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Compilado de Textos Disciplina: História do Pensamento Filosófico Livros Utilizados: ARANHA, M. L. A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: Introdução à Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Moderna, 2009. CHAUI, M. Convite à filosofia. 13ª ed. São Paulo: Ática, 2003. MARCONDES, D. Textos Básicos de Filosofia: dos Pré- socráticos a Wittgenstein. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. Epicuro Carta sobre a felicidade: (a Meneceu) / Epicuro; tradução e apresentação de Álvaro Lorencini e Enzo Dei Carratore. - São Paulo: Editora UNESP, 2002. Professoras: Esp. Karolinne Reis e Esp. Natália Manso Marilena Chauí _______________________________ – 5 – Introdução Para que Filosofia? As evidências do cotidiano Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como “que horas são?”, ou “que dia é hoje?”. Dizemos frases como “ele está sonhando ”, ou “ela ficou maluca”. Fazemos afirmações como “onde há fumaça, há fogo ”, ou “não saia na chuva para não se resfriar”. Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, “esta casa é mais bonita do que a outra” e “Maria está mais jovem do que Glorinha”. Numa disputa, quando os ânimos estão exaltados, um dos contendores pode gritar ao outro: “Mentiroso! Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu”, e alguém, querendo acalmar a briga, pode dizer: “Vamos ser objetivos, cada um diga o que viu e vamos nos entender”. Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada. Freqüentemente, quando aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa pessoa “é legal ”. Convite à Filosofia _______________________________ – 6 – Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano. Quando pergunto “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós. Quando digo “ele está sonhando”, referindo-me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitas crenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente de estar acordado, que, no sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, e também que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente. Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão. A frase “ela ficou maluca” contém essas mesmas crenças e mais uma: a de que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razão de loucura, acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas. Quando alguém diz “onde há fumaça, há fogo” ou “não saia na chuva para não se resfriar”, afirma silenciosamente muitas crenças: acredita que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra (o fogo causa a fumaça como efeito, a chuva causa o resfriado como efeito). Acreditamos, assim, que a realidade é feita de causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de nossa vida. Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra, ou que Maria está mais jovem do que Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações, os fatos podem ser comparados e avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim, que a qualidade e a quantidade existem, que podemos conhecê-las e usá-las em nossa vida. Se, por exemplo, dissermos que “o sol é maior do que o vemos”, também estamos acreditando que nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes, ora tais como são em si mesmas, ora tais como nos aparecem, dependendo da Marilena Chauí _______________________________ – 7 – distância, de nossas condições de visibilidade ou da localização e do movimento dos objetos. Acreditamos, portanto, que o espaço existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) e quantidades, podendo ser medido (comprimento, largura, altura). No exemplo do sol, também se nota que acreditamos que nossa visão pode ver as coisas diferentemente do que elas são, mas nem por isso diremos que estamos sonhando ou que ficamos malucos. Na briga, quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os fatos exatamente como aconteceram, está presente a nossa crença de que há diferença entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como são, enquanto a segunda faz exatamente o contrário, distorcendo a realidade. No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro porque o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos. Com isso, acreditamos que o erro e a mentira são falsidades, mas diferentes porque somente na mentira há a decisão de falsear. Ao diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou um engano involuntários e a segunda uma decisão voluntária, manifestamos silenciosamente a crença de que somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a verdade ou a mentira. Ao mesmo tempo, porém, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: não gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E não são mentira? É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que está mentindo, a mentira é aceitável, não seria uma mentira “no duro”, “pra valer”. Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis de mentiras aceitáveis, não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou desconhecimento da realidade, mas também ao caráter da pessoa, à sua moral. Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuem vontade, podem ser morais ou imorais, pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal. Na briga, quando uma terceira pessoa pede às outras duas para que sejam “objetivas” ou quando falamos dos namorados como sendo “muito subjetivos”, também estamos cheios de crenças silenciosas. Acreditamos que quando alguém quer defender muito intensamente um ponto de vista, uma preferência, uma opinião, até brigando por isso, ou quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse alguém “perde” a objetividade, ficando “muito subjetivo”. Com isso, acreditamos que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as coisas tais como são verdadeiramente, enquanto a subjetividade é uma atitude parcial, pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, ódio, medo, desejo). Assim, não só acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como Convite à Filosofia _______________________________ – 8 – ainda acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade, enquanto a segunda, voluntária ou involuntariamente, a deforma. Ao dizermos que alguém “é legal ” porque tem os mesmos gostos, as mesmas idéias, respeita ou despreza as mesmas coisas que nós e tem atitudes, hábitos e costumes muito parecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas - família, amigos, escola, trabalho, sociedade, política - nos faz semelhantes ou diferentes em decorrência de normase valores morais, políticos, religiosos e artísticos, regras de conduta, finalidades de vida. Achando óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia de seus semelhantes e procuram distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito, acreditamos que somos seres sociais, morais e racionais, pois regras, normas, valores, finalidades só podem ser estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocínio. Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade. A atitude filosófica Imaginemos, agora, alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer “está sonhando” ou “ficou maluca”, quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão? Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afirmações por outras: “Onde há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não ficar resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?; “seja objetivo ”, ou “eles são muito subjetivos”, por: O que é a objetividade? O que é a subjetividade?; “Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”? O que é o belo? Em vez de gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é o falso? O que é o erro? O que é a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe ilusão e por quê? Se, em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o desejo? O que são os sentimentos? Se, em lugar de discorrer tranqüilamente sobre “maior” e “menor” ou “claro” e “escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade? Marilena Chauí _______________________________ – 9 – E se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas idéias, os mesmos gostos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é um valor? O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade? Alguém que tomasse essa decisão, estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica. Assim, uma primeira resposta à pergunta “O que é Filosofia?” poderia ser: A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido. Perguntaram, certa vez, a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respondeu: “Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações”. A atitude crítica A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às idéias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido. A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica. A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico. A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e, portanto, começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos saber; por isso, o patrono da Filosofia, o grego Sócrates, afirmava que a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o discípulo de Sócrates, o filósofo grego Platão, a Filosofia começa com a admiração; já o discípulo de Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a Filosofia começa com o espanto. Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, Convite à Filosofia _______________________________ – 10 – como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos. Para que Filosofia? Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia? É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática ou física? Para que geografia ou geologia? Para que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia? Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos estudantes de Filosofia: “A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, se costuma chamar de “filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis. Essa pergunta, “Para que Filosofia?”, tem a sua razão de ser. Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata. Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade. Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade. Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não serve para coisa alguma. Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os. Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados. Marilena Chauí _______________________________ – 11 – Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas. Assim, o trabalho das ciências pressupõe,como condição, o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada. Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não serviria para nada, se “servir” fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles; consideram também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica. Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A Filosofia seria a arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como finalidade ensinar- nos a virtude, que é o princípio do bem-viver. Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas? Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como - permanecem. Atitude filosófica: indagar Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado. Essas características são: - perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idéia, é. A Filosofia pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual; Convite à Filosofia _______________________________ – 12 – - perguntar como a coisa, a idéia ou o valor, é. A Filosofia indaga qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma idéia ou um valor; - perguntar por que a coisa, a idéia ou o valor, existe e é como é. A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de um valor. A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar. Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia torna-se, então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexão. A reflexão filosófica Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo. A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento. Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações. A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações. A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões: 1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto é, quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos? 2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos? 3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é, qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos? Marilena Chauí _______________________________ – 13 – Essas três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento? Como vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?, dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas. Já a reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir. Filosofia: um pensamento sistemático Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e opiniões de cada um de nós. A Filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda. As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático. Que significa isso? Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que”, mas de poder afirmar “eu penso que”. O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente. Quando o senso comum diz “esta é minha filosofia” ou “isso é a filosofia de fulana ou de fulano”, engana-se e não se engana. Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia de fulano” ficam no plano de um “eu acho” coerente. Convite à Filosofia _______________________________ – 14 – Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muito confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a Filosofia tem uma vocaçãopara formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana. Em busca de uma definição da Filosofia Quando começamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela é. Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da Filosofia, mas várias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, além de várias, as definições parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios de perplexidade, indagam: afinal, o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela é? Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que seria a Filosofia: 1. Visão de mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura. Filosofia corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de idéias, valores e práticas pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma, definindo para si o tempo e o espaço, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o possível e o impossível, o contingente e o necessário. Qual o problema dessa definição? Ela é tão genérica e tão ampla que não permite, por exemplo, distinguir a Filosofia e religião, Filosofia e arte, Filosofia e ciência. Na verdade, essa definição identifica Filosofia e Cultura, pois esta é uma visão de mundo coletiva que se exprime em idéias, valores e práticas de uma sociedade. A definição, portanto, não consegue acercar-se da especificidade do trabalho filosófico e por isso não podemos aceitá-la. 2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia é identificada com a definição e a ação de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se à contemplação do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio. A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos, desejos e paixões. É nesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo. Esta definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a Filosofia e, por isso, também não podemos aceitá-la. Marilena Chauí _______________________________ – 15 – 3. Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido. Nesse caso, começa-se distinguindo entre Filosofia e religião e até mesmo opondo uma à outra, pois ambas possuem o mesmo objeto (compreender o Universo), mas a primeira o faz através do esforço racional, enquanto a segunda, por confiança (fé) numa revelação divina. Ou seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da realidade, enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionável, que é a revelação divina indemonstrável. Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a consciência filosófica procura explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável. No entanto, esta definição também é problemática, porque dá à Filosofia a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo, elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível. Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora: em primeiro lugar, porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas ciências e pelas artes, cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no caso das ciências) e para a expressão (no caso das artes), já não sendo pensável uma única disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça uma única explicação para o todo da realidade. Por isso, esta definição também não pode ser aceita. 4. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. A Filosofia, cada vez mais, ocupa-se com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformações históricas dos conceitos, das idéias e dos valores. A Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões, procurando descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente, a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de idéias ou significações gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança, etc. Convite à Filosofia _______________________________ – 16 – Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade, a Filosofia procura diferenciar-se das ciências e das artes, dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o mundo histórico (ou humano) num momento muito preciso: quando perdemos nossas certezas cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir as que perdemos. Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens) tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer. Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise (das condições da ciência, da religião, da arte, da moral), como reflexão (isto é, volta da consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e como crítica (das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), essas três atividades (análise, reflexão e crítica) estando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade e os seres humanos. Além de análise, reflexão e crítica, a Filosofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que são, qual sua permanência e qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que é o ser e o aparecer-desaparecer dos seres? A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humanos, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento da mudança das formas do real ou dos seres, a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história. Inútil? Útil? O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil? O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útilpelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”. Desse ponto de vista, a Filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser inútil. Marilena Chauí _______________________________ – 17 – Não poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira? Platão definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício dos seres humanos. Descartes dizia que a Filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes. Kant afirmou que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a felicidade humana. Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação que traria justiça, abundância e felicidade para todos. Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo. Espinosa afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade. Qual seria, então, a utilidade da Filosofia? Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes. Aula 2 - Consciência mítica e nascimento da filosofia Zenão . Parmênides Demócrito Protágoras Leucipo r MAGNA GRÉCIA • Agrigento Anaxágoras Aristóteles Epicuro Pltdgoras Pino Élida. Platão Abdera • •Estagira JÓ"'IA / "" Heráclito Clazomena / • • • • Éfeso Atenas Sarnas . Mlleto Zenão .Cítio Il?t:: Sócrates D/r I ·ROO~ Filósofos da Grécia Antiga Periodo pré-socrático FR/(A,IVEO Tales Anaximandro Anaxímenes Panécio Posidónio Fonte: ABRÃO, Bernadete Siqueira [etal.]. Enciclopédia do Estudante. História da filosofia: da Antiguidade aos pensadores do século XXI. v. XII. São Paulo: Moderna, 2008. p. 17. Consulte o mapa dos principais filósofos gregos e identifique aqueles que correspondem ao período pré-socrático. Observe em que região Oônia ou Magna Grécia) e em que cidade eles se estabeleceram. Em seguida veja como os filósofos do período clássico (Sócrates, Platão) se fixam em Atenas. Embora Aristóteles tenha nascido em Estagira, cidade da Macedônia, foi em Atenas que fundou sua escola. Localize também os filósofos do helenismo, que se deslocam da Grécia continentat e se espalham pelas ilhas. D Situando no tempo Neste capítulo veremos o processo pelo qual se deu a passagem da consciência mítica para a consciência filosófica na civilização grega. Vejamos de início um quadro que abrange desde os períodos míticos até o século II a.C. g I ~ '" PARA SABER MAIS Periodização da história da Grécia Antiga Civilização micênica (sécs. XX a XII a.c.). Desenvolveu-se desde o início do segundo milênio a.c. Tem esse nome pela importância da cidade de Micenas, de onde, por volta de 1250 a.c., partiram Agamêmnon, Aquiles e Ulisses para sitiar e conquistarTroia . Tempos homéricos (sécs. XII a VIII a.c.). Na tra nsição de um mundo essencialmente rural,os senhores enrique cidos formaram a aristocracia proprietária de terras, que fez recrudescer o sistema escravista. Nesse período teria vivido Homero (séc.IX ou VIII a.c.). Período arcaico (sécs. VIII a VI a.c.). Com a formação das cidades-estados (póleis), ocorreram grandes alte rações sociais e políticas, bem como odesenvolvimento f) Uma nova ordem humana Costuma-se dizer que os primeiros filósofos foram gregos e surgiram no período arcaico, nas colônias gregas. Embora reconheçamos a importância de sábios que viveram na mesma época em outros luga res, suas doutrinas ainda estavam mais vinculadas à religião do que propriamente à reflexão filosófica. , ++ PARA SABER MAIS Os sábios que viveram no Oriente no século VI a.c., a mesma época em que a filosofia surgiu na Grécia, foram: Confúcio e Lao Tsé na China; Gautama Buda na índia; Zaratustra na Pérsia. Alguns autores chamaram de "milagre grego" a passagem da mentalidade mítica para o pensa mento crítico racional e filosófico, destacando o caráter repentino e único desse processo. Outros estudiosos, no entanto, criticam essa visão simplista e afirmam que a filosofia na Grécia não é fruto de um salto, do "milagre" realizado por um povo privi legiado, mas é a culminação do processo gestado ao longo dos tempos. Por enquanto, fiquemos com alguns fatos do período arcaico que ajudaram a alterar a visão mítica predominante e contribuíram para o surgi mento do filósofo: • a invenção da escrita e da moeda; • a lei escrita; • a fundação da pólis (cidade-Estado). .. A invenção da escrita A consciência mítica predomina em cultu ras de tradição oral, quando ainda não há escrita. Mesmo após seu surgimento, a escrita reserva-se do comércio e a expansão da colonização grega. No início desse período teria vivido Hesíodo. No final do século VII e durante o século VI a.c. surgiram os pri meiros filósofos. Período clássico (sécs. V e IV a.c.). Auge da civilização grega; na politica, o apogeu da democracia ateniense; desenvolvi mento das artes, literatura e filosofia; época em que viveram os sofistas e os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles. Período helenístico (sécs.111 e II a.c.). Decadência polí tica, domínio macedônico e conquista da Grécia pelos romanos; culturalmente, significativa influência das civilizações orientais; florescimento das filosofias estoica e epicurista. aos privilegiados, aos sacerdotes e aos reis, e geral mente mantém o caráter mágico: entre os antigos egípcios, por exemplo, a palavra hieróglifo significa literalmente "sinal divino". Na Grécia, já existira uma escrita no período micênico, mas restrita aos escribas que exerciam funções administrativas de interesse da aristocra cia palaciana. Com a violenta invasão dórica, no século XII a.C., a escrita desapareceu junto com a civilização micênica, para ressurgir apenas no final do século IX ou VIII a.C., por influência dos fenícios. Em seu ressurgimento, a escrita assumiu função diferente. Suficientemente desligada da influência religiosa, passou a ser utilizada para formas mais democráticas de exercício do poder. Enquanto os rituais religiosos eram cheios de fórmulas mágicas, termos fixos e inquestionados, os escritos passaram a ser divulgados em praça pública, sujeitos à discussão e à crítica. Isso não significa que a escrita se tornasse acessível a todos, muito pelo contrário, já que a maioria da popula ção era constituída de analfabetos. O que está em destaque é a dessacralização da escrita, ou seja, seu desligamento do sagrado. A escrita gera nova idade mental porque a pos tura de quem escreve é diferente daquela de quem apenas fala. Como a escrita fixa a palavra para além de quem a proferiu, exige maior rigor e clareza, o que estimula o espírito crítico. Além disso, a reto mada posterior do que foi escrito - não só por con temporâneos, mas por outras gerações - abre os horizontes do pensamento e proporciona o distan ciamento do vivido e o confronto das ideias . Portanto, a escrita surge como possibilidade maior de abstração, de uma reflexão aprimorada que tenderá a modificar a própria estrutura do pensamento. o nascimento dafilosofia Capitulo 3 • o surgimento da moeda Na época da aristocracia rural, de riqueza basea da em terras e rebanhos, a economia era pré-mone tária. Os objetos usados para troca vinham carre gados de simbologia afetiva e sagrada. As relações sociais, impregnadas de caráter sobrenatural, eram fortemente marcadas pela posição social de pessoas consideradas superiores, devido à origem divina de seus ancestrais. Entre os séculos VIII eVI a.C., deu-se o desenvolvi mento do comércio marítimo, decorrente da expan são do mundo grego, com a colonização da Magna Grécia (atual sul da Itália e Sicília) e da jônia (hoje litoral da Turquia). O enriquecimento dos comer ciantes acelerou a substituição de valores aristocrá ticos por valores da nova classe em ascensão. A moeda, inventada na Lídia - região da atual Turquia -, apareceu na Grécia por volta do século VII a.c., vindo facilitar os negócios e impulsionar o comércio. Com o recurso da moeda, os produtos que antes se restringiam ao seu valor de uso passaram a ter valor de troca, isto é, transformaram-se em mer cadoria. Emitida e garantida pela pólis, a moeda fazia reverter seus benefícios para a própria comunidade. Dois lados de uma moeda grega encontrada em Atenas, c. 440 a.c. Nessa moeda grega, vemos a deusa Atena e a coruja, símbolo da sabedoria. Por consequência, a coruja passou a representar também a filosofia. Além desse efeito político de democratização de um valor, a moeda sobrepunha aos símbolos sagrados e afetivos o caráter racional de sua concepção: a moeda representa uma convenção humana, noção abstrata de valor que estabelece a medida comum entre valores diferentes. Nesse sentido, a invenção da moeda desem penha papel revolucionário, por vincular-se ao nasci mento do pensamento racional crítico. • A lei escrita Antes de tratarmos da transformação da pólis é preciso destacar a importância de legislado res como Drácon (séc. VII a.C.), Sólon e Clístenes (séc. VI a.c.), que sinalizaram uma nova era: a jus tiça, até então dependente da interpretação da von tade divina ou da arbitrariedade dos reis, tornou-se codificada numa legislação escrita. Regra comum a todos, norma racional, sujeita à discussão e à modi ficação, a lei escrita passou a encarnar uma dimen são propriamente humana. As reformas da legislação de Clístenes fundaram a pólis sobre nova base: a antiga organização tri bal foi abolida e estabeleceram-se relações que não mais dependiam da consanguinidade, mas eram determinadas por uma organização administrativa. Essas modificações expressam o ideal igualitário que preparava a democracia nascente, já que a uni ficação do corpo social aboliu a hierarquia fundada no poder aristocrático das famílias, que se assen tava na submissão e no domínio. Segundo jean-Pierre Vernant, helenista e pensa dor francês, os que compõem a cidade, por mais diferentes que sejam por sua origem , sua classe, sua função, aparecem de uma certa maneira 'semelhantes' uns aos outros". Se de início a igualdade existia apenas entre os guerreiros, "essa imagem do mundo humano encontrará no século VI sua expressão rigorosa num conceito, o de isgnomia: igual participação de todos os cidadãos no exercício do poder. 1 A pólis buscava garantir a isonomia, do mesmo modo que a isegoria, a igualdade do direito da pala vra na assembleia. ETIMOLOGIA Isonomia. Do grego isos,"igua I ",e nomos,"lei"(igua Idade de direitos perante a lei no regime democrático). Isegoria. Do grego isos, "igual ", e agoreuo, "discursar em público". PARA REFtElIR Poderíamos dizer que ainda hoje a isonomia e a ise goria são princípios extensivos a todos os cidadãos em nosso país? VERNANT, ]ean-Pierre. As origens do pensamento grego. 2. ed. São Paulo: DifeI, 1977. p. 42. Unidade 1 Descobrindo a filosofia .. o cidadão da pólis Para Vernant, o nascimento da pólis (por volta dos sécs. VIII e VII a.C.) é um acontecimento deci sivo que "marca um começo, uma verdadeira inven ção", por ter provocado grandes alterações na vida social e nas relações humanas. A originalidade da pólis é que ela estava cen tralizada na ágora (praça pública), espaço onde se debatiam os problemas de interesse comum. Separavam-se na pólis o domínio público e o pri vado: isso significava que ao ideal de valor de san gue, restrito a grupos privilegiados em função do nascimento ou fortuna, se sobrepunha a justa dis tribuição dos direitos dos cidadãos como represen tantes dos interesses da cidade. Desse modo era elaborado o novo ideal de jus tiça, pelo qual todo cidadão tinha direito ao poder. A noção de justiça assumia caráter político, e não apenas moral, ou seja, não dizia respeito apenas ao indivíduo e aos interesses da tradição familiar, mas à sua atuação na comunidade. A pólis se fez pela autonomia da palavra, não mais a palavra mágica dos mitos, palavra dada pelos deuses e, portanto, comum a todos, mas a palavra humana do conflito, da discussão, da argu mentação. Expressar-se por meio do debate fez nascer a política, que permite ao indivíduo tecer seu destino na praça pública. Da instauração da o século de Péric/es. Phillipp von Foltz, 1853 Na ágora ateniense, logo abai.xo da acrópole, o povo se reúne para a assemblei.a em que os oradores di.scutem os desti.nos da ci.dade. ordem humana surgiu o cidadão da pólis, figura inexistente no mundo da comunidade tribal e das aristocracias rurais. .. A consolidação da democracia Embora os regimes oligárquicos não tenham sido extirpados, em muitas póleis consolidaram-se os ideais democráticos. Entre elas, Atenas é um modelo clássico. O apogeu da democracia ateniense ocorreu no século V a.C., quando Péricles governava. Os cidadãos livres, ricos ou pobres, tinham acesso à assembleia. Tratava-se da democracia direta, em que não eram escolhidos representantes, mas cada cidadão participava ele mesmo das decisões de interesse comum. No entanto, quando falamos em democracia ateniense, é bom lembrar que a maior parte da população se achava excluída do processo político, tais como os escravos e os estrangeiros (metecos), mesmo que estes fossem prósperos comerciantes. Aliás, quanto mais se desenvolvia a ideia de cida dania, com a consolidação da democracia, a escra vidão representava ainda mais um contraponto indispensável, já que ao escravo eram reservadas as tarefas dos trabalhos manuais e das atividades diá rias de so brevivência. É difícil fazer o cálculo demográfico de Atenas, mas no decorrer do século V a.C. a população variou entre meio milhão a 250 mil habitantes, dos quais a maioria era constituída por escravos. Excluídos os estrangeiros, as mulheres e as crianças, restavam apenas entre 10 a 14% de cidadãos propriamente ditos capacitados para participar das discussões na ágora e decidir por todos. Apesar disso, o que vale enfatizar é a mutação do ideal político e uma concepção inovadora de poder, a democracia. O hábito da discussão pública, na ágora, estimulava o pensamento racional, argumen tativo, mais distanciado das tradições míticas. S Os primeiros filósofos A grande aventura intelectual dos gregos não começou propriamente na Grécia continental, mas nas colônias da Jônia e da Magna Grécia, onde flo rescia o comércio. Os primeiros filósofos viveram por volta dos séculos VII eVI a.C. e, mais tarde, foram clas sificados como pré-socráticos, quando a divisão da filosofia grega centralizou-se na figura de Sócrates. Assembleia. Em grego se diz agorá, local de reunião para decidir assuntos comuns. Designa também a praça principal das póleis, local onde se instalava o mercado. o nascimento da filosofia CapItulo 3 Os escritos dos filósofos pré-socráticos desa pareceram com o tempo. e só nos restam alguns fragmentos ou referências de filósofos posterio res. Sabemos que geralmente escreviam em prosa. abandonando a forma poética característica das epopeias. dos relatos míticos. ++ PARA SABERMAIS Períodos da filosofia grega Pré-socrático (séc. VII e VI a.c.). Os primeiros filó sofos ocupavam-se com questões cosmológicas, iniciando a separação entre a filosofia e o pensa mento mítico. Sócrático ou clássico (séc. V e IV a.c.) . Ênfase nas questões antropológicas e maior sistematização do pensamento. Desse período fazem parte os sofistas, o próprio Sócrates, seu discípulo Platão e Aristóteles, discípulo de Platão. Pós-socrático (séc.111 e II a.c.). Durante o helenismo, preponderou o interesse pela física e pela ética. Surgiram as correntes filosóficas do estoicismo (Zenão de Cítio). do hedonismo (Epicuro) e do ceti cismo (Pirro de Élida). ... PARA SABER MAIS Entre os primeiros filósofos, Pitágoras foi o que pela primeira vez usou a palavra filosofia e ainda hoje é estudado em cursos de geometria. Você conhece o teorema sobre a hipotenusa e os catetos do triân gulo retângulo? • O princípio de todas as coisas Os primeiros pensadores centraram a aten ção na natureza e elaboraram diversas concep ções de cosmologia. Note que dizemos cosmolo gia, conceito que se contrapõe à cosmogonia de Hesíodo. Enquanto no período mítico a cosmo gonia relata o princípio como origem no tempo (o nascimento dos deuses), as cosmologias dos pré-socráticos procuram a racionalidade consti tutiva do Universo. Todos eles procuram explicar como, diante da mudança (do devi r), podemos encontrar a estabili dade; como, diante do múltiplo, descobrimos o uno. Ao perguntarem como seria possível emergir o cosmo do caos - ou seja, como da confusão inicial surge o mundo ordenado -, os pré-socráticos buscam o prin cípio (em grego, aarkhej de todas as coisas, entendido não como aquilo que antecede no tempo, mas como fundamento do ser. Buscar a arkhé é explicar qual é o elemento constitutivo de todas as coisas. As respostas dos filósofos à questão do funda mento das coisas, da unidade que pode explicar a Unidade 1 Descobrindo a filosofia multiplicidade, são as mais variadas. Vejamos algu mas delas: • Para Tales de Mileto (640-c.548 a.c.), astrô nomo, matemático e primeiro filósofo, a arkhé é a água; • De acordo com Pitágoras (séc. VI a.C), filósofo e matemático, o número é a essência de tudo; todo o cosmo é harmonia, porque é ordenado pelos números. Monocórdio de Pitágoras em ilustração, 560-480 d.c. o monocórdio - como o nome diz - é um instrumento de uma corda só. Nele, Pitágoras fez experiências para mostrar que a música se expressa em linguagem matemática. Ao calcular os intervalos entre os diferentes pontos pressionados na corda, descobriu a relação entre as notas musicais e as proporções no seu comprimento. Faça uma pesquisa para explicar com mais detalhes quais foram as proporções estabelecidas por Pitágoras no seu experimento. Se necessário, consulte alguém que conheça teoria musical, matemática ou ainda fisica. • Para Anaximandro (610-547 a.C.), o fundamento dos seres é uma matéria indeterminada, ilimi tada (ápeiron, em grego), que daria origem a todos os seres materiais. • Para Anaxímenes (588-524 a.C.), é o ar, que pela rarefação e condensação faz nascer e transfor mar todas as coisas. • Parmênides de Eleia (c.544-450 a.C.) e Heráclito de Éfeso (sécs. VI-V a.c.) desenvolveram teorias que entraram em conflito e instigaram os filó sofos do período clássico (como veremos no capítulo 13, ''A busca da verdade"). Enquanto para Parmênides o ser real é imóvel, imutável e Homem na balança dos quatro elementos. Autor desconhecido, '532. A teoria dos quatro elementos - terra, água, ar e fogo - faz parte da tradição de vários povos antigos. A que foi elaborada por Empédocles tornou-se a mais conhecida e aceita na cultura ocidental até o século XVIII, quando o cientista Lavoisier contestou sua validade. o movimento é uma ilusão, para Heráclito tudo flui e tudo o que é fixo é ilusão: "não nos banha mos duas vezes no mesmo rid'. o Anaxágoras (499-428 a.C.), nascido em Clazômena, mudou-se para Atenas, onde foi mestre de Péricles. Sustentava que as "sementes" de todas as coisas foram ordenadas por um princípio inteligente, uma Inteligência cósmica (Nous, em grego). o Os quatro elementos, terra, água, ar e fogo, cons tituem a teoria de Empédocles (483-430 a.C.). o Os filósofos Leucipo (séc. V a.C.) e Demócrito (c.460-c.370 a.C.) são atomistas, por conside rarem o elemento primordial constituído por átomos, partículas indivisíveis. Como para eles também a alma era formada por átomos, esta mos diante de uma concepção materialista e determinista. A Mito e filosofia: continuidade e ruptura Já podemos observar a diferença entre o pen samento mítico e a filosofia nascente: a cosmolo gia racional distingue-se da cosmogonia mítica de Hesíodo. Para estudiosos como o inglês Francis Mcdonald Cornford, no entanto, apesar das diferenças o pen samento filosófico nascente ainda apresentava vin culações com o mito. Examinando os textos dos filósofos jônicos, Cornford descobriu neles a mesma estrutura de pensamento existente no relato mítico: os jônios afirmavam que, de um estado inicial de indistinção, separam-se pares opostos (quente e frio, seco e úmido), que vão gerar os seres naturais (o céu de fogo, o ar frio, a terra seca, o mar úmido). Para eles, a ordem do mundo deriva de forças opos tas que se equilibram reciprocamente, e a união dos opostos explica os fenômenos meteóricos, as esta ções do ano, o nascimento e a morte de tudo o que vive. Ora, para Cornford, essa explicação racional se assemelha aos relatos de Hesíodo na Teogonia, segundo os quais Gaia gera sozinha, por segregação. o Céu e o Mar; depois, da união de Gaia com Urano resulta a geração dos deuses. Embora em parte concorde com o fato de que a filosofia deriva do mito, em Mito e pensamento entre os gregos Vernant contrapõe-se a Cornford ao desta car o novo, "aquilo que faz precisamente com que a filosofia deixe de ser mito para se tornar filosofia". Nesse sentido, existe uma ruptura entre mito e filosofia. Enquanto o mito é uma narrativa cujo con teúdo não se questiona, a filosofia problematiza e, portanto. convida à discussão. No mito a inteligibi lidade é dada, na filosofia ela é procurada. A filoso fia rejeita o sobrenatural. a interferência de agentes divinos na explicação dos fenômenos. Ainda mais: a filosofia busca a coerência interna, a definição rigo rosa dos conceitos; organiza-se em doutrina e surge, portanto, como pensamento abstrato. o nascimento da filosofia Capítulo 3 I ..I I J Aquedtl dt koro. Peter Paul Rubens, (16~ 638). Esta tela do pintor flamengo Peter Paul Rubens faz menção a tcaro, personagem mitico. Segundo uma das versões do mito grego, Dédalo e seu filho tcaro estavam presos no labirinto de ereta, corno castigo por ter ajudado Teseu a encontrar o Minotauro e matá-lo. Assim relata Pierre Grirnal: "Dédalo, a quem não faltavam recursos, fabricou para tcaro e para si mesmo umas asas que cotou com cera aos seus ombros e aos do filho. Em seguida, ambos levantaram voo. Antes de partir, Dédalo recomendara a tcaro que não voasse nem muito baixo nem muito alto. tcaro, porém, orgulhoso, não deu ouvidos aos conselhos do pai e elevou-se nos ares, aproximando-se tanto do Sol que a cera derreteu e o imprudente caiu no mar que, a partir desse momento, se chamou Mar Icário".1 A partir da imagem e do relato acima, e antes de ler o capitulo, explique que signüicado um mito teria para os povos da Antiguidade. Em seguida, elabore uma interpretação atual para o mito de tcaro. I Dicionário da. mitologia. grega. e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, s. d. p. 241. 25 Dois relatos míticos Costumamos dizer que a filosofia é grega, por ter nascido nas colônias gregas no século VI a.C. E antes da filosofia, que tipos de pensamentos ocupavam a mente das pessoas? Vamos primeiro examinar o mito, modo de cons ciência que predomina nas sociedades tribaise que nas civilizações da Antiguidade ainda exerceu sig nificativa influência. Ao contrário, porém, do que muitos supõem, o mito não desapareceu com o tempo. Está presente até hoje, permeando nossas esperanças e temores, como veremos. Entre os povos indígenas habitantes das ter ras brasileiras, encontramos várias versões sobre a origem da noite. Um desses relatos é o dos maué, nativos dos rios Tapajós e Madeira. Segundo eles, no início só havia o dia. Cansados da luz, foram ao encontro da Cobra-Grande, a dona da noite. Ela atendeu ao pedido com a condição de que os indí genas lhe dessem o veneno com que os pequenos animais como aranhas, cobras e escorpiões se pro tegiam. Em troca, receberam um coco com a reco mendação de só abri-lo ao chegarem à maloca. Ao ouvirem ruídos estranhos saindo dele, não resisti ram à tentação e assim deixaram escapar anteci padamente a escuridão da noite. Atônitos e perdi dos, pisaram nos pequenos bichos, cujas picadas venenosas mataram muitos deles. Desde então, os sobreviventes aprenderam os cuidados que deve riam tomar quando a noite viesse. De modo semelhante aos maué, os gregos dos tem pos homéricos narram o mito de Pandora, a primeira mulher. Em uma das muitas versões desse mito, Zeus enviou um presente aos humanos, mas com a intenção de puni-los por terem recebido o fogo do titã Prometeu, que o roubara dos Céus. Pandora levava consigo uma caixa, que abriu por curiosidade, deixando escapar todos os males que afligem a humanidade. Conseguiu, porém, fechá-la a tempo de reter a esperança, única maneira de suportarmos as dores e os sofrimentos da vida. Nos dois relatos, percebemos situações aparen temente diversas, mas que se assemelham, pois ambos tratam da origem de algo: entre os indígenas, como surgiu a noite; e entre os gregos, a origem dos males. E trazem como consequências dificuldades que as pessoas devem enfrentar. A leitura apressada do mito nos leva a com preendê-lo como uma maneira fantasiosa de expli car a realidade, quando esta ainda não foi justificada pela razão. Sob esse enfoque, os mitos seriam len das, fábulas, crendices e, portanto, um tipo inferior de conhecimento, a ser superado por explicações mais racionais. Tanto é que, na linguagem comum, costuma-se identificar o ~ à mentira. E ETIMOLOGIA Mito. Mythos, em grego, significa "palavra", "o que se diz", "narrativa". A consciência mítica é predomi nante em culturas de tradição oral, quando ainda não há escrita. o pintor pernambucano Rego Monteiro é um artista do modernismo brasileiro que recorre aos temas dos mitos indígenas. Nessa aquarela. vemos o contraste entre as raízes arcaicas indígenas e o tratamento contemporâneo da imagem. Observe o traço fino. a delicadeza dos gestos - o índio mais parece um bailarino - e a moça. que se deixa levar sem resistência. Ao fundo. a lua emoldura o casal. Que mito está representado na pintura? Oboto é um mamífero cetáceo comum nas águas do Rio Amazonas. Segundo a lenda do Boto'Cor'de-Rosa, à noite ele emerge do rio e se transforma em um belo e irresistivel homem que seduz as moças e as engravida. As mães advertem as filhas para o perigo que ele representa. Tal como na proposta de Rego Monteiro, podemos nos perguntar: o que esse mito tem a nos dizer hoje? o boto. Vicente do Rego Monteiro, 1921 . Unidade 1 Descobrindo a filosofia No entanto, o mito é mais complexo e muito mais expressivo e rico do que supomos quando apenas o tomamos como o relato frio de lendas desligadas do ambiente que as fez surgir. Não só os povos tribais ou as civilizações anti gas elaboram mitos. A consciência mítica persiste em todos os tempos e culturas como componente indissociável da maneira humana de compreender e sobretudo sentir a realidade, como veremos adiante. fJ O que é mito? Como processo de compreensão da realidade, o mito não é lenda, pura fantasia, mas verdade. Quando pensamos em verdade, é comum nos referirmos à coerência lógica, garantida pelo rigor da argumen tação e pela apresentação de provas. A verdade do mito, porém, resulta de uma intuição compreensiva da realidade, cujas raízes se fundam na emoção e na afetividade. Nesse sentido, antes de interpretar o mundo de maneira argumentativa, o mito expressa o que desejamos ou tememos, como somos atraídos pelas coisas ou como delas nos afastamos. Não se trata, porém, de qualquer intuição. Para melhor circunscrever o conceito de mito, precisa mos de outro componente - o mistério -, pois ele sempre é um enigma a ser decifrado e como tal representa nosso espanto diante do mundo. U'PARA REFLEtIR o mistério éalgo que não podemos compreender, por ser inacessível à razão edepender da fé. Um problema éalgo que ainda não compreendemos, mas cuja res posta nos esforçamos para descobrir. Você poderia dar um exemplo de cada um desses conceitos? Segundo alguns intérpretes, o "falar sobre o mundo" simbolizado pelo mito está impregnado do desejo humano de afugentar a insegurança, os temo res e a angústia diante do desconhecido, do perigo e da morte. Para tanto, os relatos míticos se sustentam na crença, na fé em forças superiores que protegem ou ameaçam, recompensam ou castigam. Entre as comunidades tribais, os mitos consti tuem um discurso de tal força que se estende por todas as esferas da realidade vivida. Desse modo, o sagrado (ou seja, a relação entre a pessoa e o divino) permeia todos os campos da atividade humana. Por isso, os modelos de construção mítica são de natu reza sobrenatural, isto é, recorre-se aos deuses para essa compreensão do real. li Os rituais Segundo Mircea Eliade, historiador romeno estu dioso das religiões, uma das características do mito é fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas. Desse modo, os gestos dos deuses são imitados nos rituais. Essa é a justificativa dada pelos teólogos e ritualis tas hindus: "Devemos fazer o que os deuses fizeram no princípio"; ''Assim fizeram os deuses, assim fazem os homens". Eliade exemplifica com a resposta dada pelos arunta, povos nativos da Austrália, a respeito da maneira pela qual celebravam as cerimônias: "Porque os ancestrais assim o prescreveram". Em seus rituais, porém, os arunta não se limitavam a representar ou imitar a vida, os feitos e as aventuras dos ancestrais: tudo se passava como se os antepas sados aparecessem de fato nas cerimônias. O tempo sagrado é, portanto, reversível, ou seja, a festa religiosa não é simples comemoração, mas a ocasião pela qual o evento sagrado, que teve lugar no passado mítico, acontece novamente. Caso con trário, a semente não brotará da terra, a mulher não será fecundada, a árvore não dará frutos, o dia não sucederá à noite. Sem os ritos, é como se os fatos naturais descritos não pudessem se concretizar . • Exemplos de rituais A maneira mágica pela qual os povos tribais agem sobre o mundo pode ser exemplificada pelos inúme ros ritos de passagem: do nascimento, da infância para a idade adulta, do casamento, da morte. Assim diz Mircea Eliade: ... quando acaba de nascer, a criança só dispõe de uma existência física, não é ainda reconhecida pela família nem recebida pela comunidade. São os ritos que se efetuam imediatamente após o parto que conferem ao recém-nascido o estatuto de 'vivo' propria mente dito; é somente graças a estes ritos que ele fica integrado na comunidade dos vivos. [...] Para certos povos, [...] a morte de uma pessoa só é reconhecida como válida depois da realização das cerimõnias funerárias, ou quando a alma do defunto foi ritual mente conduzida à sua nova morada, no outro mundo, e lá embaixo, foi aceito pela comunidade dos mortos 2 ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa: Livros do Brasil, s. d. p. 143-144. Aconsciência mítica Capítulo 2 Ainda hoje, a maioria das religiões contemporâ neas mantém os ritos próprios de sua crença: cul tos, cerimônias, oferendas,preces, templos, festas e objetos religiosos. • Transgressão do tabu No ambiente da tribo, o equilfbrio pessoal depende da preponderância do coletivo, o que facilita a adap tação do individuo à tradição. Ora, no universo em que predomina a consciência coletiva, a desobe diência ultrapassa quem violou a proibição, podendo atingir a familia, os amigos e, às vezes, toda a tribo. É o caso do tabu, termo que significa proibição, interdito, e que entre os povos tribais assume cará ter sagrado. O mais primitivo tabu é o do incesto, mas há inúmeros outros, como o impedimento de tocar em algum objeto, animal ou em alguém. Por exemplo: em algumas tribos indígenas as mulheres menstruadas não devem tocar nos utensílios mas culinos porque, contaminados, provocariam males e desgraças; a vaca é ainda hoje um animal sagrado na Índia e não deve ser molestada. Quando nas tribos a proibição é transgredida, são feitos ritos de purificação, como abster-se de alimentos, retirar-se para local isolado, submeter -se a cerimônias de ablução, em que se lava o corpo ou parte dele. Outros procedimentos são os rituais do "bode expiatório': após a transgressão ter provo cado doença em um individuo ou o mal ter atingido toda a tribo, o sacrifício de animais ou de pessoas é um processo de "expiação', ou seja, de purificação. ++ PARA SABER MAIS Ai nda hoje o termo tabu é usado no sentido sagrado, mas também no não religioso: a proibição de pro nunciar algumas palavras, como as referentes a cer tas partes do corpo, ou evitar dizer"câncer" ou "aids", substituindo os nomes por"aquela doença". Q"tabu" da virgindade feminina foi imposição severa até a década de 1960, quando ocorreu a chamada revolu ção sexual. E ainda se costuma dizer nos jogos que um time"quebrou um tabu" ao vencer outro do qual há muito perdia. · Teorias sobre o mito Entre as inúmeras teorias sobre o mito, citamos as de antropólogos, como Bronislaw Malinowski e Claude Lévi-Strauss; de filósofos, como Ernst Cassirer, Georges Gusdorf, Roland Barthes e Michel Foucault; de psicanalistas, como Sigmund Freud e seu discípulo dissidente CarlJung; de historiadores, como Mircea Eliade e tantos outros. Unidade 1 Descobrindo a filosofia .. As funções do mito Alguns teóricos explicam o mito pela função que desempenha no cotidiano da tribo, garantindo a tra dição e a sobrevivência do grupo. Vejamos alguns exemplos . o A origem da agricultura: segundo o mito indígena tupi, a mandioca, alimento básico da tribo, nasce do túmulo de uma criança cha mada Mandi; no mito grego, Perséfone é levada por Hades para seu castelo tenebroso, mas, a pedido de sua mãe, Deméter, retorna em certos períodos: esse mito simboliza o trigo enterrado como semente e renascendo como planta. o A fertilidade das mulheres: para os arunta, os espíritos dos mortos esperam a hora de renas cer e penetram no ventre das mulheres quando elas passam por certos locais. o O caráter mágico das danças e desenhos: quando os homens pré-históricos faziam pin turas nas paredes das cavernas, representando a captura de renas, talvez não pretendessem enfeitá-las nem apenas mostrar suas habili dades pictóricas, mas agir magicamente, para garantir de antemão o sucesso das caçadas; essa suposição se deve ao fato de que geral mente os desenhos eram feitos nas partes mais escuras da caverna. Pintura rupestre em Lascaux, França, C.15 mil anos atrás. Incesto. Relação sexual entre parentes consanguíneos ou afins. • o caráter inconsciente do mito Outros intérpretes da linha psicológica, como Sigmund Freud, fundador da psicanálise, e seu discípulo dissidente Carl Jung, acentuam o cará ter existencial e inconsciente do mito, como reve lador do sonho, da fantasia, dos desejos mais pro fundos do ser humano. Por exemplo, ao analisar o mito de Édipo, Freud realça o amor e o ódio inconscientes que permeiam a relação familiar. E Jung se refere ao inconsciente coletivo, que seria encontrável nos grupos e nas pessoas em qual quer época ou lugar. • O mito como estrutura Outra linha de interpretação do mito é a do antropólogo Lévi-Strauss, representante da corrente estruturalista. Como o nome diz, trata-se de procu rar a estrutura básica que explica os mais diversos mitos, procedimento que valoriza mais o sistema do que os elementos que o compõem. Os elementos, por serem relativos, só têm valor de acordo com a posição que encontram na estrutura a que perten cem. Ou seja, um fato isolado ou um mito isolado não possuem significado em si. QUEMF:1 Claude Lévi-Strauss (1908 -2009), antropólogo e filó sofo, nasceu na Bélgica e viveu na França. Na década de 1930, foi professor da Universidade de São Paulo e pesquisou tribos indíge nas do Brasil Central. Suas principais obras: A vida familiar e social dos índios nhambiquaras, Tristes tró picos, Antropologia estru turai, O pensamento selva gem, entre outras. Claude Lévi-Strauss, 199°· Mandala pintada por Adelina Gomes (1966). Nise da Silveira (1906-1999) , pioneira da psicologia junguiana no Brasil, dirigiu o Centro Psiquiátrico Pedro lI, no Rio de Janeiro. No tratamento da esquizofrenia, recusou as práticas agressivas, usando recursos diversos, inclusive a pintura, e a partir dela analisava os mitos e os arq.uétipos expressos inconscientemente pelos seus pacientes, como nessa mandala. Para ela, "a configuração de mandalas harmoniosas denotará intensa mobilização de forças autocuratlvas para compensar a desordem interna". No caso de sua paciente Adelina Gomes, a mandala "apresenta notáveis melhoras clinicas. A flor vermelha indica que afetos intensos tendem a organizar-se em torno de um centro. Mas a perigosa serpente de duas cabeças ronda na periferia ainda não incorporada ao circulo".3 Inconsciente coletivo. Para Jung, o inconsciente coletivo é hered itá rio, "idêntico em todos os homens, e constitui um substrato psíquico comum, de natureza suprapessoal, que está presente em cada um de nós". Arquétipo. Segundo Jung, imagens ancestra is e simbólicas que se exprimem por meio do inconsciente pessoal e coletivo, de sonhos, de delírios e em manifestações artí sticas. Mandala. Do sânscrito, "círculo". Segundo Jung, as mandalas são imagens circulares desenhadas, pintadas, modeladas e dançadas que sugerem ordenação, recuperação do equilíbrio, renovação da personalidade. SILVEIRA, Nise da. As imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981. p. 65. A consdênda mítica Capítulo 2 Enquanto outros teóricos interpretam os rrútos pela sua funcionalidade e se baseiam nos elementos particu lares, na pura subjetividade ou na história de um deter minado povo, Lévi-Strauss busca os elementos inva riantes, que persistem sob diferenças superficiais. Para tanto, interessam-lhe os sistemas de rela ções de parentesco, filiação, comunicação lin guistica, troca econômica etc., comuns a todas as sociedades. Por exemplo, uma regra universal é a proibição do incesto. Esse interdito tem o lado posi tivo de garantir a exogamia. ou seja, a união com pessoas de outro grupo. ETIMOLOGIA Exogamia. Palavra composta por dois termos gregos: exo, "fora de", e gamos, "casa mento". Segundo Lévi-Strauss, o mito não é, como se cos tuma dizer, o lugar da fantasia e do arbitrário, mas pode ser compreendido a partir de uma estrutura lógico-formal subjacente, pelo lugar que cada ele mento ocupa em determinada estrutura. Assim ele explica: Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos [através das estruturas] se pensam nos homens, e à sua revelia. q mO mito nas civilizações antigas Até aqui, tudo o que dissemos sobre os mitos nos remete aos povos tribais, cujas relações permane cem igualitárias. Nas sociedades mais complexas, com novas técnicas e ofícios especializados, desen volvimento da agricultura, pastoreio e comércio de excedentes, começaram a se estabelecer hierarquias entre segmentossociais, inclusive introduzindo a escravidão. Assim floresceram as primeiras grandes civili zações, como na Mesopotâmia, no Egito, na Índia, na China e em Israel. As duas primeiras são as mais antigas e teriam surgido por volta do final do quarto milênio a.C. É bom lembrar que essas datas são aproximativas, uma vez que dependem de interpretações históricas muitas vezes diver gentes entre si. Nessas civilizações tão antigas o mito era com ponente importante da cultura, mas as instituições religiosas, por se tornarem mais elaboradas, pro vocaram a separação entre o espaço sagrado dos santuários e o espaço profano da vida cotidiana, O poder era exercido pela classe sacerdotal ou por seu representante máximo, como o faraó, soberano considerado um deus. Esse poder, em alguns casos, tor~ava-se teocrático. O culto exigia monumentos grandiosos, como os templos e as pirâmides, onde eram sepultados os reis. • Os deuses gregos A civilização grega teve início por volta do sécu lo XX a.C. (entre 2000 e 1900 a.C), quando invasores de origem indo-europeia ocuparam o continente, dando início à civilização a ueia (ou micênica). Nessa época a Grécia ainda se chamava Hélade e era constituída por diversas regiões autônomas, mas que mant~veram a língua e a unidade cultural. A religião dos gregos era politeísta, Os deu ses, habitantes do monte Olimpo, eram imortais, embora tivessem comportamentos semelhantes aos dos homens, sendo às vezes benevolentes e também agindo por inveja ou vingança. Entre as obrigações a eles devidas, como oferendas, preces e sacrifícios, destacam-se as peregrinações aos grandes santuá rios, tais como Delfos, onde se consultava o oráculo, como vimos no capítulo anterior. a) Homero Os mitos gregos surgiram quando ainda não havia escrita e eram transmitidos por poetas ambulantes chamados aedos e rapsodos, que os recitavam de cor em praça pública. Nem sempre é possível identificar a autoria desses poemas, por serem produção cole tiva e anônima. ++ PARA SABER MAIS Você sabe como identificar datas tão remotas? Vamos dar um exemplo: o ano de 3500 a.c. per tence a que milênio? Para saber, dividimos 3-500 por 1.000. O resultado é 3 (despreza-se a fração). Acrescentamos 1 e temos 4, ou seja, o ano de 3500 pertence ao 4° milênio. Para saber a que século cor responde este ano, dividimos 3-5°0 por 100 e acres centamos 1. Temos 36, portanto, século XXXVI a.c. Teocracia. Do grego theo, "deus", e kratia, "poder". Poder político que se funda no poder religioso. Aqueu. Oriundo da Acaia. região do norte da Península do Peloponeso. LÉVI-STRAUSS, Claude. ocru e o cozido. São Paulo: Cosac & Nai.fy, 2004. p. 31. Unidade 1 Descobrindo a filosofia Atribuem-se a Homero, um desses poetas, dois poemas épicos, as epopeias JUada e Odisseia. Existem, no entanto, controvérsias a respeito da época em que Homero teria vivido - século IX ou VIII a.C.? - e até se ele realmente existiu. Segundo alguns intérpretes, as epopeias representam fatos e mitos recolhidos por diversos autores, o que se verifica pela diversidade de estilos dos dois poe mas e pelas passagens indicativas de períodos his tóricos diferentes. •• PARA SABER MAIS A llíada trata da guerra de Troia (que em grego é ílion) e a Odisseia, do retorno a ítaca, terra natal de Ulisses (Odisseus é o nome grego de Ulisses). Essa viagem foi cheia de peripécias, por isso cos tumamos chamar de odisseia uma aventura mirabolante. Na vida dos gregos, as epopeias desempenharam um papel pedagógico significativo. Descreviam a história grega - o período da civilização micênica e transmitiam os valores culturais mediante o relato das realizações dos deuses e dos antepas sados. Por expressarem uma concepção de vida, desde cedo as crianças decoravam passagens des ses poemas. As ações heroicas relatadas nas epopeias mos tram a constante intervenção dos deuses, ora para auxiliar o protegido, ora para perseguir o inimigo. O indivíduo é presa do Destino, que é fixo, imutável. Assim diz o troiano Heitor: Nenhum homem me fará descer à casa de Hades contrariando o meu destino. Nenhum homem, afirmo, jamais escapou de seu destino, seja covarde ou bravo, depois de haver nascidoS O herói VlVla, portanto, na dependência dos deuses e do destino, faltando a ele a noção de von tade pessoal, de liberdade. Mas isso não o diminuía diante das pessoas comuns, ao contrário, ter sido escolhido pelos deuses era sinal de valor e em nada essa ajuda desmerecia a virtude do guerreiro belo e bom, que se manifestava pela coragem e pela força, sobretudo no campo de batalha. E ETIMOLOGIA Virtude. Vem do latim vir, virtus; primitivamente, vir significa o homem viril, forte, corajoso. Hades. Éo nome do Deus do Mundo Subterrâneo, que entre os romanos chamava-se Plutão. Também designa o Mundo dos Mortos. Hércules e a Hydra. Antonio di Jacopo Pollaiuolo, 1475. Hércules é o nome romano do semideus grego Héracles, filho de Zeus e de uma mortal. Conhecido por sua força fisica, enfrentou inúmeros desafios, principalmente devido à cólera e vingança da deusa Hera, esposa de Zeus, enciumada pela traição do marido. Na imagem Hércules se cobre com a cabeça e a pele do Leão de Némea, um monstro que matou no primeiro de seus doze trabalhos. Na tela do pintor italiano renascentista, o herói enfrenta a Hidra de Lema, espécie de serpente de várias cabeças que voltavam a crescer depois de cortadas. Segundo intérpretes, a hidra seria o pãntano de Lema - que Hércules conseguira secar - e as cabeças, as nascentes"d'água que até então não paravam de jorrar. Outros comparam a hidra ao delta dos rios, com suas enchentes. Não por acaso, a palavra hidra vem do grego e significa "água". Há nesse relato várias referências ao que vimos até aqui sobre os mitos. Procure identificá-las. Além disso, faça uma interpretação atual do mito, destacando algum acontecimento ou sentimento que poderia ser simbolizado pelo mito da Hidra de Lema. HOMERO.llíada (em forma de prosa). 9. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p. 72. A consciência mítica Capítulo 2 Diferentemente do que hoje entendemos por vir tude, para os gregos esse valor correspondia àexcelência e à superioridade, objetivo supremo do herói guerreiro. Essa virtude se destacava igualmente na assembleia dos guerreiros, pelo poder de persuasão do discurso. PARA REFLETIR o conceito de virtude variou entre os filósofos, mas em geral designa uma disposição ética para realizar o bem, o que supõe autonomia e não mais imposi ção do destino. Você saberia indicar algumas virtu des desejáveis para o convívio humano? b) Hesíodo Hesíodo, outro poeta que teria vivido por volta do final do século VIII e princípios do VII a.c., produziu uma obra com particularidades que tendem a supe rar a poesia impessoal e coletiva das epopeias. Essas características novas são indicativas do período arcaico, que então se iniciava. Mesmo assim, suas obras ainda refletem o inte resse pela crença nos mitos. Em Teogonia, Hesíodo relata as origens do mundo e dos deuses, em que as forças emergentes da natureza vão se transfor mando nas próprias divindades. Por isso a teogo nia é também uma cosmogonia, na medida em que narra como todas as coisas surgiram do ~ para compor a ordem do Cosmo. liiY ETIMOLOGIA Teogonia. Do grego théas, "deus", e ganas, "origem", Cosmogonia. Do grego kósmas, "mundo", "ordem", "beleza". Caos. Para os gregos, o vazio inicial. Por exemplo, do Caos surgiu Gaia, ou Geia (a Terra, elemento primordial), que, sozinha, deu ori gem a Urano (o Céu). Em seguida, uniu-se a Urano, gerando os deuses e as divindades femininas. Um de seus filhos é Cronos (Tempo), que toma o poder do pai e é destronado pelo filho Zeus. Os deuses gregos permaneceram por muito tempo na cultura ocidental da Antiguidade e foram assimilados pelos romanos, com outros nomes. Por exemplo, Cronos é Saturno, Zeus é Júpiter, Atena é Minerva,
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