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Corpos em Aliança e a Política das Ruas* Judith Butler Em "A Política de Gênero e o Direito de Aparecer",1 sugeri que as políticas de gênero devem necessariamente implicar o estabelecimento de alianças com outras populações caracterizadas, de modo bastante abrangente, como populações “precárias”. Sinalizei para certas formas de mobilização que buscam estabelecer o direito que minorias de gênero ou pessoas de gêneros dissidentes têm de andar livremente pelas ruas, de manter seus empregos, de resistir a assédios, patologização e criminalização. Para que a luta pelos direitos das minorias de gênero e sexualidade consista em uma luta por justiça social – ou seja, para que ela venha a ser caracterizada como um projeto democrático radical – é necessário tomarmos consciência de que não somos senão uma única população, que tem sido e pode vir a ser exposta a condições de precariedade e de revogação de direitos políticos. 2 Mais que isto, os direitos pelos quais lutamos são direitos plurais, e esta pluralidade não está previamente circunscrita pela identidade: não se trata de uma luta à qual somente tais e quais categorias identitárias poderiam pertencer, e é certamente uma luta que busca expandir o que estamos querendo dizer quando enunciamos a palavra “nós”. Deste modo, o exercício público do gênero (o exercício público do direito ao gênero) já é, poderíamos dizer, desde sempre um movimento social, um movimento que depende mais fortemente dos laços entre pessoas do que de qualquer noção de “individualismo”. O objetivo de tal exercício é fazer oposição àquelas forças e regimes militares, disciplinares e regulatórios que poderiam nos expor à precariedade. Embora as vidas possam ser tornadas precárias por um grande número de processos ‘naturais’ de adoecimento e desastre, um fatopermanece(como constatamos de modo tão dramático em Nova Orleans durante e após o furação Katrina, em 2005): o modo como as instituições lidam ou deixam de lidar com tais males; como os desastres naturais, em certas regiões, são passíveis de prevenção apenas para certas populações, mas não para outras. Tudo isto conduz a uma distribuição demográfica da precariedade. Isto é verdade, de forma bastante abrangente, para os pobres e os desabrigados, mas também para aqueles que estão expostos à avassaladora insegurança e ao senso de um futuro mutilado, à medida que condições infra estruturais desmoronam ou que o neoliberalismo substitui as instituições que alicerçam a democracia por uma ética empresarial, a qual, por sua vez, exorta até mesmo os mais desprovidos de poder a assumir responsabilidade por suas próprias vidas sem depender de nada ou ninguém além de si mesmos. Tudo se passa como se, sob as condições contemporâneas, houvesse uma guerra contra a ideia de interdependência, contra aquilo a que em outras ocasiões me referi como a ‘rede de mãos’ que tenta minimizar a inviabilidade do viver que é * BUTLER, Judith. “Bodies in Alliance and the Politics of Street” in Notes Toward a Performative Theory of Assembly. Cambridge-Massachusetts: London-England: Harvard University Press, 2015 [tradução para uso didático por Leandro de Oliveira. Belo Horizonte: FAFICH/ UFMG, 2016, mimeo]. 1 Capítulo 01 de Notes Toward a Performative Theory of Assembly. 2 O termo original, “Disenfranchisement”, designa em um sentido estrito a suspensão do direito ao voto em regimes democráticos (N. do T.). vivida por certas vidas. Então, estes conjuntos plurais de direitos – direitos que devemos encarar como coletivos e incorporados – não são modos de afirmar o tipo de mundo em que todo e qualquer um de nós deveria ser capaz de viver. Pelo contrário, eles emergem de uma compreensão de que a condição da precariedade é diferencialmente distribuída, e que a luta contra – ou a resistência a – precariedade tem que estar baseada na demanda de que as vidas sejam tratadas igualmente e que elas deveriam ser igualmente passíveis de serem vividas. Isto significa também que a forma da resistência em si, ou seja, o modo pelo qual comunidades estão organizadas para resistir à precariedade, idealmente exemplifica os próprios valores pelos quais estas comunidades lutam. Alianças que se formaram para exercitar os direitos de minorias sexuais e de gênero devem, em minha visão, formar laços – por mais difícil que isto seja – com a diversidade de sua própria população, e todos os laços que isto implica com outras populações sujeitas a condições de precariedade induzida em nossos tempos. Este processo de construção de conexões, embora difícil, é necessário porque a população das minorias sexuais e de gênero é ela própria “diversificada”, uma palavra que não é precisa o bastante para aquilo que quero aqui dizer. Este coletivo bebe em fontes de classe social, fontes raciais e fontes religiosas muito plurais, cruzando comunidades linguísticas e de formação cultural diversas. O que estou chamando de “aliança” não é somente uma forma social futura; por vezes ela está latente, ou por vezes ela é a estrutura de nossa própria formação enquanto sujeitos, como quando a aliança ocorre dentro de um mesmo sujeito, quando é possível dizer “Eu mesma sou uma aliança”, ou “eu me alio comigo mesma, ou com minhas várias vicissitudes culturais”. Isto significa, tão somente, que o “eu” em questão se recusa a fundamentar um status minoritário ou lugar de precariedade vivida em detrimento de qualquer outro; é um modo de dizer “Eu sou a complexidade que sou, e isto significa que eu estou em relação com outros sob formas que são essenciais a qualquer invocação deste ‘eu’”. Tal visão, que implica a relacionalidade social nos pronomes de primeira pessoa, nos desafia a lidar com a insuficiência de ontologias identitárias para pensar sobre o problema da aliança. Pois o ponto central, aqui, não é afirmar que eu sou uma ‘coleção’ de identidades, mas que eu sou desde sempre uma assembleia, ou assemblage, adaptação por Jasbir Puar de uma noção de Gilles Deleuze.3 Contudo, o que talvez seja o mais importante são aquelas formas de mobilização animadas por uma atenção aumentada ao corte transversal de pessoas sob risco de perder seus empregos e terem suas casas tomadas por bancos; a gama de pessoas que estão diferencialmente sob risco de perseguição nas ruas, criminalização, aprisionamento ou patologização; o contexto racial e religioso daquelas pessoas cujas vidas são marcadas como dispensáveis por aqueles que fazem a guerra. Para mim, esta perspectiva implica a necessidade de uma luta mais generalizada contra a precariedade, uma que emerge de um ‘sentir na pele’4 a precariedade, vivida como uma morte lenta, um senso danificado de tempo, ou uma exposição impossível de manejar à perda 3 Jasbir Puar. Terrorist Assemblages: homonationalism in Queer Times. Durham, NC: Duke University Press, 2007. 4 No original, “a felt sense” (n. do T.). arbitrária, à injúria e à destituição – este é um ‘sentir na pele’ que é, a um só tempo, singular e plural. O objetivo, aqui, não éarregimentar coletividades em prol de formas de igualdade que nos submergiriam, todos, em condições igualmente impossíveis de viver. Pelo contrário:a meta, aqui,consiste em reivindicaruma vida igualmente passível de ser vivida para todos, que é também colocada em cena por aqueles envolvidos na tomada de decisões, e que requer a distribuição igualitária de bens públicos. O oposto da precariedade não é a segurança, mas pelo contrário, a luta por uma ordem política e social igualitária na qual uma interdependência passível de ser vivida se torne possível – o oposto da precariedadedeveria,de imediato, ser a condição de nosso autogoverno enquanto democracia, e sua manutenção continuada deveria ser uma das metas obrigatórias desta governança em si mesma. Caso alguém ache que tergiversei para longe do gênero, asseguro que o gênero ainda está aqui. Pois uma das questões que todo e qualquer grupo representando a emancipação de mulheres, minorias sexuais e minorias de gênero deve obrigatoriamente considerar é a seguinte: o que fazer quando governos estatais ou organizações internacionais buscam defender nossos direitos de modo a explicitamente conduzir campanhas anti-migratórias (como temos visto na França e na Holanda), ou quando o Estado atrai atenção para seu histórico de relativos avanços no campo dos Direitos Humanos de modo a desviar nossa atenção de um histórico atroz de violações no que diz respeito àquelas populações cujos direitos básicos de autodeterminação, movimento e assembleia são negados (como no caso da campanha de pinkswashing em Israel, que deslocanosso olhar para longe da vasta criminalidade envolvida em sua ocupação, confisco de terras e expulsões policiais forçadas)?5 Por mais que nós desejemos nossos próprios direitos ao reconhecimento, devemos necessariamente nos opor a qualquer implementação de reconhecimento público de nossos próprios direitos que esteja servindo para encobrir e desviar o foco da massiva alienação de direitos políticos de terceiros – incluindo, neste caso, mulheres, queers e minorias sexuais e de gênero que estão vivendo desprovidas de direitos básicos de cidadania na Palestina. Retornarei a este tema no capítulo III, onde considero não somente o que significa “se aliar ao outro”, mas o que significa viver com o outro. Tentarei mostrar adiante que uma política de aliança resta sobre (e requer) uma ética da coabitação. Contudo, por ora, gostaria de dizer que, se a alocação de direitos a um grupo é instrumentalizada visando a alienação de direitos fundamentais de outro, então o grupo ao qual estes direitos são conferidos está, seguramente, obrigado a recusar os temos pelos quais o direitos e reconhecimento político e jurídico estão sendo concedidos. Isto não significa que qualquer um de nós deva abrir mão de direitos conquistados, mas que nós precisamos necessariamente reconhecer tais direitos são providos de significado tão somente em meio a uma luta 5 Nota do Tradutor: a noção de “Pinkwashing” (ao pé da letra, ‘limpeza rosa’) sinaliza para a estratégias governamentais pelas quais Estados democráticos, ao se apresentarem como amigáveis para com populações LGBT, retratariam a si mesmos como “modernos”, cosmopolitas, atrativos para turistas e politicamente liberais (apresentando outras populações, como os palestinos, enquanto coletivos bárbaros que precisariam ser civilizados, justificando deste modo ações violentas junto a tais populações). Ver PUAR, Jasbir. "Israel's gay propaganda war". The Guardian. 1º de julho de 2010. https://www.theguardian.com/commentisfree/2010/jul/01/israels-gay-propaganda-war mais ampla por justiça social – e reconhecer que, se direitos são diferencialmente distribuídos, então a desigualdade está sendo instituída através da legitimação e implementação tática de direitos de gays e lésbicas. Como corolário disto, sugiro que relembremos que o termo queer não designa identidades, mas alianças, e que ele é um bom termo para se invocar à medida que façamos alianças desconfortáveis e imprevisíveis na luta por justiça social, política e econômica. Vez após vez, sucessivamente, manifestações de massa ganham lugar nas ruas e nas praças, e embora estas sejam frequentemente motivadas por propósitos políticos muito diferentes, ainda assim algo similar acontece: corpos se congregam, corpos se movem e falam juntos, e eles reivindicam certo espaço enquanto um espaço público. Seria bem mais fácil dizer que estas manifestações – ou, de fato, estes movimentos – são caracterizados por corpos que se ajuntam para fazer uma reivindicação no espaço público. Contudo, esta formulação presume que o espaço público já é dado, que ele já é desde sempre público e reconhecível enquanto tal. Se não percebermos que, quando estas multidões se ajuntam, o próprio caráter público do espaço está sendo objeto de disputa ou até mesmo de luta, estaremos deixando escapar algo do sentido destas manifestações. Então, embora estes movimentos tenham dependido da existência prévia do pavimento,da rua e da praça (e tenham por vezes o bastante se reunido em praças tais como a Tahrir Square,6 cuja história política é potente), é igualmente verdade que as ações coletivas coletam o próprio espaço, ajuntam e colhem os pavimentos, animam e organizam a arquitetura.7 Por mais que se deva insistir na necessidade de certas condições materiais para a assembleia pública e a fala pública, precisamos também questionar como a assembleia e a fala reconfiguram a materialidade do espaço público e produzem ou reproduzem o caráter público daquele ambiente material. E quando multidões se movem para fora da praça, para ruelas menores e becos, para as vizinhanças em que as estradas ainda não estão pavimentadas, então algo a mais ocorre. Em momentos deste tipo, a política não está definida como algo que ocorre exclusivamente na esfera pública (enquanto algo distinto da esfera privada); ao contrário, a política cruza estas linhas divisórias por sucessivas vezes, chamando atenção para o modo como a política já existe dentro de casa, ou nas ruas, ou na vizinhança, ou de fato naqueles espaços virtuais que não estão limitados pelas arquiteturas da casa ou da rua. Então, quando refletimos sobre o que significa se agregar formando uma multidão, uma multidão crescente, e sobre o que significa se mover através do espaço público de um modo que contesta a distinção entre público e privado, entãose torna possível perceber alguns dos modos pelos quais os corpos, em sua pluralidade, reivindicam o espaço público, encontram e produzem o público 6 A Tahir Square ("Praça da Liberdade", também conhecida como "Praça dos Mártires") é uma praça pública do Cairo, palco de diversas manifestações coletivas em oposição ao governo do presidente Hosni Mubarak no período que antecedeu a Revolução Egípcia de 2011 (N. do T.). 7 A autora aqui joga com o sentido, em língua inglesa, das noções de “collect” e “gather” (correspondentes aos verbos coletar/ juntar em língua portuguesa) e noções correlatas, sugerindo que o espaço, para se tornar coletivo, precisa ser coletado/ coletivizado pela coletividade que o ocupa (N. do T.). confiscando e reconfigurando a matéria dos ambientes materiais. Ao mesmo tempo, estes ambientes materiais são parte da ação – e no momento em que se tornam suporte para a ação, os próprios ambientes materiais também atuam. De modo similar, quando caminhões ou tanques se tornam inoperantes, e oradores subitamente escalam sobre eles para falar à multidão, o instrumento militar se torna em si mesmo um suporte ou plataforma para a resistência não-militar. Em tais momentos, o ambiente material é ativamente reconfigurado e refuncionalizado, para usar a expressão de Brecht. E em consequência disto, nossas noções de “ação” precisam ser repensadas. Em primeiro lugar, ninguém mobiliza uma reivindicação de se mover e de se reunir livremente sem estar já, de fato, se movendo e se reunindo com outros. Em segundo lugar, a praça e a rua não são apenas suportes materiais para a ação, mas são em si mesmas parte de qualquer narrativaou interpretação que possamos porventura propor sobre a ação corporal pública. A ação humana depende de todo tipo de suporte:ela é, sempre, uma ação amparada. Sabemos, a partir dos Disability Studies, que a capacidade de movimento depende de instrumentos e superfícies que tornem o movimento possível, e que o movimento corporal é sustentado e facilitado por objetos não-humanos e suas capacidades particulares de agência. No caso das assembléias públicas, vemos muito claramente a luta por aquilo que se tornará “espaço público”, mas também uma luta igualmente fundamental sobre como os corpos serão amparados no mundo: luta por emprego e educação, luta por distribuição equitativa de comida, luta por abrigos minimamente habitáveis, luta por liberdade de movimento e expressão(apenas para listar algumas de suas formas). Isto, claro, produz um dilema. Não podemos agir sem suportes de algum tipo, e ainda assim, precisamos lutar pelos suportes que nos permitem agir, ou que, de fato, são componentes essenciais para nossa ação. Foi a ideia romana de praça pública que formou o pano de fundo para a compreensão de Hanna Arendt dos direitos à assembleia e à liberdade de expressão, à liberdade de ação e de exercício de direitos. Hanna Arendt, seguramente, tinha tanto a pólis grega quanto o fórum romano em mente quando alegou que toda ação política requer um “espaço de aparecimento”. Ela escreve, por exemplo: “a pólis, propriamente falando, não é a cidade-estado em sua localização física; ela é a organização das pessoas, à medida que esta emerge do agir e do falar em conjunto, e seu verdadeiro espaço está situado entre as pessoas vivendo juntas com este propósito, não importando onde elas por acaso estejam”.8 O espaço “verdadeiro”, então, está situado “entre as pessoas”, o que significa que, na medida em que uma ação qualquer tem lugar em um espaço localizado qualquer, ela também estabelece um espaço que pertence, de direito, à aliança em si mesma. Para Arendt, esta aliança não está atrelada a sua localização. De fato, a aliança acarreta sua própria localização, a qual é altamente permutável e transponível. Nas palavras dela: “a ação e a fala criam um espaço entre os 8 ARENDT, Hanna. The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press, 1958, p. 198. participantes que pode encontrar sua localização apropriada em praticamente qualquer lugar e qualquer momento”. 9 Então, como deveríamos compreender esta noção de espaço político altamente, senão infinitamente, transponível? Quando Arendt afirma que a política requer um espaço para seu aparecimento, ela também afirma que o espaço acarreta a política: “é o espaço de aparecimento, no sentido mais amplo da palavra (nomeadamente, o espaço onde eu apareço para outros enquanto estes também aparecem para mim), o lugar onde os homens [sic] existem não meramente como outras coisas viventes ou inanimadas, mas explicitamente fazem sua aparição”.10 Algo do que ela diz, aqui, seguramente é verdadeiro. Espaço e localização são criados através de ações plurais. E ainda assim, na visão dela, a ação (em sua liberdade e seu poder) tem a capacidade exclusiva de criar localizações. Uma visão deste tipo esquece ou recusa que a ação é sempre amparada, e que é invariavelmente corporal – até mesmo, como argumentarei, em suas formas virtuais. Os suportes materiais para a ação não são apenas parte da ação, mas também são aquilo pelo que se luta, especialmente naqueles casos em que a luta é por comida, emprego, mobilidade e acesso a instituições. Para repensar o espaço de aparecimento de modo a compreender o poder e os efeitos das manifestações públicas de nossa época, precisaremos considerar mais de perto as dimensões corporais da ação, considerar o que o corpo requer e o que o corpo pode fazer, 11 especialmente quando precisamos pensar sobre corpos ajuntados em um espaço histórico que atravessa uma transformação histórica em virtude de sua ação coletiva. O que os mantém unidos ali, e quais são suas condições de persistência e de poder em relação a sua precariedade e exposição? Eu gostaria de pensar sobre este itinerário pelo qual viajamos do espaço de aparecimento à política contemporânea das ruas. Com estas palavras, não posso ter a esperança de agregar todas as formas de demonstração que temos visto, algumas das quais são episódicas, algumas das quais são parte de movimentos políticos em curso e recorrentes, e algumas das quais são revolucionárias. Espero refletir sobre o que poderia juntar estes ajuntamentos, estas manifestações públicas. Durante o inverno de 2011, elas incluíram manifestações contra regimes tirânicos na África do Norte e no Oriente Médio, mas também contra a escalada da precarização de populações trabalhadoras na Europa e no hemisfério sul, assim como as lutas por educação pública nos EUA e na Europa e, mais recentemente, no Chile, e lutas para tornar a rua mais segura para mulheres e minorias sexuais e de gênero – incluindo aqui as pessoas trans, cuja aparição pública é com muita frequência punível por meio de violência legal e ilegal. Em assembleias públicas de pessoas trans e queer, alega-se frequentemente que é preciso 9 Ibid. 10 Ibid., p. 199. 11 "O ponto de vista de uma ética é: de que você é capaz, o que você pode fazer? Daí o retorno a esta espécie de lamento de Espinoza: o que um corpo pode fazer? Nós nunca sabemos antecipadamente o que um corpo pode fazer. Nós nunca sabemos de que modo estamos organizados e como os modos possíveis de existência estão embalados dentro de alguém". DELEUZE, Gilles. Expressionism in Philosophy: Spinoza. New York, Zone Books, 1992 [p. 217-234]. Esta abordagem difere da dele sob diversos aspectos, notadamente por considerar os corpos em sua pluralidade, mas também por perguntar: quais são as condições dentro das quais um corpo pode de fato fazer qualquer coisa? tornar as ruas mais seguras contra a violência de policiais cúmplices da criminalidade, especialmente naquelas ocasiões quando, por exemplo, a própria polícia comete os crimes contra minorias sexuais e de gênero que ela supostamente deveria prevenir. Manifestações são uma dentre as muitas maneiras pelas quais o poder policial é sobrepujado, especialmente quando tais assembleias de tornam simultaneamente muito amplas ou muito móveis ou muito condensadas ou muito difusas para serem passíveis de contenção pelo poder policial, e quando elas têm os recursos necessários para se regenerar de imediato. Talvez estes sejam movimentos anarquistas ou passagens anarquistas, quando a legitimidade de um regime ou de suas leis é colocada em questão, mas quando nenhum novo regime legal chegou ainda para tomar seu lugar. Neste tempo de intervalo os corpos em assembleia articulam um novo tempo e um novo espaço para a vontade popular – não uma vontade única e idêntica, não uma vontade unitária, mas uma vontade que é caracterizada pela aliança entre corpos distintos e adjacentes cuja ação e cuja inação demandam um futuro diferente. Em conjunto, eles exercem o poder performativo de lançar reivindicações ao público, de um modo que não está ainda codificado na lei e que nunca poderá ser plenamente codificado sob a forma da lei. E esta performatividade não é somente discurso, mas demandas apresentadas na ação corporal, do gesto, da movimentação, da congregação, da persistência e da exposição à possível violência. Como podemos compreender este agir em conjunto que abre o tempo e o espaço fora e contra a arquitetura estabelecida e a temporalidade do regime, que reivindica a materialidade, se ampara em seu suporte, e suga de suas dimensões técnicas e materiais visando retrabalhar suas funções? Tais ações reconfiguram o que virá a ser o“público” e o espaço da política. Meu pensamento se tensiona com o de Hannah Arendt, até mesmo quando me amparo em seus recursos para tornar mais clara minha própria posição. O trabalho dela suporta minha ação aqui, mas eu também o recuso sob certos aspectos. A visão de Arendt se vê embaraçada por sua própria política de gênero, por depender de uma distinção entre os domínios “público” e “privado” que deixa a esfera da política para os homens e o trabalho reprodutivo para as mulheres. Se há um corpo na esfera pública, este é presumivelmente masculino e desvinculado de suporte; ele é presumivelmente livre para criar, mas ele próprio não-criado. E o corpo na esfera privada é feminino, estrangeiro, em envelhecimento ou infantil, e sempre pré-político. Embora Arendt tenha sido, como aprendemos a partir do importante trabalho de Adriana Cavarero, uma filósofa da natalidade,12ela compreendia esta capacidade de trazer algo à existência como uma função do discurso e da ação política. De fato, quando os cidadãos homens entram em praça pública para debater questões de justiça, vingança, guerra e emancipação, eles tomam a iluminada praça pública como dada, como o teatro delimitado para seu exercício da fala. E a fala se torna a forma paradigmática da ação destes cidadãos homens, fisicamente lacerada do espaço privado – o qual, por sua vez, existe envolto em 12 CAVARERO, Adriana. For More than one voice: toward a philosophy of vocal expression. Palo Alto, CA: Stanford University Press, 2005. escuridão, reproduzido por meio de atividades que não são exatamente “ação” no sentido próprio e público do termo. Os homens transitam daquela escuridão privada à claridade pública; uma vez assim iluminados, eles falam, e sua fala interroga os princípios de justiça que ela própria articula, se tornando em si mesma uma forma de questionamento crítico e participação democrática. Arendt, repensando esta cena clássica em meio à modernidade política, compreende a fala como o exercício corporal e linguístico de direitos. “Corporal” e “linguístico”: como poderíamos nós reconceber estes termos e seu entrelaçamento, aqui, indo contra e além daquela pressuposição de uma divisão do trabalho marcada pelo gênero? Para Arendt, a ação política tem lugar sob a condição de que o corpo apareça. Eu apareço para outros, e eles aparecem para mim, o que significa que um espaço existente entre nós possibilita, a cada um de nós, aparecer. Poder-se-ia esperar que aparecêssemos no interior de um espaço, ou que somos amparados por uma organização prévia do espaço. Mas este não é o argumento dela. A esfera do aparecimento não é simples, pois ela parece aparecer somente sob a condição de um confronto ‘cara a cara’ intersubjetivo. Nós não somos, uns para os outros, meros fenômenos visuais: nossas vozes precisam ser registradas; logo, precisamos ser ouvidos. Pelo contrário: aquilo que nós somos, corporalmente, é desde sempre um modo de ser “para” o outro, aparecendo sob formas que nós mesmos não podemos ver e ouvir; isto nos torna corporalmente disponíveis para um outro cuja perspectiva não podemos jamais antecipar ou controlar plenamente. Enquanto um corpo,eu não existosomente para mim mesma – ou sequer primariamente para mim mesma – mas eu me descubro(se é que chego ame descobrir)constituída e despossuída pela perspectiva de outros. Então, para que haja ação política, devo necessariamente aparecer para outros sob modos que não tenho como conhecer; neste sentido, meu corpo é estabelecido por perspectivas que não sou capaz de habitar, mas que seguramente me habitam. Este é um ponto importante porque não se trata, somente, de que o corpo estabeleça minha própria perspectiva; ele também é aquilo que desloca essa perspectiva e faz deste deslocamento uma necessidade. Isto ocorre com mais clareza quando consideramos corpos que agem em conjunto. Nenhum corpo particular estabelece o espaço de aparecimento, mas esta ação, este exercício performativo, acontece tão somente “entre” corpos, em um espaço que constituí o vão entre meu próprio corpo e o corpo de outrem. Deste modo, quando meu corpoage politicamente, ele não age sozinho. De fato, a ação emerge do “entre” (between), uma metáfora espacial para uma relação que simultaneamente vincula e diferencia. É tão problemático quanto interessante que, para Arendt, o espaço de aparecimento não seja um mero dado arquitetônico: “o espaço de aparecimento ganha existência”, ela escreve, “em qualquer momento no qual os homens estão agregados no modo de fala e de ação, e deste modo pré-data e precede toda constituição formal do domínio público e das diferentes formas de governo, ou seja, as várias formas pelas quais o domínio público pode vir a ser organizado”. 13 Em outras palavras, este espaço de aparecimento não é uma localização física que possa ser dissociadada ação plural que o traz à 13 ARENDT, Hanna. The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press, 1958, p. 199. existência; ele não existe fora da ação que o invoca e o constitui. E ainda assim, se aceitarmos esta perspectiva, temos que tentar compreender como esta pluralidade que age é, ela própria, constituída. Como uma pluralidade se forma, e quais amparos materiais são necessários para tal formação? Quem ingressa e quem não ingressa nesta pluralidade, e como tais assuntos são decididos? Como poderíamos descrever a ação e o status daqueles seres que são desagregados do plural? Que linguagem política nós temos reservada para descrever tal exclusão e para descrever as formas de resistência que quebram e abrem o modo corrente de delimitação da esfera de aparecimento? Aqueles que vivem fora da esfera de aparecimento seriam as inanimadas ‘obviedades’ da vida política?14 Seriam eles mera vida, ou vida nua? Deveríamos dizer que aqueles que são excluídos são simplesmente irreais, que estão desaparecidos, que não têm existência de todo – deveriam eles ser banidos teoricamente, como os socialmente mortos e os meramente espectrais? Se fizermos isto, nós não apenas estaremos adotando a posição de um regime de aparecimento particular, mas ratificando esta perspectiva, ainda que nosso desejo seja questioná-la. Tais formulações porventura descrevem um estado de se tornar destituído por arranjos políticos existentes, ou seria esta destituição involuntariamente ratificada por uma teoria que adota a perspectiva daqueles que regulam e policiam a esfera do aparecimento em si mesma? Está em jogo, aqui, a questão de estabelecer se os destituídos se encontram fora da política e do poder, ou se eles estão de fato vivenciando uma forma específica de destituição política, paralelamente a formas de agência política e de resistência que expõem o policiamento das fronteiras da própria esfera de aparecimento. Se assumíssemos que os destituídos se encontram fora da esfera da política – reduzidos a formas despolitizadas de existência – estaríamos implicitamente aceitando como corretos os modos dominantes de estabelecimento de limites do político. Isto, sob certos aspectos, é um desdobramento da posição Arendtiana (que adota o ponto de vista da polis Grega sobre o que a política deveria ser, sobre quem deveria ganhar entrada na praça pública, e quem deveria permanecer na esfera privada). Tal visão desconsidera e desvaloriza aquelas formas de agência política que emergem precisamente naqueles domínios tidos como pré-políticos ou extra políticos e que invadem a esfera de aparecimento tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora, confundindo a distinção entre o interior e o exterior.Pois, em momentos de revolução ou insurreição, não estamos mais tão seguros sobre o que funciona como o espaço da política, do mesmo modo como, frequentemente, nos sentimos inseguros sobre em que tempo exatamente estamos vivendo (dado que os regimes estabelecidos de espaço e tempo se encontram virados de ponta cabeça, sob formas que expõem sua violência e seus limites contingentes). Como mencionei anteriormente, isto se torna perceptível quando trabalhadores sem documentação se agregam na cidade de Los Angeles para reivindicarem seus direitos de assembleia e cidadania sem serem cidadãos, sem terem qualquer direito legal para agirem deste modo. Seu trabalho, espera-se, deveria 14 No original, “the deanimated givens of political life” (N. do T.). permanecer indispensávele ocultado ao olhar – logo, quando estes corpos que laboram emergem na estrada, agindo como cidadãos, eles fazem uma reivindicação mimética à cidadania que altera não somente como eles aparecem, mas como a esfera do aparecimento opera. De fato, a esfera do aparecimento é simultaneamente mobilizada e desabilitada quando uma categoria trabalhadora e explorada emerge nas ruas para anunciar a si própria e expressar sua oposição a seguir existindo como a condição não- visível daquilo que aparece como “político”. O ímpeto subjacente à noção de Giorgio Agamben de “vida nua”15 deriva da própria concepção de polis na filosofia de Arendt e, eu sugeriria, corre o risco de incorrer neste mesmo problema: se buscarmos dar conta da exclusão em si como um problema político, como parte da política em si mesma, então não dá pra afirmar que, uma vez excluídos, estes seres carecem de visibilidade ou “realidade” em termos políticos, que eles não têm qualquer posição social ou política, ou que são banidos e reduzidos a meramente existir (reduzidos a formas de existência naturalizadas, 16 cujo acesso à esfera da ação é obstruído). Nada de tão metafisicamente extravagante precisa acontecer, se concordarmos que uma das razões pelas quais a esfera do político não pode ser definida pela concepção clássica de polis é que esta concepção nos despoja da possibilidade de ter e usar uma linguagem para aquelas formas de agência e resistência assumidas pelos despossuídos. Aqueles que se encontram em posições de exposição radical à violência, sem contar com proteções políticas básicas sob a forma de lei, não estão por este motivo situados ‘fora’ do político ou despojados de toda e qualquer forma de agência. Precisamos, decerto, de uma linguagem para descrever esse status de exposição inaceitável, mas temos que ser cuidadosos para que a linguagem que empregamos não despoje ainda mais tais populações de todas as formas de agência e resistência, de todos os modos de cuidar um do outro ou estabelecer redes de suporte. Embora Agamben tome de empréstimo ideias de Foucault para articular uma concepção do biopolítico, a tese da “vida nua” persiste intocada por tal concepção. Como resultado, é impossível no interior desse vocabulário descrever os modos de agência e ação assumidos pelos apátridas e pelos desprovidos de direitos, dado que até mesmo a vida despojada de direitos está, ainda assim, em meio à esfera do político e deste modo não pode ser reduzida meramente ao “existir”. Este modo de vida é, com bastante frequência, zangado, indignado, crescente e resistente. Estar do lado de fora das estruturas estabelecidas e legítimas da política é, ainda assim, estar saturado por relações de poder, e esta saturação é o ponto de partida para uma teoria do político que abarque formas dominantes e subjugadas, que abarque modos de inclusão e legitimação tanto quanto modos de deslegitimação e supressão. Por sorte, creio que Arendt não seguia consistentemente este modelo apresentado emA Condição Humana, motivo pelo qual, por exemplo, no início dos anos 1960 ela se voltou novamente para o destino de refugiados e apátridas, e veio a afirmar sob uma 15 AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: sovereign power and bare life. Palo Alto, CA: Stanford Univ. Press, 1998. 16 No original em língua inglesa, “forms of givenness” (N. do T.). maneira distinta o direito de ter direitos. 17 O direito de ter direitos independe, para sua legitimidade, de qualquer forma de organização. Assim como o espaço de aparecimento, o “direito de ter direitos” pré-data e precede qualquer instituição política que poderia codificar ou tentar garantir tal direito; ao mesmo tempo, ele não deriva de qualquer conjunto de leis naturais. Este direito ganha existência quando é exercido, e ele é exercido por aqueles que agem de maneira orquestrada, em aliança. Aqueles que são excluídos da política existente, que não pertencem a qualquer Estado-nação ou formação estatal contemporânea, podem ser considerados “irreais” tão somente por outros que buscam monopolizar os termos da realidade. E ainda assim, mesmo depois que a esfera pública foi definida através de sua exclusão, eles agem. Quer tenham sido eles abandonados à precariedade ou deixados para morrer através de negligência sistemática, a ação orquestrada, ainda assim, emerge de seu agir em conjunto. E é isto que nós vemos, por exemplo, quando trabalhadores sem documentos se amontoam na rua sem qualquer direito legal a isto; quando posseiros reivindicam construções na Argentina como um modo de exercer o direito a abrigos habitáveis; quando populações reivindicam uma praça pública que até então pertencera aos militares; quando refugiados tomam parte em levantes coletivos demandando abrigo, comida e direito a asilo político; quando populações se ajuntam sem a proteção da lei e sem permissão para se manifestar, visando colocar abaixo um regime jurídico criminoso ou injusto, ou visando protestar contra medidas de austeridade que destroem a possibilidade de emprego e educação para muitos. Ou quando aqueles cuja aparição pública é, em si, criminosa – pessoas transgênero na Turquia ou mulheres que usam o véu na França – aparecem visando contestar este status criminoso e afirmar seu direito de aparecer. A lei francesa, que proíbe tanto a exibição religiosa “ostentosa” em público quanto o ocultamento da face, busca estabelecer uma esfera pública na qual a indumentária permaneça um significante do secularismo e a exposição da face se torne uma norma pública. A proibição contra o ocultamento da face serve a certa versão do direito de aparecer, entendida como o direito das mulheres de aparecerem descobertas. Ao mesmo tempo, ela nega o direito de aparecer para esses mesmos grupos de mulheres, requisitando a elas que desafiem normas religiosas em favor de normas públicas. Este ato requerido de desfiliação religiosa se torna mandatório quando a esfera pública é entendida enquanto esfera que sobrepuja ou nega as formas religiosas de pertencimento. A noção, prevalente no debate Francês, de que mulheres que vestem o véu não poderiam de modo algum estar agindo com base em qualquer espécie de “escolha” faz operar no debate sobre o véu, incólumes, flagrantes atos de discriminação contra minorias religiosas que a lei põe em cena. Pois uma escolha que é claramente feita entre aquelas que vestem o véu consiste em não ceder a tais formas de desfiliação compulsória que condicionam a entrada na esfera pública. Aqui, como em outros lugares, a esfera de aparecimento é altamente regulada. O fato de que estas mulheres possam estar vestidas de um dado modo, e não de outro, constitui uma política 17 A primeira análise dela sobre o direito de ter direitos nocontexto de refugiados ocorreu em 1943, quando ela escreveu "Nós, Refugiados" no The Menorah Jornal. Ver também o breve comentário de Agamben sobre este ensaio: http://roundtable.kein.org/node/399. indumentária da esfera pública, mas o “desvelamento” compulsório também o é: ele é, primeiramente e em si mesmo, um sinal de pertencimento à esfera pública, e apenas secundariamente (ou privadamente) um sinal de pertencimento à comunidade religiosa. Isto é especialmente destacado no tocante a mulheres muçulmanas cuja afiliação a versões variadas dos domínios público, secular e religioso podem muito bem ser limítrofe ou sobreposta. E isto mostra, de modo particularmente claro, que o que é chamado de “esfera pública” em tais casos é construído através de exclusões constitutivas e formas compulsórias de repúdio. Paradoxalmente, o ato de se conformar a uma lei que requer a retirada do véu é o meio pelo qual uma “liberdade de aparecer” – decerto altamente comprometida ou até mesmo violenta – se estabelece. De fato, naquelasmanifestações coletivas que frequentemente sucedem atos de luto público – como ocorreu frequentemente na Síria, antes que metade de sua população se tornasse em refugiados, onde multidões de pessoas em luto se tornaram alvos de destruição militar – podemos ver como o espaço público existente é confiscado por aqueles que não têm direito de nele se ajuntar, que emergem de zonas de desaparição para tornar certos corpos expostos à violência e à morte no processo mesmo de se reunir e persistir publicamente. De fato, é o direito à assembleia, livre de intimidação e ameaça de violência, que é sistematicamente atacado pela polícia, pelo exército, por gangues contratadas ou mercenários. Atacar tais corpos é atacar o direito em si mesmo, pois quando estes corpos aparecem e agem, eles estão exercendo um direito fora, contra e em face do regime. Embora os corpos ocupando a rua estejam vocalizandosua oposição à legitimidade do Estado, eles estão também, por ocuparem e persistirem naqueles espaços sem proteção, lançando seu desafio em termos corporais. Isto significa que quando o corpo “fala” politicamente, ele não o faz apenas por meio da linguagem vocal ou escrita. A persistência do corpo em sua exposição coloca essa legitimidade em questão, e o faz, precisamente, através de uma performatividade do corpo. 18 A ação e o gesto significam e falam, tanto enquanto ação quanto como reivindicação; ambos são, em última instância, inextricáveis. Onde a legitimidade do Estado é colocada em questão justamente por este modo de aparecer em público, o corpo, em si, exercita um direito que não é direito; em outras palavras, ele exercita um direito que está sendo ativamente contestado e destruído pela força militar e que, em sua resistência à força, articula seu modo de vida mostrando simultaneamente sua precariedade e seu direito de persistir. Este direito não está codificado em lugar algum. Ele não é concedido a partir de outro lugar ou pela lei vigente, mesmo que nesta ou naquela ocasião ele encontre suporte justamente ali. Ele é, de fato, o direito de ter direitos, não enquanto lei natural ou estipulação metafísica, mas como persistência do corpo contra aquelas forças que buscam debilitá-lo ou erradicá-lo. Esta persistência requer que se invada o regime estabelecido do espaço com um conjunto de suportes materiais, simultaneamente mobilizados e mobilizantes. 18 GAMBETTI, Zeynep. "Occupy Gezi as Politics of the Body" in Umut Özkirimli (ed) The Making of a Protest Movement in Turkey. Basingstoke: Palgrave Pivot, 2014. Apenas para deixar isto claro: não estou me referindo aqui a um vitalismo, ou a um direito à vida enquanto tal. Pelo contrário, estou sugerindo que as reivindicações políticas que são feitas por corpos à medida que estes aparecem e agem, à medida que eles recusam e à medida que eles persistem sob condições nas quais este fato, per si, ameaça retirar a legitimidade do Estado. Pois na proporção em que corpos são expostos a poderes políticos, eles também reagem ao fato de estarem sendo deste modo expostos, exceto naqueles casos em que as próprias condições da possibilidade de reação foram dizimadas. Embora eu não duvide que seja possível assassinar a capacidade de reagir em outra pessoa, considero prudente evitarmos tomar essa imagem de total dizimação como um meio para descrever a luta dos despossuídos. Embora seja sempre possível que nos enganemos ao exagerar na direção oposta, alegando que onde quer que haja poder existe resistência, seria um erro recusar a possibilidade de que o poder nem sempre opere em conformidade com suas metas, e que formas viscerais de rejeição podem transbordar e assumir significativas formas coletivas. Em tais situações, os corpos são em si mesmos vetores do poder onde a direcionalidade da força pode ser revertida; eles são interpretações corporalizadas, se engajando na ação em aliança, de modo a se contrapor a outro tipo e qualidade de força. Por um lado, estes corpos são produtivos e performativos. Por outro lado, eles podem persistir e agir somente quando são sustentados: pelo ambiente, pela alimentação, pelo trabalho, por modos de socialidade e pertencimento. E quando estes suportes desmoronam e a precariedade é exposta, eles são mobilizados de um modo distinto, se apropriando dos suportes que existem de modo a reivindicar que não pode haver vida corporal sem suporte social e institucional, sem emprego, sem redes de interdependência e assistência/cuidado, sem direitos coletivos a abrigo e mobilidade. Não somente eles lutam pela ideia de suporte social e acesso a direitos políticos, mas sua luta é sua própria forma social. E assim, se as circunstâncias forem apropriadas, uma aliança começa a colocar em cena – através do estabelecimento de seus próprios modos de sociabilidade – a ordem social que ela almeja constituir. E ainda assim, esta aliança não é redutível a uma coleção de indivíduos e, falando estritamente, não são indivíduos que estão agindo. Além disto, a ação em aliança acontece precisamente entre aqueles que participam, e este não é um espaço ideal ou vazio. Esse intervalo é o espaço da socialidade e do suporte, o espaço de ser constituído em uma socialidade que não é, jamais, redutível à perspectiva de alguém isolado ou a ser dependente de uma estrutura sem a qual não haveria qualquer vida durável e passível de ser vivida. Muitas das manifestações massivas e modos de resistência que temos visto nos últimos meses não somente produzem um espaço de aparecimento, elas se apossam de um espaço já estabelecido e permeado por poderes existentes, de modo a lacerar as conexões existentes entre o espaço público, a praça pública e o regime vigente. Desde modo, as fronteiras do político são expostas e a ligação do teatro da legitimidade com o espaço público é rompida; esse teatro já não é mais abrigado no espaço público de forma não-problemática, posto que o espaço público agora ocorre em meio a uma outra ação, uma ação que desloca o poder que alega legitimidade se apossando, justamente, do campo formado por seus efeitos. Dito de maneira simples, os corpos na rua reimplantam o espaço de aparecimento de modo a contestar e negar as formas existentes da legitimidade política – e à medida que estes corpos ocupam ou se apossam do espaço público, a história material daquelas estruturas também opera sobre eles, tornando-se parte de sua própria ação, refazendo uma história enquanto imersos em meio aos mais concretos artifícios dessa história. Estes são atores subjugados e empoderados que tentam tomar à força a legitimidade de um aparato estatalvigente que depende da regulação do espaço público de aparecimento para sua auto constituição teatral. Ao tomarem à força este poder, um novo espaço é criado, um novo lugar “entre” corpos, por assim dizer, que reivindica o espaço existente através da ação de uma nova aliança, e estes corpos são capturados e animados por estes espaços existentes nos próprios atos pelos quais eles reclamam e ressignificam o sentido de tais espaços. Tal luta interfere na organização espacial do poder, o que inclui a alocação e restrição de posicionamentos espaciais nos quais e através dos quais qualquer população poderia vir a aparecer, implicando uma regulação espacial de quando e como a “vontade popular” poderia aparecer. Esta visão das restrições e alocações espaciais que incidem sobre quem poderia aparecer – de fato, sobre quem pode se tornar um sujeito no aparecimento – sugere uma operação do poder que atua através, simultaneamente, da forclusão e da alocação diferencial. O que, então, significa o “aparecer” na política contemporânea? Seria possível examinar esta questão sem recorrer, em algum grau, à mídia? Se refletirmos sobre o que é “aparecer”, notaremos que nós aparecemos para alguém, e que nossa aparição tem que ser registrada pelos sentidos – não somente os nossos, mas os de outrem. Se aparecemos, devemos necessariamente ser vistos, o que significa que nossos corpos precisam ser vistos e que seus sons vocalizados precisam ser ouvidos: o corpo precisa, obrigatoriamente, adentrar no campo visual e auditivo de terceiros. Mas não seria este, necessariamente, um corpo sexuado e que labora, um corpo racializado e marcado pelo gênero de alguma maneira? A perspectiva de Arendt, claramente, se depara com limitações aqui, pois o corpo é, em si mesmo, dividido em um corpo que aparece publicamente para falar, e outro corpo (sexual, trabalhador, feminino, estrangeiro e mudo) que é em geral relegado à esfera privada e pré-política. Tal divisão do trabalho é, precisamente, aquilo que é questionado quando vidas precárias se aglomeram nas ruas em formas de aliança que precisam lutar para conquistar um espaço de aparecimento. Se algum domínio da vida corporal opera como a condição isolada ou repudiada para a esfera de aparecimento, ela se torna a ausência estrutural que governa e torna possível a esfera pública. Se nós somos organismos viventes que falam e agem, então estamos claramente conectados a um vasto contínuo (ou rede) de seres vivos; nós não somente vivemos entre eles, mas nossa persistência enquanto organismos que vivem depende da sustentação nessa matriz de relações de interdependência. E ainda assim, nosso falar e nosso agir nos distinguem como algo separado de outros seres vivos. De fato, nós não precisamos saber o que é especificamente humano na ação política, mas apenas perceber, enfim, como a entrada do corpo repudiado na esfera política estabelece simultaneamente a conexão essencial entre os humanos e os outros seres viventes. O corpo privado, por conseguinte, condiciona o corpo público– não apenas em teorias como as de Arendt, mas também em organizações políticas do espaço que continuam sob muitas outras formas (e que são, em certo sentido, naturalizadas na teoria dela). E embora o corpo público e o corpo privado não sejam totalmente distintos um do outro (corpos situados na esfera privada por vezes “aparecem” em público, e cada corpo exposto publicamente tem seus momentos privados), esta bifurcação é crucial para a manutenção da distinção entre público e privado, e para a manutenção de seus modos específicos de repúdio e de negação de direitos políticos. Talvez seja uma espécie de fantasia achar que uma dimensão da vida corporal deva e possa permanecer fora de vista, enquanto outra, totalmente distinta, aparece em público. Será que não haveria qualquer traço do biológico na esfera de aparecimento? Poderíamos argumentar, acompanhando Bruno Latour e Isabelle Stengers, que negociar a esfera de aparecimento é, na verdade, uma atividade biológica, pertinente às capacidades investigativas do organismo? Afinal, não há forma de navegar em um ambiente ou procurar comida sem aparecer corporalmente no mundo, e não há qualquer escapatória à vulnerabilidade e mobilidade que o aparecimento no mundo implica – o que explica certas formas de camuflagem e autoproteção no mundo animal. Em outras palavras, não seria o aparecimento um momento necessariamente morfológico, um momento no qual o corpo arrisca aparecer não somente visando falar e agir, mas para sofrer e se mover, assim como para se engajar com outros corpos, para negociar um ambiente do qual depende, para estabelecer uma organização social para a satisfação de necessidades? De fato, o corpo pode aparecer e significar de modos que contestam a forma pela qual ele fala, ou contestam até mesmo a fala enquanto sua instância paradigmática. Seríamos ainda capazes de compreender ação, gesto, quietude, toque e movimento se eles fossem todos redutíveis à vocalização de pensamentos através da fala? Este ato de falar publicamente, mesmo no âmbito daquela problemática divisão do trabalho, depende de uma dimensão da vida corporal que é dada, passiva, opaca (e, portanto, excluída da definição convencional da esfera política). Logo, poderíamos perguntar: que regulações impedem o corpo dado ou passivo de transbordar para dentro do corpo ativo? Existem dois corpos diferentes – e se é esse o caso, que tipo de política é requerida para manter ambos apartados um do outro? Seriam estas duas dimensões diferentes do mesmo corpo, ou na verdade o efeito de certa regulação do aparecimento corporal que é ativamente contestada por novos movimentos sociais, por lutas contra a violência sexual, pela liberdade reprodutiva, contra a precariedade, pela liberdade de mobilidade? Aqui, podemos perceber que certa regulação topográfica ou mesmo arquitetônica do corpo ocorre no nível da teoria. É significativo que seja justamente esta operação do poder – a forclusão e alocação diferencial da possibilidade e do modo de aparecer do corpo – que esteja excluída na perspectiva explícita de Hanna Arendt sobre a esfera política. De fato, a abordagem explícita de Arendt sobre a política depende daquela própria operação do poder que a autoranão consegue considerar parte da política em si mesma. Então, o ponto em que concordo com Arendt é o seguinte: a liberdade não provém de mim nem de você, ela pode e de fato ocorre como uma relação entre nós, ou de fato, uma relação em meio a nós. Logo, não se trata de encontrar a dignidade humana dentro de cada pessoa, mas pelo contrário, de compreender o humano como um ser relacional e social, cuja ação depende da igualdade e articula o princípio da igualdade. De fato, da perspectiva dela, não há qualquer humano, se não houver igualdade. Nenhum humano é capaz de ser humano sozinho. E nenhum humano é capaz de ser humano sem agir orquestradamente com outros e em condições de igualdade. Eu acrescentaria o seguinte: a reivindicação de igualdade não é somente falada ou escrita, mas feita, justamente, quando corpos aparecem conjuntamente, ou ainda, quando através de sua ação, eles trazem o “espaço de aparecimento” à existência. Este espaço é uma característica e um efeito da ação, e ele opera, de acordo com Arendt, somente quando relações de igualdade são mantidas. Existem, é claro, muitas razões para se desconfiar de momentos idealizados, mas há também razões para se desconfiar de qualquer análise que seja total e completamente blindada contra idealizações. Há dois aspectos das manifestações revolucionárias na Praça Tahrir que eu gostaria de ressaltar. O primeiro tem relação com o modopelo qual uma dada sociabilidade se estabeleceu em meio à praça, uma divisão de trabalho que rompeu diferenças de gênero, envolvendo revezamento entre aqueles que falavam e aqueles que limpavam as áreas onde as pessoas dormiam e comiam, desenvolvendo uma escala de tarefas para que todos mantivessem o ambiente e limpassem os banheiros. Em suma, aquilo que alguns chamariam de “relações horizontais” entre os manifestantes se formava fácil e metodicamente: alianças lutando para incorporar a igualdade, o que incluía uma divisão igualitária do trabalho entre os sexos. Isto se tornou parte da própria resistência ao regime Mubarak e suas arraigadas hierarquias, incluindo os extraordinários diferenciais de riqueza entre as pessoas trabalhadoras e os militares e patrocinadores corporativos do regime. Deste modo, a forma social da resistência começou a incorporar princípios de igualdade que governavam não somente o modo e as ocasiões em que pessoas falavam e agiam para a mídia contra o regime, mas também o modo como as pessoas zelavam por seus alojamentos em meio à praça, as camas sobre o pavimento, os postos médicos e banheiros improvisados, os lugares onde as pessoas comiam e os lugares onde as pessoas eram expostas à violência vinda de fora. Nós não estamos meramente falando sobre ações heroicas que demandaram tremenda força física e o exercício de uma retórica política persuasiva. Por vezes, o simples ato de dormir ali, na praça, era a mais eloquente das afirmações políticas, e deveria até mesmo contar como uma “ação”. Estas ações foram todas políticas, simplesmente porque elas rompiam uma distinção convencional entre público e privado visando estabelecer novas relações de igualdade; neste sentido, elas estavam incorporando, dentro da própria forma social da resistência, os princípios que elas lutavam para efetivar em formas políticas mais abrangentes. Segundo, em face de ataques violentos ou ameaças extremas, muitas pessoas na primeira revolução egípcia de 2009 cantavam a palavra silmiyya, que provém da raiz do verbo salima, que significa “estar são e salvo”, sem ferimentos, sem sequelas, “intacto” e “seguro”; mas também significa “estar acima de qualquer reprovação”, “inocente”; ou ainda, estar “correto”, “estabelecido” e “definitivamente comprovado”. 19 O termo deriva do substantivo silm, que significa “paz”, mas também, alternativamente, “a religião do Islã”. Uma variante do termo é hubb as-silm, expressão arábica para “pacifismo”. Muito frequentemente o entoar de silmiyya desponta como uma gentil exortação: “em paz, em paz”. Embora a revolução tenha sido, em sua maior parte, não- violenta, ela não foi necessariamente conduzida a partir de uma oposição por princípio à violência. Ao contrário, o canto coletivo era um modo de encorajar as pessoas a resistir ao empuxo mimético da agressão militar e das gangues, mantendo em mente o objetivo mais amplo: a mudança democrática radical. Se ver compelido a um intercambio violento momentâneo significava perder a paciência necessária para concretizar a revolução. O que me interessa aqui é o canto, o modo pelo qual a linguagem operava não para incitar uma ação, mas para restringir outra: contenção em nome de uma comunidade emergente de pares cujo modo primeiro de fazer política não seria a violência. É evidente que todas as assembleias e manifestações públicas que produziram uma mudança de regime no Egito se amparavam na mídia visando produzir uma percepção da praça pública e do espaço de aparecimento. Qualquer exemplo contingente de “a praça pública” é situado, e é transponível; de fato, tais exemplos parecem ser transponíveis desde sempre, ainda que nunca plenamente transponíveis. Evidentemente, não podemos pensar a respeito da transponibilidade daqueles corpos na praça sem a mídia. De certa maneira, as imagens da Tunísia na mídia prepararam o caminho para os eventos midiáticos iniciais no Tahrir, e posteriormente aqueles que se sucederam no Yemen, Bahrain, Síria e Líbia, todos os quais tiveram diferentes trajetórias que ainda estão em curso. Muitas das manifestações públicas dos últimos anos não foram direcionadas contra ditaduras militares ou regimes tirânicos, e muitas delas produziram novas formações estatais ou condições de guerra que são, seguramente, tão problemáticas quanto aquelas que foram por elas substituídas. Contudo, em algumas das manifestações que ocorreram após estes levantes – especialmente aquelas que visavam formas induzidas de precariedade – os participantes explicitamente se opuseram ao capitalismo monopolista, ao neoliberalismo e à supressão de direitos políticos, e agiram deste modo em nome daqueles que são abandonados por reformas neoliberais que buscam desmantelar formas de democracia e socialismo, erradicar empregos, expor populações à pobreza e minar os direitos básicos à educação pública e moradia. O cenário da rua se torna politicamente potente tão somente quando, e se, ocorre uma versão visível e audível da cena comunicada em tempo real ou quase em tempo real, de tal maneira que a mídia não está meramente reportando a cena, mas é parte da cena e da 19 WEHR, Hans. "Salima" in Dictionary of Modern Written Arabic, 4th ed. Ithaca, NY: Spoken Language Services, 1994. ação; de fato, a mídia é a cena ou o espaço em suas dimensões visuais e audíveis estendidas e replicáveis. Um modo de falar sobre isto consiste, simplesmente, em dizer que a mídia estende a cena visual e auditivamente, e participa na delimitação e transponibilidade da cena. Dito de outra maneira, a mídia constitui a cena em um tempo e um espaço que incluí e ultrapassa sua instância local. Embora a cena seja (segura e enfaticamente) local, aqueles que estão em outros lugares têm a percepção de que estão tendo acesso direto à cena através das imagens e sons que recebem. Isto é verdade, mas eles não sabem como a edição está sendo conduzida; eles não sabem que cena transporta e viaja e que cena persiste obstinadamente fora do enquadramento. Quando a cena viaja, ela está simultaneamente “aqui” e “lá”, e se ela não abrangesse ambas as localidades, ela não seria a cena que é. Seu caráter local não é negado pelo fato de que a cena é comunicada para além dela própria e deste modo constituída na mídia global; ela depende daquela mediação para se tornar o evento que ela é. Isto significa que o local precisa ser reencenado fora de si mesmo de modo a se estabelecer como “local”; isto significa que é somente através da mídia globalizada que o local pode ser estabelecido e que algo pode realmente acontecer ali. É claro que muitas coisas efetivamente ocorrem fora do enquadramento das câmeras e outros dispositivos digitais de mídia, e a mídia pode, com igual facilidade, implementar a censura em oposição a tais coisas. Há muitos eventos locais que jamais são registrados e transmitidos, e há algumas razões importantes pelas quais isto ocorre. Contudo, quando o evento viaja e é capaz de invocar e sustentar o ultraje e a pressão globais (o que inclui o poder de paralisar mercados ou romper relações diplomáticas), então o “local” terá que ser estabelecido repetidamente em um circuito que, a todo instante, excede a localidade. Ainda assim, persiste algo situado localmente que não viaja e não pode viajar desta maneira. A cena não poderia ser a cena, se não entendermos que algumas pessoas estão se arriscando, e o risco incide precisamente sobre aqueles corpos que estão na rua. Se eles de certo modo são transportados, de outro modo,indubitavelmente, eles são em seu lugar inicial deixados: segurando a câmera ou o telefone celular; cara-a-cara com aqueles aquem se opõem; desprotegidos; vulneráveis à injúria e atingidos por injúrias; senão insurgentes, pelo menos persistentes. É relevante que tais corpos carreguem consigo telefones celulares repassando mensagens e imagens; deste modo, quando eles são atacados, o ataque envolve de algum modo a câmera, e com mais frequência do que se poderíamos imaginar. Pode se tratar de um esforço para destruir a câmera e seu usuário, ou de um espetáculo produzido pela mídia como advertência ou ameaça. Ou ainda, pode se tratar de um modo de interromper uma maior organização coletiva. Seria a ação do corpo separável de suas tecnologias? A tecnologia não estaria ajudando a estabelecer novos modos de ação política? E, quando a censura ou a violência são direcionadas contra aqueles corpos, elas também não estão sendo direcionadas contra seu acesso à mídia, de modo a estabelecer um controle hegemônico sobre que imagens viajam e que imagens não viajam? A mídia dominante, é claro, é propriedade de corporações que exercem seus próprios modos de censura e incitação. Apesar disto, me parece que ainda é importante afirmar que a liberdade da mídia para transmitir a partir de tais locais consiste, ela própria, em um exercício de liberdade, e é deste modo uma forma de exercer direitos – em especial quando se trata de mídia marginal, produzida da rua e evadindo os censores, na qual a ativação da câmera é parte da ação corporal em si mesma. Este é, sem dúvida, o motivo pelo qual tanto Hosni Mubarak quanto David Cameron, separados por um intervalo de oito meses, defenderam a censura sobre as redes de mídias sociais. Ao menos em certos casos, a mídia não somente relata movimentos sociais e políticos que estão, de diversas maneiras, reivindicando liberdade e justiça; a mídia está também exercendo uma destas liberdades pelas quais o movimento social luta. Não pretendo, com esta alegação, sugerir que toda a mídia esteja envolvida na luta pela liberdade política e justiça social (nós sabemos, com certeza, que não é este o caso). É importante, decerto, levar em consideração qual mídia global está conduzindoo relato, e considerar como ela o faz. Meu argumento aqui é que por vezes os dispositivos privados de mídia se tornam globais justamente no momento em que eles sobrepujam formas de censura ao reportar protestos, e deste modo tais dispositivos se tornam parte do protesto em si mesmo. Aquilo que os corpos fazem na rua, quando estão manifestando,é fundamentalmente conectado àquilo que dispositivos e tecnologias de comunicação estão fazendo quando “reportam” o que ocorre na rua. Estas são ações diferentes uma da outra, mas ambas requerem o corpo. Uma maneira específica de exercício de liberdade está conectada à outra, o que significa que ambas são formas de exercitar direitos e que, conjuntamente, elas trazem o espaço de aparecimento à existência e asseguram sua transponibilidade. Embora alguns possam apostar que o exercício de direitos, hoje, ocorre a despeito dos corpos na rua (alegando que o Twitter e outras tecnologias virtuais conduziram a um disembodiment da esfera pública), tendo em parte a discordar desta ideia. Temos que considerar a importância da mídia que é “feita com as próprias mãos”, a importância dos telefones celulares que são segurados no alto, produzindo uma espécie de contra vigilância que incide sobre a ação militar e policial. A mídia requer que aqueles corpos na rua tenham um evento, ainda que estes corpos dependam da mídia para poderem existir na arena global. Contudo, quando aqueles com câmeras e acesso à Internet estão sujeitos ao aprisionamento ou tortura ou deportação, o uso da tecnologia implica o corpo de formas particularmente eficazes. Não somente a mão de alguma pessoa precisa clicar e enviar, mas o corpo de alguém está na reta se este “clicar-e-enviar” for rastreado.20 Em outras palavras, o posicionamento local dificilmente poderia ser sobrepujado devido ao uso de meios de comunicação que podem, potencialmente, transmitir pelo globo afora. Se esta conjunção entre a rua e a mídia constitui uma versão bastante contemporânea da esfera pública, então os corpos que estãona reta têm que ser pensados como situados simultaneamente aqui e ali, agora e depois, simultaneamente transportados e estacionários, com consequências políticas bastante diferentes decorrendo destas duas modalidades de espaço e tempo. 20A expressão original em língua inglesa usada pela autora ("someone's body ison the line", traduzida aqui como “está na reta”), expressa o sentido de uma presença corporal em situação que põe o corpo em risco (N. do T.). É relevante quando a praça pública está lotada até as bordas, quando as pessoas comem e dormem ali, quando elas cantam e se recusam a ceder aquele espaço(como vimos nos primeiros ajuntamentos na Praça Tahrir e continuamos a ver em outras partes do mundo).É relevante, igualmente, que instalações educacionais públicas tenham sido ocupadas em Atenas, Londres e Berkeley. No campus de Berkeley, prédios foram ocupados, e em resposta multas por invasão de propriedade foram emitidas e entregues. Em certos casos os estudantes foram acusados de depredação de propriedade e patrimônio. Estas alegações, em si mesmas, colocaram em questão se a universidade é pública ou privada. O objetivo visado pelos protestos (a ocupação dos prédios pelos estudantes e seu isolamento ali dentro) era um modo para ganhar uma plataforma; de fato, era um modo de assegurar condições materiais para o aparecimento em público. Tais ações dificilmente ocorrem quando plataformas eficazes já estão disponíveis. Os estudantes ali(mas também mais recentemente,no Reino Unido) estavam se apossando de tais instalações como uma forma de reivindicar que elas deveriam por direito, agora e no futuro, pertencer à educação pública. Isto não significa que a ocupação seja justificável em todas as ocasiões nas quais estes prédios sejam ocupados, mas precisamos ficar alertas àquilo que está em jogo aqui: o significado simbólico dessas ocupações é de que aquelas construções pertencem ao público, à educação pública, e é justamente o acesso à educação pública que está sendo minado pela escalada de anuidades e taxas de matrícula e pelos cortes orçamentários. Nós não deveríamos nos surpreender que a forma assumida pelos protestos consistisse em se apossar dos prédios, reivindicando performativamente a educação pública; insistindo, literalmente, em obter acesso às instalações da educação pública justamente naquele momento histórico no qual este acesso está sendo desativado. Em outras palavras, nenhuma lei positiva justifica estas ações que se opõem à institucionalização de formas injustas ou excludentes de poder. Poderíamos então dizer que estas ações são, a despeito de tudo, um exercício de direitos, um exercício não-legal que ocorre justamente quando a lei falha ou está errada? O corpo na rua persiste, mas também busca condições para sua própria preservação. Tais condições, invariavelmente, são sociais, e demandam uma reorganização radical da vida social para aqueles que experimentam sua existência como uma existência em perigo. Se estivermos pensando de forma lúcida, nosso pensamento nos compromete com a preservação da vida sob alguma forma;consequentemente, a vida a ser preservada assume uma forma corporal. Em contrapartida, isto significa que a vida do corpo – sua fome, sua necessidade de abrigo e proteção à violência – se torna um assunto crucial da política. Até mesmo as características mais naturalizadas ou não-escolhidas de nossas vidas não são simplesmente ‘dadas’; elas são dadas na história e na linguagem, em vetoresde poder que nenhum de nós escolhe. É igualmente verdadeiro que uma dada propriedade ou conjunto de características do corpo depende da persistência continuada do corpo. Aquelas categorias sociais que jamais escolhemos atravessam (de certas maneiras e não de outras) este corpo dado, e o gênero, por exemplo, nomeia simultaneamente este atravessamento e sua transformação. Neste sentido, aquelas dimensões mais urgentes e amplamente involuntárias de nossas vidas – incluindoa fome,a necessidade de abrigo, a necessidade de cuidado médico e deproteção contra a violência imposta pela natureza ou pelos humanos – são cruciais para a política. Não podemos partir do suposto do espaço fechado e bem alimentado da polis, onde todas as necessidades materiais estão de algum modo sendo objeto de cuidado por terceiros cujo gênero, raça ou status tornam inelegíveis para o reconhecimento público. Pelo contrário, precisamos não apenas levar estas urgências corporais materiais para a praça, mas tornar estas necessidades centrais para as demandas da política. Em minha visão pessoal, uma condição compartilhada de precariedade situa nossas vidas políticas, ainda que a precariedade seja diferencialmente distribuída. E alguns de nós, como Ruth Gilmore colocou com muita clareza, estão desproporcionalmente mais expostos à injúria e à morte precoce do que outros.21 A diferença racial, por exemplo, pode ser rastreada com precisão simplesmenteinspecionando estatísticas de mortalidade infantil. Isto significa, em resumo, que a precariedade é distribuída desigualmente, e que as vidas não são consideradas igualmente passíveis de luto ou igualmente valorizadas. Se, como Adriana Cavarero argumentou, a exposição de nossos corpos no espaço público é em essência aquiloque nos constitui(e que estabelece nosso pensamento como social e incorporado, vulnerável e apaixonado), então nosso pensamento não poderia chegar a lugar algum sem partir da premissa desta interdependência e entrelaçamento corporais em si mesmos. O corpo é constituído pelas perspectivas que ele não pode habitar; outras pessoas veem nossa face e ouvem nossa voz sob formas que nós próprios não podemos ver. Estamos, neste sentido (corporalmente), sempre “ali”, e ao mesmo tempo “aqui”; esta despossessão marca a socialidade à qual nós pertencemos. Até mesmo na qualidade de seres localizados, estamos sempre alhures, constituídos em uma socialidade que nos excede. Isto estabelece nossa exposição e nossa precariedade, as formas pelas quais nós dependemos de instituições políticas e sociais para persistir. Nestas demonstrações nas quais as pessoas cantam e falam, mas também se organizam por cuidado médico e provêm serviços sociais contingentes, seria possível distinguir aquelas vocalizações que emanam do corpo de outras expressões de necessidade e urgência materiais? Naquelas situações em que os manifestantes estavam, no fim das contas, dormindo e comendo em praça pública, construindo banheiros e sistemas diversos para compartilhamento do espaço, os manifestantes não estão somente se ‘recusando a desaparecer’, se recusando a permanecer em casa ou ir para a casa, e não somente reivindicando para si próprios o domínio público, agindo de maneira orquestrada em condições de igualdade. Eles estão, também, sustentando a si próprios como corpos persistentes com necessidades, desejos e requisições:requisições arendtianas e contra-arendtianas, para ser precisa (pois estes corpos que estão organizando suas necessidades básicas em público estão, também, peticionando ao mundo que registre o que está acontecendo ali, para tornar seu apoio conhecido, e deste modo adentrar a própria ação revolucionária). Os corpos agiram de forma orquestrada, mas eles também dormiram em público, e em ambas estas modalidades eles estavam 21 GILMORE, Ruth Wilson. Golden Gulag: prisions, surplus, crisis and opposition in globalizing California. Berkeley: University of California Press, 2007. simultaneamente fazendo demandas e vulneráveis, conferindo organização política e espacial a necessidades corporais fundamentais. Neste sentido, eles se constituem uns aos outros enquanto imagens a serem projetadas para todos os que assistiam, peticionando nossa atenção e reação de modo a arregimentar uma cobertura de mídia que não consentisse que o evento em curso fosse abafado ou escapulisse. Dormir no asfalto não era somente um modo de reivindicar o espaço público e contestar a legitimidade do Estado, mas também, muito claramente, um modo de colocar o corpo na reta, em sua insistência, obstinação e precariedade, sobrepujando a distinção entre o público e o privado durante o tempo da revolução. Em outras palavras, foi somente quando aquelas necessidades que deveriam supostamente permanecer privadas foram expostas dia e noite na praça, e transformadas e imagem e discurso pela mídia, que se tornou, finalmente, possível estender o espaço e o tempo do evento com tenacidade ao ponto de trazer o regime abaixo. Afinal, as câmeras nunca pararam; os corpos estavam lá e aqui; eles nunca pararam de falar(nem mesmo ao dormir), e deste modo não puderam ser silenciados, isolados ou negados: a revolução, de vez em quando, ocorre porque todos se negam a ir para a casa, aderindo ao asfalto como o lugar de sua convergente e temporária coabitação.
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