, da ampla bibliografia disponível, destacamos: Sposati et al. (1985); Yasbek (1993); Boschetti (2003 e 2006); Mota et al. (2010). Do ponto de vista institucional, há ampla documentação disponível hoje no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). 40 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 conselhos e conferências, e periodicamente são revistos os planos nacionais e sub- nacionais referentes às políticas de Seguridade Social.48 O desenho do sistema de Seguridade Social brasileiro não envolve direitos referentes à moradia, os quais são extremamente frágeis no Brasil, como revela a destinação orçamentária (Tabelas 1 e 2) e desconhece as chamadas prestações fami- liares do sistema francês, como explicitamos anteriormente. Outra questão a ser ressaltada é que o orçamento da Seguridade Social envolve o seguro-desemprego, que é um direito constitucional de seguridade, tem suporte do Fundo de Amparo ao Trabalhador, recolhe recursos do PIS-Pasep, dos quais 60% são destinados para aquele programa e outros de geração de emprego e formação da força de trabalho, e 40% são destinados ao BNDES para programas de desenvolvimento (Santos, 2006). A partir dessas considerações gerais sobre a proteção social e seu financiamen- to nos dois países, podemos avançar na análise comparada das despesas nesse campo, considerando nas Tabelas 1 e 2 os conceitos semelhantes. Vejamos então a Tabela 3, a seguir, onde desagregamos aqueles dados para dar a eles melhor visibilidade. A Tabela 3 reúne as despesas nacionais em Previdência, Saúde, Assistência Social e Trabalho nos dois países, na perspectiva de mostrar agregados que repre- sentam universos semelhantes de cobertura das políticas sociais. No Brasil, a deli- mitação deste universo é relativamente mais simples, pois o conjunto dos dados está no orçamento federal. No caso francês, considerando a fragmentação do sistema de proteção social, optamos por analisar o agregado maior de recursos, diga-se, o Re- gime General da Sécurité Sociale, somado ao aporte do Estado nacional. Essa opção leva a um dado cuja análise precisa ser muito cuidadosa: o de que a França investe mais em Saúde que em Previdência Social. Na verdade, as demais assurances com- plementaires, incluindo os regimes particulares e especiais, não estão compondo o dado. Com isso, o nosso universo delimitado leva a um gasto maior em Saúde que em Previdência na França, o que não é confirmado pelas análises que consideram o conjunto da proteção social, onde a Previdência é também a maior rubrica de gasto. Podem existir também gastos cruzados de Previdência e Saúde, considerando que são duas políticas profundamente imbricadas no contexto dos regimes e do finan- ciamento cruzado. O Eurostat (acesso em 21 de junho de 2012), cujos dados sobre a proteção social estão atualizados até 2009, indica uma cobertura na França de 48. Sobre a Seguridade Social brasileira há inúmeros trabalhos de referência, mas destacamos aqui: Behring e Boschetti (2006); Boschetti (2003 e 2006); Mota (1995); Salvador (2010); CFESS (2001); Fleury (1994 e 2004); Teixeira (1990) e Vianna (1998 e 1999). 41Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 Ta b el a 3 De sp es as d e Se gu rid ad e So ci al F ra nç a — B ra si l 2 01 0 (b ilh õe s de € ) M is si on s (F ra nç a) Fu nç õe s (B ra si l) Or ça m en to F ra nç a % s ob re Or ça m en to % s ob re o PI B Or ça m en to Br as il em R $ Em € % s ob re Or ça m en to % s ob re o PI B Re gi m es S oc ia ux e t d e Re tr ai te P re vi dê nc ia S oc ia l 5, 6 (L R ) 95 ,3 ( Br an ch e Ve ill es se Re gi m e G en er al ) 7, 9 (B ra nc he A T- M P Re gi m e G en er al ) To ta l: 10 8, 8 15 ,1 5, 61 32 6, 5 14 6, 54 21 ,6 9 8, 88 Sa nt é S aú de 1, 1 (L R ) 14 2, 1 (B ra nc he M al ad ie Re gi m e G en er al ) To ta l: 14 3, 2 19 ,9 7, 39 61 ,8 27 ,7 4 4, 1 1, 68 So lid ar ité , i ns er tio n et ég al ité d e ch an ce s A ss is tê nc ia S oc ia l e D ir ei to s da C id ad an ia 12 ,6 ( L R , i nc lu in do R S A ) 41 ,9 (B ra nc he F am ill e Re gi m e G en er al ) To ta l: 54 ,5 7, 5 2, 81 39 ,1 e 1 ,8 To ta l: 4 0, 9 18 ,3 6 2, 71 1, 11 T ra va il e t e m pl oi T ra ba lh o 14 ,7 2 0, 75 31 ,4 14 ,0 9 2, 08 0, 85 O rç am en to g lo ba l 41 2, 6 (L R ) 30 6, 5 (R G S S ) To ta l: 71 9, 1 10 0 1. 50 4, 9 67 5, 45 10 0 P IB 1. 93 7, 2 10 0 3. 67 5 1. 64 9, 46 10 0 Fo nt es : L R 2 01 0, D re es , 2 01 1 (F ra nç a) e B G U 2 01 0 (B ra si l) . E la bo ra çã o pr óp ri a. 42 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 33,05% do PIB naquele ano, sendo 14,5% em aposentadorias e pensões, ou seja, um impacto bem maior do que o identificado a partir da base empírica aqui tratada. No entanto, as contas do Eurostat consideram o conjunto do gasto social, o que inclui o Estado nacional, os entes subnacionais, e o conjunto das assurances. Nosso cuidado, então, deve ser o de não superestimar as despesas de Saúde ou subestimar as despe- sas de Previdência na França, explicitando que estamos nos aproximando, no âmbi- to deste estudo, de um universo semelhante entre os dois países em foco, o que nos levou a delimitar a despesa federal e, no caso da França, o Regime General de Sé- curité, que reúne a maior parte das despesas, cobrindo 75% da população aposenta- da (Barbier e Théret, 2009, p. 50). O eixo do trabalho foi se revelando importante, considerando o peso do seguro-desemprego e das políticas ativas de formação profissional e geração de emprego e renda. No Brasil, esta função é financiada ba- sicamente pelo Orçamento da Seguridade Social, embora tenha uma fonte específi- ca, e na França, pelo Budget de L’État e por cotizações específicas para a Unedic, de forma que incluímos esse eixo na nossa base de dados. Postas essas questões preliminares, observemos o campo delimitado. Na França o conjunto desses gastos nacionais representou 16,56% do PIB, em 2010, e 44,5% das contas consideradas (LR 2010 e contas da Sécurité Sociale — Regime General 2010). Para o Brasil, temos que o governo federal aloca 12,52% como proporção do PIB e 30,58% do orçamento federal nosquatro eixos. A França in- veste quase a metade dos recursos aqui computados, lembrando sempre que este volume é ainda maior em gastos sociais tipicamente de Seguridade Social, enquan- to o Brasil, com um PIB pouco menor, e com uma margem menos alargada de expansão deste número, se consideramos os mesmos critérios da França, aloca pouco mais que um terço de recursos para uma população três vezes maior, como vimos antes. São números que descortinam a existência de uma proteção social estruturada e fundada no pleno emprego e no reconhecimento de direitos, à fran- cesa, mesmo com os desgastes do período, e a fragilidade da proteção social no rico país pobre, que é o Brasil, submetido historicamente na hierarquia-mundo a cons- trangimentos econômicos e sociais, com o conluio interno das classes dominantes, e que delineia tardiamente a Seguridade Social fora de um contexto de pleno em- prego e sem uma cultura de direitos efetiva, mas com os avanços constitucionais de 1988, a despeito da ofensiva contrarreformista. Os dados revelam um forte desnível do gasto social brasileiro, considerando o peso da Previdência Social (8,88% do PIB e 21,69% do orçamento) e dos demais eixos no orçamento e no PIB (Tabela 3), enquanto a França guarda um equilíbrio 43Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 maior entre Previdência e Saúde, fortemente marcados pela lógica do seguro, e possui uma aide sociale com menos recursos que as demais políticas, mas com crescente importância hoje em virtude do empobrecimento da população, e, clara- mente, com maior volume de recursos que no Brasil, e que envolve a diversidade de benefícios na forma das prestações sociais familiares, um elemento de forte di- ferenciação entre um padrão de proteção e de gasto público e outro. O gasto previ- denciário brasileiro federal, que tem como principal fonte de recursos a contribuição de empregados e empregadores, é maior que o francês, inclusive pela referência citada acima do Eurostat. No entanto, a cobertura previdenciária brasileira é menor que a francesa, considerando a PEA e os dados de emprego sinalizados anteriormen- te, e cuja análise detalhada e densa podemos encontrar em Lopes (2011), que mostra que cerca 50 milhões da PEA ficam fora do sistema no Brasil, sem necessariamente cumprir os requisitos de acesso aos programas assistenciais ultrafocalizados (ex. Programa Bolsa Família). Ambos os sistemas previdenciários, por seu turno, são organizados sob a lógica do seguro, contributiva, ainda que contem com aportes fiscais. Como explicar, então, essa diferença? Uma incidência neste dado é a de que o Regime Geral brasileiro tem uma cobertura de cerca de 20 milhões de aposentados, enquanto na França são cerca de 10 milhões, aproximadamente, vinculados ao Re- gime General, o que tem relação com o tamanho da população economicamente ativa dos dois países e muito claramente com o grau de assalariamento da população, muito maior na França que no Brasil, mesmo no contexto da crise. Por outro lado, como hipótese, podem incidir também questões relacionadas à estrutura de renda e de contribuição que não teremos condições de explorar aqui. Em contrapartida, considerando a população, os indicadores sociais histori- camente mais frágeis, e a dimensão continental do território, é evidente o subinves- timento brasileiro em saúde, quase cinco vezes menor que na França, considerando o orçamento, e quatro vezes menor, com base no PIB. Cabe refletir que a saúde no Brasil não é pautada pela lógica do seguro como na França, o que requisitaria um aporte de recursos muito maior para que o direito à saúde fosse efetivamente uni- versalizado, embora o seja no marco legal. A existência de uma potente rede priva- da — por exemplo, 69% dos hospitais brasileiros são privados, e oferecem apenas 38% de vagas ao Sistema Único de Saúde (SUS), com base em convênios, segun- do Almeida, 201149 — e de planos de saúde para os que podem pagar, mostra o 49. Informe ENSP, de 30/6/2011. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/ materia/detalhe/26264>. Acesso em: 21 jun. 2012. 44 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 quanto o subfinanciamento dessa política dá base material à mercantilização, já que a precariedade em parcela significativa do sistema público, as filas, a falta crônica de material, dentre outros, minam a confiança no SUS. Ainda assim, o SUS atende a cerca de 75% da população brasileira sem condições de acesso aos planos priva- dos. A Saúde na França articula-se a uma lógica contributiva, sendo, portanto, muito sensível à dinâmica do trabalho. Nesse sentido, a Saúde é a política que mais requisita a expansão de mecanismos fiscais de financiamento, bem como recebe pressões para a universalização da oferta, sobretudo das baixas rendas, que resul- taram na criação da Coverture Maladie Universelle (CMU), assegurando acesso à saúde aos que não podem de fato pagar uma assurance maladie, e da Coverture Maladie Universelle Complementaire (CMU-C) aos que tem menores condições de contratar a assurance, assegurando reembolsos de cuidados médicos. Por outro lado, há hoje pressões privatistas importantes na França, seja por parte do setor médico liberal, seja pelo crescimento exponencial das muttueles santé, especial- mente no contexto do neoliberalismo. Se no campo previdenciário os fundos de pensão e a repartição não prosperaram, na Saúde houve um campo de expansão maior da mercantilização. Barbier e Théret (2009, p. 66) caracterizam que a Saúde oscila entre a privatização limitada e a cobertura universal, sendo que o Regime General assume cerca de 82% das suas despesas. Na Assistência Social encontramos uma despesa quase três vezes menor no Brasil, em comparação com a França, considerando o orçamento e o PIB. Se no Brasil temos o desenvolvimento do Sistema Único de Assistência Social (Suas), vale lembrar que mais de 90% do orçamento da Assistência Social destina-se à transferência de renda. Contudo, estamos longe de constituir o suporte em mínimos sociais (em número de nove, segundo Barbier e Théret, 2009, p. 88) e de alocações familiares (CNAF, Sécurité Sociale) disponíveis na França. Além disso, se na França avançaram os programas que exigem comprovação de renda, os critérios estão distantes de serem tão draconianos quanto os brasileiros, como vimos acima ao comentar as medidas da pobreza no Brasil. Quanto ao eixo trabalho, os dois países investem um volume semelhante de recursos, mas este é também um dado que precisa ser mediado pelos elementos que levantamos no item 1 deste texto, que delineiam as características do mundo do trabalho nos dois países, ou seja, existem necessidades muito diferentes num país que viveu o pleno emprego keynesiano e que apesar da crise mantém fortes carac- terísticas da chamada relação salarial, e outro que não conheceu essa experiência na sua história e cuja força de trabalho se encontra em cerca de 50% na informalidade, 45Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 sem direitos e sem contribuição para a proteção social, o que demanda um forte investimento nesse conjunto de políticas sociais de Seguridade Social e em outras políticas públicas, mas encontra fortes obstáculos numa economia política periféri- ca de expandi-lo. Breve conclusão Este artigo é o resultado de uma aproximação que está longe de ser esgotada. No entanto, a incursão realizada permite finalizar chamando a atenção para a per- versidade dos mecanismos de ajuste fiscal brasileiros, que de fato constrangem as possibilidades de expansão da proteção social, considerando o peso da dívida pú- blica, o superávit primário e os mecanismos que retiram recursos da Seguridade Social.50 Por outro lado, a austeridade fiscal ronda a Europa já há algum tempo, cortando postosde trabalho e realizando contrarreformas importantes, mesmo que resistências políticas e filtros histórico-estruturais se interponham como no caso francês. Portanto, essa dinâmica contemporânea do capitalismo comandada pela hegemonia da finança, entrelaça os dois países. Entretanto, há que observar o que difere estruturalmente. E um elemento central de diferença é o espantoso dado do peso da dívida no orçamento público brasileiro — com a produção do superávit primário e todos os mecanismos daí decorrentes —, apesar de uma relação dívida/PIB menor que a francesa, mesmo antes de 2007. Este elemento requisita alguns comentários finais. Dourille-Feer et al. (2011) nos ajudam a pensar sobre a questão. Partem da consta- tação de que há um momento favorável aos países em desenvolvimento quanto ao refinanciamento das dívidas externas, em função das baixas taxas de juros pratica- das ao norte, o que torna a dívida desses países aparentemente sustentável e pro- move certa euforia nos gestores. O exemplo brasileiro é citado aqui explicitamen- te (Idem, p. 29). Na verdade, essa sustentabilidade tem um custo, e essa é uma escolha política: comprimir as despesas sociais para destinar recursos aos credores. Os demais elementos que dão a aparência da sustentabilidade são o preço das 50. Que vão além da DRU. Na verdade, há inúmeros mecanismos de renúncia fiscal que incidem sobre fontes de financiamento da Seguridade Social brasileira e que foram ampliados no contexto do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), como tivemos a oportunidade de demonstrar em Behring et al., 2007. 46 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 matérias-primas e o fluxo de capitais (assegurado pelas altas taxas de juros prati- cadas). São três dimensões extremamente conjunturais e que, a rigor, não poderiam estar relacionadas ao termo sustentabilidade. Quando se pensa para além da dívida externa sobre a dívida total, considerando o crescimento exponencial da dívida interna, a conjuntura favorável se torna bastante frágil. Um fato que torna esse contexto mais complexo para os países em desenvolvimento é a formação de bolhas especulativas na China, que importa boa parte das matérias-primas desses países, incluindo o Brasil. Para os autores, a conjuntura frágil, mas ainda favorável, deve- ria incentivar atitudes soberanas dos Estados no sentido de auditar e contestar total ou parcialmente a dívida. Até porque se os credores ao norte, detentores de títulos da dívida pública desses países, foram capazes de lidar com as enormes perdas recentes no contexto da especulação. Não seriam perdas muito menores globalmen- te que iriam desestabilizar e deixar nervosos os mercados, que o diga o Clube de Paris em sua estacionada relação com a Argentina após 2001 (Idem, p. 39). No entanto, é essa sangria segura e cotidiana o verdadeiro alimento dos credores: a punção de mais-valia socialmente produzida, sustentada pela submissão, pela chantagem especulativa, pelas relações desiguais e combinadas na hierarquia mun- do, com a aquiescência interna das classes dominantes. Trata-se também, eviden- temente, de assegurar a possibilidade de aquisição de patrimônio, de ativos, haja vista o gigantesco movimento patrimonial engendrado com as privatizações (Behring, 2003). Assim, existem condições político-econômicas diferenciadas entre o Brasil e a França, embora ambos os países estejam vivendo à sua maneira a punção do capital financeiro. E as escolhas feitas no terreno da política e das pressões da luta social são decisivas nesse terreno. Observamos também, como campo comum mediado pelas diferenças, o am- biente de pressões pela mercantilização das políticas sociais em variadas formas. Há ainda o crescimento de políticas sociais que exigem comprovação de renda, bem como que passam estímulo ao consumo, típicas do campo da assistência social. De outro ângulo, há elementos a ser mais bem explorados e que instigam a continuida- de das pesquisas, a exemplo de um mergulho detalhado na estrutura fiscal que nos permita discutir os problemas da redistributividade ou não. Chesnais (2011, p. 15) aponta um enfraquecimento dos impostos diretos (renda e lucros das empresas) e fortalecimento dos indiretos, a exemplo da TVA. Dourille-Feer et al. (2011) dizem dos presentes para os ricos a partir da renúncia fiscal, os chamados niches fiscales na França, o que também é sublinhado por Franchet (2011) e reconhecido pela própria Cour des Comptes (2011). Acompanhamos na França, em 2011 e 2012, o 47Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 debate sobre o aumento da TVA, um imposto nitidamente regressivo, inclusive com o discurso de uma TVA social para enfrentar o déficit da Sécurité Sociale, elemen- to que polarizou as eleições presidenciais francesas. Para Chesnais, o endividamen- to do Estado francês tem um de seus fundamentos na evasão fiscal e na fraqueza da capacidade extrativa direta do Estado (renda e empresas), que vem lançando a França na estratégia dos empréstimos para financiar seus compromissos. Ao longo do período de pós-doutoramento, estivemos nas ruas em várias ma- nifestações dos trabalhadores e movimentos sociais na França, nos quais a Sécurité Sociale aparece explicitamente como pauta, onde se denunciou a mercantilização da saúde e exigiu-se mais e melhores alocações, especialmente para a moradia. Fi- nalizamos essa síntese final reafirmando que por trás dos números do orçamento está a política (grande e pequena, nos termos gramscianos). Por trás da maior ou menor autonomia frente aos ditames do lucro está a luta de classes e seus segmentos. As condições de o Brasil enfrentar seus dilemas estruturais estão diretamente relacio- nadas às pressões dos trabalhadores por medidas de expansão dos direitos e dos gastos sociais, sem o que eles permanecerão parcos, administrando ou gerindo a pobreza, contentando-se com resultados pífios e de largo prazo quanto à desigual- dade profunda que marca este país. Parece-nos que as condições na França têm sido maiores e melhores para defender suas conquistas, mesmo com anos de um governo de direita, apesar do ambiente neoliberal das últimas décadas e da crise. Os direitos estão enraizados na cultura política e no cotidiano francês como exigíveis do Estado. Isso faz e fará toda a diferença, especialmente se a classe trabalhadora francesa encontrar formas de unificar as lutas ainda mais fortes que as disponíveis hoje e para além dos organismos tradicionais e institucionais da luta política francesa. Recebido em 28/6/2012 ■ Aprovado em 10/12/2012 Referências bibliográficas ANFIP. Análise da Seguridade Social em 2010. Brasília: Anfip, jun. 2011. ______. Análise da Seguridade Social em 2011. Brasília: Anfip, jun. 2012. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. v. 1, 287 p. 48 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 7-52, jan./mar. 2013 AUBIN, Emmanuel. L’essentiel du droit des politiques sociales 2011-2012. 6. ed. Paris: Gualino Lextenso Éditions, 2011. AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA. Informativo. Brasília, set. 2011. BASLÉ, Maurice. Le budget de l’État. Paris: La Decouverte, 2004. BARBIER, Jean Claude; THÉRET, Bruno. 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The central character of the programs of Conditioned Income Transfer: the Argentinian case Silvia Fernández Soto* Resumen: En el marco de una estrategia global de recomposición material del consenso, analizamos el programa de Transferencia de Renta Condicionada, Asignación Universal por hijo para protección social (AUH) en Argentina. Desde una perspectiva amplia y compleja de análisis de la política social, identificamos problemas en relación a la orientación y sentido ético político que persigue, en un contexto de disputa de las perspectivas de protección social. Analizamos algunas tensiones centrales: la relación de las condiciones y formas de organi- zación del trabajo y las desigualdades contemporáneas con las formas de protección social; el papel de las condicionalidades y las tensiones con perspectivas universalistas. Palabras claves: Programa de Transferencia de Renta Condicionada. Protección social. Política social. Condicionalidades. Abstract: In the context of an overall strategy of material reform of the agreement, we have analyzed the program of Conditioned Income Transfer, Universal Allocation per Child for social protection (AUH — Asignación Universal per hijo) in Argentina. From a broad and complex analysis of the social policy, we have identified problems related to the orientation and political ethical sense in a disputing context of the perspectives of social protection. We have analyzed some central tensions: the relationship between the conditions and forms of work organization and inequalities and the contemporary forms of social protection; the role of conditions and tensions and the universal perspective. Keywords: Program of Conditioned Income Transfer. Social protection. Social policy. Conditions. * Investigadora del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas — Conicet, Buenos Aires — Argentina. Docente-investigadora de la FCH-Unicen. E-mail: silviafernandezsoto@gmail.com 54 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 Presentación E n este trabajo señalamos el contexto político, económico y social en que surge y se implementa la Asignación Universal por Hijo en Argentina como un programa de “Transferencias Monetarias Condicionadas” aprobado recientemente (fines de 2009); y analizamos el sentido social que adquiere en el movimiento más general de la sociedad. Organizamos el trabajo de la siguiente manera: Partimos presentando la perspectiva teórica desde la cual analizamos la centralidad de los programas de transferencia de renta en América Latina, parti- cularizando el análisis en el caso argentino. Reconstruimos los ejes centrales que implicó el desarrollo del neoliberalismo desde mediados de la década de 1970, entendiéndolo como la refundación reaccionaria del capitalismo global, con consecuencias estructurales significativas para la configuración económica y social de la Argentina. Este proceso reaccionario contrario a los intereses de la clase trabajadora entrañó un movimiento regresivo en la intervención estatal, implicando pérdidas de conquistas que lograron traducirse en derechos políticos y sociales. Caracterizamos el contexto socioeconómico regional en la primera década del siglo XXI, observando inflexiones y ejes estructurales de desigualdad social que se perpetúan. Identificamos las impugnaciones construidas al neoliberalismo, las continuidades y rupturas que se han desarrollado. Posteriormente, en el marco de una estrategia global de recomposición material del consenso, caracterizamos, a partir de un conjunto de dimensiones de análisis el programa de Transferencia de Renta Condicionada, Asignación Universal por hijo para protección social (AUH). Desde una perspectiva amplia y compleja de análisis de la política social, identificamos problemas en relación a la orientación y sentido ético-político que persigue, en un contexto de disputa de las perspectivas de protección social. En relación a estos interrogantes colo- camos algunas tensiones centrales: la relación de las condiciones y formas de organización del trabajo y las desigualdades contemporáneas con las formas de protección social; el papel de las condicionalidades y las tensiones con perspec- tivas universalistas. 55Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 1. Políticas sociales y proceso de hegemonía Desde la perspectiva teórica a través de la cual pensamos la conformación de la sociedad y su dinámica, consideramos las políticas tanto como expresión de una tensión preexistente en donde se manifiesta el conflicto social en forma direc- ta o indirecta, como, en tanto política, intervención específica en el mismo. La teoría crítica nos permite comprender la relación dialéctica que supone la relación estado-sociedad. Identificar el doble movimiento, la producción del Estado por parte de la sociedad, y al mismo tiempo la producción de la sociedad por el Esta- do y sus políticas. En tal sentido, nos parece potencialmente fructífera la acepción gramsciana de producción de la sociedad por el Estado, a través de sus distintas formas y con- tenidos de intervención, a favor de determinadas formas organizativas y en contra de otras. La elección tanto de las formas de intervención como de los contenidos de las políticas refiere al mantenimiento del proceso de hegemonía en una sociedad con- creta, el cual se realiza no sin contradicciones. Las políticas sociales constituyen mediaciones político-institucionales que participan en la construcción de la socie- dad, en la construcción del orden hegemónico. El Estado es una totalidad compleja que articula a través de prácticas y con- cepciones teóricas no sólo el dominio de la clase dirigente sino también el consen- so activo. De esta manera el fenómeno estatal no constituye una cosa burocrática neutra, sino un proceso de relaciones sociales que si bien se cristalizan en aparatos burocráticos, es dinámico en tanto la construcción y mantenimiento de la dirección supone no sólo dominio sino también legitimación, consenso, permitiendo la rea- lización de la hegemonía. Por ende, el Estado ni es un ente suprasocial, ajeno a las principales tendencias identificables en las formas en que se dan la producción y reproducción de la so- ciedad, ni tampoco mero instrumento de poder de la clase dominante, dado que su papel es fundamental para que esa clase sea dirigente, y no sólo dominante. Las políticas que desarrolla el Estado se encuentran cargadas conla posibilidad cierta de configurar lo social, involucrándose en el proceso de construcción de he- gemonía a través de la puesta en circulación de ciertos valores y productos, de las relaciones generadas con distintos grupos y sectores, y de los espacios que fomenta. 56 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 En esta idea, la “sociedad civil” se ve conformada, al menos en parte, por la acción del Estado. El legado que la teoría social critica desnuda las mistificaciones y formalismos técnicos en relación a lo estatal y sus políticas. Coloca con claridad el carácter de clase del Estado en la sociedad capitalista, expresando un armazón organizativo que “brota” de las relaciones sociales fundamentales de la sociedad, pero que conjunta- mente participa activamente en la construcción del orden hegemónico. La forma y contenido que adquiere el Estado y sus políticas es resultado de relaciones de fuerza en un momento histórico determinado en una sociedad concreta, y expresa en mayor o menor medida intereses de clase contrapuestos. La configuración de la materialidad estatal resultante expresa la condensación institucional de la lucha de clases. La particular configuración que adquiere el Estado en un momento histórico determinado conlleva determinadas relaciones de poder al interior de los sectores dominantes, en relación a los sectores subalternos y, su materialidad expresada en su armazón institucional y en las mediaciones políticas que se desprenden del mis- mo indican tanto la direccionalidad del proyecto de sociedad que se pretende mantener y construir, como la conflictividad presente en la sociedad y los procesos que pretenden darle un “tratamiento”. 2. El neoliberalismo y la “miseria planificada” “En la política económica (de la dictadura) debe buscarse no sólo la explica- ción de sus crímenes sino una atrocidad mayor que castiga a millones de seres humanos con la miseria planificada”, decía Rodolfo Walsh en 1977, en su carta a la Junta Militar de la última dictadura en la Argentina, en la cual indicaba con total claridad el quiebre que se produce en 1976, implicando un proyecto profundamen- te regresivo para los intereses de las clases trabajadoras, invirtiendo el proceso de movilidad ascendente desarrollado en el país durante las seis décadas anteriores (de manera inestable pero sostenido). A principios de siglo XXI observamos los resultados de esa “miseria planifi- cada” hace tres décadas, por la cual se terminó configurando un país profundamen- te desigual, con uno de los mayores índices de desigualdad de América Latina, registrándose para el 2002 más de la mitad de la población sumergida en la pobre- za, y con una gran rentabilidad para los sectores económicos más concentrados. 57Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 Desde una perspectiva histórica, la década del noventa implica la consolida- ción de un proyecto iniciado dos décadas anteriores, la refundación reaccionaria del capitalismo global, y con consecuencias estructurales significativas para la configuración económica y social de la Argentina. Este proceso reaccionario con- trario a los intereses de la clase trabajadora entrañó un movimiento regresivo en la intervención estatal, implicando pérdidas de conquistas que lograron traducir- se en derechos políticos y sociales. La trascendencia e intensidad de las ofensivas sistemáticas que padeció la clase obrera argentina desde mediados de la década de 1970, momento en que la oligarquía financiera consigue aplicar su proyecto de construcción de un “nuevo país”, en un contexto regresivo mundial a los intereses de los trabajadores, expresa el desarrollo de una nueva correlación de fuerzas que consolida y profundiza las relaciones de dependencia con el imperialismo (centralmente el norteamericano), estableciendo una forma de organización social que acentúa los procesos y relacio- nes de desigualdad. Este período histórico del proceso de acumulación capitalista que se inicia en la década de 1970 podemos comprenderlo en el movimiento general del capital y las características que asume desde mediados del siglo XX. De esta manera se cierra la etapa de desarrollo del capitalismo que implicó la respuesta a la crisis del 29. Es a partir de este proceso de “financierización” que se acentúan desde la dic- tadura militar los procesos de concentración y centralización de la propiedad y la riqueza, la pauperización y proletarización de sectores de la pequeña burguesía, y el desplazamiento y despojo de conquistas de las clases trabajadoras, conjuntamen- te con la ampliación de una miseria consolidada. Esto contiene un triple movimien- to: empobrecimiento de la clase trabajadora, desmaterialización de los derechos adquiridos históricamente, desplazamiento de la intervención social del Estado a una lógica mercantilizada, focalizada y de subsidiaridad. El “proyecto neoliberal” encarna la estrategia burguesa de reestructuración general de organización social frente a la crisis1 y a las luchas de clases, expre- sando cambios generales en las condiciones generales de la producción (pasaje de 1. La crisis capitalista de la década de setenta implica una crisis societaria global que modifica el patrón de producción “fordista” bajo un sistema de regulación keynesiano, asociado a un Régimen de Bienestar Social institucional redistributivo. La crisis y los cambios desarrollados como respuesta a la misma en la dinámica del capitalismo argentino deben vincularse a las transformaciones sociales generales del desarrollo del capitalismo mundial expresadas en la denominada “crisis del petróleo”, “de subconsumo”, “fiscal” y de la “deuda externa”. En relación a las explicaciones sobre la crisis y las transformaciones ocurridas véase MÉSZÁROS, I. Para além 58 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 una organización social centrada en el capital industrial a una forma de organiza- ción regida por el capital financiero), en la regulación de las relaciones de trabajo (flexibilización y precarización laboral) y en la Intervención Social del Estado (bajo las denominadas contrarreformas del Estado).2 Estas transformaciones expresan claramente la contestación rotunda del capital a la caída de la tasa de ganancia en las décadas del sesenta y setenta del siglo XX. Es así que los años siguientes se caracterizaron por transformaciones radicales en el plano tecnológico y organiza- cional del proceso productivo,3 por la mundialización de la economía,4 y por los denominados “ajustes estructurales”, los cuales le otorgan un nuevo perfil a las políticas diseñadas por los Estado nacionales, y que termina conformando una nueva matriz de relaciones entre el Estado y la sociedad civil. En este sentido, por la compleja vinculación e imbricación de un conjunto de procesos,5 la década de setenta se constituye en el momento de consolidación de la hegemonía neoliberal. do capital. São Paulo: Boitempo, 2002; HOBSBAWM, E. Historia del siglo XX. Barcelona: Crítica-Grijalbo Mondadori, 1995; O’CONNOR, J. Crisis de acumulación. Barcelona: Península, 1987. 2. Una batería de normas legales conformaron desde lo jurídico el proceso de reforma estructural, lo cual reafirma la tesis de máxima actividad del Estado en el proceso de consolidación del nuevo proyecto de sociedad. Entre las más significativas podemos indicar: la Ley de Reforma del Estado de agosto de 1989, base legal de la privatización de empresas estatales con la capitalización de la deuda pública; en septiembre de 1989 se sanciona la Ley de Emergencia Económica, la cual habilita la suspensión de varios mecanismos de subsidios, entre los cuales se encuentran aquellos referidos a la promoción industrial y regional; al mismo tiempo otorgaba un tratamiento igualitario al capital local y extranjero;esto se combinó con decretos poste- riores (en 1991) de desregulación de diversas actividades económicas. En marzo de 1991 se sanciona la Ley de Convertibilidad que estableció la paridad cambiaria fija peso-dólar y validó los contratos en moneda ex- tranjera, al mismo tiempo “liberalizó” el funcionamiento del Banco Central, orientado claramente a partir de 1991 a los intereses del capital financiero internacional. 3. Los cambios operados en las condiciones generales de producción se expresan en el incremento en volumen y cambios cualitativos en la composición de la masa trabajadora y explotada. Como tendencia general se hace observable la constitución de una masa de población sobrante para las necesidades de fuer- za de trabajo del capital este movimiento tendencial de la sociedad capitalista es analizado en MARX, K. El capital. Buenos Aires: FCE, 1986. T. I, cap. XXIII. Para un análisis contemporáneo donde se analiza la re- lación entre cambios tecnológicos, productividad del trabajo y tasas de ganancias, véase MANDEL, E. Marx y el porvenir del trabajo humano, Cuadernos de Mientras Tanto, Buenos Aires, Ediciones Mientras Tanto, n. 1, 1982. 4. CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996; DUMÉNIL, G.; LÉVY, D. Capital resurgent: the roots of the neoliberal revolution. Harvard: Harvard University, 2004. 5. La incapacidad de contrarrestar la crisis estructural del desarrollo del capitalismo en los años 1970, centralmente la inflación acumulativa, generó las circunstancias favorables económicas, sociales, políticas y culturales para imponer el nuevo orden. Es decir, se conjugaron los fracasos del régimen anterior, las presio- 59Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 El neoliberalismo constituye una estrategia global de restablecimiento de las condiciones para la acumulación de capital y la restauración del poder de clase (Harvey, 2005, 2007), que en la experiencia se densifica en la década de 1990. La restauración del poder de clase implica una profunda reestructuración del conjunto de intervenciones sociales del estado, modificando su orientación a expensas de los intereses de la clase trabajadora (Harvey, 2005, 2007). El estadio neoliberal del imperialismo benefició formidablemente las clases y países dominantes al drenar enorme renta del resto del mundo. Este desarrollo implicó restablecimiento y fortalecimiento del poder y de la renta de las clases propietarias de los medios de producción (Duménil y Lévy, 2004). La vinculación imperialismo y neoliberalismo resulta muy fructífera porque no autonomiza las ideas neoliberales de la dinámica del capitalismo contemporáneo colocándolas como nociones expertas de técnicos ultracalificados portadores de soluciones “fle- xibles” acordes a los tiempos que corren. Así, desestructuración del estado intervencionista “regulador” y “protector” de la condición salarial, deflación, aumento de la tasa de ganancia (con el conse- cuente incremento de la desigualdad), incremento del desempleo y reducción de salarios, “precarización” y “flexibilización” del trabajo, forman parte de la progra- mática llevada adelante por el neoliberalismo. El capital financiero se mostró cada vez más volátil y destructivo. Esta estra- tegia abierta de súperexplotación del trabajo se da junto a la superexplotación de la naturaleza. Se lleva adelante en Argentina (y en el territorio latinoamericano) procesos de saqueo y privatización en manos del capital financiero. La acumulación por desposesión se constituye en un rasgo decisivo del capitalismo global, consti- tuyendo la privatización un elemento central de este proceso. El saqueo de los bienes comunes implica el modo privilegiado de participa- ción en el mercado mundial. Por una parte las exportaciones se concentraron básicamente en productos primarios (commodities) y sus manufacturas alcanzando en 1998 el 56,8% del total. La década de los noventa vio fortalecerse el aprovechamiento capitalista de la posibilidad de generar (y apropiar privadamente) rentas extraordinarias a partir de la explotación y exportación de las riquezas naturales y bienes comunes (convertidos en recursos na- nes de los ideólogos de una nueva programática, sumado a el colapso del modelo soviético y el debilitamien- to del movimiento obrero. 60 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 turales). Por otra parte, esos años fueron testigos del proceso de privatización de los espacios públicos. Se privatizaron o cedieron en concesión para uso privado: la pro- visión de agua, gas, luz, telefonía, el espacio radioeléctrico etc.; a la vez que se pro- movió la defensa del derecho privado sobre el software, el conocimiento científico, la biodiversidad etc. a través de patentes y derechos de autor. (Féliz, 2011, p. 74). Sobre el carácter destructivo de la lógica de acumulación financiera, en esta fase de desarrollo capitalista se consolida la estrategia doble de sobreexplotación del trabajo y la naturaleza. De esta manera se consolidan, en términos de proyecto de sociedad, los ejes estratégicos (políticos, económicos, sociales, culturales) emprendidos por la úl- tima dictadura militar a mediados de la década de 1970: concentración y extran- jerización, centralmente en los sectores económicos referidos al petróleo, el gas, la gran minería, el sector financiero y el agroexportador, principalmente el deno- minado “complejo sojero”. Los cuales han sido a partir de una intensa selectivi- dad estatal beneficiados por incentivos, subsidios, exenciones impositivas y promociones que nos permiten comprender las abundantes tasas de ganancia de estos sectores. Concentración económica, centralización del capital, distribución regresiva del ingreso, privatización de las empresas públicas, reorientación regresiva de la intervención del Estado, imponiéndose criterios de focalización, selectividad es- tructural negativa, descentralización y desconcentración subsidiaria, son las ten- dencias generales que se consolidan desde mediados de la década de setenta. 3. Contexto socioeconómico regional. Inflexiones y ejes estructurales de desigualdad social América Latina en la primera década del siglo XXI exhibe inflexiones en relación a las situaciones socioeconómicas registradas en las décadas anteriores de 1980 y 1990. Pese a estas “mejoras” en los indicadores permanecen enormes deu- das sociales. Se registra una disminución del porcentaje de las personas que viven en con- diciones de pobreza e indigencia. La reducción de la pobreza acumulada desde 1999 alcanzó 12.4%, a la vez que la indigencia se ha reducido un 6.3%. Asimismo, 61Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 la reducción de ambos indicadores con respecto a 1990 totalizaba 17.0 y 10.3% (Cepal, 2011). En 2010, el índice de pobreza de la región se situó en un 31,4%, lo que incluye a un 12,3% de personas en condiciones de pobreza extrema o indigencia. En tér- minos absolutos, estas cifras equivalen a 177 millones de personas pobres, de las cuales 70 millones eran indigentes (Cepal, 2011). Si bien en términos relativos se registra una disminución, en términos absolutos significa un incremento de 41 millones de pobres entre 1980 y 2010; y un incremento de 8 millones de indigentes para el mismo período. Esto expresa que un tercio de los habitantes de la región no reciben ingresos suficientes para cubrir las necesidades consideradas básicas.6 El año 2010 se caracterizó por un aumento de las tasas de inflación en todos los países de la región. El promedio simple de las variaciones se situó en un 6,5%, 2,8 puntos porcentuales más que en 2009 (Cepal 2011). Argentina7 es uno de los países, después de Venezuela, que más inflación registró (10,9%). El aumento de la inflación estuvo impulsado centralmente por alzasde los precios de alimentos y bebidas, que en promedio fue 1,8 vez mayor que las del resto de productos, aspec- to gravitante para la medición de la indigencia. Las proyecciones realizadas indican que se mantenga la tendencia al alza de la inflación, con lo cual la indigencia no sólo se mantendrá en los niveles registrados sino que puede aumentar.8 Tanto en el período 2002-2008, previo a la crisis, como en el período 2008-2010, la reducción de la pobreza ha provenido en su mayor parte de un incre- 6. Al mismo tiempo la pobreza afecta más a la niñez, las mujeres y las poblaciones indígenas en térmi- nos comparativos con otros sectores de la sociedad (Repetto, 2010). Para el caso argentino véase BERTRA- NOU, Fabio M.; BONARI, Damián (Coord.). Protección social en Argentina. Santiago: Oficina Internacio- nal del Trabajo, 2005. 7. El informe de la red EDI (2012) indica que la inflación concentra todos los desequilibrios de la etapa actual. “Si se toma en cuenta la evolución de los precios calculada por los institutos provinciales, el incre- mento osciló en el 2010 y 2011 en torno al 25%. Pero el principal problema no radica en el cómputo sino en el propio fenómeno inflacionario, que se ha estabilizado muy por encima del promedio internacional o re- gional. La carestía provoca un deterioro de los ingresos populares que socava las mejoras salariales y de ingresos sociales. Este impacto ha sido muy significativo en alimentos y vivienda y comienza a extenderse a los servicios. [...] Muchas causas se conjugan para producir el resultado inflacionario, pero los precios esencialmente aumentan para mantener las altas tasas de rentabilidad de las grandes empresas” (EDI, 2012). La inflación neutraliza los programas de transferencia de renta (entre ellos la asignación por hijo) e impacta en la pobreza e indigencia. 8. Las líneas de indigencia, que muestran el costo de adquirir una canasta básica de alimentos, se actua- lizan año a año según la variación del IPC de los alimentos, mientras que el componente no alimentario de la línea de pobreza se actualiza según la variación del IPC correspondiente. 62 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 mento de los ingresos laborales. También han contribuido las otras fuentes de in- greso, particularmente las transferencias, pero en menor grado. Estas han partici- pado más decisivamente en la reducción de la pobreza en el segundo período para el caso de Argentina. De acuerdo a las cifras más recientes, el 40% de la población con los ingresos más bajos capta, en promedio, el 15% del total del ingreso, mientras que el 10% de la población situado en el extremo superior de la distribución posee un tercio del ingreso total. Asimismo, el ingreso medio del quintil más rico supera en 18,3 veces al del quintil más pobre. América Latina continúa siendo una del las regiones del mundo más desigual.9 Si bien la reducción de la desigualdad es de una magnitud leve, insuficiente para cambiar la base estructural de desigualdad de la región, resulta significativa, en un contexto de ausencia prolongada de mejoras distributivas generalizadas. En la Argentina la mejora distributiva registrada entre 2002 y 2009 se explica principal- mente por una menor disparidad del ingreso laboral (debido a factores como la desvalorización del “premio” a la educación y la caída del desempleo, y el alza del ingreso mínimo, entre otros), seguida por el aumento de los ingresos no laborales en los hogares más pobres (básicamente por lo que respecta a un mayor acceso a beneficios jubilatorios, el aumento de las pensiones de jubilación mínimas y la ex- tensión de los programas sociales no contributivos) (Gasparini y Cruces, 2010). En síntesis, el problema de la desigualdad en la distribución del ingreso sigue encarnan- do un rasgo estructural de la región y una deuda pendiente de enorme magnitud.10 América Latina y el Caribe cierran el 2011 con crecimiento económico,11 crecimiento del empleo y disminución del desempleo (OIT, 2011). 9. Aun cuando los países latinoamericanos muestran grados distintos de concentración del ingreso, todos exhiben índices de Gini que superan al promedio de cada una de las regiones analizadas, exceptuando el África subsahariana (Cepal, 2011). 10. Tomando la distribución del ingreso de manera desagregada, se observa que el ingreso del decil más pobre en los países de la región se ubica en torno al 1%, en contraposición a los países europeos o asiáticos que es superior al 3%. En el extremo opuesto, el decil más rico se apropia en América Latina de al menos el 40% de los ingresos (con casos extremos como Colombia o Brasil, cercanos al 50%). Cifras que muestran la matriz profundamente desigual de distribución del ingreso en la región (Gaitán, 2010, p. 161-3). 11. De acuerdo a las estimaciones más recientes del desempeño económico, el PIB regional crecerá en torno a 4.5% en 2011 respecto del año anterior. Encabezan esta expansión algunos países exportadores de materias primas de América del Sur más articulados con la demanda de las “economías emergentes” como Argentina, Chile, Paraguay, Perú y Uruguay, que crecerían alrededor de 6% en 2011 (OIT, 2011). 63Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 La tasa de desempleo urbano continuó bajando en 2011 y alcanzó a fines de ese año un nivel de 6.8%, valores similares a los registrados en la década de 1990. La región entró al siglo XXI con tasas superiores al 10% que llegaron incluso por enci- ma del 13%. Lo que vemos ahora es un reflejo de un ciclo positivo de crecimiento económico que ha durado más de cinco años y no se vio interrumpido por la crisis. Si bien el desempleo ha bajado, la proporción de trabajadores por cuenta pro- pia y auxiliares en actividades de baja productividad sigue alta, cerca de un tercio del total del empleo en la región. Al mismo tiempo 44% de los trabajadores y traba- jadoras aún no tienen ningún tipo de cobertura de protección social. En 16 países con información disponible hacia fines de la década del 2000, 93 millones de per- sonas (50% de la población ocupada) tenían un empleo informal. De ese total, 60 millones estaban en la economía informal propiamente dicha, 23 millones tenían un empleo informal sin protección social trabajando en el sector formal, y 10 millones un empleo informal en el servicio doméstico. En el caso de los jóvenes, 6 de cada 10 que consiguen trabajo sólo tienen acceso a empleos informales (OIT, 2011). La dinámica de la oferta y demanda de fuerza de trabajo, se pone en relación con la dinámica del ciclo económico de los países, explica la tendencia a la dismi- nución de la tasa de desempleo urbano, que cae desde dos dígitos a inicios de la década a 7.3% en 2008, sube a 8.1% en 2009 y baja a 7.3% en 2010. El crecimien- to económico permitió una expansión del empleo asalariado, que en el promedio regional (y con datos de cobertura nacional) aumentó su peso relativo en tres pun- tos porcentuales (de 65% a 68%). Pese a este crecimiento y a esta expansión regis- trada de trabajo asalariado, al finalizar la década cerca de uno de cada tres ocupados en la región son trabajadores por cuenta propia y auxiliares. La mayoría de estos se desempeña en actividades del sector informal, en condiciones de precariedad laboral, desprotección social y con baja productividad e ingresos. La incorporación precaria de contingentes de trabajadores, es un factor deter- minante de los procesos de pobreza y empobrecimiento de la clase trabajadora y de perpetuación de las desigualdades sociales.12 12. En la actualidad se computan en Argentina 11.800.000 asalariados, de los cuales 7.8 millones regis- tra en el sector formal y 4.0 millones en el informal. El salario promedio sobre el que se realizan los aportes jubilatorios llega a los 5,500 pesos, pero el 55% de esos trabajadorespercibe hasta 4000, muy alejado de la canasta familiar estimada entre 5.000 y 6.000 pesos. En el otro extremo 1.4 millones gana entre $7.000 y 30.000 o más pesos al mes. Los trabajadores no registrados ganan como mínimo un 30% menos que los re- gistrados. Esta fragmentación se percibe también al interior de los trabajadores del sector público, entre los 64 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 Los datos indican la permanencia estructural de situaciones de precariedad laboral extendidas: puestos de trabajo de baja productividad, bajas remuneraciones y signados por la inestabilidad laboral, la desprotección social y la falta de acceso a los sistemas de seguridad social. Esto nos indica que el crecimiento sostenido del PIB no significó la creación de suficientes empleos formales para reducir significativamente el empleo precario. La reducción no ha acompañado el crecimiento sostenido del PIB. Es decir, el alto crecimiento económico sostenido en estos años (principalmente entre 2003-2008) no se ha traducido en la superación de la alta informalidad de su mercado laboral.13 A pesar de que en 2010 la recuperación económica influyó positivamente en el funcionamiento del mercado de trabajo, con un incremento del índice de ocupación y una caída del desempleo, el mundo laboral continúa siendo en América Latina uno de los principales eslabones en la reproducción de la desigualdad. La hetero- geneidad de la estructura productiva se expresa en una dispar polarización, por una parte, un sector minoritario, con empleos de alta productividad, salarios y protec- ción social, y por otra, un sector donde predominan las condiciones laborales pre- carias, las remuneraciones más bajas y un limitado acceso a la protección social. Además, tanto el desempleo como la ocupación en el sector de baja productividad siguen afectando sobre todo a los jóvenes y a las mujeres más pobres. 4. Impugnaciones al neoliberalismo: continuidades y rupturas En Latinoamérica se han desarrollado en las últimas décadas diversos proce- sos de movilización popular que contribuyeron desde abajo al recambio de gobier- del Estado nacional y los que laboran en los Estados provinciales y municipales (EDI, 2012, en base a datos del Indec y Dirección Nacional de Programación Económica). Así emerge la categoría del “trabajador pobre” (que no cubre la canasta familiar), frente a la figura del “desocupado pobre” que prevalecía en la crisis del 2001. Tener trabajo no garantiza cubrir las condiciones materiales de existencia. La reducción de la informa- lidad, es significativa (de 44% a 34.2% en el período 2003-2011), pero se relativiza cuando se la pone en relación con la tasa de crecimiento de la economía en el mismo período. 13. En Argentina, durante la última década ha sido significativa la consolidación de la fractura del mercado laboral iniciada en los 1990, no sólo entre los trabajadores formales e informales, sino también al interior de la estructura formal. “Siendo que la precarización se extiende por el conjunto. Mientras que el 20% de los trabajadores mejor remunerados del sector privado capta el 52% de la masa salarial, el 20% ubicado en la base percibe el 5.2% de ese total” (EDI, 2012). 65Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 nos “democráticos” de corte neoliberal. A fines de la década de noventa, la combi- nación de un ciclo ascendente de luchas con las secuelas de un nuevo momento recesivo y de crisis económica generó la impugnación generalizada a esta orienta- ción en América Latina.14 En este “cambio de época”15 se cuestionan las políticas neoliberales inspiradas en el “Consenso de Washington”, organizando una agenda de intervención que impugna los componentes principales de la programática neoliberal y promueve la emergencia de nuevos principios organizadores: la pre- dominancia de lo público, la desmercantilización de los bienes y servicios sociales, la aspiración de garantías universales a través del reconocimiento de derechos históricamente conquistados, entre otras. Aunque lejos de concretarse, estas reivin- dicaciones al inicio del siglo XXI señalan y marcan rupturas con la hegemonía neoliberal, se expresan “fisuras” a la subalternización desplegada a fines del siglo XX, y se despliegan una multiplicidad de prácticas “antagonistas”16 como expresión de la negación del orden existente. En este marco global, América Latina se coloca como uno de los territorios de resistencias y búsquedas de alternativas al capitalis- mo neoliberal a nivel global. 14. En México, al final del gobierno del presidente Salinas de Gortari, en enero de 1994, emergió el movimiento zapatista, que se ha venido desarrollando desde entonces. Hay consenso en ubicar esta fecha como el comienzo explícito de resistencia antineoliberal. En Venezuela se produjeron movilizaciones popu- lares contra los gobiernos de Carlos Andrés Pérez y de Rafael Caldera; los partidos políticos tradicionales colapsaron y se organizó y desarrolló el movimiento bolivariano, en el gobierno desde 1998. En Brasil el presidente Collor de Mello fue destituido con movilizaciones populares cuya consigna principal era “Fora Collor”, denunciando la corrupción del gobierno. En Ecuador las movilizaciones populares provocaron la caída de varios gobiernos, siendo allí fundamental el papel del movimiento indígena y campesino, a través del Pachacutik. En Perú, el presidente Fujimori renunció y debió irse del país, luego de importantes movili- zaciones populares, como las Marchas de los Cuatro Suyos. En Bolivia, debió renunciar Sánchez de Losada (2003) en medio de una intensa movilización popular encabezada por distintas organizaciones campesinas, indígenas y obreras y posteriormente Carlos Mesa (2005). En Argentina, a fines del 2001, renuncia el presi- dente De la Rua, en el marco de movilizaciones populares con la consigna “que se vayan todos”. A estos procesos destituyentes de movilización popular expresados en la región latinoamericana, podemos señalar también: la multitudinaria caravana zapatista “por la dignidad indígena” en México (2001), la resistencia popular victoriosa al intento de golpe de estado en Venezuela (2002) y la confrontación que posteriormente le siguió y, en el plano continental, la derrota “relativa” del proyecto del Alca en la IIIº Cumbre de las Amé- ricas (2005) en Mar del Plata (Argentina). 15. MODONESI, Mássimo. Crisis hegemónica y movimientos antagonistas en América Latina: una lectura gramsciana del cambio de época. Peripecias. Consultado en: <http://www.rebelion.org/noticia. php?id=73350>. Acceso en: 12 nov. 2011 (art. tomado de Revista Contra Corriente, Universidad Autónoma de la Ciudad de México y Universidad Nacional Autónoma de México, v. 5, n. 2, p. 115-40, Winter 2008). 16. Ibídem. 66 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 La lucha de clases comenzó a condensarse en torno a cuestiones como el ajuste es- tructural impuesto por el FMI, las actividades depredadoras del capital financiero y la pérdida de derechos ocasionada por la privatización. El antimperialismo comenzó a convertirse en antagonismo contra los principales agentes de la financierización, el FMI, y el Banco Mundial (Harvey, 2007b, p. 65). Siguiendo a David Harvey, se pueden indicar dos ejes por los cuales transitan los movimientos de clase desde los años 1990: por un lado, aquellos que remiten a la acumulación de capital por “desposesión”: en este caso los conflictos de la clase se focalizan en la defensa de las conquistas de derechos adquiridos y que actual- mente el capital aborda en su proceso de acumulación, tanto en el plano material como simbólico. Por otro lado, el eje permanente que define la relación capital/ trabajo, que Harvey nombra como movimientos en relación a la reproducción ex-pandida (ampliada), en donde los temas centrales son la explotación del trabajo asalariado y la definición de las condiciones que definen el salario social.17 Es en este contexto regional que a fines del 2001 en la Argentina se expresa de manera generalizada una crisis de representación, de incapacidad de los sectores dirigentes del régimen de recrear las bases del consenso del proyecto hegemónico. A partir de aquí se abre un nuevo ciclo en el que claramente se pretenden colocar en el campo estatal a partir de variadas experiencias que se venían desarrollando reivindicaciones y demandas sociales por parte de los sectores populares, en un contexto donde “colapsaban” ante la movilización popular las tradicionales media- ciones político-institucionales, ensayándose desde el campo popular nuevas y creativas prácticas políticas. Al mismo tiempo que se reivindican y ponen en prác- ticas valores históricos civilizatorios como la autonomía, entendida como la rup- tura de todo tipo de tutelaje, habilitando prácticas participativas forjadoras del es- pacio público destruido por los procesos de privatización y mercantilización; la universalidad en tanto recuperación de la tradición de los derechos sociales enten- didos como conquistas históricas alcanzadas en los procesos de luchas sociales desarrollados principalmente a lo largo del siglo XX. La crisis no responde sólo a cuestiones coyunturales; por el contrario, constituye un rasgo específico de la fase capitalista actual, en donde se manifiesta claramente la tendencia creciente a la centralización de la propiedad y de la riqueza en menos 17. HARVEY, David. El neoliberalismo como destrucción creativa. Consultado en: <www.rebelion. org/noticia.php?id=65709[06/07/2008>. Acceso en: jun. 2011. 67Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 manos, la existencia de crecientes masas de población sobrante para el capital y la profundización de los procesos de pauperización y de proletarización de diversas fracciones y capas sociales, con la consiguiente violación sistemática de las garan- tías sociales conquistadas, se corresponden con un proceso de desciudadanización, una de cuyas manifestaciones es la crisis de las mediaciones políticas existentes. Estas tendencias, tal como lo indicamos, convierten al problema de las garantías materiales de los derechos en una cuestión central en las últimas décadas. En relación a este proceso de crisis e intentos de ruptura con el orden esta- blecido por el proyecto neoliberal, se inicia para la experiencia Argentina, con el gobierno del presidente Néstor Kirchner en el año 2003, un proceso complejo de recomposición de la hegemonía de la clase dominante. En términos gramscianos, el hecho de la hegemonía presupone que se tienen en cuenta los intereses y las tendencias de los grupos sobre los cuales se ejerce la hegemonía, lo cual permite la constitución de un cierto equilibrio de compromiso, es decir, que el grupo diri- gente haga sacrificios de orden económico-corporativo (los cuales no conciernen a lo esencial), ya que si la hegemonía es ético-política no puede dejar de ser tam- bién económica, no puede menos que estar fundada en la tarea decisiva que el grupo dirigente ejerce en el núcleo regente de la actividad económica. En situa- ciones en que “el grupo dirigente” no establece “sacrificios” de orden econó- mico-corporativo definiendo “equilibrios de compromiso”, se habilita la posibili- dad de los procesos de crisis. En este sentido la experiencia que supone el gobierno de Kirchner está expresando el procesamiento de las tensiones colocadas en la Argentina por la movilización popular precedente y la recomposición de un nuevo orden de situación sobre una redefinición ético-política y un restablecimien- to de los compromisos materiales.18 18. “En nuestro proyecto ubicamos en un lugar central la idea de reconstruir un capitalismo nacional que genere las alternativas que permitan reinstalar la movilidad social ascendente. [...] Basta ver cómo los países más desarrollados protegen a sus trabajadores, a sus industrias y a sus productores. Se trata, entonces, de hacer nacer una Argentina con progreso social, donde los hijos puedan aspirar a vivir mejor que su padres, sobre la base de su esfuerzo, capacidad y trabajo. Para eso es preciso promover políticas activas que permi- tan el desarrollo y el crecimiento económico del país, la generación de nuevos puestos de trabajo y la mejor y más justa distribución del ingreso. Como se comprenderá el Estado cobra en eso un papel principal, en que la presencia o la ausencia del Estado constituye toda una actitud política. [...] Se trata de tener lo necesario para nuestro desarrollo, en una reingeniería que nos permita contar con un Estado inteligente. Queremos recuperar los valores de la solidaridad y la justicia social que nos permitan cambiar nuestra realidad actual para avanzar hacia la construcción de una sociedad más equilibrada, más madura y más justa. Sabemos que el mercado organiza económicamente, pero no articula socialmente, debemos hacer que el Estado ponga 68 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 Esta perspectiva hace hincapié en los procesos, en los movimientos, en las correlaciones de fuerza, en la configuración estatal en término de relaciones socia- les. Este proceso conflictivo en el desarrollo del capitalismo nos permite entender la construcción de políticas y la diversificación político-institucional resultante. “El efecto neto de la fragmentación de las instituciones es probablemente facilitar que se alcance la formación y sustitución de equilibrios inestables entre fracciones del capital y entre los dominantes y dominados” (Harvey, 2011, p. 298). Esta perspecti- va nos permite observar rupturas y continuidades, inflexiones y permanencias. En tal sentido los procesos que se despliegan en Argentina pos 2001 expresan al mis- mo tiempo las impugnaciones al neoliberalismo que brotaron de la lucha social y la recomposición de la acumulación capitalista en el marco de una determinada correlación de fuerzas. La primera década del siglo XXI exhibe la construcción sociopolítica de “sa- lida” a la crisis económica y de legitimidad neoliberal, inaugurando un nuevo ciclo de crecimiento económico regional, que expresa aspectos comunes y una diversidad de experiencias en función de las particularidades históricas y las correlaciones de fuerza y política que se han ido construyendo en cada experiencia nacional.19 igualdad allí donde el mercado excluye y abandona. [...] el Estado el que debe actuar como el gran reparador de las desigualdades sociales en un trabajo permanente de inclusión y creando oportunidades a partir del fortalecimiento de la posibilidad de acceso a la educación, la salud y la vivienda, promoviendo el progreso social basado en el esfuerzo y el trabajo de cada uno. Es el Estado el que debe viabilizar los derechos cons- titucionales protegiendo a los sectores más vulnerables de la sociedad, es decir, los trabajadores, los jubilados, los pensionados, los usuarios y los consumidores. [...] En este marco conceptual queremos expresar los ejes directrices en materia de relaciones internacionales, manejo de la economía, los procesos de la salud, la educación, la contención social a desocupados y familias en riesgo y los problemas que plantean la seguridad y la justicia en una sociedad democrática. Profundizar la contención social de las familias en riesgo, garan- tizando subsidios al desempleo y asistencia alimentaria, consolidando una verdadera red federal de políticas sociales integrales para que quienes se encuentran por debajo de la línea de pobreza puedan tener acceso a la educación, la salud pública y la vivienda. [...] Al contrario del modelo de ajuste permanente, el consumo interno estará en el centro de nuestraestrategia de expansión. [...] Tenemos que volver a planificar y ejecutar obra pública en la Argentina, para desmentir con hechos el discurso único del neoliberalismo que las estig- matizó como gasto público improductivo. No estamos inventando nada nuevo, los Estados Unidos en la década del treinta superaron la crisis económica financiera más profunda del siglo que tuvieron de esa ma- nera. La construcción más intensiva de viviendas, las obras de infraestructura vial y ferroviaria, la mejor y moderna infraestructura hospitalaria, educativa y de seguridad, perfilarán un país productivo en materia de industria agroalimentaria, turismo, energía, minería, nuevas tecnologías, transportes, y generarán nuevos puestos de trabajo genuinos.” Fragmentos del Discurso de Néstor Kirchner. Acto de asunción presidencial ante la Asamblea Legislativa, 25 de mayo de 2003. 19. Observando la dinámica del capitalismo en la región, parte de la literatura especializada ha concep- tualizado la pugna de tres proyectos societarios, “neoliberalismo de guerra” (México y Colombia), el 69Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 La experiencia de la Argentina se caracteriza por la aspiración a reconstruir la “autoridad estatal” y su papel en el sostenimiento de ciertas actividades indus- triales, la búsqueda de una mejor inserción internacional en el marco de la mundia- lización capitalista. A pesar de los cambios sustantivos que pueden registrarse, se observan continuidades estructurales que se manifiestan en el patrón de acumulación capitalista en Argentina. Las inflexiones señaladas han implicado un cuestionamiento discursivo y práctico a la privatización de la previsión social, a la hiperfocalización y multipli- cación desarticulada de acción en la pobreza. Desde el 2003 se observa un cuestio- namiento de los principios organizadores neoliberales de la política social (priva- tización, descentralización y focalización). Los cambios han implicado un proceso de reestatización de los fondos de pensiones, fortalecimiento y creciente protago- nismo de las áreas centrales del gobierno para políticas estratégicas como salud y educación, definición de grandes líneas de intervención en el campo de la pobreza, tendencia a la “universalización mínima” de la seguridad social a través de instru- mentos que combinan criterios contributivos y no contributivos. Un conjunto de procesos de recomposición material progresiva, en relación a la profunda crisis capitalista que se expresa con mayor agudeza a fines del 2001, constituye la base de legitimidad sobre las que se va apoyando el “modelo” para la construcción de aceptación y cierto consenso. El crecimiento económico fue acom- pañado por una expansión del consumo, cierta recuperación del empleo, la expan- sión de políticas de transferencia de renta no contributivas de carácter centralmen- te compensatorias, junto con la reducción de la desocupación y la pobreza. Otras “medidas progresistas” que acompañan la reconstrucción de la legitimidad social son la política de derechos humanos, la Ley de Medios, el Matrimonio Igualitario, “neo-desarrollismo” (Argentina, Brasil) y los modelos sociales de “cambio constituyente” (Venezuela, Bo- livia, Ecuador). Además de la preponderancia que es posible observar en las realidades nacionales, estos proyectos en el marco de la dinámica capitalista, expresan intereses de distintos grupos de fuerza y bloques de clase, expresando tensiones y disputas en una misma realidad nacional. Ver GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. Democracia, liberación y socialismo: tres alternativas en una. En: Revista Osal, Buenos Aires, CLAC- SO, n. 8, 2002; BORON, Atilio. La coyuntura geopolítica de América Latina y el Caribe en 2010. Cuba Debate, 14 dic. 2010; SEOANE, José; TADDEI, Emilio; ALGRANATI, Clara. El concepto “movimiento social” a la luz de los debates y la experiencia latinoamericana recientes. En: GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo (Coord.). Proyecto “Conceptos y fenómenos fundamentales de nuestro tiempo”. México: Unam, 2008; SEOANE, José; TADDEI, Emilio; ALGRANATI, Clara. Recolonización, bienes comunes de la naturaleza y alternativas desde los pueblos. Río de Janeiro: Ibase, 2010. 70 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 la estatización de las AFJP y Aerolíneas Argentinas y nacionalización de YPF, y la reorientación latinoamericanista de la política exterior. Estos avances “progresistas” se desarrollan con la permanencia de procesos estructurales nodales que subsisten del proyecto neoliberal y gravitan en la base organizativa de la sociedad. Es observando estas continuidades que es posible ad- vertir los límites estructurales del modelo propuesto y el “techo” y “límites” que representa para el avance de las conquistas populares. La continuidad del carácter extractivista de nuestras riquezas naturales (hi- drocarburos, minería, pesca), junto con esto la “reprimarización” de la economía con la participación del poderoso complejo transnacional del “agronegocios sojero”, en desmedro de los pequeños y medianos productores locales; implican desmontes, destrucción de la naturaleza, desplazamiento y repulsión de población, desertifica- ción, extranjerización y concentración de la tierra. El proceso de transnacionaliza- ción del capital local otorga bases firmes para el fortalecimiento de un patrón de producción que, como anuncia Harvey (2004), está centrado en el saqueo de los recursos estratégicos. En su conjunto las ramas vinculadas a la agricultura, la ga- nadería, la pesca, la caza y la explotación de canteras y minas duplicaron en una década su participación porcentual en el PIB.20 Se mantiene el elevado grado de concentración y extranjerización de la eco- nomía. Los resultados de distintas variables de una encuesta periódica realizada por el Indec señalan que a lo largo del período 2007-2009 persiste un alto grado de concentración al interior del lote de las 500 grandes empresas. El 20% de mayor tamaño (100 compañías) explican el 69% del total del valor agregado en 2009, mientras que las 50 mayores empresas lo hacen con el 54.8%. En 2009, el 79.3% del valor bruto de producción del total del panel fue generado por empresas con participación de capital extranjero. Estas compañías explican también el 75.3% de la utilidad de las 500 grandes. Sin embargo, pese a que las de capital de origen nacional participan sólo en el 18.6% del valor agregado del total, generan el 36.7% de los puestos de trabajo asalariados. Extranjerización que, como lo señalan recien- tes estudios, se extiende también a la tierra, inclusive en zonas de frontera. Al mismo tiempo, la permanencia de la Ley de Entidades Financieras de la última dictadura militar implica una herramienta legal que habilita el predominio de la banca extranjera y del capital financiero en general. Junto con la permanencia de 20. Pasaron de representar el 6.7% del PIB en 1998 al 12.5% en el 2008 (Féliz, 2010, p. 2). 71Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 la extranjerización y concentración de la economía no se ha revertido la regresivi- dad del sistema impositivo.21 Como muestran los datos, se perpetúa la precarización laboral, la tercerización, el trabajo no registrado (inclusive en la administración pública). El crecimiento sostenido mantiene los rasgos estructurales dominantes de la concentración de los ingresos y riquezas, bajo un esquema extranjerizado de la economía y bajo un patrón distributivo regresivo. 5. Recomposición material del consenso: emergencia de la asignación universal por hijo (AUH) en Argentina Desde el año 2003, con inicio del gobierno de Néstor Kirchner como presi- dente y de Alicia Kirchner como Ministra de Desarrollo Social, se propusieron cambios respecto de los lineamientos de la política social asistencialsostenidos hasta el momento. Se genera una revisión crítica de las políticas sociales de corte neoliberal que se estaban implementando desde la década del 1990. Se cuestiona desde la perspectiva oficial, la lógica de focalización, la perspectiva asistencialista divorciada de la garantía de derechos y la extensa fragmentación de las políticas sociales. La política social se organiza bajo tres ejes de acción (alimentario, trans- ferencias monetarias condicionadas22 y economía social), intentando unificar la pluralidad de programas existentes con anterioridad. 21. La renta financiera queda exenta de obligaciones tributarias al igual que la transferencia de activos de sociedades anónimas, en cambio una parte creciente de los asalariados debe pagar el impuesto a las ga- nancias al tiempo que la vigencia del IVA encarece la canasta básica de alimentos, afectando centralmente a los sectores de menores ingresos. 22. En los últimos años, los programas de transferencias condicionadas han cobrado centralidad como herramienta de política social en distintos países de América Latina, entre los cuales se encuentra Argentina. Estos programas se caracterizan por asistir directamente a una población objetiva compuesta por familias en situación de “alta vulnerabilidad económica y social”, con insuficiencia de ingresos monetarios. En la mayo- ría de los casos, la ayuda que brindan consiste en un subsidio monetario que busca sostener el ingreso fami- liar, algunos de estos programas además otorgan suplementos alimentarios, medicamentos, atención sanitaria y apoyo educacional, entre otros. Son iniciativas no contributivas, de alcance masivo, dirigidas a una capa de la clase trabajadora. El objetivo de combinar transferencias monetarias y condicionalidades es el de “ali- viar” la pobreza de esta población. Prevalece una concepción individualista asociada al “capital humano”, 72 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 Desde el 2003, podemos reconocer distintos momentos planificadores de la política social (1. emergencia social y respuesta a la crisis del 2001 a través del plan jefes y jefas de hogar desocupados; 2. salida del plan jefes y jefas de hogar de- socupados y reclasificación de la pobreza a partir de los criterios de “empleabilidad” y “vulnerabilidad”; 3. extensión del sistema no contributivo de protección social). Este tercer momento de reconfiguración de la política de asistencia social en el “período kirchnerista” se relaciona con la coyuntura política caracterizada por la derrota oficialista en los comicios de mediados del año 2009. En este contexto el gobierno impulsa dos programas sociales que participan en la construcción del consenso social, en un contexto de disputa y conflictividad social: 1. “Argentina trabaja”, que implica la transferencia de renta a través de la constitución de coope- rativas, concentrándose en el Conurbano Bonaerense; 2. La Asignación Universal por hijo para protección social. A través del Decreto Presidencial (DNU) n. 1.602, del 29 de octubre de 2009, se incorpora al Sistema de Asignaciones familiares el Subsistema no Contributivo de Asignación Universal por Hijo para Protección Social (AUH).23 La confirmación de la Asignación Universal por Hijo ha concretado la incorporación de amplios contingentes de población a uno de los beneficios del régimen de asignaciones fa- miliares, definido históricamente bajo un esquema contributivo, sólo vigente prece- dentemente para los trabajadores empleados en relación de dependencia.24 En tal una noción de pobreza reduccionista, que no contempla las relaciones sociales fundamentales que explican la emergencia y dinámica de la misma en la sociedad capitalista. 23. Posteriormente su implementación se reglamenta mediante la Resolución n. 393/2009 de la Admi- nistración Nacional de la Seguridad Social (Anses), organismo responsable del pago de la prestación. En dicha reglamentación se establece quienes podrán ser beneficiarios de la asignación, os requisitos a cumplir para acceder a la misma, las fuentes de datos que se tomarán para determinar los beneficiarios y los medios y fechas de pago a los beneficiarios. Para facilitar la gestión operativa, en dicha resolución se estableció la conformación de un Comité de Asesoramiento integrado por representantes de los Ministerios de Desarrollo Social, Trabajo, Empleo y Seguridad Social, Salud, Educación e Interior. 24. El régimen de asignaciones familiares (Ley n. 24.714/1996) alcanza a los trabajadores que prestan servicios remunerados en relación de dependencia en la actividad privada cualquiera sea su modalidad de contratación laboral (exceptuando a los trabajadores del servicio doméstico); a los beneficiarios de la Ley sobre Riesgos de Trabajo y del Seguro de Desempleo; a los trabajadores del sector público nacional y bene- ficiarios del Sistema Integrado Previsional (Sipa) y del régimen de pensiones no contributivas por invalidez. Los alcances y limitaciones vigentes de esta ley constituyen parte de los considerandos del Decreto presi- dencial al definir: “Que, en el régimen establecido por la ley citada se encuentran previstas, entre otras, la asignación por hijo consistente en el pago de una suma mensual por cada hijo menor de 18 años que estuvie- re a cargo del beneficiario, así como la asignación por hijo con discapacidad. 73Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 sentido la instauración de la AUH por parte del Poder Ejecutivo determinó la am- pliación hacia todos los menores de 18 años cuyos padres o tutores se encuentren desocupados, sean monotributistas sociales o se desempeñen en la economía infor- mal o en el servicio doméstico, siempre que perciban remuneraciones inferiores al Salario Mínimo Vital y Móvil (SMVM). El decreto parte del reconocimiento de la permanencia de “situaciones de exclusión de diversos sectores de la población que resulta necesario atender” (DNU n. 1.602/2009). Persiste y se consolida en Argentina a fines de la primera década del siglo XXI e inicio de la segunda, aún luego varios años de crecimiento econó- mico y creación sostenida de puestos de trabajo, una alta proporción de trabajado- res con formas de inserción laboral precarias e inestables, tornándose este movi- miento de las condiciones de trabajo en un rasgo estructural. Ello es resultado de un deterioro de varias décadas de la situación y condiciones de los trabajadores. La AUH, al ampliar la cobertura del sistema de seguridad social, implica el desarrollo de políticas para este sector de la clase trabajadora. Es una política que, tal como lo explicita en sus considerandos, no pretende “garantizar la salida de sus beneficiarios de la pobreza”, se coloca como una polí- tica paliativa que supone “más dinero en los bolsillos de los sectores más poster- gados” (DNU n. 1.602/2009). Si bien no modifica las causas estructurales de la pobreza y empobrecimiento, se ha constituido en una medida significativa que ha tenido un impacto importante en la reducción de los índices de indigencia y de pobreza. La asignación otorgada a través de la AUH consiste en una prestación mone- taria no retributiva de carácter mensual que se abona a uno de los padres o tutor por cada menor de 18 años que se encuentre a su cargo, o por cada hijo sin límite de edad en el caso de tratarse de un hijo discapacitado. La prestación que otorga la AUH se fijó en un monto equivalente al que corresponde a la mayor asignación por hijo del régimen de asignaciones familiares contributivo nacional.25 Esta prestación Que en el mencionado Régimen de Asignaciones Familiares no se incluye a los grupos familiares que se encuentren desocupados o que se desempeñen en la economía informal” (Decreto n. 1.602/2009). Quedan excluidos de este sistema, por lo tanto, los trabajadores desocupados que no cobran segurode desempleo, aquellos que se desempañan en la economía informal y los empleados inscriptos en el régimen de servicio doméstico. Contingentes que se aspiran incluir con la nueva normativa. 25. En un principio dicho monto fue de $ 180 mensuales por cada menor de 18 años y de $ 720 por cada hijo con discapacidad. Posteriormente, desde septiembre de 2010, se ha aplicado un incremento en las asig- naciones como forma de evitar la pérdida de su capacidad adquisitiva ante el proceso inflacionario, pasando 74 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 se abonará por cada menor acreditado por el grupo familiar hasta un máximo acu- mulable al importe equivalente a cinco menores. Para acceder a estos beneficios deben ser cumplir un conjunto de requisitos: hasta los 4 años controles sanitarios y del plan de vacunación obligatorio. Desde los CINCO (5) años de edad y hasta los DIECIOCHO (18) años, deberá acreditarse ade- más la concurrencia de los menores obligatoriamente a establecimientos educativos públicos (DNU n. 1.602/2009). Estos requisitos son reforzados por el hecho de que se cobra mensualmente sólo el 80% del monto previsto, mientras que el 20% restante se retiene para ser abonado una vez al año a principios del período lectivo, contra la presentación de la libreta sanitaria y de asistencia escolar. El incumplimiento de los requisitos no sólo determina la imposibilidad de cobrar el 20% acumulado sino que además implica la pérdida del beneficio a partir de ese momento.26 Estas condicionalidades sanitarias y educativas que deben realizar los trabajadores incluidos en el régimen de asignaciones familiares no se encuentran vigentes para los trabajadores formales cubiertos por el sistema contributivo. Para recibir la asignación, el menor debe ser argentino, hijo de argentino nativo o por opción, naturalizado o residente con al menos tres años de residencia legal en el país. A su vez, el decreto establece que cobrarán la asignación los me- nores que asistan a escuelas públicas. Además se establece en el decreto que la asignación prevista es incompatible con el cobro de prestaciones contributivas o no contributivas de orden nacional, provincial, municipal, o de la ciudad autónoma de Buenos Aires; es decir que acceden a la AUH aquellos menores cuyo padre o tutor no se encuentre incluido en el régimen contributivo de asignaciones familiares o que no sea beneficiario de alguna pensión no contributiva.27 a $ 220 mensuales por menor y $ 880 para cada hijo con discapacidad. Desde octubre de 2011 es $ 270 por hijo, y de $ 1.080 por discapacitado. 26. El artículo 6, inciso f, del Decreto n. 1.602 señala: “El titular del beneficio deberá presentar una declaración jurada relativa al cumplimiento de los requisitos exigidos por la presente y a las calidades in- vocadas, de comprobarse la falsedad de algunos de estos datos, se producirá la pérdida del beneficio, sin perjuicio de las sanciones que correspondan.” 27. Hasta el momento de la implementación de la AUH, el Plan Familias (Ministerio de Desarrollo Social) y el Plan Jefas y Jefes de Hogar eran los dos planes de mayor cobertura social. Dado que los mismos 75Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 A febrero del 2011, se liquidaron casi 3,5 millones de prestaciones de la AUH, que se suman a las 6,8 millones de asignaciones familiares del régimen contributi- vo del sistema de seguridad social nacional y de los trabajadores públicos naciona- les y provinciales. Esto significa que el 85% de los niños argentinos ya están cubiertos por el sistema de asignaciones familiares. El 51% de los niños cubiertos por la AUH no habían recibido nunca antes ninguna ayuda social en forma de transferencia de dinero, según datos que surgen de los registros de Anses. La asig- nación alcanza a más de 1,9 millones de hogares. En relación a los impactos en los índices de pobreza e indigencia, datos ofi- ciales indican que para el 3º trimestre del 2009, el porcentaje de asalariados infor- males que se encuentran en situación de pobreza es de 14,5% y los desocupados pobres alcanzan el 24,4%. Al mismo tiempo, es necesario subrayar que los traba- jadores informales se caracterizan por su elevada “vulnerabilidad económica y laboral” al carecer de los beneficios de la seguridad social por su imposibilidad de encuadrarse en los marcos normativos tradicionales, lo cual los coloca en una situ- ación de desprotección dentro de la sociedad (Anses, 2011a, p. 11). En este sentido los efectos del programa sobre la reducción de la pobreza son suma- mente importantes, pues los mismos además de considerar a estos grupos histórica- mente vulnerables, no son estáticos, sino que los requisitos en cuanto a salud y edu- cación extienden los impactos al largo plazo, contribuyendo a romper el ciclo intergeneracional de la pobreza. De hecho, si sólo nos focalizamos en los efectos in- mediatos de la AUH, se estima que la incidencia de la pobreza se reducirá en 4,2 p.p. y la indigencia en 2,1 p.p., lo que representa una reducción del 30% en la pobreza y de cerca del 55% en los niveles de indigencia (Anses, 2011a, p. 11). Agis et al. (2010) analizan el impacto de la AUH en Argentina en base a cuatro indicadores del bienestar social: pobreza, indigencia, desigualdad y vulnerabilidad relativa. El trabajo tiene por objetivo el desarrollar un análisis de variación conjetu- ral para anticipar el impacto del Plan Asignación Universal por Hijo para Protección son incompatibles con el cobro de la AUH, se realizó un traspaso de sus beneficiarios al régimen de AUH, de modo tal que los mismos dejaron de cobrar los planes para pasar a percibir por los mismos medios de pago la asignación familiar. Este traspaso ha implicado una mejoría en el nivel de recursos de estas fami- lias. En efecto, si se toma por ejemplo un hogar con dos menores de 18 años, se observa que mientras con el Plan Familias brindaba una prestación de $ 200 y el Plan Jefes de $ 150, con la AUH pasaron a cobrar $ 360 ($ 440 a partir de septiembre de 2010). 76 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 Social (AUH), implementado en el mes de noviembre de 2009 en Argentina, sobre distintos indicadores relacionados con 4 dimensiones centrales del bienestar social: pobreza, indigencia, desigualdad y vulnerabilidad relativa. Utilizando los microda- tos de la EPH del Indec, los índices de precios para las canastas básicas de consumo del GBA y del resto del país, y las primeras liquidaciones del Anses para este nuevo beneficio, estiman como principales resultados que: 1) todos los indicadores de bienestar social examinados experimentan una notable mejoría, especialmente en las regiones más carenciadas del país (el norte argentino); 2) con la AUH, los indi- cadores de indigencia se reducen entre un 55 y un 70%, retornando así a los mejores niveles de la historia argentina (los de 1974, resultado que se alcanza cualquiera sea el índice de precios utilizados para establecer el valor de la canasta de subsistencia); 3) luego de la AUH, el indicador más arquetípico de desigualdad (cuántas veces ganan los ricos más que los pobres) se reduce más del 30%, llevando a que la Argentina sea ahora el país más igualitario de América Latina (ranking otrora comandado por Uruguay, Venezuela y Rep. Dominicana); 4) por primera vez en décadas, la AUH ha logrado que los grupos poblacionales históricamente más vulnerables (como niños, madres solteras o familias numerosas) tengan una menor probabilidad relativa de indigencia que el resto de la sociedad; y 5) la AUH tam- bién ha reducido los indicadores de pobreza, aunque en mayor medida los de in- tensidad que los de incidencia, especialmente cuando se valoriza la línea de po- breza a preciosajustados por el IPC 7 provincias, reafirmando así la necesidad de que, para erradicar definitivamente la pobreza en Argentina, este tipo de planes asistenciales debe ser complementado con políticas masivas de empleo, tales como las que se comienzan a vislumbrar en programas como “Argentina Trabaja”. Gasparini y Cruces (2010) estiman el impacto distributivo de las asignaciones universales por hijo en Argentina a pocos meses de su implementación. El estudio contribuye con estimaciones de su potencial impacto directo sobre un conjunto de variables, incluyendo la pobreza y la desigualdad monetarias.28 El documento sos- tiene que el país ha avanzado en la dirección correcta en términos de basar su po- lítica social en un masivo programa de transferencias de ingreso a la niñez, pero alerta sobre la necesidad de mejorar su estructura y asegurar su sustentabilidad, y señala algunas alternativas de implementación. Necesidad de tratamiento parlamen- 28. Los resultados encuentran diferencias con los presentados por Agis et al. (2010) porque Gasparini y Cruces calculan la pobreza utilizando datos oficiales del año 2006, pero lo actualizan al año 2009 en base a un promedio de tasas de inflación obtenidas por investigaciones privadas. 77Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 tario y monitoreo y seguimiento de la escolaridad, para poder evaluar los alcances del programa en este sentido. Señalan que es una “oportunidad histórica para con- sensuar una política de Estado en el área social que establezca un escenario estable y transparente para garantizar un mínimo de bienestar para las generaciones pre- sentes y futuras” (Gasparini y Cruces, 2010, p. 41). Bertranou (2010), a partir de datos del cuarto trimestre de 2009 para todo el país, estima que el nuevo programa de AUH reduce la indigencia adicionalmente en un 65% frente al ya existente esquema de asignaciones familiares, mientras que la pobreza cae 18% en relación a la situación previa. Evalúa que es un plan efecti- vo para reducir la pobreza extrema en hogares con presencia de niños y jóvenes menores de 18 años. Se observa un consenso en los distintos estudios en poner de manifiesto los efectos positivos sobre los ingresos de los hogares alcanzados por la iniciativa, en la reducción de la pobreza e indigencia, en la igualación de los ingresos de los hogares, en la comparación internacional con programas equivalentes. Un estudio posterior realizado por Calvi et al. (2011) critica las proyecciones optimistas, al indicar una evolución moderada de los resultados de la implementa- ción de la AUH. Señala que en todos los casos, las consideraciones a las que arriban se basan en análisis de proyecciones, pues la información disponible en 2010 para dar apoyatura empírica a los análisis surge, fundamentalmente, del procesamiento de ventanas de observación de la EPH de 2009, que relevan la situación inmediatamen- te anterior a la puesta en vigencia de la AUH. En tal sentido cuestiona que al estar basadas en proyecciones, estas investi- gaciones sean presentadas como evaluaciones de impacto de la AUH. En primer lugar, la proyección de la cobertura prevista incluía a todos los menores no protegidos de los hogares ubicados en la base de la pirámide distribu- tiva. Sin embargo, las estimaciones realizadas indican que: a) un tercio de los menores del primer decil está cubierto por la AUH; y b) que un porcentaje similar no lo está, a pesar de cumplir con las condiciones para el acceso a esta prestación. Se conjetura que este error de exclusión estaría asociado, en parte, a la falta de la documentación requerida. El autor señala que la AUH es — indudablemente y a pesar de la distancia entre las previsiones y lo observado una iniciativa altamente eficaz para atender a hogares en situación de pri- 78 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 vación y morigerar los niveles de inequidad vigentes, y su incorporación a un sistema de derechos preexistente señala un nuevo paradigma en materia de inclusión. Planteam como necesario profundizar su peso sobre las condiciones materia- les de existencia de muchos hogares es también una obligación que se han impues- to las autoridades, y que esto se observa en la ampliación de la cobertura de la prestación prenatal. Aunque es necesario no omitir los obstáculos señalados en el trabajo, atinentes tanto al componente universal como a los componentes tradicionales del régimen: a) ampliar la cobertura del componente universal (AUH) supone una revi- sión de aquellas trabas, asociadas a la falta de documentación, que se les interponen a muchos hogares con vínculos familiares de mayor fragilidad; b) reconsiderar la asimetría en el procedimiento de otorgamiento de la prestación — entre el nuevo ré- gimen y el tradicional — contribuiría a no restringir innecesariamente el alcance del nuevo beneficio; c) actualizar con mayor periodicidad el tope salarial para el cobro de los componentes tradicionales limitaría la generalización de errores de exclusión en hogares de bajos ingresos. La atención a estas limitaciones del renovado Régimen de Asignaciones Familiares contribuirá, seguramente, a que el optimismo de los pronós- ticos cobre, en los hechos, toda la dimensión prevista (Calvi et al., 2011, p. 24). 6. Consideraciones finales La política social constituye una mediación institucional político-económica resultado al mismo tiempo de las contradicciones y reivindicaciones emanadas de las luchas de clases y de la lógica de acumulación capitalista. Es un proceso diná- mico que se explica en el movimiento histórico de la sociedad. En tal sentido, es posible reconocer diferentes perspectivas, visiones y sentidos de las políticas que disputan la hegemonía. Los programas de Transferencia de Renta condicionada que se consolidan en América Latina en la última década han contribuido en mejorar las condiciones de vida de una capa de la clase trabajadora, constituyen un “alivio” en las condiciones materiales de existencia de familias trabajadoras que no disponen de forma regular de otras rentas. En el caso argentino, la implementación de la AUH; dada la ines- tabilidad e insuficiencia de los ingresos laborales del sector de la clase trabajadora 79Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 al cual va dirigido, las transferencias monetarias del programa constituyen la prin- cipal (y/o única) protección “estable” y previsible para las familias involucradas. Si bien los ingresos son insuficientes, son “seguros” en un contexto de inestabilidad, informalidad y precarización estructural. Se construye paradójicamente una “segu- ridad precaria”. Esta situación nos señala el problema de la desigualdad y la protección social. Desde una perspectiva universal la preocupación se centra en cómo hacer de estas políticas el piso y no el techo máximo a alcanzar para que no se cristalicen como un sistema de protección para pobres, coexistiendo así un sistema de protección “de primera”, para trabajadores formales, y otro “de segunda”, para quienes no pueden acceder al primero. Es decir, el problema sería cómo no consolidar una estrategia político-económica que acompañe y reafirme la informalidad y precari- zación estructural. Otro elemento problemático es la exigencia de las condicionalidades y el sen- tido ético político que implica. Las tensiones entre una perspectiva individualizante de control social y una perspectiva basada en la garantía de derechos universales. Desde la perspectiva del Banco Mundial, quien ha promovido y ve con bene- plácito la implementación de este tipo de programas, la introducción de condicio- nalidades en los planes de transferencia de ingreso a la pobreza exige el cumpli- miento de ciertas pautas por parte de losbeneficiarios (como la obligatoriedad de la asistencia escolar de los niños, la realización de controles médicos periódicos o el cumplimiento de determinados requerimientos nutricionales), bajo el supuesto que estas condicionalidades pretenden generar incentivos a la formación de “capi- tal humano”, promoviendo una mayor inversión en educación, salud y nutrición, que según sostienen redundará en el futuro en la “superación intergeneracional de la pobreza.” Esta creciente importancia asignada a la noción de “capital humano” se cen- tra en una concepción individualista de la sociedad. Imputan a los pobres un com- portamiento que deben modificar para mitigar la pobreza, en tal sentido sostienen que la política social debe generar incentivos para que esos cambios se produzcan. Se exigen condicionalidades para la recepción de los bienes que implican la mode- lación de los comportamientos sociales. De esa forma los pobres son definidos por su situación de carencia económi- ca y también por sus carencias actitudinales y formativas que los inhabilita para su desarrollo. En tal sentido la red de protección para pobres tendida coloca es- 80 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 fuerzos en el desarrollo de habilidades o capacidades a través del entrenamiento educacional. Los cambios pasan por la disposición y experiencia individual de los pobres, por el “empoderamiento” que logren. Es decir, se torna central para mitigar la po- breza que los mismos pobres asuman la responsabilidad de hacer frente a las difi- cultades. La exigencia del cumplimiento de estas condicionalidades activa una dimensión punitiva-moralizante de control “de buenos comportamientos” de los pobres. En relación a esta concepción, los organismos internacionales construyen una batería de términos de profundas implicancias prácticas, por ejemplo la noción de “Estado Motivador”, “Estado Incentivador”. De esta manera se deja de lado el debate sobre la necesidad de transformaciones estructurales e institucionales para la superación de la pobreza. Se coloca a los pobres como “protagonistas instrumen- tales” de un proceso de superación de la pobreza, asegurando mínimos básicos de necesidad. Asimismo no se cuestiona ni propone alterar las causas que producen la desigualdad y la pobreza, sino que se las naturaliza y las reproduce. Tampoco se registra un debate e interpelación sobre la calidad y tipo de las prestaciones que se exigen condicionalidades. El esquema individualizante de autorresponsabilidad desplaza el foco desde las garantías materiales y las relacio- nes sociales fundamentales y lo coloca en la voluntad de superación de los indi- viduos. Si bien en el discurso se apela a nociones de derechos y a un horizonte universal permanecen en la práctica nociones minimalistas de la pobreza, combi- nando distintas modalidades de asistencia alimentaria con planes de transferencias condicionadas de ingresos, organizados bajo principios clasificatorios que con- templan para la calificación la situación de “empleabilidad” y “vulnerabilidad” de los beneficiarios. En este sentido se ha avanzado poco en revertir la desigualdad. Sin embargo, la materialización de estos programas contribuyen a volver menos dramáticas las condiciones de vida de este sector de la clase trabajadora, instalan una “noción de derecho”, de “garantía” y de universalización que es diferente al tratamiento dominante de la hiper-focalización de la década anterior y habilita potencialmente un camino de exigencia de cumplimiento de estas garantías. El análisis de la política de transferencia particular en el marco de la forma histórica de protección social definida nos permite comprender la existencia cen- tralmente un problema político: el proyecto de sociedad que se quiere construir. Se observa tanto las disputas en relación al reconocimiento de necesidades sociales, como las maneras de definir y organizar el trabajo. El resultado de estas disputas 81Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 53-85, jan./mar. 2013 se materializa en las mediaciones político-económicas que condensan esas tensio- nes. Si aspiramos a una sociedad que se mueva en un sentido de la igualdad social, es necesaria una perspectiva amplia de la protección social, basada en un enfoque de derecho universal, que tienda a la superación de la segregación y fragmentación en las que históricamente han participado las políticas asistencialistas. El proceso en marcha muestra que si bien hay avances en la definición de un “piso de protec- ción”, se está muy lejos de ese horizonte social. Recebido em 3/12/2012 ■ Aprovado em 10/12/2012 Referencias bibliográficas AGIS, E. CAÑETE, C.; PANIGO, D. El Impacto de la Asignación Universal por Hijo en Argentina. Documento de trabajo CEIL-Piette Conicet, 2010. Disponible en: <http://www. ceil-piette.gov.ar/docpub/documentos/AUH_en_Argentina.pdf>. Acceso en: feb. 2012. ALGRANATI, CLARA; TADDEI, Emilio. Tras una década de luchas. Realidades y desa- fíos de los pro yectos de cambio en Nuestra América. Revista Herramienta, n. 46, mar. 2011. 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Social- -liberalismo. Proteção social. Assistência Social. Abstract: The peculiarity of the insertion of the Brazilian economy in the entirety of the capital show the Social Assistance policy functionalities related to the “neodevelopmentalist” strategies of economic growth and social justice. Converting its user-workers into only “very poor people”, the Brazilian Social Assistance takes on a new role which leads to the protection of the country-produced wealth from the conflict over its distribution and to its transfer to the expansion of the international capital. Keywords: Neoliberalism. Neodevelopmentalism. Social-liberalism. Social protection. Social Assistance. * Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba — Campina Grande/PB, Brasil. E-mail: sheylasuelyss@hotmail.com. 87Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 1. Introdução A Assistência Social brasileira registra avanços jurídico-normativos; centralidade na proteção social, notoriedade nacional e internacional e integra um novo modelo de governo, “neodesenvolvimentista”. Partindo do pressuposto de que todo avanço da política social con- densa respostas às demandas do trabalho e funcionalidades à acumulação capita- lista, analisamos, na contraface desses recentes avanços, as funcionalidades dessa política à atual expansão do capital. Nossa análise, pautada no recurso heurístico da totalidade, evidencia que as atuais contribuições da política de Assistência Social brasileira à estratégia de crescimento econômico intermedeiam as dinâmicas de transnacionalização e financeirização e de superexploração do trabalho e, por outro lado, no que toca à face da justiça social do “neodesenvolvimentismo”, o atual modelo dessa política (re)naturaliza a questão social e promove ações focalizadas, as quais revertem estatísticas de desigualdade social, sem promoverem redistribuição de riqueza e mantendo os custos de reprodução da superpopulação relativa no âm- bito do trabalho. Nossa tese é de que o atual modelo da política de Assistência Social brasilei- ra dá suporte à superexploração do trabalho e equaliza a pobreza entre os próprios trabalhadores, para resguardar a riqueza produzida no país do conflito sobre a sua repartição e transferi-la para a expansão do capital, em escala internacional. 2. A atual reestruturação do capital e suas inflexões sobre o trabalho, a questão social e a proteção social O sistema capitalista tem uma ineliminável capacidade de ampliar a pobreza no seio mesmo de seus avanços produtivos, como decorrência da produção social de uma riqueza apropriada de forma crescentemente concentrada, sob os desígnios da exploração do trabalho. Essa lei geral da acumulação capitalista é a determina- ção fundante da questão social e põe em confronto as duas classes fundamentais do capital. É na dinâmica desse confronto entre o capital e o trabalho que avançam ou refluem os diferentes modelos de proteção social. Neste sentido 88 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 a análise da questão social é indissociável das configurações assumidas pelo tra- balho e encontra-se necessariamente situada em uma arena de disputas entre projetos societários, informados por distintos interesses de classe, acerca de con- cepções e propostas para a condução das políticas econômicas e sociais. (Iama- moto, 2001, p. 10) É, pois, nessa arena de disputas que podemos compreender a generalização das políticas sociais no contexto da onda longa expansiva do capital em sua fase fordista e a atual reversão deste modelo. Nos termos de Netto (1995, p. 70), o ar- ranjo sociopolítico do Welfare State constitui uma possibilidade da ordem do capi- tal que, pela lógica intrínseca desta última, converte-se agora num limite que ela deve franquear para reproduzir-se enquanto tal. A rigidez fordista-keynesiana confronta-se com o novo estágio das forças produtivas do capital em sua fase de mundialização e impacta (1) na expansão internacional do modelo de flexibilização; (2) na emergência do neoliberalismo e (3) na contrarreforma do Estado, em especial nos termos universalistas em que foi consagrado como Estado de bem-estar social. Uma breve apreensão desses três movimentos que compõem as atuais transformações societárias é imprescindível à compreensão das funcionalidades da Política de Assistência Social brasileira à expansão do capital. A mundialização vem sendo marcada como um regime de acumulação, no qual o novo estágio do imperialismo atua por meio da dominação do capital finan- ceiro, em estreita articulação com as empresas transnacionais1 (Chesnais, 1996). Uma vez que a predominância do capital financeiro não substitui a esfera da pro- dução como momento da criação de valor, o capital monetário, afirma Fontes (2010), precisa expandir relações sociais capitalistas de extração de mais-valor. Assim, a lógica financeira pressiona para uma superexploração do trabalho, visando atender objetivos paradoxais. De um lado, resulta da maior aplicação de capitais na esfera especulativa, em detrimento produtiva, que, então, busca operar com menores custos, reduzindo gastos com o fator trabalho.2 Por outro lado, é uma 1. As empresas tipicamente industriais passam a conciliar suas atividades produtivas com as especulações financeiras (Harvey, 1994), e esse predomínio financeiro é acompanhado de dois mitos: o de que o lucro é produzido em nível intelectual da atividade de gestão do capital monetário e, decorrente desse primeiro, o mito de que o trabalho vivo não teria mais função na vida social (Fontes, 2010). 2. Nos termos de Alves (1999), nesse predomínio da financeirização, o processo de valorização é impulsionado na perspectiva da redução do trabalho vivo, para uma maior rentabilidade acionária. 89Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 resposta à tentativa de reduzir a não correspondência entre o capital especulativo e a riqueza real, tendo a redução de custos com o fator trabalho também como seu pressuposto. A superexploração é, pois, um pressuposto tanto da financeirização, quanto da transnacionalização e se objetiva, historicamente, na transição para o modelo de “acumulação flexível”. Antunes (2007) descreve como principais elementos dessa reestruturação a reorganização sociotécnica da produção; a intensificação da jornada de traba- lho, a subcontratação; a informalização e uma busca por uma mão de obra pouco qualificada, desfordizada e dessindicalizada, que, pressionada pela si- tuação de mão de obra excedente, se submete a relações de trabalho altamente precarizadas. Na conjuntura da da financeirização do capital, a reestruturação impõe, a um só tempo, a necessidade e a possibilidade de conciliar usos mais intensivos e extensivos da força de trabalho,3 e as novas estruturações do trabalho dissimulam uma realidade que reatualiza formas pretéritas de exploração, as quais rompem as conquistas seculares alcançadas no âmbito do conflito capital versus trabalho, exatamente para gerar um processo de “subproletarização tardia”: [...] o subproletariado tardio é [...] um “equivalente contemporâneo do proletariado sem direitos, oprimido e empobrecido” (o que Gorz denomina, por exemplo, “prole- tariado pós-industrial”, é constituído não apenas pela subproletarização tardia, mas pelos desempregados estruturais)”, sendo ambos adequados à lógica contemporânea da acumulação flexível. (Alves, 1999, p.152) As atuais relações flexíveis de trabalho estabelecem uma nova relação, orgâ- nica e reacionária, entre a expansão do capital e a espoliação do trabalho,que as- simila novas e pretéritas formas de exploração, cuja inusitada conciliação caracte- riza o fenômeno da superexploração e permite, também, o desvencilhamento de custos de reprodução da força de trabalho e um mascaramento da real dimensão da superpopulação relativa que vem sendo produzida crescentemente. 3. A derrocada do socialismo real e a reincorporação da União Soviética e da China como elementos do sistema capitalista mundial adensam sobremaneira essa conjuntura favorável à maior exploração e controle do trabalho pelo capital, uma vez que, assim, são execrados “quaisquer resquícios de modelos de sociedade alternativos ao capitalismo [sejam eles reais ou utópicos] e submetendo todo o globo à ló- gica, aos interesses e às imposições discricionárias do capital em sua nova fase imperialista” (Silva et al., 2010, p.182). 90 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 A atual reestruturação produtiva — ao privilegiar formas de contratação do trabalho externalizadas das empresas capitalistas e assentadas no forneci- mento de mercadorias e serviços — expressa a ofensiva do capital aos mais elementares direitos do trabalho: a jornada normal de trabalho e o salário ne- cessário à reprodução do trabalhador e sua família, nas condições médias de vivência da classe trabalhadora, liberando as grandes empresas de responsabi- lidades e custos com encargos sociais, trabalhistas e fiscais, e mascara a am- plitude da superpopulação relativa, sem amputar-lhe o papel de contribuir para a acumulação do capital.4 Enfim, as atuais transformações no mundo do trabalho tratam não de opções do trabalho, nem de resultados insatisfatórios de políticas ou governos mal admi- nistrados, mas de determinações imanentes à atual dinâmica de restauração do capital, as quais impactam nos atuais modelos de proteção social. 2.1 As inflexões da atual reestruturação na (des)proteção social Esgotada a eficácia anticíclica do modelo fordista-keynesiano e substituídas as relações fordistas por padrões “flexíveis” de trabalho, produção e acumulação, explicita-se a demanda por um modelo de regulação distinto do keynesiano. Emer- ge o neoliberalismo e suas imposições às economias periféricas, sob a batuta das agências internacionais de crédito — Fundo Monetário Internacional e Banco 4. Rompida a relação entre pagamento do trabalho por tempo e a jornada normal de trabalho — quando o capitalista paga o trabalhador por “horas avulsas”, desconexas da sua relação com a jornada normal de trabalho — rompe-se, também, a conexão entre trabalho pago, trabalho não pago e reprodução do trabalhador, a qual serve de base para calcular a unidade de medida do preço do trabalho de forma que garanta a sobrevivência do trabalhador. O pagamento do salário por peça, serviço ou horas avulsas pro- move um prolongamento voluntário da jornada de trabalho, o rebaixamento do preço do trabalho e uma maior extração de mais-valia absoluta. Hoje, no duplo movimento entre o centro do sistema produtivo interno à empresa e o espaço externalizado de produção, amplas massas de trabalhadores desempregados passam a compor a superpopulação relativa estagnada e “[...] sua condição de vida cai abaixo do nível normal médio da classe trabalhadora e, exatamente isso faz dela uma base ampla para certos ramos de exploração do capital” (Marx, 2002a). Esta base, caracterizada como um “subproletariado tardio”, ofer- ta ao capital trabalho plasmado convertido na aparência de mercadorias (Soares, 2008). É nessa conver- são que se opera a ruptura da relação entre o salário por tempo de trabalho e a jornada normal de tra- balho e que se dissimula a reatualização de formas pretéritas de exploração, destinadas à retomada da expansão do capital. 91Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 Mundial. O processo de mundialização do capital, sob a hegemonia neoliberal, é marcado pela ruptura com a regulação keynesiana do Estado, tanto na perspectiva do pleno emprego, quanto dos direitos sociais. O final do século passado e o início do novo milênio testemunharam, então, a irrupção de mobilizações contra a ofensiva neoliberal5 e conduziram o neolibe- ralismo a uma restauração de tipo “social-liberalista” que, sob o mote retórico da justiça social, incorpora um novo discurso, articulando o crescimento econômico à equidade, como ferramentas do enfrentamento da questão social globalizada (Castelo, 2008). Para Castelo (2008) e Lehr (2010), o social-liberalismo é a nova fase do neoliberalismo em seu processo de restauração. Na proposta desse social-liberalismo, encampada pelas agências multilateriais,6 o Estado assume um papel central para o crescimento econômico e o desenvolvi- mento social, por meio da garantia de condições básicas para que todos possam usufruir de oportunidades no mercado. Eis os fundamentos que conciliam a pro- moção do mercado com a equidade, a qual, no caldo ideopolítico social-liberalista, tomada com o sentido de uma justiça social mediada pelo conceito de “inclusão social”, focaliza suas ações na pobreza absoluta7, excluindo qualquer debate ou intervenção nas desigualdades sociais. O social-liberalismo é, pois, uma proposta de contrarreforma do Estado que, assimilada, no Brasil, pelo atual modelo da política de Assistência Social, visa fazer frente aos efeitos mais gritantes da liberalização dos mercados, exatamente para manter a trajetória concentradora do capital e suas consequentes desigualdades. É apenas no contexto dessas grandes transformações societárias que podemos apreender as funcionalidades da política de Assistência Social ao modelo brasilei- ro de governo “neodesenvolvimentista”. 5. Castelo (2008) cita, como exemplos dessas irrupções, o Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e Contra o Neoliberalismo, realizado no México, em 1996; as mobilizações contra o Acordo Multilateral de Investimentos, desencadeadas entre os anos de 1997 e 1998, que conduziram ao cancelamen- to do acordo, em outubro de 1998; as mobilizações contra a Rodada do Milênio, em Seattle, Estados Unidos, em 1999; as diversas mobilizações contra o FMI, no início dos anos 2000, destacando-se as de Washington e de Praga. 6. O social-liberalismo inspira-se nas contribuições teóricas de um dos recentes presidentes do Banco Mundial, o economista premiado Nobel Amartya Kumar Sen, em especial na sua obra Desenvolvimento como liberdade (2000). Importante interpretação de suas propostas encontra-se em Mauriel (2008). 7. Tratando-se, então, dentro dos parâmetros da cidadania liberal-burguesa, de um retorno do princípio da justiça social à sua ênfase compensatória. 92 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 3. O “neodesenvolvimentismo” brasileiro: sua proposta e sua não concreção Tem sido recorrente a interpretação de que, no Brasil, a partir do segundo mandato do presidente Lula, emerge um novo modelo de governo, denominado “neodesenvolvimentista”. Castelo (2009) afirma que, para os seus proponentes, embora esse modelo tenha suas raízes fincadas na matriz nacional-desenvolvimentista,8 deve hoje adensar um “sentido conceitual inovador”, adequado às novas configu- rações do capitalismo contemporâneo, daí o prévio adjetivo de “neo” ou “novo” desenvolvimentismo. Na concepção de Sicsú (2008), esse modelo deve promover crescimento com industrialização, por meio dos seguintes fundamentos: uma política monetária lastreada por juros baixos; uma política cambial que administre uma taxa de câmbio competitiva para a exportação de manufaturados e com regulação do fluxo de ca- pitais financeiros; uma política fiscal que cumpra o papel de controlar gastos pú- blicos com o objetivo de manter o pleno emprego, melhorar as condições de vida da população e realizar uma arrecadação progressiva. Para Pochmann (2010),são pressupostos desse “social-desenvolvimentismo” um novo caminho que inclua justamente todos os brasileiros e que seja compatível com o avanço tecnológico da nação e a sustentabilidade ambiental. Sua concreção requer a “refundação do Estado”, através da constituição de novas institucionali- dades na sua relação com o mercado, tendo em vista garantir a inovação, por meio da “concorrência combinada entre empreendedores e da maior regulação das gran- des corporações empresariais” (p. 179) e a ampliação do fundo público, por via de uma maior tributação das grandes fortunas e propriedade intelectual e do avanço para um sistema tributário progressivo. Na análise de Sallun Jr. (2009), o modelo de governo do segundo mandato Lula se diferencia do neoliberalismo porque propõe um Estado forte, que intervém em favor da economia; e se diferencia, também, do nacional-desenvolvimentismo porque não almeja o mercado interno, mas, constitui-se uma economia competiti- va no plano internacional, por meio da atração das empresas transnacionais, do estímulo às inovações tecnológicas e dos investimentos em infraestrutura. O papel 8. O modelo nacional-desenvolvimentista foi proposto entre as décadas de 1940 e 1970 e suplantado pela ofensiva neoliberal a partir dos anos 1980. 93Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 do Estado “neodesenvolvimentista” é regular e impulsionar de forma eficiente o crescimento econômico com inclusão social. Na crítica de Castelo (2007 e 2009), a corrente “neodesenvolvimentista” nasceu na esteira da tradição nacional-desenvolvimentista que, malograda, foi suplantada pelo neoliberalismo e, assim, a emergência do atual modelo de governo se dá em meio a um quadro social adverso aos seus objetivos políticos, cobrando-lhe, constantemen- te, a prestar contas ao nacional-desenvolvimentismo — do qual é legatário — e en- frentar o neoliberalismo — com o qual é interlocutor. O autor adverte que o termo “novo desenvolvimentismo” remonta à produção teórica de Luiz Carlos Bresser Pereira, passando a compartilhar com os teóricos da atual proposta vários ideais, no sentido de torná-lo adequado às configurações do capitalismo contemporâneo. Gonçalves (2011), outro crítico desse modelo “neodesenvolvimentista”, atri- bui ao governo Lula a responsabilidade de ter implementado um “nacional-desen- volvimentismo às avessas”, tendo em vista que operou, na esfera comercial, uma desindustrialização, dessubstituição de importações, reprimarização e perda de competitividade internacional; na esfera tecnológica, uma maior dependência aos setores externos; na esfera produtiva, uma desnacionalização e maior concentração do capital e, na financeira, teria estimulado um passivo externo crescente e a domi- nação financeira. Acerca do “neodesenvolvimentismo” brasileiro, é necessário desprender nossas críticas em duas direções: primeiro à sua proposta original, encampada por ideólogos como Sicsú e Pochmann e, segundo, ao modelo que efetivamente se concretiza nas ações de governo. Em ambas as direções, esse modelo é caracterizado pelo que Castelo (2009) denominou como uma “terceira via” que, inspirada na ideologia social-liberalista das agências multilaterais, propõe conciliar, ao conjunto de medi- das macroeconômicas acima descritas, um conjunto de medidas sociais que atuem sobre a questão social e promovam a equidade e a justiça social.9 Esta terceira via encontra amplo respaldo no atual modelo da política de Assistência Social brasileira. 9. Seja na sua proposta original, seja na sua concreção como modelo de governo efetivamente imple- mentado, a ambiguidade central do “neodesenvolvimentismo” é, a nosso ver, a sua conivência antagônica com a liberalização dos mercados e a especulação financeira, as quais confrontam tanto as propostas de medidas macroeconômicas que promovam o desenvolvimento nacional, quanto aquelas que promovam a justiça social. Ao se confrontar com as inflexões objetivas da ofensiva do capital, qualquer desenvolvimento nacional é confinado a limites que não constranjam a reposição do ciclo de subdesenvolvimento como um fenômeno imanente à lógica da globalização capitalista. As escolhas tomadas frente a esses conflitos anta- 94 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 4. Interlocuções da política de Assistência Social com o “neodesenvolvimentismo” brasileiro Um dos avanços que se registram no governo “neodesenvolvimentista” é a expansão da política de Assistência Social e sua regulamentação, na perspectiva de instituir o Sistema Único de Assistência Social (Suas). Partindo daquele pressupos- to já anunciado de que toda política social atende a demandas do trabalho, mas é, também, funcional às requisições da expansão do capital, apreendemos, na contra- face dos recentes avanços da política de Assistência Social, as suas funcionalidades às requisições da dinâmica de expansão do capital no Brasil. O próprio marco regulatório recente da Assistência Social — não sendo imu- ne à dinâmica conflitiva capital/trabalho — incorpora conceitos sociais-liberalistas, os quais visam à (re)naturalização da questão social, despolitizando-a, para blindá- -la de qualquer reflexão que permita o tensionamento de suas causas fundantes: a expropriação e a exploração dos trabalhadores. Neste sentido, Castelo (2009) questiona a assunção do conceito de equidade na intervenção “neodesenvolvimentista”, posto que, herdado da tradição liberal clássica, abraçado pelo Banco Mundial (BM) e mediado pela perspectiva da inclu- são, permite o corte da focalização na extrema pobreza.10 Na mesma direção, a propositura do conceito de vulnerabilidade social remete à estratégia da responsa- bilização dos indivíduos. Para Mendonça (2010), essa reconceituação é oportuna no sentido de propor que o próprio indivíduo pobre construa alternativas para a superação de sua condição, correspondendo às orientações sociais-liberalistas do Banco Mundial.11 gônicos (macroeconômicos e político-sociais) expressam, “factualmente”, o modelo e os beneficiários do desenvolvimento empreendido. 10. Encontra-se na teoria rawlsiana da “justiça como equidade” uma matriz de pensamento que orienta esse retorno (liberal) de uma ênfase da justiça social pautada no princípio da redistribuição para uma ênfase compensatória. O novo marco regulatório da Assistência Social brasileira se alinha a essa concepção, quan- do, por exemplo, propõe que a “visão social inovadora” da política paute-se na “dimensão ética de incluir os ‘invisíveis’” (Brasil/MDS/SNAS, 2004, p. 15). 11. A impregnação desse marco social-liberalista revela-se, por exemplo, na proposta de que a visão social inovadora da Assistência Social identifique e potencialize “os requisitos sociais circundantes do indi- víduo e dele em sua família” como “determinantes para a sua proteção e autonomia”, confrontando “leituras macrossociais” com “leituras microssociais” que potencializem as possibilidades e capacidades dos próprios 95Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 Se, no caráter estrito da recente regulamentação da Assistência Social brasi- leira, flagramos a sua impregnação pelo caldo político-ideológico social-liberalista, na perspectiva da inserção do país na totalidade do capital, a centralidade da Assis- tência Social é anunciada como uma das principais ações que comporiam o novo modelo de governo, cujo fundamento é a inédita articulação do binômio do cresci- mento econômico com a redução da pobreza. A adoção desse binômio é, a nosso ver, também um substrato da apropriação que esse modelo “neodesenvolvimentis- ta” faz da matriz social-liberalista, sendo, inclusive, cunhado por alguns autores de “modelo social-desenvolvimentista” (Pochman, 2010) e que segue as recomendações das agências multilaterais.12 No caso do crescimento econômico,as principais estratégias “neodesenvol- vimentistas” privilegiam a exportação de commodities e a atração das grandes empresas transnacionais e do capital financeiro, por meio dos investimentos estran- geiros diretos (IEDs). Na outra ponta, o desenvolvimento social seria alcançado por meio do fortalecimento dos programas sociais, com destaque para os programas de transferência de renda da política de Assistência Social. No tocante ao crescimento econômico, o Brasil retoma a velha opção de crescimento pela via das exportações de commodities, com base nas “vantagens comparativas” e marcada por baixa reinversão tecnológica, reprimarização da economia e superexploração do trabalho, a qual é típica da produtividade desse setor primário. No que diz respeito à atração de capitais, o estoque total dos IEDs no país atingiu 30,8% do PIB e aqueles relativos à participação no capital cresceram 256%, entre 2005 e 2010, atingindo um montante equivalente a 27% do PIB (Ban- co Central do Brasil, 2011). Segundo o Relatório de Inflação do Banco Central do Brasil (2008), a remes- sa de lucros e dividendos ao exterior acompanhou o crescimento de IEDs, tendo montantes comumente superiores aos dos investimentos, no período 2001-2007.13 beneficiários, para os quais o direito à Seguridade Social deve ter o duplo efeito de “suprir um recebimento” e desenvolver suas “capacidades para maior autonomia” (Brasil/MDS/SNAS, 2004, p. 15-16; grifos nossos). 12. O social-liberalismo parece-nos, pois, a matriz político-ideológica que sustenta o modelo “neodesen- volvimentista”, o qual se apoia na conciliação entre crescimento econômico e equidade. Observe-se, por exem- plo, que o governo “neodesenvolvimentista” assume como meta da “justiça social” exatamente aquilo que o Banco Mundial assume como sua principal missão: a redução da pobreza absoluta (ver Banco Mundial, 2006). 13. Apenas nos segundo e terceiro triênios de 2004; terceiro e quarto triênios de 2006 e primeiro triênio de 2007 o montante das remessas foi igual ou inferior aos estoques de IEDs — participação no capital. Em todos os demais triênios desses sete anos (2001-2007), as remessas foram superiores. 96 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 Enfim, essas duas principais estratégias de crescimento econômico e de inserção no sistema internacional reincidem na condição de dependência e heteronomia e, em verdade, obliteram a proposta de desenvolvimento.14 O “neodesenvolvimento” brasileiro promove um crescimento econômico cujas maiores fatias são apropriadas pelas transnacionais e, em verdade, dissimula o fe- nômeno do novo imperialismo, remetendo às sedes das empresas transnacionaliza- das as maiores fatias do crescimento interno, alcançado pela via da dilapidação dos recursos naturais e da exploração do trabalho precário15, sob um dissimulado “su- cesso” da justiça social, expressa em termos de aumento de postos de trabalho e redução da desigualdade de renda, também entre o próprio trabalho. Os organismos e as estatísticas oficiais afirmam que o Brasil gerou milhões de postos de trabalho, fez emergir uma nova classe média e criou uma sólida eco- nomia interna, resistente às crises internacionais. A reversão positiva de indicadores sociais compõe o principal sustentáculo ideopolítico para o colaboracionismo em torno do modelo “neodesenvolvimentista” e, com ele, da apropriação que o grande capital internacional opera sobre o crescimento econômico (aparentemente) brasi- leiro, e não é pequeno o papel da Assistência Social nesse processo. Ainda quanto às transformações no âmbito do trabalho, cabe ressaltar, a par- tir dos dados do Ipea (ago. 2011, fev. 2012) e da Anfip (2011), que o saldo positivo do trabalho, desde 1995, se deu sempre nas faixas de rendimento mais baixas, com expressiva predominância de postos com rendimentos de até 1,5 salário, e esses saldos positivos se deram em virtude da eliminação de postos de trabalho em faixas salariais maiores. Em verdade, a geração de postos de trabalho é dada em função e à custa da degradação da renda do trabalho em seu conjunto.16 14. Explicitam-se, assim, os motivos pelos quais optamos por nos referir aos termos relativos ao “neo- desenvolvimentismo” sempre marcados pelo recurso das “aspas”, posto tratar-se, a nosso ver, de termos eminentemente retóricos que, em verdade, operam no plano real exatamente o inverso daquilo a que se propõem no discurso ideológico de seus proponentes e executores. 15. Várias denúncias derivam desse colaboracionismo do governo “neodesenvolvimentista” à ofensiva novoimperialista; dentre os quais destacamos, por exemplo, a estrangeirização do latifúndio e o baixo investimento nas inovações tecnológicas (Silva, 2012). 16. Ao apontar o saldo positivo entre contratações e demissões, não podemos ignorar que não se trata de postos de trabalho idênticos. Na verdade, do total de postos criados em 2009, cerca de 36% operaram uma migração de trabalhadores com maiores rendimentos para faixas de rendimentos inferiores a dois salários mínimos. Em 2010, essa migração foi de mais 12,95%. Segundo o Ipea (ago. 2011), o primeiro decênio dos anos 2000 registrou a maior expansão quantitativa de ocupações dos últimos quarenta anos, e 95% das vagas 97Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 O fato é que, no atual momento histórico, o capital em crise distancia-se em marcha acelerada das prerrogativas fordistas-keynesianas do pleno emprego e do bem-estar e opta (por absoluta necessidade estrutural) por empregar mão de obra precária e descartável, encontrando no Brasil um manancial na oferta desse perfil de trabalho e amplos subsídios dos governos a essas subcontratações. Parte desses subsídios apresenta-se na forma dos programas de transferência de renda. Segundo a Anfip (2011), a importância desses programas na conjugação das estatísticas positivas do trabalho não foi pequena e a Seguridade cumpriu um papel importante ao financiar as políticas de reajustes reais para o salário mínimo, de programas de benefícios assistenciais de prestação conti- nuada, do Bolsa Família e de outros benefícios de natureza assistencial. (Anfip, 2011, p. 10; grifos nossos) Vejamos, então melhor, como a preeminência dos programas de transferência de renda incide sobre o crescimento econômico e a justiça social do governo “neodesenvolvimentista”. 5. Funcionalidades da preeminência da transferência de renda à expansão do capital no Brasil Na política de Assistência Social há uma preeminência de programas de transferência de renda, em detrimento da ampliação dos serviços socioassistenciais, comprometendo uma integração do Sistema Único de Assistência Social (Suas) que garanta o acesso por todos aqueles que dele necessitarem, para além da condição da pobreza extrema. A partir de dados da Anfip (2011), observa-se que o montante dos valores liquidados com o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Pro- grama Bolsa Família (PBF) evoluiu 136,46%17 entre os anos de 2005 a 2010; mas abertas foram com remuneração mensal de até 1,5 salário mínimo. Esse contingente de remuneração aproxima-se de quase 59% de todos os postos de trabalho do país. 17. Cabe ressaltar que essas são as duas principais estratégias de transferência de renda no âmbito da Assistência Social, porém, não são exclusivas, pois, outros programas — a exemplo do Programa de Erradi- cação do Trabalho Infantil (Peti) e do Pró Jovem — também realizam transferências de renda, ainda que com valores, montantes e beneficiários em números expressivamente menores; além dos repasses da Renda 98 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 a execução dos montantes referentes aos serviços e aos programas da Assistência Social teve evolução significativamentemenor, no mesmo período de referência. O MDS (2010) relata que, incluindo o BPC e o PBF, a evolução dos recursos da Assistência Social na União teve um incremento real de 255,4%; mas, excluídos esses programas, a expansão dos serviços socioassistenciais foi de R$ 2 bilhões, em 2004, para R$ 2,7 bilhões, em 2009, representando um incremento percentual de apenas 35% em cinco anos. Esses dados evidenciam a prevalência da transfe- rência de renda como estratégia central da proteção social brasileira, no governo “neodesenvolvimentista”,18 restando-nos questionar a funcionalidade dessa preva- lência para a expansão do capital. O Ipea vem divulgando sucessivas quedas no grau de desigualdade e de con- centração dos rendimentos do trabalho no país desde 2002, capturadas pelo índice de Gini. Em agosto de 2009, o Instituto divulgou uma redução de 9,5% entre de- zembro de 2002 (0,545) e junho de 2009 (0,493). No mesmo documento, o Ipea (ago. 2009, p. 3) observa que: a renda capturada pela PME/IBGE expressa fundamentalmente os rendimentos do trabalho, observa-se que a queda do índice de Gini pode estar relacionada tanto à perda do valor real das maiores rendas do trabalho como à proteção do conjunto dos rendimentos na base da pirâmide ocupacional. (Grifos nossos) Além da valorização do salário mínimo na base da pirâmide com uma dete- rioração do valor real das maiores rendas do trabalho no seu ápice, a dinâmica de demissão de trabalhadores nas faixas salariais mais altas com admissões exclusi- vamente em faixas salariais inferiores também contribuiu para a diminuição do índice de Gini.19 Dedecca et al. (2008) sinalizam que a redução desse índice está Mensal Vitalícia (RMV) aos beneficiários remanescentes de um direito adquirido antes da Constituição Fe- deral de 1988, cujo montante de recursos é menor e decrescente, devendo extinguir-se. 18. Enquanto há um expressivo acesso à transferência de renda pelos idosos, pessoas com deficiência e famílias em situação de pobreza extrema, sendo muitos desses acessos assentados na provisoriedade de um “programa de governo”, esses mesmos usuários não encontram, na maioria dos municípios brasileiros, a disponibilidade de serviços socioassistenciais de atenção e acolhimento ao idoso; de habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência, de acolhimento e proteção à mulher vítima de violência etc. (IBGE, 2010), esva- ziando a PAS da concretude, previsibilidade, integralidade e continuidade que lhe são devidas, posto seu caráter de política pública. 19. Importante análise de Dedecca et al. (2008) demonstra claramente as restrições da apropriação dos dados da PNAD pelo índice de Gini para a mensuração da desigualdade. Os dados do recente Comunicado 99Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 “aderida”, também, à evolução das distribuições da renda do trabalho e à renda oriunda da proteção social, donde destacam “o papel importante cumprido pelo programa [PBF] junto às famílias com maior carência de renda” (p. 12). Também o Ipea (fev. 2011) avalia que a atual abrangência do PBF e do BPC tem papel es- tratégico para “alavancar a economia”. Em síntese, o Instituto demonstra que os gastos das políticas sociais se con- vertem, também, em benefícios de caráter estritamente econômico, como o cresci- mento da renda das famílias e do PIB, para os quais esses gastos têm efeito multi- plicador maior que o efeito do investimento, o da exportação de commodities agrícolas ou o efeito do pagamento de juros, posto que gastos de benefícios assis- tenciais (BPC e PBF) e previdenciários alcançam os mais pobres e a classe média, cujos consumos dirigem-se ao mercado interno. Também no tocante ao índice de Gini, o Instituto demonstra que “gastos incrementais no BPC e PBF são claramen- te os que mais contribuem para a queda da desigualdade, corroborando o ‘papel virtuoso do gasto social e, mais especificamente, das transferências de renda dire- cionadas aos mais pobres’”. Os dados evidenciam que a Assistência Social vem respondendo, em boa medida, à face da justiça social “neodesenvolvimentista” — concebida pelo veio da focalização na extrema pobreza e expressa na reversão estatística dos índices de pobreza e de desigualdade (no âmbito dos rendimentos do trabalho) — enquanto também contribui significativa e monetariamente para a outra face desse modelo, que é o crescimento econômico, ao compor o que Sicsú (2008, p. 19, grifos nossos) propõe como “a arte da política fiscal de gastos que não aumentam gastos”; elevar o efeito multiplicador dos gastos do governo e, assim, “trocando beneficiário ‘ricos’ por ‘pobres’”, gerar crescimento.20 n. 134 do Ipea (fev. 2012) revelam que, entre 1995 e 2002, houve uma redução de 11,8% na fatia da partici- pação do trabalho na renda nacional, que variou de 48% (em 1995) para 42,4% (em 2002) e, apesar dos re- centes (e comemorados) saldos positivos do crescimento econômico brasileiro, entre 2003 e 2009, a recupe- ração da participação dos rendimentos do trabalho foi de apenas 2,5%, alcançando 43,4% em 2009 e permanecendo 9,6% abaixo do percentual de 1995. 20. Somente o Programa Bolsa Família atende algo em torno de 50 milhões de brasileiros, ou seja, pouco mais de um quarto da população do país e, ao baixo custo de 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB) (Falcão, 2011), alivia a pobreza, reverte as suas estatísticas e as da desigualdade, inflexiona positivamente as estatísticas da Saúde e da Educação, devido às condicionalidades do programa, e incrementa o circuito do consumo e da economia, aumentando a capacidade de consumo das famílias beneficiárias e o PIB. 100 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 6. Algumas notas conclusivas acerca da funcionalidade da política de Assistência Social brasileira à expansão do capital Nossa análise corrobora o pressuposto de que a contrapartida da transferência de renda às classes trabalhadoras é favorável aos trabalhadores, principalmente em termos de um complemento à escassez de renda oriunda do trabalho precário e, mais ainda, é funcional ao capital, tanto ideopolítica, quanto economicamente. O incremento desses programas à fatia do crescimento econômico brasileiro que escapa da apropriação do capital internacional e engrossa o PIB nacional não é pequeno, posto que são seus beneficiários quem consomem os produtos nacionais e quem movimentam as economias municipais, enquanto as velhas e novas “mino- rias privilegiadas e miméticas” (Furtado, 1974) continuam investindo no capital financeiro, consumindo importados e transferindo para as grandes empresas trans- nacionalizadas a riqueza nacional, pela via desse consumo, pela concessão do di- reito de exploração espoliativa de nossos recursos naturais, dentre os quais a força de trabalho e, ainda, pela via da mercantilização dos direitos do trabalho, como Previdência, Saúde e Educação. Numa economia mundializada, em que as grandes empresas transnacionais remetem às suas matrizes as maiores fatias da riqueza produzida no país, o mínimo crescimento da participação do trabalho na renda nacional não reflete, em absoluto, maior participação na magnitude da riqueza total produzida, porque a maior parte dela foi exportada. Havemos, ainda, de descontar do aumento dessa participação a fatia da renda do trabalho que se converte no sustento da superpopulação relativa, o que toca, prinicipalmente, na questão dos montantes de recursos públicos desti- nados aos programas sociais. Nesse sentido, lembremos que os atuais beneficiários dos programas de trans- ferência de renda são, também, trabalhadores aptos, subocupados, com escassos rendimentos per capita familiar,21 remanescentes da superpopulação relativa am- pliada pela ofensiva dos anos 1990. Através daquela ofensiva, o desemprego estru- tural,a reversão de direitos sociais e trabalhistas e a privatização dos bens e servi- ços públicos; o aumento da dívida pública interna e externa; inflação, perdas 21. Couto (2011) refere que, segundo a última pesquisa feita pelo BPC, 47% dos usuários do Programa Bolsa Família têm trabalho com carteira assinada e cerca de 70% a 80% desses usuários encontram-se no setor informal. 101Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 salariais e quebra dos laços de solidariedade e das estratégias e do poder de barga- nha dos trabalhadores etc., enfim, novos processos de “expropriações secundárias” (Fontes, 2010) forjaram, a ferro e fogo, o perfil adequado de trabalhadores para atender às atuais necessidades do capital de superexploração do trabalho. Hoje, com amplo respaldo e incentivo de governo, esse “subproletariado tardio” é inserido em ações e programas que ampliam formas precárias de inserção ocupacional (empreendedorismos, pequenos negócios, economia solidária, produ- ções familiares, novos arranjos produtivos locais etc.) e, assim, submetem-se de bom grado à autoexploração extensiva de sua força de trabalho, em favor da con- cessão de uma formidável quantidade de mais-valia absoluta ao capital, “plasmada” na forma aparente de serviços e mercadorias, isenta de custos sociais e trabalhistas e, na maioria das vezes, remunerada de forma desconexa da jornada normal de trabalho.22 Esse quadro consolida a inserção do Brasil na divisão internacional do traba- lho como um ofertador de mão de obra barata, desqualificada e precária. E se esses trabalhadores, consequentemente, não obtêm renda suficiente para o seu sustento e o de suas famílias, podem recorrer aos programas sociais focalizados, cujos gas- tos os reintegram ao consumo, tanto em benefício de atender aos limites mínimos de sua reprodução humana, em nome de uma justiça social compensatória, quanto em benefício da “circularidade econômica” e da especulação financeira do capital sobre o fundo público, em proveito de sua expansão, sob o argumento do cresci- mento econômico e do desenvolvimento (aparentemente) nacional. Eis, pois, as razões pelas quais o governo “neodesenvolvimentista” elege a Assistência Social como política pública central na proteção social e aos programas de transferência de renda aos mais pobres como principais estratégias dessa prote- ção. Assim, o modelo brasileiro de Seguridade Social devolve à esfera privada os direitos comuns de propriedade sobre o bem-estar que foram conquistados pela luta do trabalho, atendendo às requisições da acumulação espoliativa do capital, no seu novo estágio de imperialismo, como denuncia Harvey (2004) e, por outro lado, a Assistência Social brasileira, assentada na transferência de renda e financiada por um fundo público oriundo, prioritária e maciçamente, das contribuições sobre a 22. Esse processo de “subproletarização” do trabalho é, a nosso ver, expressão da acumulação espolia- tiva do capital em sua nova ofensiva imperialista. Apropriando-nos das reflexões de Harvey (2004), afirma- mos que essa força de trabalho foi deliberada e intencionalmente convertida em “ativos desvalorizados”, exatamente para ser apropriada em função da lucratividade e da expansão do capital. 102 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 86-105, jan./mar. 2013 renda do próprio trabalho, se incumbe de assumir o ônus da promoção da justiça social proposta pelo governo “neodesenvolvimentista”, arcando com os custos de manutenção da superpopulação relativa.23 Sob o novo receituário social-liberalista, a Assistência Social assume o papel de convencer homens e mulheres, saudáveis, aptos e ávidos por trabalho que, por um lado, o trabalho estável e protegido é um privilégio inatingível e, por outro, que, não integrando eles a classe dos produtores de riqueza, devem, então, eximirem-se do conflito pela sua devida repartição. Para tanto, essa política social pública des- caracteriza seus usuários da condição de trabalhadores e os caracteriza, apenas, como extremamente pobres. Essa equalização da pobreza entre os próprios trabalhadores, salvaguardan- do a riqueza do conflito pela sua repartição, é, no reverso contraditório dos atuais avanços da Assistência Social brasileira, a principal funcionalidade que se impõe a essa política social, para que atenda às requisições da expansão capitalista. Recebido em 3/12/2012 ■ Aprovado em 10/12/2012 Referências bibliográficas ALVES, G. Trabalho e mundialização do capital: a nova degradação do trabalho na era da globalização. 2. ed. Londrina: Práxis, 1999. ANFIP. Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil. Análise da Seguridade Social em 2010. Brasília: Anfip, 2011. Disponível em: <www.anfip.org.br>. Acesso em: 25 jun. 2011. ANTUNES, R. Dimensões da precarização estrutural do trabalho. In: DRUCK, G.; THEBAUD- -MONY, A. A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. São Paulo: Boitempo, 2007. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Relatório de inflação, set. 2008. 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Abstract: We introduce the debate on the complex relationship between education as a public policy and the Social Service link to it, in particular, its integration into the public school at the current moment of crisis of the capital. It is an important and growing debate which attracts a lot of attention for its recent deepening and expansion of jobs in the area. Keywords: Education. Capitalist crisis. Public school. Social work. * Assistente social do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (UERJ) e doutora em Ser- viço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. E-mail: elizasimone@gmail.com. 107Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 Introdução A significativa presença de assistentes sociais e estudantes de Serviço Social no recente Encontro Nacional Serviço Social na Educação realizado pelo conjunto CFESS/Cress em Alagoas1 — com audiência em torno de mil presentes2 — demonstra o crescente interesse da profissão em torno deste tema e área de trabalho. Concursos recentes para assisten- tes sociais nos Ifets (Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia) e universidades públicas — para atuação, especialmente, na assistência estudantil — e prefeituras — para ações de acompanhamento das expressões da questão social nas escolas — também revelam a ampliação de vagas no campo educacional. Nesta mesma linha de raciocínio, destacamos a existência de projetos de lei que recomendam a presença de assistentes sociais e psicólogos no ensino básico, tal como o Projeto de Lei n. 60/2007, em tramitação na Câmara Federal. Ainda no âmbito legal, a Lei n. 12.101/2009 (Brasil, 2009) trata da obrigatoriedade das cha- madas instituições educacionais filantrópicas de disponibilizarem bolsas de estudos aos estudantes que se encontrarem em fragilidade socioeconômica (tornando, estes espaços, importantes empregadores de assistentes sociais), além da recentíssima Lei n. 12.677/2012 (Brasil, 2012), que dispõe sobre a criação de cargos efetivos para profissionais da educação junto ao MEC, dos quais 589 são para assistentes sociais. Partindo destes elementos, entendemos a necessidade de ampliarmos o debate sobre o trabalho de assistentes sociais no campo da educação, e é isso que nos propomos na presente reflexão. Para tanto, partiremos dos elementos da tota- lidade em que a educação contemporânea se inscreve, buscando atentamente suas particularidades. Neste percurso, discutiremos a educação como política pública na sociedade atual, a ampliação do acesso a ela, a fragilização de sua qualidade, suas interfaces com outras políticas públicas, seus dilemas e suas potencialidades. Não resta dúvida de que a educação é um assunto que desperta grandes e contraditórios interesses por parte do capital e dos trabalhadores. A recente mobi- lização de setores progressistas da sociedade brasileira3 em prolda garantia da 1. Em junho de 2012. 2. O evento também esteve disponível para acesso na internet, em tempo real, o que ampliou a audiência. 3. Estavam mobilizados em torno desta mobilização em prol da garantia dos 10% do PIB entidades como o CFESS, ABEPSS, Andes, Anel, Conlutas, Sepe. 108 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 aplicação dos 10% do PIB na educação e, sob um outro prisma, o fato de que o Plano Nacional de Educação, em debate no Congresso Nacional, propor a aplicação de somente 7% do PIB e a longo prazo (somente em 2020!) são expressões deste processo de interesses diversos.4 Na compreensão de tais tensões em torno de projetos educacionais distintos, precisamos apreender os movimentos contraditórios em que a educação se inse- re. Neste sentido, lembramos que o capital, em especial na contemporaneidade, não pode prescindir da educação por diversos fatores, dentre os quais destacamos: seu imenso potencial de otimização da produtividade e do lucro, sua capacidade de potencializar avanços tecnológicos, bem como suas possibilidades de formar nichos produtivos importantes para o capital e para a ordem vigente. Além disso, precisamos pensar a educação frente à mundialização da pobreza (Chesnais, 1996) por sua capacidade de preparar os mais pobres para uma vida produtiva subordi- nada e desprotegida, mas denominada ideologicamente empreendedora. Somado a este quadro, frente à crise atual do capitalismo — relacionada à superprodução, à queda dos padrões de consumo, à crescente desproteção social, ao endivida- mento de indivíduos, empresas e Estados e à financeirização da economia (Gon- çalves, 2008) — a educação recebe enfoque especial pelas potencialidades aqui já elencadas. O capital, diante da referida crise, lança expectativas de novo tipo à produção e à circulação de conhecimento — agora convertido em mercadoria vendável — e para as políticas educacionais. Tais políticas têm sido maximizadas em suas poten- cialidades, por parecerem conter respostas para este momento em que os horizontes da proteção social se estreitam, o desemprego cresce, o subemprego idem. Neste sentido, enquanto a previdência, a assistência social e a geração de postos de tra- balho protegidos, por exemplo, recebem duras críticas (a primeira é vista como deficitária, a segunda como favorecedora de uma postura de resistência ao trabalho e a terceira como cara e sobretaxada), a educação parece dotada somente de quali- dades, em especial no que tange à qualificação permanente de mão de obra para acesso ao emprego. Educar, portanto, parece ser um negócio lucrativo5 em vários sentidos. 4. Lembremos que hoje, cerca de 5% do PIB são aplicados na educação. 5. Não por acaso, o segmento educacional privado tem crescido significativamente. Como afirmam empresários do setor, em recente entrevista, a área de educação privada experimenta grande competitividade entre as empresas (D’Elboux, 2012). 109Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 Na sociedade contemporânea, a tecnologia tem assumido lugar de grande desta- que, mesmo nos países periféricos, nos quais sua presença ainda é frágil. Este quadro não é uma novidade, visto que ao longo do século XX bens produzidos pela ciência e pela tecnologia se aproximaram do cotidiano, através do consumo (Hobsbawm, 1995). O que vemos como um elemento novo é o fato de que os avanços tecnológicos foram apropriados pelo capital de maneira a criar a falsa imagem de que estamos em uma sociedade futurista, de aparência imaterial, estruturada sobre o conhecimento6 e não mais sobre o trabalho humano. Tal situação se materializa na maximização do valor dos processos educativos e da aprendizagem permanente. Segundo esta concepção — não coincidentemente reforçada por organismos de financiamento internacional, como o Banco Mundial — o conhecimento é um bem que está disponível a todos, a despeito da condição de classe. Este novo bem econômico seria o principal recurso da economia globalizada, ou seja, seria um “novo capital”, passível de ser conquistado por empenho de ordem individual. Esta é, no entanto, uma interpretação falaciosa da realidade, que revela a aparência de um fenômeno e não o fenômeno em si (Kosik, 1995), visto que não estamos diante de uma efetiva valorização do conhecimento em sentido amplo e da educação em particular. Lembremos de Harvey (2003), que nos fala da socieda- de pós-moderna que valoriza o efêmero, o imediato, o fugaz, o que certamente está em oposição à ideia do conhecimento aprofundado, que exige tempo e dedicação para ser alcançado. A educação e o conhecimento como bens, portanto, são fala- ciosos e não estão acessíveis a todos. Muito ao contrário disso. O acesso e a quali- dade da educação permanecem atravessados pela condição de classe do educando: quanto mais precárias suas condições de vida e trabalho, mais fragilizadas suas possibilidades de aprendizagem. Desta forma, a ideia da centralidade do conhecimento, afinada que está com o ideário pós-moderno (Harvey, 2003), não se materializa no sentido da valorização do homem e da mulher em suas potencialidades e possibilidades de aprendizagem, concretizando-se, de fato, na sua utilização como instrumento de agregação de valor ao capital e de atendimento às demandas do mercado. Frigotto (1995, p. 56) critica esta perspectiva, classificando-a como um “rejuvenescimento da teoria do 6. Frigotto (1996, p. 35) analisa e critica o pensamento de Toffler que nos apresenta a tese de que o proletariado seria substituído pelo cognatariado, os homens do conhecimento, num mundo em que o trabalho, como categoria ontológica, supostamente, teria sido substituído por outras mais centrais, como a cultura, o pensamento religioso, o lazer. 110 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 capital humano”.7 Este tipo de concepção, além de rejuvenescer a Teoria do Capi- tal Humano, desqualifica debates realizados desde os anos de 1960 (inicialmente por Bourdieu),8 que refletem sobre a intensa influência da origem sociocultural (e, acrescentamos, de classe), na escola. O debate em torno do conhecimento como um bem econômico, portanto, retrocede em termos de pensamento educacional. Em tempos de aparente centralidade do tema educação e de ampliação do acesso à escolarização9 é importante que possamos problematizar tais ideias, bem como o quadro em que está sendo desenhada a Educação brasileira hoje. É isso que pretendemos no próximo item. 1. Desenvolvimento: mais vagas e mais permanência frente à fragilização da escola pública Partimos do princípio de que a educação é uma relação social e, como tal, em uma sociedade capitalista, precisa ser entendida como resultado de tensões de classe e dos elementos que lhes são decorrentes. Portanto, precisa ser compreendi- da como processo influenciado intensamente pela organização da base produtiva, pelas formas de gestão da mão de obra, pela organização dos trabalhadores e do capital, tendo o Estado como mediador de tais relações e executor de políticas so- ciais. A educação, portanto, influencia e é influenciada pela produção e reprodução das relações sociais, sendo objetivada nas vidas humanas. Assim, educar supõe o desenvolvimento do indivíduo como subjetividade e como ser coletivo. Educar é, ainda, um ato político, materializado em uma política pública. Observemos um dado recente desta política para, a seguir, nos reportarmos, brevemente, a alguns elementos de sua história. A ampliação do acesso às vagas no 7. Segundo Frigotto (1993, p. 38), a chamada Teoria do Capital Humano teve sua formulação siste- mática no final da década de 1950, momento em que “as relações intercapitalistas demandavam e produziam este tipo de formulação”. Esta compreensão da realidade postulava o acesso à educaçãocomo instrumen- to de equalização social. Neste sentido, o crescimento do processo de escolarização conduziria à mobili- dade social. 8. Ver em Bourdieu (1992). 9. O Ministério da Educação e Ciência (MEC), através do Censo Escolar/2010, registra 51,5 milhões de estudantes matriculados no ensino básico, nas redes pública e privada do Brasil (Brasil, 2010). Esta mes- ma fonte revela que temos 97% das crianças matriculadas no ensino fundamental. 111Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 ensino fundamental (em especial público) deve ser entendida em sua complexida- de frente a uma sociedade industrializada, na qual o acesso ao conhecimento le- trado se populariza e onde o mundo do trabalho solicita cada vez mais uma mão de obra detentora de conhecimentos — simples, para a grande maioria (Kuenzer, 2001) — focados na produção, que precisam ser requalificados permanentemente (Antunes, 1999). A referida ampliação do acesso à escola — divorciada que está da qualidade do ensino — não tem sido acompanhada da infraestrutura necessária para a orga- nização de uma educação nacional de qualidade. Neste sentido, somada à tal am- pliação, destacamos como fenômeno contemporâneo da educação no Brasil a va- lorização de ações de voluntariado,10 com a consequente desprofissionalização dos educadores. Destacamos, ainda, as aprendizagens profissionais dissociadas de fundamentação científica, realizadas fora dos ambientes formais, com vista ao in- gresso e reingresso no mundo do trabalho (ainda que não necessariamente, o formal), bem como aquelas de qualidade fragilíssima como o chamado “ensino a distância”. Também são expressões deste quadro programas como o Prouni,11 que isentam instituições de ensino superior de impostos e podem transferir recursos públicos para iniciativa privada, bem como a compra de serviços educacionais públicos, que poderiam ser obtidos através de instituições públicas, mas que são adquiridos atra- vés de ONGs e Oscips (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público). A expansão deste quadro gera um modelo de formação precarizada, simplifi- cada, produtivista, que desqualifica o público e valoriza o capital privado, trazendo para a instituição escolar novos desafios,12 especialmente no ensino fundamental 10. O Programa Amigos da Escola, da Fundação Roberto Marinho, é um exemplo emblemático deste processo. 11. O programa Universidade para Todos está em vigência desde 2004 e oferece bolsas de estudo par- ciais ou integrais em instituições privadas de ensino superior, para estudantes que comprovem renda familiar per capita entre um salário mínimo e meio a três salários mínimos. Vale ressaltar que compreendemos que estudantes fragilizados economicamente, para os quais o acesso à universidade pública parece impossível, desejem viabilizar esta expectativa através do Prouni. O que questionamos é o elitismo do acesso ao ensino superior público. Por que não democratizar o acesso a ele? Ao que tudo indica, parece estar sendo mais rentável para o governo federal e sua base de sustentação a manutenção do Prouni. 12. Manacorda (2000) reconstrói a história da escola moderna, relacionado-a à Revolução Industrial. Ele lembra que no seu interior a questão social sempre esteve presente e que, em alguns momentos,a instituição assumiu uma face assistencial. Este quadro, portanto, não é novo. Manacorda (2000) afirma que a escola passa, lentamente, com a solidificação da fábrica e da vida urbana, a assumir outros papéis, além da divul- gação e troca de conhecimento: ela passa a se desenvolver no sentido da complementaridade da vida domés- 112 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 — nosso foco de análise. Falamos da absorção e permanência precarizada de uma população extremamente pauperizada, privada de bens e de acesso a serviços públi- cos de qualidade, que reside, trabalha, se alimenta, tem acesso à cultura e ao lazer de forma precária, que passa a experimentar o espaço escolar mais cotidianamente. Em outras palavras, estamos diante de uma expansão do acesso e permanência na escola, sem que esta instituição tenha sido avivada no sentido do financiamento para se mostrar interessante, acolhedora, bela, capaz de dialogar com a cultura desta população ingressante, dotada de infraestrutura material e humana para o seu fazer diário. Falamos, portanto, que a expansão das vagas e a ampliação da permanência acontecem em um momento de intensa desqualificação social e política da escola pública, bem como diante da fragilidade dos recursos que a sustentam.13 Rememorando nossa história recente, lembramos que o direito à educação aparece na legislação educacional somente na Constituição de 1946, ainda assim condicionado à oferta de vagas existentes (Saviani, 2000). Portanto, o acesso à escola e o crescimento de sua visibilidade social é um fenômeno novo em nosso país. Neste sentido, lembramos de Cunha (1995), que afirma que a industrialização brasileira acontece independentemente da escolarização, ou seja, sem que a massa trabalhadora precisasse de uma formação específica para ser incluída no mundo fabril, aprendendo seus ofícios nos espaços de trabalho. Ressaltamos, ainda, que apesar de avanços no campo dos direitos sociais após a década de 1930, nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação data somente de 1961 e a seguinte e atual, de 1996. Da mesma forma, nosso Plano Nacional de Educação foi enviado ao Congresso em 2010 e é ainda objeto de questionamentos por parte da sociedade civil mobilizada em torno do direito à educação pública, visto que apresenta pro- posta de educação aquém das necessidades do nosso povo e divergente do perfil de um país que alcançou o status de sexta economia do mundo. Também lembramos que a expansão da escolarização de longas faixas popu- lacionais, especialmente os mais pobres, é um fenômeno novo14 na experiência tica, realizando atividades até mesmo de assistência. Quando isso começa a ocorrer, na segunda metade do século XVIII, já é possível perceber que a instrução das massas estava colocada como problema a ser enfren- tando, em especial, pelo Estado Moderno. 13. Ver o debate em torno da destinação dos 10% do PIB aqui já realizado. 14. Cunha (1995) destaca que a economia brasileira tem prescindido, historicamente, da ampliação da educação da força de trabalho. Para esse autor, a industrialização e (incluímos) o contato com as novas tec- nologias têm sido feito fora da escola e sem a melhoria da qualidade educacional. 113Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 brasileira. Sobre o tema, acrescentamos que a recente permanência dos mais frágeis economicamente nas instituições educacionais é resultado da associação dos pro- cessos de ampliação da ação do Estado na proposição de políticas sociais, do aprofundamento da industrialização, urbanização e da contratualização no Brasil, bem como de programas sociais15 — os primeiros datados da década de 1990 — que condicionam escolarização e assistência social. Portanto, trata-se de fenômeno novíssimo e em construção que precisa ser acompanhado e problematizado, a par- tir do pressuposto de que a ampliação do acesso não é garantia de formação de qualidade. Fundamentados em Savianni (2000) afirmamos que a educação e a escola pública brasileira do início do século XXI estão diante de uma base legal recém- -construída e tímida — nossa atual LDB datada de 1996 —, minimalista e subfinan- ciada, de uma rede pública, em sua maioria sucateada, de profissionais da educação mal remunerados e que ampliam suas rendas através de múltiplos empregos (e suas consequências), frente a uma realidade complexa, portadora de novas demandas para este campo: lidar com as consequências do aprofundamento da questão social em suas diversas expressões,refletidas no espaço educativo, incorporar “novos profis- sionais” em seu cotidiano — inclusive assistentes sociais — sem perder de vista sua função precípua: a formação humana. Assim, frente a uma significativa ampliação do acesso e permanência no ensino fundamental, notadamente o público, e do cam- po de trabalho do assistente social na educação, destacamos a necessidade de a ca- tegoria aprofundar conhecimentos a respeito das questões que recortam esta política como um todo e a instituição escolar, em particular. 1.1 O Serviço Social, a escola e a promessa do combate à pobreza O Serviço Social é uma profissão requisitada socialmente a partir do desen- volvimento da divisão social e técnica do trabalho, no capitalismo em sua fase monopolista (Netto, 2001). Somos alguns dos trabalhadores chamados a atuar sobre as sequelas criadas pela apropriação desigual dos bens gerados pela humanidade e 15. Macedo e Brito (2004) fazem a análise crítica dos programas sociais que aliam auxílio financeiro e permanência na escola, por sua ação focalizada, pelas dificuldades de efetivo acompanhamento e pela tímida transferência de renda. 114 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 sobre as consequências da exploração da força de trabalho, fatos que permitem que grandes faixas populacionais fiquem à margem dos processos civilizatórios (Mésza- ros apud Frigotto, 1995). As políticas públicas são nosso campo principal de inter- venção profissional: “O assistente social é o agente de implementação da política pública”, [...] “nossa base de sustentação funcional ocupacional” (Montaño, 2003, p. 244). Nosso fazer profissional se faz, portanto, sobre as consequências de um modelo de acumulação explorador e degradante das relações sociais, da força de trabalho e da natureza, que se concretiza na desigualdade em suas diferentes faces: pobreza, adoecimento, violência, abandono, desinformação, alienação, sofrimento mental, entre tantas outras.16 Na contemporaneidade, inúmeros têm sido os desafios do nosso cotidiano profissional: atuar em políticas públicas precarizadas e subfinanciadas, muitas vezes com vínculos de trabalho precários e com baixa remuneração, atendendo a usuários que experimentam em seu cotidiano as consequências dramáticas das desigualdades sociais que marcam nosso país e que possuem impactos objetivos e subjetivos in- tensos em suas vidas. No reconhecimento deste quadro, porém, não cabe o fatalismo. Cientes de nossa relativa autonomia, tal como os demais trabalhadores que buscam “remar contra a maré” da ordem social perversa e desigual estabelecida, apoiados em nossa competência teórica, técnica, ética e política, caminhamos em busca de re- sistência, da defesa aos direitos humanos e da valorização de uma cultura apoiada na cidadania (Yazbek, 2009). Para tanto, estamos fundamentados em uma formação que dialoga fortemente com o marxismo em sua crítica à sociedade capitalista, em nosso Projeto Ético-Político, no Código de Ética e na Lei de Regulamentação da Profissão. A dimensão educativa de nossa prática nos espaços onde atuamos é visível e fundamental, visto que nossa ação vem sempre acompanhada da palavra, da informação, da troca, da escuta apurada (que deve ser crítica e solidária), do debate, situações em que percepções de mundo são difundidas, analisadas, ques- tionadas. Esta importante característica política e educativa de nossa intervenção profissional se faz presente, como não poderia deixar de ser, também no campo da educação. 16. É bom frisar, porém, que tais condições de trabalho não são específicas do Serviço Social, mas de todos aqueles profissionais que atuam nas ações que configuram a chamada proteção social, em seu amplo escopo. 115Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 Nesta área,17 o assistente social tem estado mais recentemente atuando no âmbito da garantia do acesso, da permanência e da valorização da gestão demo- crática (Almeida, 2003), bem como na execução de programas sociais incorpo- rados ou associados às instituições educacionais (como o Programa Bolsa Família,18 as cotas nas universidades, a assistência estudantil voltada para diver- sos segmentos de alunos, as ações formativas no contraturno escolar, a dinami- zação dos debates sobre temas transversais trabalhados na escola, por exemplo). Com base em nossa experiência profissional acrescentamos que temos também importante papel na construção de análises mais totalizantes em torno das expres- sões da questão social nos espaços educacionais, de modo a problematizar a percepção dos atores que ali atuam e formam sobre a família contemporânea, sobre as condições de aprendizado dos estudantes, suas condições de vida e tra- balho, sua percepção sobre a escola e suas condições de permanência (e identifi- cação) neste ambiente. A ampliação deste espaço de trabalho é nova, mas não a inserção da profissão no campo da educação. Já na década de 1950, com o crescimento da intervenção estatal sobre a questão social e do aparato público brasileiro, o espaço educacional ganhava destaque no cotidiano de ação do assistente social, em especial no Sistema “S” e nas creches, denominadas “parques infantis” (então vinculadas à LBA), assim como em Centros de Educação Popular. Nas décadas de 1980 e 1990, a atuação de profissionais de Serviço Social no campo educacional vai se tornando mais expres- siva (Almeida, 2003), em especial em ações no contraturno escolar, nos Centros 17. Os Encontros Estaduais Serviço Social e Educação promovidos pelo Cress/RJ, através de sua Co- missão de Educação e pela FSS/PEPSS/UERJ, com o apoio do Prof. Dr. Ney Luiz Teixeira de Almeida, têm recebido cada vez mais profissionais interessados em debater o tema. Da mesma forma, o Cress/RJ tem or- ganizado, anualmente, curso que debate a profissão no âmbito educacional, com uma média de 50 alunos/ ano, entre estudantes e profissionais. Também tem crescido o quantitativo de TCCs, dissertações e teses sobre o tema. Lembramos, ainda, que o CFESS, a partir de pesquisa junto aos assistentes sociais atuantes na área em 2011, produziu um documento denominado “Subsídios para o debate sobre o Serviço Social na Educação”. Disponível: <www.cfess.org.br>. 18. O PBF atende a 13 milhões de famílias (MDS, 2012). O valor médio pago mensalmente pelo Pro- grama está na faixa de noventa e seis reais mensais, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e os valores transferidos variam de R$ 32,00 a R$ 306,00. Tal programa tem permitido a permanência de um número significativo de crianças e adolescentes que antes oscilavam entre a matrícula e o abandono escolar, ao longo do ano letivo, segundo pudemos verificar em nossa experiência profissional. Esta permanência tem evidenciado no cotidiano da escola expressões da “questão social” que anteriormente eram menos visíveis, o que é um aspecto positivo, mas precisamos sair da verificação e passar à ação. 116 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 Integrados de Educação Pública, os CIEPs19 do Rio de Janeiro, bem como em ini- ciativas como as do então Bolsa Escola — programa de transferência de renda que antecedeu ao Bolsa Família. O que vemos como novidade, na atual conjuntura, é a intensificação da pre- sença da profissão no interior da escola, aliada à multiplicidade de expressões da questão social neste ambiente. A esta reflexão acrescentamos que as mudanças no perfil da família contemporânea e a complexificação das demandas para os proces- sos formativos, hoje, são desafios novos neste campo. No primeiro aspecto, desta- camos que as famílias brasileiras têm se transformado — menor fecundidade, maiores jornadas de trabalho implicando a necessidade de diversificação da rede de cuidados com os filhos(o que coloca para escolas e creches mais desafios), novos arranjos familiares (Nascimento, 2006), o que traz para o interior dos espaços educativos temas antes tratados privadamente (separações, adoecimentos, violência doméstica, relação entre pais e filhos, debates sobre gênero, problemas financeiros, por exemplo). Quanto à complexificação dos processos educativos, entendemos que uma sociedade urbana, industrializada, marcada pela tecnologia e por instru- mentos de comunicação sofisticados, desigual e diversa, solicita às instituições formadoras tarefas de novo tipo. Portanto, novas práticas pedagógicas e atores formadores são incorporados a este processo. Este quadro se inscreve em uma totalidade maior, contraditória, mutável, histórica, tensionada, que tem se expressado em um projeto de educação simplifi- cado e aligeirado para os trabalhadores, marcado pela dualidade estrutural (Frigot- to, 1993), que deve ser compreendido a partir da condição que ocupamos — como país — na divisão internacional do trabalho, visto que esta só nos solicita uma apropriação periférica do conhecimento (Bianchetti, 2001). Em outras palavras, o espaço ocupado pelo país na dinâmica internacional não demanda um projeto edu- cacional que priorize a formação de cientistas, analistas e pensadores críticos, bastando que formemos majoritariamente (ainda que não exclusivamente) uma massa de executores de atividades produtivas simples. Nesta mesma totalidade observamos, ainda, a elaboração de uma LDB que Savianni (2000) identificou como “minimalista”, articulada a um modelo de Esta- 19. Os CIEPs (Centos Integrados de Educação Pública) foram os carros-chefes do governo de Leonel Brizola no estado do Rio de Janeiro. Trata-se de experiência de escola integral, elogiada pela infraestrutura material e criticada por não chegar às crianças que viviam em situações econômicas complexas que lhes impediam a frequência à escola, em especial as trabalhadoras. 117Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 do frágil na execução e financiamento das políticas educacionais,20 que organiza uma formação empobrecida para os trabalhadores, determinada pelas necessidades do mercado e cimentada sobre a ideia das competências.21 A política educacional hoje, como afirmamos anteriormente, tem voltadas para si muitos holofotes. A esta é conferido um papel salvacionista, de destaque nos palanques dos políticos, como se todas as respostas aos problemas nacionais fossem decorrentes da ampliação do acesso à escola. Neste sentido, a ideia de que a simples elevação dos patamares educacionais — independentemente da infraestrutura para tanto e das condições de vida da população — será responsável por uma revolução em todos os campos tem grande apelo e visibilidade. Este tipo de discurso simplifica uma realidade que não pode ser compreendida nem transformada, exclusivamente, a partir do acesso à escola. Portanto, não basta a associação linear e simplista entre “escolarização- -qualificação-emprego-superação da pobreza”, uma vez que sabemos que ações focalizadas, emergenciais, descontinuadas, não redistributivas, ou seja, políticas sociais fragilíssimas e desarticuladas das econômicas, têm papel de marketing social (Campos, 2003), mas pouca ou nenhuma efetividade. A promessa integradora des- te tipo de proposta de formação (Gentili, 2001), portanto, não se mantém de pé diante de um olhar mais atento. Nesta mesma linha de raciocínio, apesar da pouca efetividade deste projeto no sentido de melhoria da educação, esta política tem sido chamada para responder a uma “velha-nova” tarefa: o combate à pobreza.22 Este convite, porém, não é no- vidade. A associação entre as ações da atenção à pobreza, com outras do campo educacional/formativo, estão presentes a partir da Modernidade, conforme salienta Manacorda (2000), ou seja, a associação entre a educação, a pobreza e a formação 20. Um exemplo concreto deste fato nos chama a atenção. O Brasil ficou em 53º lugar em avaliação internacional de alunos, em um total de 65 países analisados. Neste estudo foram verificados avanços relati- vos à matrícula escolar, mas esta ampliação do acesso não foi acompanhada da qualidade do serviço presta- do. Este estudo revelou, ainda, que as escolas públicas estaduais, inclusive as do Rio de Janeiro, um dos mais ricos estados da União, figuram entre as piores em termos qualitativos (O Globo, 7 dez. 2010). 21. Atributo cognitivo e atitudinal, solicitado ao trabalhador. Ser competente significa estar identificado e sentir parte da empresa e de sua filosofia, o que inclui formação geral, capacidade para gerenciar a si mes- mo e ao outro, capacidade para o trabalho em grupo, produtividade (Frigotto, 1996). Bianchetti (2001, p. 20), por sua vez, ressalta que a noção de competência, cuja fonte é o discurso do capital, é dotada de extrema “plasticidade”, exigindo que o trabalhador seja moldado segundo as necessidades da estrutura produtiva e da organização das empresas. 22. Aqui entendida como uma das manifestações da questão social e como fenômeno multidimensional (Silva, 2010), traduzido nas condições objetivas e subjetivas da vida. 118 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 para o trabalho marca o capitalismo desde sua origem. Diferentes análises, dentre as quais destacamos as de Manfredi (2003), Cunha (1995) e Arantes e Faleiros (1995), demonstram que o Brasil, desde os tempos da Colônia, tem utilizado o aprendizado (em especial aquele destinado a formar trabalhadores) como estratégia de controle social das populações pobres. Campos (2003), por sua vez, destaca que os temas relativos à pobreza assumem visibilidade na sociedade brasileira ao longo do século XX. Neste sentido, lembra- mos Vargas, também denominado de “Pai dos Pobres”, bem como lembramos do debate sobre as Reformas de Base do governo Jango, da crítica à ditadura militar em seu aprofundamento das desigualdades, da retomada da democracia e da busca por direitos nos anos de 1980. Mais recentemente, lembramos o governo Lula da Silva e suas promessas quanto à reforma agrária e à melhoria das políticas de saú- de e educação — que, se concretizadas, teriam grande impacto sobre a pobreza — falácias que, efetivamente, não se cumpriram. Entendemos que a abordagem da pobreza associada aos processos educacio- nais ficará evidenciada tanto mais a escola pública se torne um local para o qual os mais fragilizados econômica e socialmente acorrem. Em outras palavras, quanto mais necessidade de conformar a força de trabalho para a lógica produtiva vigente, maior destaque receberá a educação. A escola, portanto, como uma instituição classista, de grande visibilidade social, palco dos conflitos de classe e espaço em que a chamada questão social, em suas múltiplas faces, se manifesta, não atuará no combate à desigualdade, mas sim na atenção à pobreza e conformação dos pobres. A abordagem da pobreza e de outras expressões da questão social pela via da escola ganhará maior ênfase após a década de 1990,23 com as políticas de ampliação quantitativa dos anos de escolarização e de estímulo à permanência no espaço es- colar sugeridas por organismos internacionais e assumidas por governos (Torres, 2001) — como o então nascente Bolsa Escola. A assistencialização (Mota, 2008) da política educacional e dos espaços escolares vai, então, se tornando evidente. Uma das expressões atuais deste quadro — talvez, a mais importante por sua ex- tensão e visibilidade — é o Programa Bolsa Família (PBF) que tem como condi- 23. Em 1990, em Jontiem, na Tailândia, organismos internacionais e governos estiveram reunidos para estabelecer metas educacionais para o século XXI. A ampliação dos níveis de escolaridade, a priorização de populações analfabetas e mulheres nas ações de escolarizaçãoforam algumas destas metas (Shiroma et al., 2000). Na sequência, os Congressos da Salamanca e a Conferência de Nova Délhi determinam padrões de ação no campo educacional, especialmente no que se refere à atenção aos pobres. 119Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 cionalidades a matrícula e a frequência escolar. Melhor explicitando, a família usuária deve garantir a matrícula e a presença escolar mínima — em 85% — para filhos entre 6 e 15 anos e de 75% para dependentes entre 16 e 17 anos, a fim de efetivar permanência no programa e acesso à transferência de renda. A frequência escolar é compreendida no PBF (e em programas complementa- res)24 como instrumento de enfrentamento da pobreza, pelas melhores condições de acompanhamento e controle das famílias que esta prática, supostamente, pro- porciona; daí sua valorização. No entanto, assim como no passado, as condições operacionais e de infraestrutura em que a escola está inserida permanecem precárias e, mais do que isso, o contexto social e econômico em que a formação deste usuário acontece — visto que esta não se restringe ao espaço escolar — não é problematizada ou analisada pelo Programa. Assim, a qualidade da educação e a infraestrutura de base para o aprendizado naquele ambiente — condições físicas do equipamento, tempo dedicado à formação, apoios disponíveis ao processo cognitivo dos educandos, remuneração dos profes- sores, suas possibilidades de qualificação e condições de trabalho —, bem como as condições de sobrevivência do grupo familiar destas crianças e adolescentes, como partes essenciais do processo de ensino-aprendizagem, não são consideradas. Em outras palavras, as condições de vida — habitacionais, alimentares, de acesso aos demais serviços públicos, de lazer, de saúde, comunitárias, entre outras — do es- tudante e de sua família — seu acesso ao conhecimento, tempo dedicado à forma- ção, acessibilidade à infraestrutura de apoio ao aprendizado25 e como este conjun- to influencia suas possibilidades de desenvolvimento — não são objeto de acompanhamento (ou mesmo de análise) pelo Programa. Assim, o que está em foco no PBF são as famílias e seus indivíduos, como elementos isolados e sob avaliação, e não as condições sociais em que estes sobrevivem. Desta forma, as dificuldades frente às regras e à aprendizagem na escola são vistas como um problema a ser trabalhado (e sob a responsabilidade) da família e, poucas vezes, a instituição es- colar e as condições de sobrevivência deste grupo familiar são questionadas. Este quadro nos faz pensar na condução frágil, individualizante e focalista deste progra- 24. Complementarmente ao PBF, a prefeitura do Rio de Janeiro desenvolve o Programa Família Cario- ca, que também transfere renda e tem como condicionalidade, além da frequência escolar, a participação dos pais e responsáveis em reuniões na escola. Em termos estaduais, temos no Rio de Janeiro o Programa renda Melhor. 25. Falamos de bibliotecas, cinemas, museus, por exemplo. 120 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 ma e, contraditoriamente, na subutilização e desqualificação das possibilidades educacionais, de articulação e melhoria de políticas públicas contidas nele. Esta população hoje ingressa e permanece na escola, instituição pública do- tada de grande visibilidade e relevância social, especialmente se considerarmos a realidade de um país com imensa concentração de renda, poder e informação, do- tado de altos níveis de analfabetismo — segundo do Censo de 2011 são 13,9 milhões de analfabetos com quinze anos ou mais, ou seja, quase 10% da população —, agora possuidor de melhores níveis de acesso e permanência na escola.26 Este é um grande desafio para as políticas sociais. Entendemos que programas como o PBF revelam os contornos limitados da abordagem da questão social e das expressões do pauperismo no ambiente escolar, mas este tipo de ação não é dispensável.27 Muito ao contrário disso, precisa ser aperfeiçoado. Este programa permite, de fato, que crianças e adolescentes de famí- lias empobrecidas melhorem suas condições de permanência na escola e suas possibilidades de acesso a bens fundamentais. No entanto, isso não é suficiente e os profissionais de Serviço Social precisam destacar em suas ações que, somente a permanência (da qual não devemos, jamais, abrir mão) não garante o desenvolvi- mento das potencialidades dos estudantes e a melhoria da escola. É preciso ir além, mas sempre a partir da articulação com outras políticas sociais. 1.2 A escola assoberbada de tarefas Diante da precariedade de outras políticas (e não há como negar que, em muitas localidades, somente a escola é a manifestação concreta do poder público), a instituição escolar tem assumido o papel, quase messiânico, de trazer soluções para necessidades diversas, deixando em lugar secundário sua função de prover conhecimentos científicos, históricos, da linguagem, matemáticos, do campo cul- tural etc. Ainda nos anos de 1980, autores como Buffa, Arroyo e Nosella (1987) 26. Ainda que os níveis de acesso à educação infantil permaneçam frágeis, segundo reconhece o próprio MEC. Sobre o tema, ver: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Pradime/cader_tex_1.pdf>. 27. Entendemos que um projeto de desenvolvimento nacional, em um país dotado de tão significativas desigualdades, deverá contemplar ações no campo da transferência de renda. Portanto, políticas como o PBF não devem ser, segundo nossa compreensão, dispensadas, mas aperfeiçoadas no sentido de sua universaliza- ção, melhoria dos recursos transferidos, da aproximação com os usuários e do controle social. 121Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 fizeram análise crítica a este respeito. Em reflexão atualizada, datada de 2001, Arroyo recoloca este mesmo debate, revelando sua importância ao afirmar que a escola tem se tornado um lugar de improvisação e emergencialismos, onde as pos- sibilidades de aprendizagem efetiva estão fragilizadas. Segundo estes autores, ao dar respostas a inúmeras demandas (e acrescen- tamos, sem que esta instituição receba suporte para tanto), a escola acaba con- vertida em um modelo precário de ensino, produzindo “quase alfabetizados”28 e improvisando respostas para as diversas expressões da questão social. Seu papel reflexivo e socializador do conhecimento produzido, assim como seu suporte para leitura de realidade, ficam secundarizados e esmaecidos, frente à necessi- dade de receber crianças e adolescentes e de prepará-los para a sociabilidade atual. Mais do que formar, a escola passa a informar valores e atitudes para esta nova ordem. Neste sentido, lembramos a criação de uma nova semântica em torno da formação, conforme reflexão de Frigotto (2001). Segundo esta, novos conceitos afinados à ordem atual são pensados: o estudante passa a perseguir competências específicas, muitas vezes limitadas a aspectos atitudinais, em detrimento do acesso ao conhecimento amplo, capaz de localizá-lo como sujei- to frente ao mundo. A educação como relação social fica limitada a formar fa- voravelmente (e precariamente) para a ordem social vigente e a escola, como instituição, experimenta um acúmulo de tarefas. Este chamamento à escola “que soluciona todos os problemas”, não por acaso, coincide com o aprofundamento das políticas neoliberais na década de 1990, na ascensão e na materialização deste tipo de pensamento, quando ocorre o aprofundamento da funcionalidade da educação ao mercado e a intensificação da abordagem moralizante do fenômeno pobreza (Yazbek, 1993). A política edu- cacional terá representada, em seu interior, a necessidade de formar para a rees- truturação produtiva, para o trabalho flexível e precário, para a lógica produtivis- ta e individualistae para o alívio das tensões de classe (Gentili, 1996), ainda que diante da resistência dos trabalhadores da educação e de setores da sociedade a este processo.29 28. O número de analfabetos funcionais no Brasil é alarmante. Segundo a PNAD (2009), 25% da po- pulação com mais de 15 anos experimenta esta condição. 29. Neste campo, queremos lembrar a ação do Sepe/RJ (Sindicato Estadual dos Profissionais da Edu- cação) e da Apeoesp/SP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), em especial na década de 1990. 122 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 Neste mesmo contexto é importante lembrar as recomendações do Banco Mundial30 quanto à pobreza nas chamadas economias periféricas (Banco Mundial, 2001). Elas falam do acesso dos países periféricos a uma educação rápida, profis- sionalizante, voltada para o mercado e para os vínculos informais. Não podemos, porém, conferir a estes organismos internacionais um papel maniqueísta — de algoz solitário dos países periféricos —, uma vez, que de fato, suas recomendações sociais e econômicas somente se efetivam com o suporte da burguesia nacional e de sua representatividade nos governos. Estes organismos estimulam, ainda, a abordagem da pobreza, a partir da me- lhoria dos índices educacionais. Neste sentido, compreende-se que a educação é um instrumento de ação importante no chamado “alívio da pobreza”. Este tipo de ação está embasado na percepção de que o pobre é alguém privado de capacidades materiais e intelectuais para gerir adequadamente sua vida. Sob esta lógica os fun- damentos da desigualdade não são questionados, visto que o foco fica no “alívio da pobreza”, no combate a sua expressão absoluta e na criação de estratégias para torná-la menos agressiva e visível. Neste sentido, através da educação formal e informal, os pobres devem ser orientados a uma conduta mais proativa, adequada e empreendedora diante da vida.31 Nesta mesma linha de compreensão, os pobres passam a ser vistos como recur- so potencial e abundante (Altmann, 2002) — no sentido produtivista do termo. Em outras palavras, os pobres passam a ser entendidos como um recurso de grande po- tencial econômico a ser explorado, o que implicará uma abordagem diferenciada deles. Mais do que um problema evidente e temível, mais do que um risco à “esquer- dização” das relações sociais (Ammann, 1987), os pobres são redescobertos como recursos humanos e possibilidades produtivas. Suas capacidades para o empreende- dorismo, geração de renda e para o colaboracionismo acrítico do mundo do trabalho serão valorizadas. Haverá, portanto, uma fetichização do fenômeno da pobreza. Para que este quadro de cooptação das subjetividades dos pobres seja mate- rializado, o acesso ao trabalho, ainda que precário e desprotegido, torna-se uma recomendação essencial, assim como a melhoria dos níveis educacionais e sua 30. O Banco Mundial conta hoje com mais de 160 países-membros, entre eles o Brasil. Sua estrutura decisória está baseada nos recursos financeiros disponibilizados ao órgão, o que define que cerca de 50% dos votos estejam nas mãos de 5% dos países. A estrutura do Banco Mundial reproduz, portanto, as relações econômicas e de poder existentes entre países centrais e periféricos. 31. Em pesquisa realizada junto à experiência da inserção produtiva dos Cras (Centro de Referência de Assistência Social), observamos a presença deste tipo de discurso (Lessa, 2011). 123Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 profissionalização. Haverá, assim, como já discutido aqui, uma revalorização da formação, especialmente aquela que se volta para os trabalhadores dos níveis mais elementares da produção, estimulando-os a uma requalificação permanente (Lessa, 2011). Neste sentido, o acesso ao trabalho e à escolarização — qualquer trabalho e qualquer escola — como forma de combate à pobreza recebe destaque. As políticas educacionais, neste contexto, serão aliadas fundamentais no projeto de tornar os pobres mais produtivos e integráveis à lógica do capital. Tais ações terão forte conteúdo moral, sendo reveladoras de uma nova pedagogia ins- taurada para a manutenção da ordem hegemônica do capital (Neves, 2005), forma- da por uma ética baseada no mercado, no consumo, na competitividade, na indivi- dualidade e na produtividade. A escola pública terá importante destaque neste processo, despontando como locus importante de abordagem dos pobres — prática bastante comum nos países centrais desde a década de 1960 (Connel, 1995) —, constituindo-se em uma das instituições principais no trato da questão. Para os mais pobres, as políticas educa- cionais serão organizadas de modo a tornar o aprendizado mais acessível, sem grandes exigências, palatável, produtivista, independentemente da qualidade e do aligeiramento da formação. Para tanto, o acesso e a permanência neste ambiente serão facilitados através de transferência de renda e de programas no contraturno, mas as escolas permane- cerão sucateadas, desqualificadas e esvaziadas na função pública de educar. Como afirma Frigotto (1993), um modelo de escola pouco atraente e de má qualidade está em consonância com a divisão internacional do trabalho na qual o Brasil se insere como um país periférico, que não produz ciência e tecnologia em larga escala. Educamos para o emprego simples e precário, para a vida alienada e conformada. Desta forma, este modelo de educação simplificadora, aligeirada e precarizada está em consonância com o quadro traçado. Neste contexto de maximização do papel da escola e da educação, mas não de sua qualidade, as instituições escolares são transformadas em espaços em que cabem quase todas as aprendizagens e onde o ato de educar pode ser realizado por todos. Neste sentido, voluntários podem oferecer aprendizagens esportivas, culturais, artísticas,32 religiosas e até de suporte às disciplinas, numa clara alusão ao fato de que 32. Outro exemplo notório deste processo é o Projeto Amigos da Escola da Fundação Roberto Marinho. Esta é uma iniciativa através da qual voluntários adentram o ambiente escolar oferecendo experiências di- versas a serem incorporadas à dinâmica daquele espaço. 124 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 educar é uma tarefa simples, não especializada, que pode ser realizada por qualquer um, em claro processo de “desprofissionalização” e desqualificação desta atividade. Nestas mesmas escolas, Organizações não Governamentais oferecem ativida- des no contraturno — como o Projeto Acelera Brasil da Fundação Ayrton Senna, executado em diversos municípios brasileiros, inclusive o Rio de Janeiro. O citado projeto tem como proposta adequar a relação idade-série nos anos iniciais, a partir de apostilas pré-formuladas. Em outras palavras, como o próprio nome revela, o projeto se propõe a acelerar a aprendizagem de estudantes com histórico de “difi- culdades” neste campo —dificuldades essas que devem ser compreendidas de forma ampla, podendo estar relacionadas às condições de vida, além de aspectos cognitivos e de saúde —, o que não nos parece estar ocorrendo. Entendemos tratar- -se de uma proposta de formação verticalizada pela ONG, focalizada no educando, a partir de um modelo único, que não percebe particularidades dos estudantes, viabilizada através da transferência de recursos públicos para o setor privado, o que nos inspira, no mínimo, preocupação. Este quadro torna ainda mais complexo o acesso da classe trabalhadora e, em seu interior, dos mais fragilizados economica- mente, que já experimentam condições de sobrevivência tão complexas e adversas à formação propedêutica, a despeito da ampliação de seu acesso à escola. Inúmeros, portanto, são os desafios para os profissionais da educação, dentre eles, osassistentes sociais. Neste sentido, é fundamental que possamos refletir sobre nosso trabalho, nesta política, sua inserção na sociedade contemporânea, e sobre a população usuária, suas condições de vida e participação política, reconhe- cendo possibilidades de resistência a este processo de fragilização da educação. Devemos reconhecer, assim, contraditoriamente, que educação é tensão e contra- dição, reposição da ordem e possibilidade de enfrentá-la. Sua materialização está em permanente disputa na sociedade. 2. Considerações finais A relação entre o Serviço Social, a política educacional e a escola pública precisa ser compreendida em suas determinações de ordem econômica, social e política, considerando suas potencialidades e limitações no contexto do capitalismo neste novo milênio, que a despeito de seus avanços tecnológicos e de substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, para otimização dos processos de acumulação 125Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 de capital, ainda precisa de uma educação que prepare homens e mulheres para seus processos de produção e reprodução social. Na realidade contemporânea, portanto, educar é uma tarefa central para o capitalismo, visto que este solicita uma formação propedêutica para uma minoria e um aprendizado simplificado e voltado para o mercado para as grandes massas populacionais (Kuenzer, 2002). Como resistência a este processo, é importante reforçar o quão essencial é a instituição escolar e o quão vital esta pode ser na construção de um projeto de uma nação soberana, democrática, que organiza seus pilares econômicos na valorização do conhecimento, da ciência e na busca do combate à desigualdade. No entanto, educar é um processo amplo e complexo, que extrapola os muros escolares; por isso a importância da criação de retaguardas e de outras políticas sociais e serviços no entorno da política educacional. Entendemos, portanto, que a estruturação de retaguardas institucionais e de redes de serviços públicos de qualidade para a abordagem dos problemas que se manifestam na educação e na escola é urgente. Responsabilizar e denunciar go- vernos por sua inadequada gestão, valorizar a luta dos seus trabalhadores e a participação das famílias e da sociedade no interior dos espaços educacionais e nos Conselhos de Direitos são caminhos neste sentido. Estamos falando, portan- to, em sentido amplo, das lutas por seu adequado financiamento e controle social e da articulação com outras políticas públicas. Neste mesmo sentido, no cotidia- no de nossa prática, falamos da importância de sermos profissionais de conduta democrática e olhar indagador/pesquisador, que fugimos do senso comum que naturaliza a desinformação do usuário e a frágil qualidade da escola pública, capazes de dialogar com a população que atendemos, entendendo-a como resul- tado de um processo longo de destituição, que apesar de tudo sobrevive, resiste e luta por dias melhores. As dificuldades no sentido da organização de uma política educacional e de uma escola de qualidade e comprometida com uma educação emancipadora são muitas, mas isso não quer dizer que não possamos pensar a educação segundo os fundamentos do projeto ético-político que orienta nossa profissão: a justiça, o di- reito, a igualdade, a não discriminação, o respeito à pluralidade, o diálogo intelec- tual com outras categorias. Pelo contrário. É sobre este quadro contraditório, con- flituoso, é sobre este fio da navalha que construímos nossa ação profissional, sendo também este o espaço em que a educação se constrói. Como afirma Saviani (1995, p. 87), a desigualdade pode ser convertida em igualdade através da educação, mas 126 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 106-130, jan./mar. 2013 não “em termos isolados, mas articulada com as demais modalidades que configu- ram a prática social global”. Recebido em 20/7/2012 ■ Aprovado em 10/12/2012 Referências bibliográficas ALMEIDA, Ney Luiz Teixeira de. Serviço Social e política educacional: um breve balanço dos avanços e desafios desta relação, 2003. Disponível em: <www.cress-mg.org.br/textos/>. Acesso em: 1º nov. 2004. ALTMANN, Helena. Influências do Banco Mundial no projeto educacional brasileiro. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 28, n. 1, jan./jun. 2002. AMMANN, Safira Bezerra. Ideologia do desenvolvimento de comunidade. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1987. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do tra- balho. São Paulo: Boitempo, 1999. ARANTES, Ester Maria de Magalhães; FALEIROS, Eva Terezinha. Subsídios para uma história da assistência privada dirigida à infância no Brasil. In: PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene. A arte de governar crianças no Brasil. Rio de Janeiro: Amais, 1995. ARROYO. Miguel G. Trabalho. Educação e teoria pedagógica. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). 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Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 Espaço sócio-ocupacional do assistente social: seu arcabouço jurídico-político The social worker’s socio-occupational place: its juridical and political framework Leila Baumgratz Delgado* Resumo: Frente aos desafios presentes no mundo do trabalho, que atingem também a formação e o exercício profissionaldo assistente social, o artigo tem por escopo reunir e comentar as salvaguardas ju- rídico-políticas disponíveis para o enfrentamento de tais questões. Pretende-se, ainda, avaliar se este aparato jurídico-político, construído historicamente pelos assistentes sociais, é suficiente para melhor qua- lificar seu fazer profissional e contrapor-se aos níveis de desemprego e precariedade do trabalho, possibilitando a ampliação do espaço ocupacional e condições de trabalho e remuneração adequadas. Palavras-chave: Assistentes sociais. Estatuto legal-normativo. Espaço sócio-ocupacional. Abstract: Since the current challenges in the world of contemporary work also come to the social worker’s background and professional practice, the article aims at gathering and commenting the ju- ridical and political provision available to handle such issues. We also intend to assess whether the juridical and political apparatus historically constructed by the social workers is enough to best quali- fy their professional practice and to face the unemployment rates and job instability, allowing an en- largement of the socio-occupational place, as well as adequate work conditions and pay. Keywords: Social workers. Normative and legal act. Socio-occupational place. * Assistente social, advogada, doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ), professora associado I da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG, Brasil. E-mail: leilayacoub@ yahoo.com.br. 132 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 Introdução Muito se tem escrito sobre o conjunto de reformas econômicas e ideopolíticas que varreu o mundo capitalista a partir de meados da década 1970. Suas causas, seu receituário, seus resultados e suas consequências ─ sobretudo sobre o mundo do trabalho, das políticas públicas e dos direitos ─ foram e continuam sendo objeto de estudos e pesquisas por parte de intelectuais de diversas vertentes e áreas do conhecimento, de padrão nacional e internacional, dispensando, deste modo, uma explanação mais circuns- tanciada acerca deste vasto e intrincado tema.1 Para atender aos fins deste artigo, basta assinalar que ditas transformações no padrão de acumulação e regulação social modificaram substancialmente não só o paradigma do processo e gestão do trabalho capitalista2 e o sistema estatal, mas, também, ao metamorfosear a produção e a reprodução da sociedade, atingem diretamente a divisão sociotécnica do trabalho, envolvendo modificações em todos os seus níveis [...] e incidem fortemente sobre as profissões, suas áreas de intervenção, seus su- portes de conhecimento e de implementação, suas funcionalidades etc. (Netto, 1996, p. 87-9) Por conseguinte, influenciam também as condições do exercício profissional do assistente social, alterando os requisitos e exigências da formação profissional, as demandas e o mercado de trabalho, os processos e as condições de trabalho profissionais (Iamamoto, apud CFESS/ABEPSS, 2009). 1. De acordo com Netto (1996), é no curso da década de 1970 — embora já evidenciadas na década anterior — que emergem as transformações societárias no âmbito estrutural e supraestrutural, que vão se consolidar nas décadas de 1980 e 1990, marcando significativamente uma nova configuração do mundo capitalista a partir da exaustão do modelo de regulação fordista-keynesiano. Para uma análise mais porme- norizada dessa processualidade, consultar também HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992; CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996; IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008; entre outros. 2. Entre tantas alterações podemos citar: redução do poder sindical, intensificação do trabalho, exigên- cias de multifuncionalidade, metas de produtividade, salários variáveis, novas doenças ocupacionais e, sobre- tudo, a extinção e precarização de postos de trabalho através da adoção de modalidades de contratação flexíveis, incidindo mais acirradamente sobre a força de trabalho feminina, sobre os jovens e sobre os imigrantes. 133Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 No que tange especificamente ao Brasil, a reforma neoliberal levada a cabo a partir do primeiro governo de FHC (1995-1998) teve repercussões profundas no ensino superior, manifestadas principalmente pela sua crescente privatização, mer- cantilização e simplificação (instalação de cursos sequenciais, ensino a distância e ciclos básicos) que, além de comprometer a indissociabilidade entre ensino, pes- quisa e extensão, objetivam uma formação profissional aligeirada para atender apenas às exigências do mercado. Os cursos de Serviço Social não escaparam à regra. Em 2001, tínhamos em funcionamento no país 85 cursos de Serviço Social. De acordo com informações oficiais colhidas no site e-mec, do Ministério da Educação, no governo Lula da Silva (2003-2010), os mesmos tiveram um crescimento de 297,3%, alcançando, em abril de 2011, 377 cursos em funcionamento; 96% dos quais ─ sem levar em con- ta sua qualidade ─, felizmente ainda eram presenciais, e entre eles apenas 14,8% eram gratuitos.3 Conforme a mesma fonte, passados apenas 10 meses, temos atualmente no Brasil 541 cursos de Serviço Social autorizados para funcionamen- to, dos quais 62% são presenciais e somente 9% são públicos. Nas três últimas décadas a profissão passou por um processo de redimensio- namento e renovação no âmbito de sua interpretação teórico-metodológica e ético- -política, e melhor, qualificou-se, principalmente através da consolidação da pós- -graduação stricto sensu e da produção científica acumulada a partir da década de 1980, adequando-se às exigências da contemporaneidade. Na esfera sócio-ocupacional, a Constituição Cidadã de 1988, ao estabelecer o direito às políticas sociais, em especial à seguridade social, muito contribuiu para a expansão do mercado de trabalho dos assistentes sociais em função do incremen- to à rede socioassistencial, através da criação de importantes programas de atendi- mento a diversos segmentos da população. O espaço ocupacional ampliou-se também com atividades voltadas para implantação, orientação e representação em Conselhos de Políticas Sociais e de Direitos, organização e mobilização popular, elaboração de planos de assistência social, acompanhamento e avaliação de pro- gramas e projetos, ampliação e interiorização dos cursos de Serviço Social; além de assessoria e consultoria e requisições no campo da pesquisa. 3. Dados agrupados e cedidos por Débora Spotorno, mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social (FSS) da Universidade Federal de Juiz de Fora. Disponível em: <emec.mec.gov.br>. Acesso em: 27 fev. 2012. 134 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 Por outro lado, com os altos índices de desemprego e a desregulamentação e informalização das relações de trabalho ─ produtos da restauração do capital ─ e com a adoção do neoliberalismo trazendo consigo o retraimento das funções do Estado e redução dos gastos sociais, contribuindo para a crescente desresponsabi- lização deste no tocante às políticas públicas, e o retrocesso dos direitos sociais (Raichelis, apud CFESS/Abepss, 2009), agudizam-se as sequelas da questão social. A conjugação desses processos nas esferas produtiva e estatal leva ao crescimento e à diversificação do espaço ocupacional, assim como novas requisições e deman- das para a profissão de Serviço Social (Iamamoto, apud CFESS/Abepss, 2009). Entretanto, em que pese uma efetiva ampliação do mercado de trabalho para a categoria nas últimas décadas, estudos recentes têm revelado as intercorrênciasdesastrosas das transformações societárias no âmbito do Serviço Social neste novo milênio, apontando para o crescimento do número de profissionais e das demandas, mas, ao mesmo tempo, para a perda ou precarização de postos de trabalho. Frente às desconstruções e aos sabidos desafios presentes no mundo do traba- lho contemporâneo ─ resultantes do capitalismo financeiro global e do desenvolvi- mento tecnológico e informacional ─, como processos de precarização, desregula- mentação e flexibilização das relações e condições de trabalho; altos níveis de desemprego; redução e mercantilização das políticas públicas; regressão dos direitos sociais e radicalização da questão social, atingindo o conjunto dos trabalhadores em geral e a formação e o exercício profissional do assistente social em particular, o presente artigo4 tem por escopo reunir e comentar as salvaguardas jurídico-políticas disponíveis para o enfrentamento de tais questões no âmbito do Serviço Social, emanadas principalmente de Resoluções do conjunto CFESS/CRESS. Com sua publicação, pretende-se não só que ele tenha uma função pedagógi- ca para a formação acadêmica e continuada dos assistentes sociais. Vislumbra-se também avaliar criticamente se este aparato jurídico-político ─ construído histori- camente pelos assistentes sociais ─ tendo em vista seu estatuto de trabalhador as- 4. A elaboração deste artigo foi motivada principalmente pelo roteiro de estudos e reflexões apontados na disciplina de Laboratório em Áreas de Intervenção do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (FSS/UFJF), que tratou da configuração do mercado de trabalho do assistente social no Brasil. Nosso agradecimento a todas as discentes da disciplina, especialmente a Andréa Machado, Fernanda Rodrigues e Mônica Carnevali pelas valiosas contribuições. Nosso agradecimento estende-se também a Nanci Simões, Agente Fiscal do Cress 6ª R-JF, pela permanente interlocução e apoio técnico, e a profa. Rosangela Batistoni, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da FSS/UFJF, pela leitura crítica e sugestiva. 135Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 salariado, é hoje suficiente para melhor qualificar suas atribuições e competências exclusivas e contrapor-se aos níveis de desemprego e precariedade do trabalho profissional reinantes. Fruto de uma vasta pesquisa documental acerca das legislações que criam e resguardam os diversos espaços ocupacionais do assistente social, em nosso estudo destacamos alguns artigos da Lei de Regulamentação da Profissão (Lei n. 8.662/1993) e do Código de Ética Profissional (Resolução CFESS n. 273/1993), além de Leis ordinárias, Resoluções e Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional que dizem respeito, exclusivamente, ao tema em pauta, qual seja, a ampliação do espaço sócio-ocupacional e dos direitos dos assistentes sociais.5 1. Os pilares normativos do exercício profissional Os dois grandes pilares normativos que regulamentam a profissão do assis- tente social no Brasil são a Lei n. 8.662 e o Código de Ética Profissional; a primei- ra, uma revisão da Lei n. 3.252/1957, datada de 7 de junho de 1993, é considerada como a principal legislação que regulamenta, disciplina e legitima a profissão do assistente social. Primeiramente, no seu artigo 2º, estabelece que a profissão será exercida por aqueles que possuam o diploma de graduação em Serviço Social, oficialmente re- conhecido e devidamente registrado no órgão competente. Os artigos 4º e 5º também merecem destaque referindo-se, respectivamente, às competências e às atribuições privativas do assistente social. As competências referem-se a qualificações profis- sionais de âmbito geral, reconhecidas tanto para os assistentes sociais como para outros profissionais de áreas afins. As atribuições privativas, por sua vez, são com- petências exclusivas do assistente social, decorrentes, especificamente, de sua qualificação profissional (Simões, 2007). A rigor, todas as 13 atribuições privativas definidas no artigo 5º da citada Lei preservam o espaço ocupacional: 1) Coordenar, elaborar, executar, supervisionar e avaliar estudos, pesquisas, planos, programas e projetos na área de Serviço Social; 2) Planejar, organizar e administrar 5. Em função do limite de páginas, esta elaboração não abarcou as salvaguardas construídas no âmbi- to da formação profissional, a exemplo das Diretrizes Curriculares ─ as quais poderão vir a ser objeto de outro artigo. 136 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 programas e projetos em unidades de Serviço Social; 3) Prestar assessoria e consul- toria a órgãos da administração pública direta e indireta, empresas privadas e outras entidades, em matéria de Serviço Social; 4) Realizar vistorias, perícias técnicas, laudos periciais, informações e pareceres sobre a matéria de Serviço Social; 5) Assumir, no magistério de Serviço Social, tanto em nível de graduação como pós- -graduação, disciplinas e funções que exijam conhecimentos próprios e adquiridos em cursos de formação regular; 6) Treinar, avaliar e supervisionar diretamente es- tagiários de Serviço Social; 7) Dirigir e coordenar unidades de ensino e cursos de Serviço Social, de graduação e pós-graduação; 8) Dirigir e coordenar associações, núcleos, centros de estudos e de pesquisa em Serviço Social; 9) Elaborar provas, presidir e compor bancas de exames e comissões julgadoras de concursos ou outras formas de seleção para assistentes sociais, ou onde sejam aferidos conhecimentos inerentes ao Serviço Social; 10) Coordenar seminários, encontros, congressos e eventos assemelhados, sobre assuntos de Serviço Social; 11) Fiscalizar o exercício profissional por meio dos conselhos federal e regionais; 12) Dirigir serviços técnicos de Serviço Social, em entidades públicas ou privadas; 13) Ocupar cargos e funções de direção e fiscalização da gestão financeira em órgãos e entidades representativas da categoria profissional. O segundo (mas não menos importante) pilar que sustenta nossa profissão é o Código de Ética do Assistente Social, instituído pela Resolução CFESS n. 273/1993. Em suas páginas iniciais, contempla onze princípios fundamentais a serem incorpo- rados não apenas no conteúdo da formação profissional, mas também no exercício da atividade profissional, “fundamentados na definição mais abrangente de compro- misso com os usuários, com base na liberdade, democracia, cidadania, justiça e igualdade social” (Simões, 2007, p. 475), derivando daí o compromisso com a au- tonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais, e a construção de uma nova ordem societária sem dominação e/ou exploração de classe, etnia e gênero. O Título II afirma os direitos, responsabilidades e deveres do assistente social, e o Título III, capítulo II, regula as relações com as instituições empregadoras e outras. Para os fins deste artigo é importante citar a alínea “e” do artigo 2º e a alínea “a” do artigo 7º como direitos do assistente social, respectivamente: “desagravo público por ofensa que atinja a sua honra profissional” e “dispor de condições de trabalho condignas seja em entidade pública ou privada, de forma a garantir a qualida- de do exercício profissional”. Em relação ao primeiro, a Resolução CFESS n. 443/2003 regulamenta a alínea “e” do artigo 2º e institui procedimentos para a realização do 137Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 desagravo público, a cargo dos Conselhos Regionais, na defesa da atuação profissio- nal e do reconhecimento e legitimação da profissão.6 No que tange à alínea “a” do artigo 7º, a Resolução CFESS n. 493/2006 dispõe sobre as condições éticas e técnicas do exercício profissional do assistentesocial, garantindo condições de trabalho e atendimento condignas, preservando o sigilo profissional e a qualidade dos serviços prestados aos usuários. Tendo em vista a exigência de que o trabalho profissional do assistente social deva ser executado de forma qualificada, a citada Resolução institui condições e parâmetros normativos claros e objetivos, estabelecendo como condição obrigatória para a realização de qualquer atendimento ao usuário do Serviço Social a existência de espaço físico suficiente e adequado para abordagens individuais e coletivas, com as seguintes características físicas: iluminação adequada ao trabalho diurno e noturno; ventila- ção adequada a atendimentos breves ou demorados (e com portas fechadas); recur- sos que garantam a privacidade do usuário naquilo que for revelado durante a in- tervenção profissional, e um local apropriado para a guarda do material técnico de caráter sigiloso. 2. “Lei das 30 horas”: a mais recente conquista Após longa espera e incansável mobilização, uma grande conquista foi ob- tida para toda a categoria profissional dos assistentes sociais com a aprovação da Lei n. 12.317, de 26 de agosto de 2010, que altera o artigo 5° da Lei de Regula- mentação da Profissão (Lei n. 8.662/1993), para instituir a duração do trabalho do assistente social em 30 horas semanais. No artigo 2° enfatiza: “profissionais com contrato de trabalho em vigor na data de publicação desta Lei é garantida a ade- quação da jornada de trabalho, vedada a redução do salário”. 6. Todo assistente social, devidamente inscrito no Cress, que no exercício da profissão for ofendido ou atingido em sua honra profissional ou que deixar de ser respeitado em seus direitos e prerrogativas previstas no artigo 2º do Código de Ética Profissional, por pessoa física ou jurídica, poderá representar ao Cress de sua jurisdição o desagravo público. Feita a representação, o Conselho deverá criar uma comissão para averiguar a denúncia e, uma vez comprovada a ofensa profissional, o autor deverá se retratar pelos mesmos meios com que tornou pública a ofensa. A retratação pública do ofensor poderá ensejar o arquivamento da representação, desde que se mostre suficiente no sentido de restabelecer a imagem da profissão; caso contrário, o desagravo consistirá em um ato público do Conselho frente à sociedade e ao poder público. Se a ofensa resultar em de- missão, o assistente social poderá requerer ao Ministério Público a sua reintegração (cf. Simões, 2007, p. 479). 138 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 A motivação para a elaboração e aprovação da citada Lei está pautada no des- gaste físico e mental a que é submetido o profissional de Serviço Social no trato com as múltiplas expressões da questão social, resultantes do modo de produção capita- lista.7 Assim, pretendeu-se reduzir o tempo de trabalho que o assistente social fica exposto a situações de desgaste e estresse, possibilitando-lhe melhores condições de trabalho com a ampliação de seu tempo livre. Ademais, ao reduzir a jornada de trabalho para 30 horas semanais, reduz-se também o tempo de sobretrabalho a que os assistentes sociais (e os demais trabalhadores assalariados e contratados preca- riamente) estão submetidos numa sociedade produtora de mercadorias. Entretanto, embora esse não tenha sido o espírito da Lei, é preciso atentar (e acompanhar) para duas possíveis consequências, não necessariamente excludentes, advindas da fixação da jornada de trabalho do assistente social em 30 horas sema- nais: por um lado, amplia-se a perspectiva de criação de mais postos de trabalho para a categoria tendo em vista a necessidade de suprir as requisições dos empre- gadores em tempo integral. Mas, por outro, a redução da jornada de trabalho em um momento de vigor de vínculos precários e baixos salários poderá resultar no avanço do duplo ou pluriemprego — variável que, associada a outras, mensura a precariedade do mercado de trabalho, e que em nossa categoria já atinge cerca de 20% dos assistentes sociais em atividade.8 De acordo com informações colhidas no “Observatório das 30 horas”9 podemos verificar que após ampla campanha de divulgação são inúmeros os organismos pú- 7. Em um dos muitos documentos elaborados em defesa das 30 horas, o CFESS afirma: “A redução da jornada de trabalho para os/as assistentes sociais se justifica ainda, pois são submetidos a longas e exte- nuantes jornadas e realizam atividades que provocam estado de profundo estresse, diante da convivência, minuto a minuto, com o limiar entre vida e morte, dor e tristeza, choro e lágrima. Ao lado do médico e do enfermeiro, o/a assistente social apresenta um dos maiores índices de estresse, fadiga mental, desgaste físico ou psicológico”. Disponível em: <www.cfess.org.br>. Acesso em: 31 jan. 2012. 8. DELGADO, L. B. Relatório Final do Projeto de Pesquisa O mercado de trabalho dos assistentes sociais em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Juiz de Fora, UFJF/FSS, 2009. Tendo como área de abrangên- cia os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, a referida pesquisa teve por objetivo traçar um perfil do mercado e condições de trabalho para os jovens assistentes sociais graduados a partir do primeiro governo Lula da Silva (2003/2006). Em face dos resultados alcançados foi possível estimar a proporção de jovens assistentes sociais desempregados, apontar as principais causas do desemprego e o modo como vem se operando a precarização do trabalho no interior da categoria, além de desnudar questões fundamentais que possam municiar a reflexão e as deliberações e iniciativas dos organismos de formação e de representação e organização dos assistentes sociais. 9. Instrumento eletrônico criado pelo CFESS para acompanhar a implantação da jornada de 30 horas semanais. Disponível em: <www.cfess.org.br>. Acesso em: 23 fev. 2012. 139Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 blicos, privados, ONGs e entidades sem fins lucrativos em todas as partes do país que já se adequaram à Lei. Entretanto, como era de se esperar numa sociedade de classes, muitos empregadores ainda resistem a aplicá-la ou a aplicam de modo equívoco.10 3. Aparato jurídico-político concernente ao espaço sócio-ocupacional Além da legislação de caráter genérico e abrangente, que acabamos de citar, e que legitima, qualifica e garante o exercício da profissão, a conduta ética e a duração máxima do trabalho para todos os assistentes sociais, há também aquelas que visam atingir segmentos profissionais exclusivos de acordo com a inserção ocupacional. Ten- do em vista atingir os objetivos deste artigo, selecionamos a partir daqui textos legais específicos que visam tão somente ampliar e assegurar o espaço sócio-ocupacional do assistente social e a qualidade de atendimento aos usuários. Para fins didáticos, a citação e o comentário das legislações no âmbito do Serviço Social ou fora dele foram agrupados de acordo com as grandes áreas de intervenção, e por ordem cronológica. 3.1 Na área sociojurídica Denominada Lei de Execução Penal (LEP), a Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984, tem por suposto a atuação de no mínimo um assistente social em cada esta- belecimento penal. Vejamos: nos artigos 5º e 6º estabelece que os condenados, conforme os seus antecedentes e traços de personalidade, serão classificados para orientar a individualização da ação penal. Tal classificação será feita por uma Co- missão Técnica que deverá também elaborar o programa individualizado da pena 10. Decisão emblemática e digna de nota é a Orientação Normativa n. 1, de 1º de fevereiro de 2011, da Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (SRH-MPOG), que indica que nos órgãos da administração direta, autárquica e fundacional os assistentes sociais que optarem pela carga horária de 30 horas semanais deverãosofrer redução salarial proporcional em seus vencimentos ─ o que, já de partida, afronta o princípio constitucional da irredutibilidade dos salários. Mais impertinente e descabida é a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn n. 4.468) impetrada pela Confederação Nacional da Saúde ─ entidade que representa as empresas prestadoras de serviços de saúde ─ que contesta no STF a constitucionalidade da Lei n. 12.317/2010. Contra tais investidas, e competentemente, o conjunto CFESS/ Cress vem orientando e/ou representando a categoria política, administrativa e/ou judicialmente. 140 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 privativa de liberdade do condenado ou preso provisório. O artigo 7º estabelece que: “A Comissão Técnica de Qualificação, existente em cada estabelecimento, será presidida pelo diretor e composta, no mínimo, por 2 (dois) chefes de serviço, 1 (um) psiquiatra, 1 (um) psicólogo e 1 (um) assistente social”. No artigo 23 define as atribuições do assistente social e, por último, a prescrição cabal que legitima a presença do assistente social nos estabelecimentos penais consta do artigo 75, in- ciso I: “O ocupante do cargo de diretor de estabelecimento deverá satisfazer os seguintes requisitos: ser portador de diploma de nível superior de Direito, ou Psi- cologia ou Ciências Sociais, ou Pedagogia ou Serviço Social”. 3.2 Na área da saúde No âmbito da saúde, podemos inicialmente mencionar a Resolução n. 218/1997 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Considerando que a VIII Con- ferência Nacional de Saúde compreende a relação saúde/doença como um proces- so decorrente das condições de vida e trabalho, e a saúde como “direito de todos e dever do Estado”, bem como acesso igualitário de todos aos serviços de promo- ção e recuperação da saúde, integralidade da atenção, e a importância da ação interdisciplinar na esfera da saúde, o CNS reconhece como profissionais de saúde de nível superior: assistentes sociais, biólogos, profissionais de educação física, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, médicos veterinários, nutricionistas, odontólogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Em 29 de março de 1999, fazendo uso da delegação de competência prevista na Resolução n. 218/1997 do CNS,11 a Resolução CFESS n. 383/1999, em seu ar- tigo 1º, caracteriza o assistente social como profissional de saúde. Cuidadosa e criteriosamente, o artigo 2º adverte para o fato de que o assistente social exerce suas atividades no largo espectro das políticas sociais, podendo atuar em outras áreas, não sendo, portanto, um profissional exclusivo da área de saúde. As citadas resoluções, ao reconhecerem os assistentes sociais (bem como os demais) como profissionais de saúde, ampliam suas oportunidades de contratação e rendimentos, uma vez que assim poderão ter dois vínculos públicos de emprego, 11. O item II da citada Resolução delega aos Conselhos de classe das categorias de assistentes sociais, biólogos e médicos veterinários a caracterização como profissional de saúde. 141Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 desde que pelo menos um deles seja junto à área de saúde.12 Entretanto, é necessário salientar que tal legislação, ao mesmo tempo que amplia as oportunidades de em- prego, também pode contribuir para o aumento da precarização do trabalho destes profissionais (duplo ou pluriemprego, jornadas excessivas, vínculos precários, baixos salários, adoecimento etc.). No campo da saúde mental, a Portaria n. 251 do Ministério da Saúde, de 31 de janeiro de 2002, que estabelece diretrizes e normas para a assistência hospitalar em psiquiatria na rede do SUS, e dá outras providências, estabelece que os hospitais psiquiátricos especializados13 deverão contar com pelo menos um assistente social para cada 60 pacientes, com 20 horas de assistência semanal, distribuídas no míni- mo em 4 dias. Ainda especificamente na área de saúde, na Resolução RDC/Anvisa n. 154, de 15 de junho de 2004, que estabelece o Regulamento Técnico para o funciona- mento dos serviços de diálise, consta que “cada serviço de diálise deve ter a ele vinculado, no mínimo [...] 1 (um) assistente social para, junto aos demais profis- sionais da equipe multiprofissional, viabilizar a realização de ações voltadas aos pacientes renais crônicos”; tornando-se uma exigência legal a contratação de assis- tentes sociais nestes equipamentos de saúde. 3.3 Na área da assistência Com a implantação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), muito se ampliou o campo de atuação para nossa categoria, passando a assistência a ser atualmente um dos setores que mais requisita os assistentes sociais. Isso porque o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), através da Resolução n. 269, de 13 de dezembro de 2006, aprovou a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Suas (NOB-RH/Suas) que estabelece as equipes de referência para atuação no âmbito da proteção social básica e da proteção especial de média e alta complexidade. 12. Conforme estabelecido na Constituição Federal de 1988, artigo 37, inciso XVI: “é vedada a acumu- lação remunerada de cargos públicos, exceto quando houver compatibilidade de horários: a) a de dois cargos de professor; b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas”. 13. Conforme a citada Portaria, considera-se como hospital psiquiátrico aquele cuja maioria de leitos se destine ao tratamento especializado de clientela psiquiátrica em regime de internação. 142 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 De acordo com a NOB/RH-Suas (p. 19), entende-se por equipes de referência aquelas constituídas por servidores efetivos14 responsáveis pela organização e oferta de serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e especial, levando-se em consideração o número de famílias e indivíduos referen- ciados, o tipo de atendimento e as aquisições que devem ser garantidas aos usuários. Assim, em municípios com até 2.500 famílias referenciadas (Pequeno Porte I) o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) deverá contar com dois técnicos de nível superior, sendo um assistente social. Em municípios com até 3.500 famílias referenciadas (Pequeno Porte II), deverá haver três técnicos de nível superior, sen- do dois assistentes sociais. E em municípios de médio e grande porte, metrópoles e Distrito Federal, a cada 5.000 famílias referenciadas, em cada Cras deverá haver quatro técnicos de nível superior, sendo dois assistentes sociais. No que se refere à proteção social de média complexidade, no âmbito dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), a NOB-RH/ SUAS estabelece que em municípios em gestão inicial e básica, com capacidade de atendimento de 50 pessoas/indivíduos, deverá haver um assistente social; e em municípios em gestão plena e estados com serviços regionais, com capacidade de atendimento de 80 pessoas/indivíduos, deverá haver dois assistentes sociais. Com relação à assistência de alta complexidade, a NOB assim define: a) atendimento em pequenos grupos (abrigo institucional, casa-lar e casa de passagem): um assistente social para atendimento a, no máximo, 20 usuários acolhidos; b) Família Acolhe- dora: um assistente social para acompanhamento de até 15 famílias acolhedoras e atendimento a até 15 famílias de origem dos usuários atendidos nesta modalidade; c) República: um assistente social para atendimento a, no máximo, 20 usuários em até dois equipamentos e d) Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs): um assistente social para atendimento direto. 3.4 A tabela Referencial de Honorários do Serviço Social Em face das transformações operadasna organização e na estrutura da pro- dução e do Estado capitalista, repercutindo nas relações de trabalho em geral e nas 14. Embora a legislação se refira a servidores efetivos, o que se verifica é que muitas contratações feitas por estados e municípios são precárias: seja através de terceirização, contratos temporários, ONGs, prestação de serviços etc. 143Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 formas de contratação em particular, verificou-se no âmbito da profissão de Servi- ço Social (assim como em outras) um percentual significativo de assistentes sociais exercendo suas competências e atribuições privativas sem a cobertura de qualquer vínculo empregatício, por meio da prestação de serviços, o que comumente se designa como trabalho autônomo. Pesquisa nacional organizada pelo CFESS com dados coletados em 2004 já revelava que cerca de 6% dos assistentes sociais no Brasil são autônomos; no nordeste representam 12,2% da categoria.15 Na região sudeste, tomados apenas os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, 9,5% dos profissionais prestam serviços como autônomos.16 Na verdade, o que se observa é que boa parte do trabalho assalariado vem sendo substituído pelo trabalho autôno- mo ou prestação de serviços como forma de escamotear a relação de emprego. Conforme Raichelis (2009, p. 383), intensificam-se os processos de subcontratação de serviços individuais dos assis- tentes sociais por parte de empresas de serviços ou de assessoria na prestação de serviços aos governos, acenando para o exercício profissional privado (autônomo), temporário, por projeto, por tarefa, em função das novas formas de gestão das políticas sociais. Para salvaguardar mínimas condições de remuneração para este percentual crescente de assistentes sociais precarizados, em 5 de setembro de 2001 o CFESS, através da Resolução n. 418/2001, instituiu a Tabela Referencial de Honorários do Serviço Social (TRHSS). Em última análise, criou o valor mínimo da hora técnica para aqueles desprovidos de qualquer vínculo empregatício, estatutário ou de na- tureza assemelhada. O artigo 7º da citada Resolução prescreve também que os gastos decorrentes da prestação de serviços, tais como alimentação, transporte, hospedagem, certidões e cópias, correrão por conta do contratante. Posteriormente, objetivando valorizar a qualificação acadêmica do assistente social, a Resolução CFESS n. 467/2005 deu nova redação à Resolução n. 418/2001, estabelecendo gradações no valor da hora técnica de acordo com o nível de formação 15. CFESS (Org.). Assistentes sociais no Brasil: elementos para o estudo do perfil profissional. Brasília: Virtual/CFESS, 2005. 16. DELGADO, L. B. O mercado de trabalho dos assistentes sociais em Minas Gerais e no Rio de Janeiro (Relatório Final). Juiz de Fora: UFJF/FSS, 2009. 144 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 pós-graduada do assistente social. Os valores da hora técnica que serão referência até agosto de 2012 são os seguintes: graduados: R$ 87,26; especialistas: R$ 97,99; mestres: 123,51; doutores: R$ 139,62.17 4. A ação fiscalizadora dos conselhos Conforme expusemos até aqui, podemos constatar que ao longo de seu per- curso e consolidação como profissão, especialmente a partir da última década do século passado, foram criados vários instrumentos legais que garantem e ampliam o espaço sócio-ocupacional e as condições de trabalho e remuneração dos assisten- tes sociais, seja na esfera da organização política da categoria, seja na esfera da própria sociedade, como reconhecimento do valor de uso da profissão. No período compreendido entre os anos de 1981 e 1984, o então denomina- do conjunto CFAS/Cras (Conselho Federal de Assistentes Sociais e Conselhos Regionais de Assistentes Sociais) criou as Comissões de Orientação e Fiscalização (Cofis), contratando assistentes sociais para o exercício da fiscalização do exercí- cio profissional. Dando continuidade a essa necessária e relevante tarefa, a Reso- lução CFESS n. 512/2007 reformulou as normas gerais para o exercício da fisca- lização profissional e atualizou a Política Nacional de Fiscalização, ficando a cargo dos Cress realizá-la. A Política Nacional de Fiscalização constituiu-se como o produto advindo da necessidade de dinamizar a organização de estratégias políticas e jurídicas unifica- das na perspectiva de defesa, valorização, publicização e fortalecimento da profis- são em face dos dilemas da atualidade, assegurando a defesa do espaço ocupacional e a qualidade de atendimento aos usuários do Serviço Social.18 Além da Política Nacional de Fiscalização, a ação fiscalizadora dos conselhos regionais de Serviço Social é norteada pelos seguintes instrumentos: Lei n. 8.662/1993, 17. É necessário salientar que não encontramos investigações que confirmem a obediência à TRHSS. 18. O artigo 5º, parágrafo 1º, da Resolução n. 512/2007, estabelece que “a ação fiscalizadora dos Cress deve ser definida em conformidade com a Política Nacional de Fiscalização do conjunto CFESS/Cress ar- ticulando-se as dimensões: afirmativa de princípios e compromissos conquistados; político-pedagógica; normativa e disciplinadora”. 145Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 Código de Ética do Assistente Social (1993), Diretrizes Curriculares da Abepss (1996) e resoluções e pareceres jurídicos do conjunto CFESS/Cress. Às Cofis, entre as várias atividades que lhe são atribuídas, cabe a fiscaliza- ção rotineira do exercício profissional dos assistentes sociais e de pessoas jurídi- cas que prestam serviços específicos de serviço social a terceiros, além da fisca- lização eventual para apurar denúncias e recomendar ao Conselho Pleno dos Cress as providências cabíveis. Quando a aplicação de medidas ou sanções extrapolar a competência dos Cress, estes deverão exigi-las formalmente do organismo competente. 5. Projetos de lei em tramitação Os projetos de lei representam o esforço e a mobilização do conjunto CFESS/ Cress, contando com a costumeira parceria da Abepss (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social) e da Enesso (Executiva Nacional de Estu- dantes de Serviço Social) na busca de maior legitimidade para a profissão de Ser- viço Social. Atualmente alguns projetos de lei estão em discussão na Câmara Fe- deral, podendo não só garantir melhores condições de trabalho e remuneração para a categoria, mas também reforçar a legitimidade e ampliar o espaço socioprofissio- nal do Serviço Social. São eles: 5.1 Projeto de Lei n. 5.278/2009, dispõe sobre piso salarial profissional De autoria da deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), propõe alteração na Lei n. 8.662/1993 definindo piso salarial para a categoria no valor de R$ 3.720,00 (três mil e setecentos e vinte reais) para uma jornada de 30 horas semanais e seis horas diárias, e reajuste anual com base na variação acumulada do Índice Nacio- nal de Preços ao Consumidor (INPC). O Projeto de Lei (PL) foi aprovado com ressalvas na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP) da Câmara Federal e atualmente aguarda Parecer na Comissão de Finanças e Tributação (CFT). 146 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 113, p. 131-151, jan./mar. 2013 5.2 Projeto de Lei n. 3.688/2000, PLC/2007, e Projetos de Lei ns. 6.478/2009 e 6.874/2010, que dispõem sobre a prestação de serviços de Psicologia e Serviço Social nas escolas públicas de educação básica A primeira iniciativa data de 2000 (PL n. 3.688), apresentado na Câmara Federal pelo deputado José Carlos Elias (PTB-ES), e aprovado em 2007. Transfor- mado em Projeto de Lei Complementar no Senado (PLC/2007), foi aprovado em novembro de 2010 e, de acordo com o regimento interno, uma vez que recebeu emendas no Senado, retorna à Câmara para nova aprovação.