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CAPÍTULO I - O QUE É A FILOSOFIA? PARA QUÊ SERVE? Conforme a tradição, o criador do termo ‘filosofia’ foi Pitágoras (...). O termo certamente foi cunhado por um espírito religioso, que pressupunha só ser possível aos deuses uma ‘sofia’ ("sabedoria"), ou seja, a posse certa e total do verdadeiro, enquanto reservava ao homem apenas uma tendência à sofia, uma continua aproximação do verdadeiro, um amor ao saber nunca totalmente saciado - de onde, justamente, o nome "filosofia", ou seja, "amor pela sabedoria. (G. Reale e D. Antiseri, História da Filosofia. v. 1) “Atualmente designamos por filosofia a ciência – se por ciência, entendermos o conhecimento por causas - de todas as coisas por suas causas mais elevadas, adquirida à luz natural da razão. Colocado diante de um fenômeno da natureza (uma trovoada com seus relâmpagos, ou um incêndio na mata, ou uma seca.), o homem experimenta surpresa e admiração. Espontaneamente ele procura saber a causa desse fenômeno surpreendente. Ele o faz primeiramente mediante a observação da natureza, e assim descobre as causas imediatas dos fenômenos que o cercam, dando início ao que chamamos as ciências experimentais: a física, a química, a biologia... Mas o desejo de saber não para aí... ainda espontaneamente, o homem pergunta a si mesmo: E de onde vem as forças da natureza que causam os trovões, os raios, o calor, o frio? Quais são as causas dessas causas? E qual é a causa última de todas as causas? É esse desejo de saber não apenas enumerando fenômenos, mas procurando compreendê- los e explicá-los pelas suas causas mais remotas, que nós chamamos filosofia.” (Estêvão Bettencourt OSB, Curso de Filosofia. Rio de Janeiro. Escola Mater Ecclesiae) Essa busca pelas causas mais remotas, esse desejo de conhecer para além daquilo que imediatamente nós percebemos pode ser percebido no fragmento de um poema de Montale que transcrevemos abaixo. “Sob o intenso azul Do céu, um ou outro pássaro voa; Nunca se detém: porque todas as imagens levam escrito: ‘mais além’. (E. Montale, L’agave sul lo scoglio) Vemos assim que a filosofia se diferencia das ciências entendidas no sentido moderno dessa palavra. Embora a filosofia e as ciências naturais procurem explicar os fenômenos por suas causas, notamos que há uma hierarquia ou uma escala de causas. Neste sentido, podemos dizer que todo ser humano é um pouco filósofo. Em geral, toda pessoa sente necessidade de explicações mais amplas ou globais ou do que se chama uma cosmovisão, uma visão que abranja o universo inteiro e explique o valor ou o sentido de cada coisa existente. Além disso, todo homem é para si mesmo, uma interrogação... interrogação da qual ele não pode fugir e para qual ele tende a procurar uma resposta, se ele quer dar um sentido à sua vida e orientar seus passos no conjunto dos demais seres. O filósofo Santo Agostinho expressa isso que dissemos anteriormente, em seu livro “Confissões”, quando, ao relatar o episódio da perda de um amigo afirma: “Factus eram ipse mihi magna questio” (Tinha me transformado numa grande interrogação). A mesma experiência descreve o poeta italiano Leopardi no poema abaixo. “E sempre que te vejo Estar tão muda assim sobre o deserto, Que em seu limite incerto o céu confina, Ou sobre o meu rebanho, Indo, indo, a seguir-me bem de perto, E olhando o céu de estrelas sobre as rochas, Digo-me a mim pensando: Para que tantas tochas? Que fazem o ar infindo e essa profunda, Azul serenidade? Que quer dizer a solidão imensa? E eu que sou? (G. Leopardi, Canto notturno di un pastore errante dell’Azia) PARA QUÊ A FILOSOFIA? Quem não tem enfrentado problemas na vida? Todos, sem exceção. O que diferencia as pessoas é a maneira como se colocam diante dos problemas de sua existência. Exemplo: para resolver um desacordo com outra pessoa um homem pode se valer da violência ou do diálogo; a primeira põe em jogo a força física, o segundo põe em jogo a força da razão e o compromisso com a verdade e não os seus interesses particulares. A filosofia oferece a pessoa um novo caminho ou método para estar diante dos problemas da vida de uma maneira mas adequada a realidade. Por que a filosofia? Por que todos deveriam aprender a pensar filosoficamente - a fazer as questões pungentes que as crianças e os filósofos fazem, e a que os filósofos às vezes respondem? Há muito tempo creio que todos deveriam ocupar-se da filosofia – mas não para obter mais informações sobre o mundo, sobre a sociedade, ou sobre nós mesmos. Para isso, é melhor voltar-se para as ciências sociais e para a história. A filosofia nos é útil de um outro jeito – ela nos ajuda a compreender coisas que já sabemos, a compreendê-las melhor do que agora. É por isso que todos deveriam aprender a pensar filosoficamente. (Mortimer Adler, Aristóteles para todos: uma introdução simples a um pensamento complexo.) PONTO DE PARTIDA DA FILOSOFIA O ponto de partida da filosofia é um problema real, um problema que seja verdadeiro. Não há coisa mais absurda do que buscar uma solução para um problema que não existe. Por isso, algumas pessoas compreendem a filosofia como algo sem sentido, e que de certo modo, não deve despertar o nosso interesse, muito menos nossa atenção. Na origem desse desinteresse está um desconhecimento dos problemas enfrentados pela filosofia e do fato de que elas fazem parte daquilo que nós somos. A partir do que foi dito até agora, já podemos enfrentar uma tentativa de síntese que defina e explique a utilidade da filosofia. Se a filosofia parte de um problema real, ela não se contenta com qualquer resposta a esse problema. Não basta saber COMO as coisas acontecem, ou de que são feitas, mas o PORQUÊ delas existirem. “Há em todo homem um desejo natural de conhecer as causas daquilo que percebe. É, portanto, em conseqüência da admiração sentida em face dos objetos, mas cujas causas lhe permanecem escondidas, que o homem se põe a filosofar. Uma vez descobertas as causas, seu espírito se tranqüiliza. Mas a busca não cessa até que tenha chegado à primeira causa, por que só quando esta é conhecida é que o homem julga conhecer de maneira perfeita.” (Tomás de Aquino, Suma contra os gentios) CAPÍTULO II - A ORIGEM DA FILOSOFIA A filosofia nasce pela relação que o ser humano tem com a realidade que deseja conhecer. Essa relação com a realidade se deu primeiro por meio do mito e em seguida através da reflexão filosófica, o que não quer dizer que os mitos tenham deixado de ser utilizados pelo homem. O MITO: O homem sempre buscou explicar a realidade e o quê acontece com ela. O mito constitui uma primeira tentativa de reflexão que busca explicar osfenômenos da natureza e experiências comuns ao gênero humano de maneira simbólica, ou seja, por meio de narrativas. Estes mitos eram transmitidos de geração em geração e se misturavam entre um povo e outro. A explicação mítica não é um engano, pois realmente queriam fazer entender como e porquê se sucediam as coisas. Entretanto os antigos não se interrogavam acerca das causas últimas dos fenômenos da natureza e da vida social. Quando falamos em mito no sentido antropológico, que é o que nos interessa aqui, queremos nos referir às narrativas e ritos tradicionais, integrantes da cultura de um povo, principalmente entre as populações primitivas e antigas, que utilizavam elementos simbólicos para explicar a realidade e dar sentido à vida humana. (Gilberto Cotrim. Fundamentos da filosofia: história e grandes temas) Tal qual faz o rigor da lógica racional na abordagem da realidade, também o pensamentomítico tem uma unidade fundamental, mas já em outro registro, em outra modulação em relação ao racional. É outro registro, dissemos, e não necessariamente um pensamento que se contraporia à razão, da qual ele sempre se esquiva quando o intuito dela é explicá-lo com a lógica a que o nosso modo técnico-científico nos acostumou. A esse propósito, diria a respeito da razão e do mito o que Chesterton dizia a propósito do poeta e do lógico: o primeiro quer enfiar a cabeça no céu, o segundo quer enfiar o céu na cabeça: é por isso que esta arrebente. Para a razão, o mito, na acepção que aqui adotamos, não é ficção, engano, e falsidade; é, isto sim, um modo de falar, ver e sentir dimensões da realidade (...) (Augusto Novaski. Mito e racionalidade filosófica. In: Regis Morais (org.). As razões do mito.) A ADMIRAÇÃO: A pergunta pelas causas últimas é o que marca a “passagem” da mentalidade mítica à mentalidade filosófica e esta interrogação nasce com a admiração1. A admiração é a capacidade do homem de impressionar-se, impactar-se diante da beleza e da ordem (kósmos) da realidade. Isso é algo natural nas crianças; tudo é novo para eles e não param de admirar-se diante daquilo que vêem. Para ser realista é necessário deixar-se impactar, ou admirar pelas coisas que existem e que não são feitas por mim. O estupor esconde dentro de si um pedido profundo, pois de imediato surge a pergunta pelo sentido último daquilo que está diante de nós e cada vez que esse mesmo fato aparece a pergunta surgirá com mais força. Os homens começaram a filosofar, tanto agora como na origem, por causa do maravilhamento: no princípio, ficavam maravilhados diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a se colocar problemas sempre maiores, como os relativos aos fenômenos da lua, do sol e dos astros e, depois, os problemas relativos a origem de todo o universo. (Aristóteles,A metafísica, 1, 2, 982a – 983a) A OBSERVAÇÃO: O realismo exige que a maneira ou método de conhecer um objeto (a realidade) não deve ser imaginado, pensado, organizado, ou criado pelo sujeito, ou seja, EU, mas imposto pelo objeto. Ser realista significa ver as coisas tal qual elas são, de maneira integral, sem esquecer nenhuma particularidade. Diante do impacto com a realidade, o homem deve buscar compreendê-la e não projetar sobre ela os seus pensamentos. Por isso, a primeira atividade do filósofo deve ser a observação atenta e detalhada do fato que deseja conhecer. ESTUDO DA FILOSOFIA: Tradicionalmente a filosofia pode ser organizada de duas formas para ser estudada. A primeira é enfrentando as principais perguntas filosóficas que o ser humano tem se colocado. A segunda é mediante o desenvolvimento histórico da filosofia no mundo ocidental. O homem, capaz de dar-se conta da realidade e de seu sentido, levanta perguntas existenciais que dão origem a disciplinas ou âmbitos que buscam dar respostas a tais perguntas. 1Admiração: usamos aqui esse termo com o sentido de maravilhamento, de perplexidade, assombro, espanto. A primeira virtude do filósofo, dizia Platão, é a admiração (thaumázein, em grego), a curiosidade insaciável, a capacidade de admirar e problematizar as coisas. LEITURA COMPLEMENTAR TEXTO 1 IMPLICAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO MITO2 Constança Marcondes César Um exame da palavra mito revela, de imediato, que esta é empregada de modo ambíguo na linguagem contemporânea. Assim, podemos assinalar a existência de uma dupla valorização, negativa e positiva do termo. O sentido negativo é evidente na linguagem comum, na qual aparece como sinônimo de mentira, falsificação intencional, ilusão. Diz-se, a propósito de artistas ou personalidades políticas, que “fulano é um mito”, querendo significar que há uma hipervalorização do sujeito, com base em qualidades às vezes de fato inexistentes ou vistas de modo deturpado, hipertrofiadas. Diz-se também: “isso é um mito”, por “isso é tolice” ou “isso é falso”. O “mito da ciência”, a que tantos autores se referem (Bergson, Bachelard, Gusdorf) corresponde à crítica contemporânea do cientificismo moderno (Descartes, Comte), que via no saber científico emergente um tipo de conhecimento superador do pensamento simbólico. Antes de prosseguirmos a abordagem do sentido pejorativo da palavra é preciso esclarecer o que entendemos por mito. Mito é a expressão simbólica, por imagens, de valores. Essa expressão é carregada de conotações afetivas, o que caracteriza o poder de sedução do mito. Abrangendo uma totalidade dificilmente apreensiva de modo direto e imediato pela consciência discursiva, o mito sintetiza, recorrendo ao símbolo, conteúdos que se referem às mais profundas aspirações do ser humano: sua sede de absoluto e de transcendência, sua deslumbrada busca de plenitude. [...] O uso negativo implica, pois, numa incorreta decifração dos valores que o mito veicula (engano); ou na deliberada manipulação de tais valores com a finalidade de obter poder sobre a massa, sobre a maioria (mistificação). Em ambos os casos (engano ou mistificação) o erro é de quem decifra, não do mito. [...] 2Este texto está publicado na íntegra no livro MORAIS, Regis (org.). As razões do mito. Campinas, SP: Papirus, 1988. O mito narra uma certa verdade, não se trata, é claro, de propor hoje uma adesão ingênua aos deuses arcaicos; mas de buscar, com Ricoeur (O conflito das interpretações), uma segunda ingenuidade, que os recupera como detectores da realidade humana e, interpretando, põe-se de novo a compreendê-los. Há uma verdade no mito, como afirmam Ricoeur, Eliade, Van Riet; mas não é uma verdade imediatamente evidente para a razão discursiva. A força dessa verdade nos polariza; é a sua sedução. Contudo, os deuses só são benéficos a quem os invoca por seu verdadeiro nome, a quem se inicia nos seus mistérios. A aproximação à verdade simbólica implica esforço, depuração, decifração. O acesso a ela nunca está plenamente assegurado; na busca, podemos nos perder, dando lugar ao sentido pejorativo do mito. TEXTO 2 O MITO DE SÍSIFO3 Sísifo era filho de Éolo, deus dos ventos e descendente direto de Prometeu. Importa muito saber isso, pois Prometeu é o primeiro de uma linhagem de notórios embusteiros (foi ele quem furtou o fogo dos deuses) que proliferarão por toda a mitologia. Sísifo, assim, não por nada, chegará a ser conhecido como o mais astucioso de todos os mortais. Antes que alcançasse este importante galardão, porém, fundou a cidade de Corinto - então chamada de Éfira - e dela tornou-se rei. Diz Homero que por ter sido um rei justo e pacífico teria acorrentado a própria Morte, despovoando o reino de Hades e atraindo para si a ira daquele deus. Antes disto, diremos que este personagem intrigante reivindica para si a glória de ser o verdadeiro pai de Ulisses, retirando assim esta honra das mãos de Laertes, seu presumido progenitor. A lenda parece ter merecido algum crédito, pois toda vez que algum inimigo pretendia ofender o célebre herói, recorria ao baixo expediente de chamá-lo de "filho de Sísifo". Mas como se teria dado tal fato? A versão mais autorizada afirma que Sísifo, tendo chegado na véspera do casamento de Laertes com Anticléia (ela própria filha de Autólico, outro notório farsante), adiantara-se ao noivo e gerara Ulisses, desaparecendo em seguida, deixando a Laertes o encargo de criá-lo. Sísifo, tal como seu ilustre antepassado Prometeu, não tinha pudor algum de se meter nos assuntos divinos.Um dia estava em meio a um passeio quando observou a águia de Zeus passar ao alto carregando Egina, filha de Asopo, em direção ao Olimpo. Esperando tirar algum proveito desta indiscrição, Sísifo correu logo até a corte do desesperado rei. - Asopo, vou ajudá-lo a encontrar sua bela filha - disse o temerário Sísifo -, mas em troca quero sua palavra de que fornecerá a Corinto uma fonte límpida de água. - Está bem, farei brotar uma nascente na sua cidade! - respondeu o angustiado rei. - Mas isto somente se você der um jeito de encontrar a minha filha. 3Texto disponível em: <http://www.mitologiagrega.templodeapolo.net/ver_mito.asp?Cod_mito=89&value= O%20mito%20de%20S%C3%ADsifo&divindade=Zeus&topo=> - Sua filha foi raptada pela águia de Zeus e levada para uma distante ilha. Zeus, que tudo via lá do Olimpo, não tardou a descarregar sobre Sísifo sua fúria implacável e ordenou que a própria Morte fosse no encalço do intrometido. A Morte foi dar cumprimento imediato à ordem do deus supremo, porém, quando chegou para agarrar Sísifo, este não só conseguiu fugir dela como fez dela seu prisioneiro, fazendo jus desta forma à sua fama de mais ardiloso dos mortais. Foi daí, decerto, que surgiu a lenda de que Sísifo teria despovoado os infernos. Mas Zeus, a instâncias de Hades, acabou por resgatar a Morte das mãos de Sísifo por intermédio de Ares, o belicoso deus da guerra. Tão logo a Morte viu-se libertada de sua vexatória sujeição, Zeus precipitou Sísifo no Tártaro, a masmorra dos infernos. Mas Sísifo não seria Sísifo se não tivesse dado um jeito de escapar desta, também. Assim, antes de ser levado para o Tártaro sombrio, deu um jeito de planejar um truque com sua esposa. - Prometa que não irá me prestar as devidas honras fúnebres - dissera ele à esposa antes de descer às regiões infernais. Assim, quando Sísifo se viu nos infernos, foi imediatamente ter com Hades: - Oh, Hades, senhor da mansão subterrânea! Não pode calcular o quanto me arrependo por ter interferido nos atos do pai dos deuses! Mas, veja, como poderei permanecer aqui se minha desgraçada mulher fez a mim uma afronta muito maior do que qualquer uma que eu tenha feito aos deuses? Como estarei aqui em paz se ela não me prestar as devidas honras fúnebres? Por favor, deixe-me voltar lá para cima e ajeitar as coisas neste sentido; prometo que, tão logo tenha resolvido tudo, estarei aqui de volta. - Está bem, está bem... - disse Hades, coçando a cabeça. - Mas não demore a voltar, pois do contrário o trarei de volta, e da maneira mais vexatória possível. Sísifo, feliz, retornou ao convívio dos vivos e, sem ligar a mínima para a promessa, ainda esteve neste mundo até a mais avançada velhice. Quanto ao deus dos infernos, ocupado em repovoar os seus domínios, acabou por esquecê-lo. Mas o enganador, cedo ou tarde, também acaba enganado. Um dia Sísifo descobriu que seu vizinho Autólico, filho de Hermes, vinha furtando o seu gado. - Estranho! Enquanto meu rebanho diminui, o de Autólico aumenta! -dizia o rei de Corinto, encafifado. Depois de muito matutar, Sísifo teve, afinal, uma brilhante idéia: a de marcar os cascos de cada animal com letras, de modo que, à medida que o gado se afastasse de seu curral, iria deixando impressa no chão a frase "Autólico me furtou"... Autólico, entretanto, tão logo se viu flagrado, tratou de devolver as reses. - Sísifo, você é o maior! - disse o ladrão de gado, encantado com a astúcia do rival, pois Autólico era, antes de mais nada, a exemplo de Sísifo, um amante do belo logro. Assim ficaram ambos amigos. E foi daí que Sísifo, dizem as más línguas, deve ter tido acesso ao leito da filha de Autólico, a bela Anticléia, o que resultou no nascimento de Ulisses, conforme já dissemos. Um dia, entretanto, a vida de Sísifo chegou ao seu termo, como chegam a de todos os mortais. Zeus resolvera pôr um fim às suas velhacarias e puni-lo pelas suas afrontas. Sísifo foi então precipitado ao Tártaro - desta vez em definitivo - e condenado a rolar uma enorme rocha até o alto de uma escarpada montanha. Tão logo chega ao cume, despenca, obrigando Sísifo a recomeçar o estafante trabalho, o qual se repete para todo o sempre. CAPÍTULO III - OS PRIMEIROS FILÓSOFOS A FILOSOFIA COMO CRIAÇÃO DOS GREGOS: Esse modo novo de conhecer a realidade, que nós chamamos filosofia, surge entre os gregos por volta do século VI a.C. Muitos são os posicionamentos dos pesquisadores acerca das razões que levaram a filosofia ter surgido na Grécia. É interessante observar o que alguns estudiosos falaram sobre o assunto. O filósofo francês J. Maritain, em seu livro “Introdução Geral à Filosofia”, explica que um dos fatores que levaram a este florescimento do pensamento entre os gregos foi a degeneração que a religião grega vinha experimentando desde o tempo de Homero, o que a impedia de comunicar aos homens verdades essenciais à sua vida. Ou seja, as certezas que os judeus e egípcios, por exemplo, encontravam na religião, os gregos tiveram que buscar de outro modo. Mesmo se não considerarmos este processo de degeneração da religião grega, é fato que ela não possui determinados elementos quem encontramos em outras religiões e que fornecem aos homens determinadas certezas acerca da vida. É o que encontramos no trecho abaixo: O livre desenvolvimento do pensamento também é facilitado pela ausência, quer na religião olímpica, quer nas crenças mais místicas, de uma teologia elaborada que forneça explicações coerentes do mundo. Os deuses gregos, ao contrário, tem características humanas e pouco servem de inspiração para um pensamento religioso mais trabalhado.” (ABRÃO, B. S. História da Filosofia, São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2004 p. 22.) Outro pesquisador importante é o italiano G. Reale que acrescenta que o nascimento da filosofia se deu em ambiente grego como uma recriação em dimensão teórica dos conhecimentos práticos de outros povos antigos orientais. “Se os egípcios desenvolveram e transmitiram a arte do cálculo, os gregos, particularmente a partir dos Pitagóricos,elaboraram uma teoria sistemática do número; e se os babilônios fizeram uso de observações astronômicas particulares para traçar as rotas para os navios, os gregos as transformaram em teoria astronômica orgânica.” (REALE, G. História da Filosofia: filosofia pagã antiga. p. 3). A liberdade política vivida pelos gregos também colaborou para o surgimento da filosofia. Foram eles os primeiros a construirem instituições políticas livres, o que despertava uma série de questões acerca da organização da sociedade e proporcionava um espaço onde estes assuntos poderiam ser discutidos livremente. Por fim, os séculos VII e VI, entre os gregos,foram marcados por um forte desenvolvimento econômico, sobretudo no que se refere ao comércio e ao artesanato. Assim, surgiram centros de distribuição comercial fora da Grécia. As riquezas acumuladas nestas colônias serviram para sustentar uma classe livre de obrigações de trabalho, que começaram a utilizar este tempo livre com a atividade filosófica. A PERGUNTA SOBRE O COSMOS: Os gregos da cidade de Mileto ficaram maravilhados diante do mistério do cosmos (ordem) natural: reconhecendo a realidade como um dado objetivo, algo que não é feito por nós, que existe independentemente de nós e da qual dependemos, ficam surpresos com a ordem e a beleza. Assim, começam a buscar o princípio que dá origem a todas as coisas (arché). Observando a realidade a sua volta e tentando captar o seu funcionamento, Tales de Mileto argumentava que a água é a origem e a essência de todas as coisas nomundo, talvez, a primeira explicação significativa do mundo físico. Ele observava que muitas coisas precisam da água para viver (os homens, os animais, as plantas, a terra). Tales fundou a chamada Escola de Mileto, à qual também pertenceram filósofos como Anaximandro, que sustentava que a arché era o ápeiron (o indeterminado, aquele que carece de limites). Isso porque, se a Terra fosse sustentada pela água, esta, por sua vez, deveria ser sustentado por outra coisa e assim sucessivamente, até o infinito. Outro filósofo deste Escola foi Anaxímenes que considerava que era o ar o princípio que dá origem às coisas. Por isso, afirmava que “como a alma, que é ar, nos conserva na vida; o sopro e o ar envolvem e mantém o mundo”. Posteriormente os gregos se perguntaram não só pelo princípio, mas pela realidade da mudança do ser. Um deles foi Heráclito de Éfeso, que, interessado na possibilidade da mudança, afirmava que “nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio”, ou seja, “em um rio entramos e não entramos, pois somos e não somos (os mesmos)”, com isso chegou a afirmar que tudo muda e nada permanece (o devir), por isso, indica o fogo como princípio elementar, já que muda continuamente. Parmênides, interessado não na mudança, mas no ser, afirmava que “o ser é e o não ser não é”, chegando a afirmar que a mudança é apenas aparente, o devir é uma ilusão. Essa diferença de abordagens levou outros a se perguntarem, entao: como muda o ser? Por isso, viram-se obrigados a definir o conceito de matéria. Empédocles, recorrendo ao testemunho da experiência, pensa que a mudança ocorre não tanto pela passagem do “ser” ao “não ser” ou vice-versa, mas sim pela união ou desagregação dos elementos materiais originais “raízes de todas as coisas”. Para ele estes elementos são: ar, agua, fogo e terra, que seriam movidos e misturados de diferentes maneiras em função de dois princípios universais opostos: o amor (philia) – responsável pela reunião e harmonização dos elementos – e o ódio (neikos) – responsável pela repulsão e desagregação dos elementos. Demócrito, interessado também em compreender como as coisas mudam, afirmava que tudo o que existe no Universo é formado por átomos (a, negação; tomo, “parte, divisão”), partículas minúsculas que teriam apenas grandezas diferentes. Os átomos estariam em constante movimento e ao chocarem-se uns com os outros, agrupando-se ou dispersando-se formariam todos os seres e objetos existentes. CAPÍTULO IV - A FASE ANTROPOLÓGICA Em razão das novas circunstâncias vividas no mundo grego e das dificuldades de se chegar a uma resposta satisfatória acerca da realidade do cosmos, inicia-se uma nova etapa na filosofia grega, marcada pelo interesse nos problemas humanos. A vitória dos gregos sobre os persas, deu a Atenas a hegemonia sobre o mar Egeu, enquanto a democracia vitoriosa teve um grande desenvolvimento, com a crescente importância das assembleias e dos tribunais, das discussões sobre os temas da moral, da política, etc. Tais circunstâncias acarretam a maior preocupação quanto aos problemas humanos, pois as instituições e as crenças do passado eram agora insuficientes para fazer fase às novas perguntas que surgiam. Desenvolveu-se, assim, uma cultura de valor prático, que se preocupava pelas coisas humanas. Uma cultura dialética, que não encontrava mais, no âmbito das velhas concepções filosóficas, uma resposta às suas novas perguntas, levou filósofos a penetrarem em novo terreno: o homem. A fase cosmológica da filosofia é agora substituida pela fase antropológica. (Mario Ferreira dos Santos, Convite à filosofia e à história da filosofia) OS SOFISTAS: No século V a.C., Atenas vivia o auge de um regime de governo no qual os homens livres decidiam os interesses comuns de todos os cidadãos. Esse regime era a democracia ateniense, também conhecida como democracia direta. Para garantir a aprovação de suas propostas pela maioria na Ágora, os cidadãos atenienses precisavam utilizar argumentos sólidos e persuasivos: falar bem e de modo convincente era considerado, portanto, um dom valioso. No mesmo período deu-se o auge da produção de um gênero de teatro conhecido como tragédia. Esse gênero dramático tematizava acontecimentos terríveis, muitas vezes míticos, e tinha a intenção de mostrar as conseqüências de atos imorais e passionais dos homens. A tragédia também era uma reflexão sobre o conflito entre a liberdade individual e o destino, tema que incomodava os cidadãos da democracia: até que ponto os cidadãos teriam poder sobre suas próprias vidas? Algumas obras deste período, como Antígona e Édipo rei, ambas de Sófocles, até hoje são conhecidas. A necessidade de se expressar bem, juntamente com a importância dada ao indivíduo, considerado como senhor do seu destino, favoreceu o surgimento de um grupo de filósofos chamados sofistas, que dominavam a arte da oratória, isto é, o uso habilidoso da palavra. Eles proclamaram possuir a arte de educar os homens e de prepará-los para a vida política, oferecendo-lhes novas idéias e novos instrumentos. Os sofistas estabeleceram uma corrente de pensamento própria cuja preocupação central era o homem e a sua vida em sociedade, centrando seus interesses na ética, na política, na retórica, na arte, na língua, na religião e na educação, ou seja, sobre aquilo que hoje chamamos a cultura do homem. Para os sofistas, tudo (a ética, a política, a religião etc.) devia ser avaliado segundo os interesses do homem e de acordo com a forma como este vê a realidade social. Isso significa que as regras morais, as posições políticas e os relacionamentos sociais deveriam ser guiados conforme a conveniência individual. Assim, o relativismo e ceticismo seriam, de certa forma, as doutrinas a que chegaram os sofistas. Um dos principais representantes desta corrente, Protágoras de Abdera (480 - 410 a.C.), declarava que “o homem é a medida de todas as coisas”, o que significa que todas as coisas deveriam ser consideradas em relação às disposições e interesses de cada sujeito e que o verdadeiro seria uma consideração subjetiva do indivíduo. Outro sofista, Górgias (484 – 375 a.C.) ficou famoso por ter estabelecido essas três teses: “Nada existe. Se algo existe, não pode ser conhecido pelos homens. Se se pode conhecer, não se pode comunicar e explicar aos demais”. Ou seja, para Górgias seria impossível ao homem chegar à verdade. É devido a este desinteresse dos sofistas pela verdade que surgiu a palavra sofisma, cujo significado está associado àqueles argumentos que, apesar de complexos e bem elaborados, são falsos. Nem tudo foi negativo no trabalho dos sofistas. Junto com Sócrates eles introduziram na filosofia 1) o interesse pelo homem concreto, 2) o interesse por uma pedagogia que hoje chamaríamos de ativa e personalizada e 3) o interesse pela análise da linguagem. A filosofia de Sócrates e Platão vai ser influenciada pelos sofistas: superando o relativismo destes filósofos, aqueles irão encontrar critérios objetivos de verdade. Tanto Sócrates como Platão afirmavam que a arte dos sofistas parece valorizar o homem, contudo é uma valorização que tem um alto preço, o da renúncia à verdade e à justiça. Uma filosofia verdadeira deve buscar constantemente estas duas realidades. SÓCRATES: “Foi Sócrates (469-399 a.C.) quem salvou o pensamento grego do perigo mortal em que o colocava a sofística”. É assim que o filósofo francês Jacques Maritain começa a falar desta figura que marcou profundamento todo o desenvolvimento da filosofia. Enquanto os sofistas pretendiam saber tudo e venderos seus conhecimentos, Sócrates afirma “não saber” e estimulava os seus interlocutores a buscarem a verdade. Sendo filho de uma parteira, Sócrates costumava associar o seu ofício ao de sua mãe. Sua atividade consistia em assistir o nascimento da verdade. Por isso intitulou o seu métodode maiêutica (parto das ideias). Sempre se valendo das perguntas, primeiro ele mostrava a fragilidade das opiniões dos seus interlocutores, até que eles se davam conta da própria ignorância (“só sei que nada sei”). Em seguida, Sócrates continuava a fazer perguntas a fim de que as pessoas pudessem encontrar a verdade, que ele acreditava estar em cada um. Ou seja, sua atividade era ajudar as inteligências a trabalharem, a fim de que o homem descobrindo a verdade sobre si mesmo, pudesse orientar a sua vida para o bem. Por isso, Sócrates assumiu como orientação para a sua atividade a frase “Conhece- te a ti mesmo”. O seu foco principal era o problema da moral. O quadro abaixo nos ajuda a compreendeer a atividade deste filósofo: as suas principais concepções (o homem e sua alma) e método que utilizava (a cura da alma).
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