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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO JORNALISMO OPINATIVO NA REVISTA GQ BRASIL: SENTIDOS SOBRE A MASCULINIDADE AUTORIZADA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Augusto Acosta de Vasconcelos Santa Maria, RS, Brasil 2014 JORNALISMO OPINATIVO NA REVISTA GQ BRASIL: SENTIDOS SOBRE A MASCULINIDADE AUTORIZADA Augusto Acosta de Vasconcelos Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Comunicação Social – habilitação Jornalismo, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo Orientadora: Prof. Drª. Laura Strelow Storch Santa Maria, RS, Brasil 2014 Universidade Federal de Santa Maria Centro de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Comunicação Social Curso de Comunicação Social – Habilitação Jornalismo A comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o Trabalho de Conclusão de Curso JORNALISMO OPINATIVO NA REVISTA GQ BRASIL: SENTIDOS SOBRE A MASCULINIDADE AUTORIZADA elaborado por Augusto Acosta de Vasconcelos como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – habilitação Jornalismo COMISSÃO EXAMINADORA: Laura Strelow Storch, Drª. (Presidente/Orientadora) Aline Roes Dalmolin, Drª. (UFSM) Filipe Bordinhão dos Santos, Me. (UFSM) Santa Maria, 10 de dezembro de 2014. AGRADECIMENTOS Pode parecer estranho, mas tenho algumas lembranças bastante remotas, que me acompanham até hoje. Aproveito este espaço para partilhá-las com você, caro leitor. Lembro-me de quando ia às aulas da pré-escola. A pequenina mochila, na qual eu carregava pertences menores ainda, tornou-se a minha pasta do curso de Jornalismo; a merenda que eu levava para comer durante o recreio transformou-se nas porções de comida congelada trazidas de casa; as poucas horas de aula a alguns metros de minha família estenderam-se até dias com quilômetros de distância entre nós; o “até mais tarde”, agora é um “até quando você puder”; as lágrimas que não derramei por medo naquele meu primeiro dia de aula, caem agora – não por medo, tampouco por tristeza, mas por emoção, por gratidão. E é por isso que a vocês vai o meu primeiro “obrigado”. Obrigado, pai, por ter dado todo o apoio que precisei para me manter fora de casa – você apostou em mim. Obrigado, mãe, por eu ter me tornado quem sou. Se aqui escrevo sobre masculinidade, foi porque você, com todo seu carinho e amizade, tornou-me um homem sensível. Obrigado, Bruna, minha irmã maravilhosa, que nunca deixou de me proteger, mesmo quando eu pensei que não precisava (“seu sangue, meu sangue”). Agradeço, também, aos familiares que sempre torceram sinceramente por mim. Seria injusto se eu não dissesse um “obrigado” àquelas entidades para as quais rezei em todas as noites, com mais agradecimentos do que pedidos, então, obrigado. Aos meus poucos amigos de longa data e aos de agora: obrigado por confiarem a amizade de vocês a mim. Não sou a pessoa mais fácil do mundo, mas também não sou a mais difícil. Espero que entendam e reconheçam isso, pois eu levo amizade a sério, não gosto daquelas intensas e sazonais. Laura Strelow Storch: eu lhe agradeço por ter aceitado se aventurar comigo neste trabalho. Fiz minha parte o melhor que pude, assim como você – sabemos disso. Por último, mas não menos importante, meus sinceros agradecimentos à minha banca examinadora, Aline Roes Dalmolin e Filipe Bordinhão dos Santos, que aceitaram dedicar seu tempo à apreciação científica do meu Trabalho de Conclusão de Curso. Boa leitura. É claro que você é real – como qualquer pensamento ou qualquer história. É real quando você participa. (Markus Zusak) RESUMO Monografia Curso de Comunicação Social – Jornalismo Universidade Federal de Santa Maria JORNALISMO OPINATIVO NA REVISTA GQ BRASIL: SENTIDOS SOBRE A MASCULINIDADE AUTORIZADA AUTOR: AUGUSTO ACOSTA DE VASCONCELOS ORIENTADORA: LAURA STRELOW STORCH Data e local da defesa: Santa Maria, 10 de dezembro de 2014. Este trabalho aborda os sentidos de masculinidade dispostos no jornalismo de revista através do gênero opinativo. O interesse da pesquisa está centrado na questão “Como é retratada a masculinidade do homem contemporâneo na coluna Comportamento da revista GQ Brasil?”. Para responder esta pergunta, tem-se como objetivo geral compreender a masculinidade contemporânea na coluna Comportamento da revista GQ Brasil. Os objetivos específicos do trabalho, portanto, são mapear as temáticas na coluna Comportamento, para compreender masculinidade contemporânea; analisar a abordagem do jornalismo opinativo; e compreender os eixos de sentidos sobre o masculino e como se relacionam com a linha editorial da revista. Para desenvolver a investigação, optou-se pelo uso da Análise de Discurso de linha francesa como metodologia e a análise de 12 textos da referida seção. Esse recorte foi escolhido por acreditar ser o espaço mais completo da revista para se estudar os assuntos relativos ao homem contemporâneo pelo viés do jornalismo opinativo. Foi possível perceber, genericamente, que mesmo uma publicação segmentada por gênero e classe, como a GQ, vive um processo de transição no qual ora reitera sentidos de um modelo de masculinidade patriarcal, ora estimula a transgressão de valores heteronormativos, sugerindo a aceitação de um novo modelo de masculinidade, ainda em construção. Palavras-chave: Masculinidade; Jornalismo de Revista; Jornalismo Opinativo; Análise de Discurso; Revista GQ Brasil. ABSTRACT This work addresses to the meanings of masculinity arranged in a magazine journalism through the opinionated genre. The research concern is centered on the question "How is masculinity of contemporary man portrayed in the behavior column of GQ Brazil?". When answering, it is needed a general objective, that is, to understand contemporary masculinity in the behavior column of GQ Brazil magazine. The specific objectives of this study are, therefore, mapping the topics in the behavior column to understand the contemporany masculinity; analyze the approach of opinionated journalism; and understand the axes of meanings on the male, and their relationship with the editorial line of the magazine. Developing the research, the use of French line discourse analysis was opted as a methodology, as well as the analysis of 12 texts of that section. This clipping was chosen because it is the most important space of the magazine to study the issues related to contemporary man through the bias of opinionated journalism. It was observed, generically, o that even a publishing segmented by gender and class, such as GQ, undergoes a transition process in which meanings reiterates a model of patriarchal masculinity or stimulates the transgression of heteronormative values, suggesting the acceptance of a new model of manhood, still under construction. Keywords: Masculinity; Magazine journalism; Opinionated Journalism; Discourse Analysis; GQ Brazil. LISTA DE TABELASTabela 1 – Edições e matérias analisadas ............................................................................45 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ......................................................................................... 10 2. MASCULINIDADE E IDENTIDADE .................................................... 13 2.1. De matador de dragão a chefe de família: a construção social da masculinidade ................. 13 2.2. Do lar às ruas: o feminismo desmistifica o modelo conquistador ......................................... 18 2.3 Ser homem no século XXI: o mal-estar masculino ................................................................ 21 3. JORNALISMO DE REVISTA ................................................................ 26 3.1. Possibilidades e especificidades em revista .......................................................................... 27 3.2. Da nudez ao diálogo: a trajetória das revistas masculinas .................................................... 33 3.3. Jornalismo opinativo: o divã da revista ................................................................................. 35 4. METODOLOGIA ..................................................................................... 41 4.1. Gentlemen’s Quarterly .......................................................................................................... 41 4.2. Recortes de análise e corpus de investigação ........................................................................ 44 4.3. Metodologia .......................................................................................................................... 45 4.4. Categorias de análise ............................................................................................................. 49 5. A MASCULINIDADE AUTORIZADA NA GQ BRASIL ..................... 50 5.1 Parecer homem ....................................................................................................................... 51 5.2 Ser homem ............................................................................................................................. 58 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 65 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 69 ANEXOS ........................................................................................................ 72 10 1. INTRODUÇÃO Os anos 1960 marcaram o início de grandes transformações na estrutura social da humanidade. Homens e mulheres começaram a dividir comportamentos, atitudes e espaços. Isso refletiu não apenas na política e na economia, mas também no modo como os homens puderam construir sua identidade. As mulheres militantes do feminismo – bem como outros movimentos sociais 1 – denunciaram formas diversas de opressão e de discriminação. Silveira Filho (2010, p.04), diz que “somos, irremediavelmente, frutos de uma época, de uma cultura e de um contexto formados por uma série de significados e sentidos dos quais não conseguimos escapar e com os quais dialogamos a todo o instante”, isto é, ao mesmo tempo em que o papel da mulher se torna complexo, a própria noção do que é ser homem passa a ser questionada, afinal, é possível compreender que, assim como o “ser mulher”, o “ser homem” também é um conceito formado cultural e historicamente. Esses movimentos, como lembra Bonácio (2009), moldaram as formas que as identidades atuais estão tomando, de modo que atingiram a realidade masculina não só no campo profissional como também nos campos social e comportamental. A estrutura de homem provedor do lar e mulher dedicada exclusivamente à manutenção do bem-estar familiar começa a se dissolver. Aquele homem que era responsável pelo trabalho e pelo sustento da família, passa a dividir tarefas domésticas com a esposa, inclusive a criação dos filhos, além de experimentar as diferentes expressões emocionais, não cabíveis no sistema patriarcal; já a imagem feminina próxima à caridade, ao amor, à atenção e à preocupação, passa a se aventurar pelos mais variados campos profissionais, assumindo mais uma jornada ao seu dia-a-dia. Percebe-se, em vista disso, que um novo modelo de masculinidade vem ganhando espaço social, em um movimento que intercala valores tradicionalmente atribuídos ao homem e à mulher. Entendemos o jornalismo como um espaço legítimo de construção de sentidos sobre o contemporâneo (BENETTI, 2013), de modo que tem como atributo a possibilidade de reiterar ou desconstruir valores, inclusive da masculinidade. Este estudo, portanto, visa 1 Reconhecemos que, além do feminismo, outros movimentos sociais – negros, homossexuais, dentre outros – ajudaram a impulsionar os questionamentos da sociedade patriarcal. Alguns deles têm espaço, inclusive, em publicações segmentadas aos seus interesses, como as revistas direcionadas ao público LGBT, por exemplo. No entanto, neste trabalho, optou-se por focar nas questões tradicionalmente ligadas ao feminino e ao masculino. 11 compreender os modos a partir dos quais o jornalismo opinativo em revista discute a masculinidade contemporânea. Nesse sentido, optamos como objeto empírico pela revista GQ Brasil, situada no mercado editorial por sua segmentação de gênero e classe, direcionada ao público masculino de classe social elevada. Mira (2013) e Oliveira (2004) apontam que é mais provável a masculinidade ser pautada entre homens de classe social mais privilegiada do que entre os que são mais simples, pois estes têm menos acesso aos diferentes bens culturais – importantes espaços de discussão sobre os mais variados temas. Por isso, a questão da masculinidade na GQ se apresenta como uma discussão relevante, porque, teoricamente, é capaz de dar um panorama sobre a compreensão social acerca da condição do masculino no contemporâneo. Embora o recorte da pesquisa – a coluna de Comportamento – seja assinada por um colunista, nesta pesquisa assumimos o pressuposto de que há uma política editorial que orienta essas construções discursivas. O texto, bem como seu autor, passa pela aprovação editorial para ser efetivamente publicado na revista. Nesta perspectiva, a voz presente nessa coluna, assim como nas demais, tem o consentimento da GQ Brasil. Faz parte da comunicação da revista com seu público leitor, sugerindo reflexões e/ou discussões acerca de assuntos do universo masculino a cada edição. É a partir desse panorama geral que nos aproximamos de nosso objeto de pesquisa, de modo a responder a seguinte questão norteadora: “Como é retratada a masculinidade do homem contemporâneo na coluna Comportamento da revista GQ Brasil?”. A partir dela, elaboramos nosso objetivo geral de investigação, que se forma a partir do interesse em compreender os sentidos sobre a masculinidade contemporânea construídos pela revista GQ Brasil em sua subseção opinativa Comportamento, integrante da editoria “Diálogos”. Os objetivos específicos do trabalho, assim sendo, são: mapear as temáticas recorrentes na coluna Comportamento, de forma a compreender a masculinidade contemporânea; analisar os modos a partir dos quais o colunista problematiza essas temáticas, isto é, como usa o jornalismo opinativo como ferramenta discursiva; e compreender os eixos de sentidos sobre o masculino que circulam nessa coluna e como eles se relacionam com a proposta editorial da revista. As “tendências na masculinidade” são um assunto que vem sendo explorado aos poucos, embora haja estudos específicos com grupos de homens,os men’s studies. Autores como Nolasco (1995), Oliveira (2004) e Bourdieu (2012) e estudiosos como Gomes 12 (2006), Bonácio (2009) e Souza (2013), com diferentes abordagens, discutem o papel histórico-social do homem. Acreditamos, pois, que este estudo vem a somar nas reflexões sobre as mudanças que estão acontecendo na identidade masculina contemporânea, acarretando um mal-estar masculino. Para isso, no capítulo 2, partimos de uma investigação histórica sobre a posição do homem desde a Idade Média até os dias atuais. Contextualizamos, na sequência, a atuação do jornalismo opinativo – ponte entre as instituições jornalísticas e seus leitores – nas revistas segmentadas. Por fim, depois de apresentarmos nossa metodologia, no capítulo 4, confrontamos, no capítulo 5, o produto encontrado em nosso corpus de pesquisa com as bases teóricas (masculinidade, jornalismo de revista e jornalismo opinativo). 13 2. MASCULINIDADE E IDENTIDADE “Masculinidade”, do latim masculinus, é uma palavra que começou a ser utilizada no século XVIII, quando a ciência se dedicou a encontrar critérios contundentes sobre a diferenciação entre os sexos. Há teóricos que acreditam na masculinidade “apenas como ideologias ou fantasias variadas”2. No presente trabalho, no entanto, acreditamos na masculinidade como uma construção social, com participação das crenças religiosas, da cultura, do nacionalismo e do capitalismo, por exemplo. Reconhecemos, pois, em concordância com Oliveira (2004), que ela atua nos discursos, constituindo-se como uma estrutura de poder. Ademais, sua construção é histórica, ideológica e identitária. Nesse sentido, ao indicar atitudes especiais em situações distintas, a masculinidade predispõe comportamentos. Neste capítulo, investigamos alguns momentos históricos que foram cruciais na construção das representações do “ser homem” que hoje compartilhamos na sociedade ocidental. Buscamos, aqui, mostrar a masculinidade construída social e culturalmente. Para isso, partimos da aristocracia da Idade Média e chegamos à burguesia da Modernidade; transitamos entre os valores de bravura e de coragem, e a valorização do corpo e da aparência; abordamos o movimento feminista e o reflexo de suas reivindicações na identidade masculina. 2.1. De matador de dragão a chefe de família: a construção social da masculinidade O controle da sexualidade e o exercício do poder, dirigidos e viabilizados pelas múltiplas práticas discursivas exercidas ao longo da história, são pilares de sustentação da sexualidade humana (SILVEIRA FILHO, 2010). A construção social da masculinidade se mostra essencial para a organização da sociedade, visto que o sujeito nascido morfologicamente homem deve se representar socialmente como tal. “Os primeiros contatos sociais de uma criança já lhe informam as diferenças de gênero. As escolhas sociais, mesmo que se desviem do discurso estabelecido pela tradição, são marcadas pela imposição da coletividade sobre o sujeito” (LEMOS, 2 O autor Pedro Paulo de Oliveira, em sua obra “A construção social da masculinidade” (2004), cita um trecho do livro “The end of masculinity” (1998), escrito pelo estudioso John MacInnes, para mostra-lo como um exemplo de teórico que vê a tentativa de definir uma ou várias masculinidades como uma tarefa infrutífera. 14 2008, p.05). O autor Pierre Bourdieu (2012) observa que a visão androcêntrica se estabelece neutra e não se enuncia em discursos que visem sua legitimação, confirmando e evidenciando a força da ordem masculina, ou seja, culturalmente, valores e características ditos masculinos ainda mantêm o homem como elemento dominante na sociedade. Os valores que permeiam o ideal de masculinidade compõem seus agentes para que desempenhem atitudes socialmente preestabelecidas. De acordo com Oliveira (2004), força, resistência, coragem e iniciativa são características dispostas ao homem desde a infância, e que, ligadas às ideias mais difusas e comuns sobre o comportamento masculino autêntico, são vivenciadas durante toda sua vida, reiterando-se. Entende-se hoje que, mesmo a masculinidade hegemônica 3 desempenhando o papel de identidade ideal, os sujeitos têm certa autonomia na representação social do “ser homem”, pois, como ressalta Lemos (2008), vivenciam as mais diversas formas dessa representação. Esse cenário de possíveis masculinidades não apareceu de uma hora para outra, isto é, não é uma simples mudança temporal, mas uma realidade ainda em constituição. A masculinidade é uma descoberta, e está sujeita a um processo de experiências entrelaçadas por dúvidas e questionamentos (GARCIA; MEDEIROS, 2004). Existe uma preocupação de que o termo “masculinidade hegemônica” não é uma alternativa teórica adequada para estudos sobre masculinidade (FIALHO, 2006). Neste trabalho, no entanto, focamos no padrão hegemônico de masculinidade na cultura ocidental, porque ela Não se assumiu normal num sentido estatístico; apenas uma minoria dos homens talvez a adote. Mas certamente ela é normativa. Ela incorpora a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens. (CONNELL, 2013, p.245) Partimos dos períodos medieval e moderno para refletir as transformações sociais que foram moldando esse estereótipo hegemônico de como o homem deve ser para se reconhecer e sentir verdadeiramente viril. 3 O termo “masculinidade hegemônica” foi conceituado por Raewyn Connell (1987) e se refere ao grupo masculino cujas representações e práticas estabelecem a referência socialmente legitimada do “ser homem”. 15 As diferenças entre a Idade Média e a Idade Moderna foram ocorrendo gradualmente: a nobreza de espada passou à nobreza de corte 4 , depois suplantadas pela burguesia, que possibilitou, a médio e longo prazo, o acréscimo de características como a competência na execução de tarefas e a responsabilidade enquanto atributos da masculinidade autêntica (OLIVEIRA, 2004). No decorrer dessa transição, as expressões dos sentimentos passaram do público para o privado, fortalecendo a base para o ideal de família burguesa: a monogamia. Nesse sentido, inicialmente nas sociedades burguesas do século XVII, as práticas sexuais passaram a ser vigiadas, eliminando o sexo dos discursos cotidianos e repelindo-o às conversas de aposentos privados numa verdadeira tarefa restritiva, como lembra Silveira Filho (2010). A massificação da ideia do casal heterossexual como o modelo da correção e da “normalidade” contribui para a manutenção do estereótipo da figura masculina como sendo viril e dominadora na relação, exercendo suas funções no espaço público, enquanto a figura feminina seria o polo passivo e submisso, restrito ao ambiente interno do lar. (SILVEIRA FILHO, 2010, p. 04). Os aristocratas tinham a lealdade, a coragem, a bravura, a sobriedade e a perseverança como valores cruciais do comportamento masculino. Conservaram-se no ideal moderno, mas alguns se ajustaram ao modelo de sociedade burguesa. A coragem e a bravura, por exemplo, não serão mais expressas publicamente – como nos duelos medievais em que os resultados poderiam ser manutenção, obtenção ou perda de status e honra –, mas “se formatarão a partir de firmes contornos estipulados por imperativos morais essenciais” (OLIVEIRA, 2004, p. 23). A formação do Estado nacional moderno e a criação de instituições específicas, como o exército, foram resultado de complexas elaboraçõesculturais ocorridas na mudança entre esses períodos; mudanças essas que não tiveram um sentido determinístico no ideal de masculinidade, ou seja, alguns valores não foram substituídos, mas sim ressignificados. Apropriado pela burguesia, o duelo deixou a ênfase na bravura, na ousadia e no destemor e passou progressivamente para o sentido de firmeza, autocontrole e contenção. O autor Pedro Paulo de Oliveira (2004) lembra que a militarização e o nacionalismo andaram juntos na formação dos Estados modernos e tiveram papel determinante para a conformação de comportamentos socialmente reconhecidos como 4 A nobreza de espada era formada por nobres de nascimento ou por recebimento de título de nobreza graças a algum mérito alcançado. Já a nobreza de corte (também chamada de nobreza de toga ou nobreza togada) era composta pela burguesia mais rica, que comprava seu título de nobreza. 16 autenticamente masculinos. A criação dos exércitos nacionais foi fundamental para a manutenção da autonomia e soberania das nações. Percebida essa necessidade, líderes europeus instauraram o alistamento militar obrigatório. Aqueles ideais medievais de bravura e destemor, antes associados ao duelo, passaram a integrar o perfil do soldado devotado e heroico, que, ao ser convocado, estaria em ação por uma causa nobre: defender sua pátria. Nessa perspectiva, os ideais de masculinidade alimentados pela instituição militar atingiam todas as classes sociais. “Até 1918, por exemplo, todo estudante universitário inglês, na grande maioria dos casos pertencente às classes altas, ainda que excluído de convocações para o exército, tinha que prestar pelo menos um ano de serviço militar” (OLIVEIRA, 2004, p.27). A imagem de homem verdadeiramente viril estava ligada à sua capacidade de suportar dor, fome, frio e possibilidade de mutilação, colocando sua resistência a serviço de uma causa importante e, com isso, relacionando a masculinidade ao sacrifício. No período em que vigorou (1933 – 1945), o nazismo buscou incitar um espírito aguerrido aos jovens alemães, elevando ao extremo o culto a características tidas como masculinas: coragem, disciplina, camaradagem, obediência e lealdade, além de estimular voluntarismo e patriotismo. O nazismo considerou, ainda, que o corpo masculino não pertencia ao indivíduo, mas a seu povo. É possível perceber essa valorização em torno do homem voluntário e patriota ainda nos dias de hoje, aqui no Ocidente. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, a Medalha de Honra é a máxima condecoração entregue nas Forças Armadas, e significa reconhecimento ao soldado das ações especiais das quais participou com mérito, como situações de perigo, autossacrifício e o fato de ter colocado sua própria vida em risco pelo bem da nação. O fascismo, movimento político italiano liderado por Benito Mussolini, inspirava- se na sociedade romana para tentar formar uma Itália poderosa. Para isso, investiu na ideia de um “novo homem”: enérgico, orgulhoso, que não fosse próximo dos livros e levasse a vida de forma menos sentimental. Os soldados fascistas praticavam pesados exercícios físicos, “possibilitando um enrijecimento corporal, signo de uma efetiva postura viril” (OLIVEIRA, 2004, p.38). Agressividade direcionada ao inimigo e obediência aos superiores eram correlacionadas ao símbolo de virilidade do guerreiro. Nas primeiras décadas da Inglaterra do século XIX, o termo socialismo começou a se disseminar, concretizando-se na Revolução Russa do ano 1917, liderada e vencida pelos bolcheviques. Embora o regime tenha aprovado uma lei que permitia o divórcio, ainda 17 defendia a instituição familiar, de modo que a permissividade sexual era mal vista. Os ideais de masculinidade propagados pelos socialistas não eram diferentes dos que nazistas e fascistas acreditavam (heroísmo, disciplina, obediência), e a propaganda bolchevique era semelhante à nazista: exaltava homens de postura ereta e olhar firme. Além disso, os bolcheviques difundiam o ideal de igualdade entre os sexos, mas a realidade era outra: Mantendo-se no nível da representação suscitada pelas imagens de gênero, a literatura produzida para a leitura das massas pela máquina de guerra revolucionária baseava-se em narrativas bastante convencionais, repletas de caricaturas nas quais os estereótipos masculinos e femininos pululavam (OLIVEIRA, 2004, p.40). Estabelecida a Guerra Fria, somou-se um importante novo paradigma do homem autêntico. O “novo homem” soviético, além de guerreiro destemido e viril, passou a atuar, também, nas fábricas, ou seja, o socialismo de Josef Stalin valorizou de forma inédita a outra face do ideal de homem moderno: um trabalhador exemplar e responsável. De acordo com Oliveira (2004), pode-se concluir, portanto, que durante a formação dos Estados nacionais valorizava-se um comportamento aparentemente ambíguo: os valores de bravura e ousadia, de um lado, e autocontrole, de outro, eram estimulados concomitantemente. Incentivava-se que os homens mantivessem a serenidade no núcleo familiar, mas em períodos de guerra a sociedade se tornava mais importante, de modo que a defesa da pátria era sua prioridade enquanto homem. Entrelaçadas, as características do guerreiro heroico e do homem comedido formam o alicerce do ideal moderno de masculinidade. Ainda que na modernidade as crenças religiosas comecem a expressar certa relativização, transitoriedade e poder de escolha do sujeito (LEMOS, 2008), a religião sempre influenciou na constituição e manutenção da representação social tanto do homem quanto da mulher. A imagem do deus judaico-cristão, por exemplo, é formada por características físicas e subjetivas atribuídas ao homem (força, autoridade, coragem), e não às atribuídas à mulher (doçura, emoção, afeto). Dessa forma, o credo religioso também desempenhou seu papel na construção histórico-social da masculinidade. Oliveira (2004) assinala que na Inglaterra e na Alemanha, nos séculos XVIII e XIX, a tradição puritana pregava o controle sobre as paixões, a moderação e a pureza sexual e mental como modelo de masculinidade. Além disso, o autor lembra que cristãos de diferentes correntes mantinham a figura do homem como personagem central no âmbito familiar, tendência que dialogava com os ideais burgueses. Na Idade Moderna, a 18 masculinidade se consolidou como símbolo de um ideal de estabilidade, pois mantinha a vida social, a família e as tradições em meio às mudanças da sociedade industrial. O papel da religião foi, pois, o de impulsionar uma conduta condizente com os valores da burguesia. Com isso, percebe-se que a imagem construída na ficção dos contos de fadas, de um homem medieval ousado e destemido, que passa pelos perigos da floresta, enfrenta criaturas abomináveis e mata dragões para provar seu valor à donzela amada, dialoga com a realidade da época, isto é, vemos o dragão como uma metáfora para representar o oponente do homem medieval em um duelo. A mulher, embora muitas vezes não fosse o motivo do desafio – mas sim a honra dos participantes – era a recompensa. A batalha foi-se reconfigurando no decorrer dos anos, e os comportamentos sexuais, cada vez mais restringidos. O ideal feminino, baseado na castidade e na pureza, era um contraponto ao modelo moderno de masculinidade, representado pela ordem e pelo progresso. Esses ideais, portanto, fortaleciam a imagem do homem responsável pelo domínio público, enquanto a mulher limitava-se ao ambiente doméstico. Assim, a ascensão da burguesia reforçou a figura das mulheres como complemento dos homens (OLIVEIRA, 2004). Essa estrutura patriarcalfuncionou até que mulheres dos Estados Unidos da América e do Reino Unido, a partir do século XIX, passaram a questionar sua posição social em relação aos homens. Nascia, naquele momento, a “terceira mulher”, conceito proposto por Gilles Lipovetsky (2000). 2.2. Do lar às ruas: o feminismo desmistifica o modelo conquistador O casamento pode ser uma fonte de alegria, amor e apoio mútuo, mas por que ensinamos às garotas a aspirar ao casamento e não ensinamos a mesma coisa aos meninos? Educamos as garotas a se verem como concorrentes, não por emprego ou por realizações – o que eu penso que pode ser uma coisa boa –, mas sim pela atenção dos homens. Nós ensinamos às garotas que elas não podem ser seres sexuais da mesma forma que os garotos são. [...] Feminista: a pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica entre os sexos. (Chimamanda Ngozi Adichie) 5 5 Nascida em Enugu, na Nigéria, a escritora Chimamanda Ngozi Adichie teve sua obra traduzida para mais de trinta línguas e apareceu em inúmeras publicações, como as revistas “New Yorker” e “Granta”. Recebeu diversos prêmios, entre eles o Orange Prize, por “Meio sol amarelo” (2008), e o National Book Critics Circle Award, por “Americanah” (2014). Este trecho de abertura, de tradução nossa, é parte da sua fala no eventoTEDxEuston 2013, produzido pela fundação privada sem fins lucrativos TED (Technology, Entertainment, Design). No original: “Now marriage can be a source of joy and love and mutual support, but 19 “Mulher” é um tema cotidiano. Pode-se encontra-lo nas bancas de revistas (em publicações voltadas para ela ou sobre ela), nas estantes das livrarias, nos programas televisivos (de entrevista, mesa-redonda ou variedades), no debate político, no marketing. “Mulher” é, inegavelmente, um assunto que engloba os bens culturais mais diversos. Na sociedade, a mulher passou de coadjuvante à protagonista. Aquela dona de casa dedicada à criação dos filhos e ao aconchego do marido chefe de família, mencionada anteriormente, hoje representa papéis que antes eram atribuídos exclusivamente ao homem. Até que as primeiras conquistas feministas fossem alcançadas, a mulher era vista, no imaginário social, como soberana naquilo que se referisse à maternidade, tarefas domésticas e cumprimento de seu “papel de esposa”, no sentido de satisfazer sexualmente o marido (WANG; JABLONSKI; MAGALHÃES, 2006). Para contextualizar e explicar os novos espaços femininos, ancoramo-nos nos conceitos de primeira, segunda e terceira mulher, propostos pelo estudioso Gilles Lipovetsky (2000). No decorrer dos anos 60, a sexualidade deixa de ser considerada como um domínio privado e passa a ser vista como uma relação de poder entre os sexos; um instrumento de essência política constitutivo da ordem patriarcal. Baseado na obra de Kate Millet (1971) 6 , o autor lembra, ainda, que as leis, a moral, as representações e a psicologia, por exemplo, convergiam para assegurar a supremacia viril e a subordinação das mulheres. Salvo algumas exceções 7 , a “primeira mulher” é aquela desde os tempos mais remotos, quando as coletividades humanas já se organizavam de acordo com a divisão sexual para designar papéis ao homem e à mulher. Ela tinha alguns reconhecimentos, mas, em sua maioria, depreciavam-na: inferior, subordinada, afastada de funções nobres, bruxa, detentora de maledicências. Sua capacidade de gestar um filho, por exemplo, só era valorizada pelo descendente que ela geraria. Na Idade Média, a “segunda mulher” passou das sombras à luz e deixou de ser desprezada para ser admirada, conquistada, idolatrada. O culto à mulher começou no why do we teach girls to aspire to marriage and we don't teach boys the same? We raise girls to each other as competitors\not for jobs or for accomplishments - which I think can be a good thing - but for the attention of men. We teach girls that they cannot be sexual beings in the way that boys are. […] Feminist: the person who believes in the social, political, and economic equality of the sexes.” Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc>. Acesso em: 28/08/2014. 6 Ver “La Politique du mâle”. 7 Alves e Pitanguy (1981), em sua obra “O que é feminismo”, recordam sobre a relação entre os sexos na Gália e na Germânia. Essas duas sociedades tribais tinham regime comunitário e designava às mulheres um espaço de atuação semelhante ao dos homens. Juntos, participavam da guerra, dos Conselhos Tribais, ocupavam-se da agricultura e do gado, construíam suas casas. As mulheres atuavam, inclusive, como juízas. 20 século XII, desenvolvido pelo código cortês, e teve seu ápice no século XIX, quando se sacralizou a imagem de mulher como esposa, mãe e educadora. Mas a idealização de que a mulher era o ser mais próximo da divindade não a tirou de sua subordinação ao homem, ou seja, por mais exaltada que fosse a admiração à sua figura, mantinha-se a hierarquia social dos sexos. Mesmo que algumas mulheres exercessem tarefas ditas masculinas, como a serralheria, o trabalho feminino se concentrava na tecelagem, na costura e nos bordados. A remuneração sempre era inferior à do homem, o que provocou a antipatia deles em relação ao trabalho delas, afinal, na lógica mercadológica burguesa que começava a se formar, a exploração do trabalho feminino gerava uma competição que rebaixava o nível salarial geral. Após a Segunda Guerra Mundial houve uma progressiva entrada da mulher no campo de trabalho, associada ao crescimento econômico nos países capitalistas. A consolidação do sistema capitalista no século XIX provocou grandes mudanças na lógica de produção, bem como na organização do trabalho, especialmente para a mão-de-obra feminina. Homens e mulheres compartilhavam as mesmas condições de trabalho vigentes naquele período, como as jornadas de 14, 16 e até 18 horas. Alves e Pitanguy (1981) lembram que em Paris, por exemplo, os salários femininos eram, em média, de 2,14 francos, enquanto que os masculinos ficavam em torno de 4,75 francos. Por meio de lutas constantes por seus direitos e por igualdade, as trabalhadoras quebraram seu silêncio e levaram suas reivindicações à esfera pública. No dia 8 de março de 1857, operárias da indústria têxtil nova-iorquina marcharam pela cidade protestando contra seus salários e reivindicando uma jornada de trabalho de 12 horas. Foram reprimidas com violência pela polícia; muitas, presas e feridas. Sem efeito, 51 anos depois, no dia 8 de março de 1908, na mesma cidade, operárias saíram às ruas denunciando as mesmas condições degradantes às quais se sujeitavam no trabalho. Dessa vez, no entanto, somaram às suas reivindicações uma legislação que protegesse o trabalho do menor e o direito de voto às mulheres, ou seja, denunciaram sua exclusão da participação nas decisões públicas enquanto cidadãs (ALVES; PITANGUY, 1981). Como destaca Bonácio (2009), o ingresso da mulher no domínio público provocou uma derrubada de tabus em relação a ela, além de transformações para ambos os sexos, tanto no campo social, político, econômico quanto no pensamento. Desse modo, o feminismo foi o instrumento para se (re)pensar os conceitos de família, sexualidade, 21 trabalho e tarefas domésticas (incluindo a criação dos filhos). Como ideologia, portanto, o feminismo é acessível tanto aos homens quanto às mulheres, pois [...] busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica em que o indivíduo, seja elehomem ou mulher, não tenha que adaptar-se a modelos hierarquizados, e onde as qualidades “femininas” ou “masculinas” sejam atributos do ser humano em sua globalidade. Que a afetividade, a emoção, a ternura possam aflorar sem constrangimentos nos homens e serem vivenciadas, nas mulheres, como atributos não desvalorizados. Que as diferenças entre os sexos não se traduzam em relações de poder que permeiam a vida de homens e mulheres em todas as suas dimensões: no trabalho, na participação política, na esfera familiar, etc. (ALVES; PITANGUY, 1981, p.09) A primeira mulher era inferiorizada; a segunda, cultuada. Ambas eram subordinadas ao homem. Depois das primeiras conquistas feministas por se impor na sociedade patriarcal, a “terceira mulher”, entre outros aspectos, legitimou sua posição nos estudos e no trabalho; desvalidou o ideal de dona-de-casa; conquistou sua liberdade sexual e o direito ao divórcio. “Tudo, na existência feminina, se tornou uma opção, um objeto de interrogação e de arbítrio.” (LIPOVETSKY, 2000, p.233). O movimento feminista, aliado aos estudos de gênero, desaprovou a base secular estruturada no poder patriarcal até então vigente, mostrando que é possível ser homem sem ser opressor e, com isso, provocou o surgimento dos men’s studies (ou estudos masculinistas). A participação das mulheres no mundo do trabalho, a divisão de responsabilidades e poderes entre os sexos, a reconsideração feminista dos papéis tradicionais atribuídos aos homens e às mulheres, o celibato, a desconstrução de casais e famílias e, também, a reprodução artificial, causou um grande mal-estar aos homens. Ao questionarem a sua própria posição social, as mulheres deram vazão para que o homem pudesse pensar o seu papel. Ora, se elas se reconheceram presas ao sistema patriarcal, não estariam eles presos também? Diante dos reposicionamentos que as mulheres alcançaram, os homens contemporâneos têm vivido incertezas sobre sua identidade – prova de que a masculinidade é uma construção social. 2.3 Ser homem no século XXI: o mal-estar masculino As relações de gênero, inicialmente, baseavam-se numa concepção naturalista, isto é, acreditava-se que a sexualidade era determinada biologicamente. Os estudos sobre essas relações, no entanto, promoveram avanços no que se refere à sexualidade humana, 22 admitindo, segundo Silveira Filho (2010), uma nova perspectiva: a conexão entre os conceitos de gênero (concepção histórico-social que estabelece diferenciação social entre homens e mulheres), de sexo (através do prisma morfológico, determinando diferenças anatômicas básicas do corpo feminino e masculino) e os demais aspectos componentes da identidade humana. A masculinidade, até pouco tempo, limitava-se à imagem do homem provedor e protetor da família. Desde pequenos, os meninos eram educados para, um dia, tornarem-se fortes, terem sua independência financeira e serem bem-sucedidos, para darem sustento a suas futuras famílias. Ainda recebem uma criação semelhante, mas hoje nem todo homem consegue ser o provedor exclusivo da família, que, como lembram Wang, Jablonski e Magalhães (2006), em geral não pode abrir mão do salário da mulher para custear boa parte das despesas com escola, planos de saúde e supermercado, como no caso das classes médias urbanas. Na vida profissional, o homem pós-moderno disputa espaço diretamente com as mulheres, que já se provaram capazes de realizar as mesmas tarefas e funções que ele 8 . A mulher, não mais apenas objeto da satisfação masculina, exige também ser satisfeita. Portanto, conforme Wang, Jablonski e Magalhães (2006), em concordância com Nolasco (1993) 9 , Os pilares da sociedade patriarcal (sexualidade e trabalho) encontram-se fortemente abalados. Quando não conseguem se comportar de maneira adequada para suprir as expectativas do engessamento patriarcal e machista, [os homens] sentem-se problemáticos e diferentes. Como não são estimulados, como as meninas, a compartilharem seus mundos internos e seus consequentes anseios, tendem a reforçar e engrandecer o modelo vigente (SILVEIRA FILHO, 2010, p.06). O trecho acima citado vai ao encontro do que Nolasco (1995) diz ser a relativização da representação masculina legítima, isto é, mesmo que o comportamento viril – detentor de posse e de atitudes agressivas – continue sendo um referencial de masculinidade no qual muitos homens ainda se reconhecem, há outras masculinidades coletivamente aceitas. 8 Embora as mulheres venham ganhando mais espaço no mercado de trabalho, nos cargos mais variados, a disputa por esse espaço, inclusive salarial, ainda é desigual. Em geral, as mulheres recebem menos que os homens por tarefas desempenhadas nos mesmo cargos que eles. Esse contexto, ainda que concreto, não é focado nesta pesquisa, pois, mesmo que desigual, a presença feminina efetiva no mercado de trabalho desestabilizou o masculino. 9 Nolasco, S. (1993). O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco. 23 Como lembram Gomes (2006) e Nolasco (1995), a tensão da masculinidade contemporânea reuniu alguns homens, no início dos anos 1970, na busca por um modelo que melhor conseguisse descrever suas subjetividades, os chamados Grupos de Homens. Esses grupos surgiram da impossibilidade de os homens falarem sobre sua singularidade e história pessoal, e, a partir de discussões acerca da condição masculina 10 , problematizaram o “ser homem”. Nesse sentido, o fato de alguns homens não se reconhecerem em uma masculinidade hegemônica não é algo novo, mas, neste momento, o homem parece se sentir mais confiante em sua busca do eu; ele reconhece a existência de uma masculinidade hegemônica, mas se permite viver outras masculinidades. Giddens (2002) esclarece que as mudanças em aspectos íntimos da vida pessoal estão diretamente ligadas ao estabelecimento de conexões sociais de grande amplitude, ou seja, a reflexividade na alta modernidade 11 se estende ao núcleo do eu. Neste trabalho, apropriamo-nos do conceito de reflexividade do eu para nos referirmos ao homem que, frente à possibilidade de diferentes masculinidades, enfrenta seus confrontos pessoais para se sentir tão homem quanto aquele hegemonicamente padronizado no ocidente. A dominação masculina, interpretada como uma entidade generalizada e totalitária, por vezes não nos permite perceber que há homens machistas e mulheres que reforçam o machismo continuamente na criação de seus filhos e na reposição dos discursos que dizem refutar (SILVEIRA FILHO, 2010). Algumas mulheres, quando se referem a carro, prestígio e poder, acreditam estar expressando seu lado masculino. “Da mesma forma, alguns homens, ao reconhecerem suas necessidades afetivas, o fazem referindo-se ao seu lado feminino” (NOLASCO, 1995, p.16). Homens e mulheres, por conseguinte, influenciam-se continuamente na construção de suas identidades. Ensina-se aos meninos o silêncio em relação a seus problemas e dificuldades, para afasta-los da possibilidade de vergonha e medo, símbolo de fragilidade e fraqueza, indignos na masculinidade hegemônica. Para que eles não fracassem, ensina-se que o os 10 O autor Sócrates Nolasco (1995), em sua obra “A desconstrução do masculino”, faz uma ressalva sobre os Grupos de Homens. Ele diz que não podemos tratar esses grupos como um bloco homogêneo e indiferenciado, pois, ao passo que alguns buscam compreender o modo pelo qual a paternidade, o tipo de identificação com o trabalho e com a violência articulam a representação do homem e o modelo de sociedade pós-industrial e capitalista,há grupos preconceituosos e discriminadores em relação a movimentos feministas e homossexuais. 11A “reflexividade em relação ao eu” a que nos referimos, é uma menção ao termo “modernidade reflexiva”, proposto pelos estudiosos Anthony Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash (1997) no livro “Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna”, e se refere às transformações, crises e consequências no mundo pós-moderno. O termo sugere que a sociedade está vivendo um período cada vez mais reflexivo, estimulando críticas e confrontos pessoais, ou seja, que se pense o “eu”. 24 ganhos por suas conquistas sexuais e profissionais os levarão ao sucesso e, assim, encontrarão sua identidade convencionalmente masculina. O homem do século XXI segue preso a algumas amarras históricas sobre sua masculinidade. O culto à forma física atlética e robusta, por exemplo, percebida desde as esculturas gregas e revalorizada em momentos de exaltação política, como no nazismo, faz-se presente na sociedade pós-moderna. Sabino (2000), em estudo realizado com frequentadores de academias da classe média do Rio de Janeiro, destaca que a busca pelo corpo perfeito é sinônimo de busca por sucesso, status e dinheiro, de modo que as relações sociais (de conquista e, em alguns casos, de trabalho) ficam dependentes da forma ostentada pelo corpo. Em decorrência dos efeitos causados pela liberdade e pelas exigências sexuais femininas, os estudos masculinistas desconstruíram uma identidade masculina tradicional, baseada em ideais oitocentistas, e viram na pluralidade de gênero uma “feminilização” do masculino. A literatura masculinista ressalta, querendo ou não, uma espécie de essência identitária comum a todos os homens, não só biológica como também sexual e comportamental, criticando o modelo tradicional de masculinidade e admitindo, como verdade única, a essência pluralista dos gêneros. (GOMES, 2006, p. 120) Em vista disso, pensa-se muito no que é ser homem na contemporaneidade. Como objetiva Gomes (2006), a masculinidade como pauta de discussão talvez seja resultado da inserção do homem na cultura a que pertence, pois esta impõe regras e as define como normas. Durante sua vida, o homem precisa se moldar em escolhas dicotômicas: sustentando ou criticando, aderindo ou rejeitando, integrando-se ou afastando-se, obedecendo ou resistindo a essas normas culturais. Nesse processo, conforma características, comportamentos e papéis que não necessariamente combinam com o que ele almeja para si como traços de sua identidade. Como é, então, este “novo homem”? Ele desfruta das possibilidades de experimentação; um sujeito no gerúndio (sendo, formando-se) e que vive com múltiplas identidades. O homem pós-moderno pode ser um conquistador de mulheres, mas deve ser presente no trabalho doméstico, bem como ajudar na criação dos filhos. Influenciado pelo consumo capitalista, é um cosmopolita que se preocupa com saúde, estética e roupas. Bonácio (2009) enfatiza que este homem, portanto, é produto e objeto do mercado, especialmente porque a ordem desse discurso é direcionada a um sujeito bem-sucedido, 25 que tem dinheiro para investir na sua aparência, em móveis e carros caros. Oliveira (2004) destaca que, em vista disso, os homens de classe popular têm menos acesso aos bens culturais e de consumo midiaticamente difundidos. Tanto campanhas publicitárias quanto produtos jornalísticos, ora apresentam o homem se reinventando, ora apresentam o homem que busca valores tradicionais de masculinidade. Como lembra Giddens (2002), os meios de comunicação não espelham realidades, mas, em parte, formam-nas. “Muitos homens, talvez, não se deram conta do momento histórico vivido, mas, ao serem interpelados pela mídia através de reportagens, propagandas, programas etc., podem começar a ter consciência desse novo panorama espetacularizado” (BONÁCIO, 2009, p. 144). Por isso, o comportamento dos homens pode ser influenciado pela experiência transmitida pela mídia, seja por distanciamento ou estranhamento em relação ao homem retratado (no caso das culturas ou classes que mantém valores tradicionais de uma masculinidade hegemônica), seja pela (in)consciente reflexão sobre seus possíveis novos comportamentos. Oliveira (2004) pontua que construir uma identidade é uma tarefa paradoxal de estabelecer autonomia através da submissão, porque a busca pelo caráter único se realiza por meio da integração a um determinado grupo, ou seja, pela unidade e singularidade partilhada e confirmada por iguais. Esses grupos podem ser percebidos nos nichos de leitores das publicações especializadas, assunto a ser tratado no próximo capítulo. 26 3. JORNALISMO DE REVISTA O jornalismo de revista, por muitas vezes, exerce a função de guia para o leitor – como ser e agir, que lugares visitar, quais comidas experimentar, quais roupas vestir, em que questões pensar. Essa característica é ainda mais evidente no gênero opinativo, pois o colunista atua como um porta-voz que vai além da fala do veículo. Ele escreve e assina sua autoria, mas não tem seu espaço por acaso; sua ideologia deve estar próxima às linhas editoriais da empresa. As revistas agrupam pessoas com interesses em comum, apresentando, a cada edição, temas com os quais os leitores talvez nem saibam que se interessam e se identificam. Aliás, essa busca por surpreender o leitor, segundo Ali (2009), é um dos principais estímulos para o fazer revista. A segmentação por gênero é, ainda, o maior divisor de águas no espaço editorial. As revistas femininas têm mais pautas relacionadas a comportamento, moda, bem-estar, saúde. As masculinas, por sua vez, embora também apresentem lançamentos de cosméticos, tendências de estilo e viagens, pautam com regularidade: esportes (futebol, em especial), carros e motos, carreira profissional, política e economia. Isso não significa, no entanto, que as revistas para homens sejam mais sérias do que as para mulheres. Assuntos que eram restritos ao universo feminino (beleza, roupas, consumo e até mesmo comportamento) vêm adentrando o universo masculino. Do mesmo modo, porém com menos intensidade e com abordagem diferente, assuntos do universo masculino imergem no universo feminino. Textos sobre economia, por exemplo, costumam ter uma abordagem mais técnica nas publicações destinadas aos homens, enquanto que nas destinadas às mulheres, é feita uma contextualização que lapida essas informações, tornando-as mais leves e de leitura mais dinâmica. Em vista disso, este capítulo destina-se a contextualizar o universo editorial das revistas – especialmente as masculinas – e o gênero de jornalismo opinativo, com o propósito de, na sequência da pesquisa, colocarmos estes conceitos em contato com o que foi estudado sobre masculinidade. Partindo do princípio de que as revistas têm papel norteador e que o jornalismo opinativo faz isso mais explicitamente, intencionamos observar de que modo os textos da coluna Comportamento da revista GQ Brasil discutem temas relevantes à vida do homem contemporâneo. 27 3.1. Possibilidades e especificidades em revista Se o jornal inventou o jornalismo, pode-se dizer que a revista elevou o jornalismo (BOFF, 2013, p.189). ErbaulicheMonaths-Unterredungen (Edificantes Discussões Mensais), de acordo com Scalzo (2008), é conhecida como a primeira publicação do gênero revista. Originada na Alemanha, em 1663, tinha aspecto de livro, mas é considerada revista porque, além de ser voltada a um público específico, era composta por diversos artigos sobre um mesmo tema. ErbaulicheMonaths-Unterredungen inspirou publicações semelhantesna França (1665), na Itália (1668) e na Inglaterra (1680). Embora não usassem a palavra “revista” no nome, o que só veio a acontecer em 1704, na Inglaterra, tinham uma das principais características deste gênero: aprofundar-se nos assuntos mais do que os jornais e menos do que os livros. Segundo a autora, o modelo de revista mais parecido com o que conhecemos hoje em dia nasceu em Londres, no ano de 1731. The Gentleman’s Magazine inspirou-se nos grandes magazines (lojas que vendiam produtos variados), apresentando de forma leve e agradável vários assuntos a cada edição. Mira (2013) pontua que durante o século XIX, os magazines praticamente não tinham anúncios, sendo sustentados pela circulação paga. Conforme os produtos industrializados foram ganhando espaço na distribuição nacional e a população urbana foi aumentando, o crescimento da publicidade foi crescendo exponencialmente. Isso acarretou na baixa do valor de venda (chegando a centavos) e na influência que a publicidade exerce sobre a revista: não só no conteúdo, mas também no formato, como padronização de páginas e uso de cores. O interesse dos leitores de revistas cresceu conforme os índices de escolarização aumentaram na Europa e nos Estados Unidos da América. A população alfabetizada queria ler e se manter instruída, mas os livros eram muito profundos e vistos como objetos de elite, pouco acessíveis. Conforme as gráficas foram avançando tecnologicamente, as revistas se tornaram o meio ideal para que as pessoas lessem sobre assuntos variados. Desse modo, a revista passou a ser o meio-termo entre livro (leitura extensa) e jornal (notícias rápidas), circulando, em um só exemplar, informações sobre os novos tempos, a ciência e novas possibilidades. Portanto, enquanto os jornais nasceram e cresceram ligados a assuntos políticos, tendências ideológicas e defesa de causas públicas, as revistas – 28 relacionando-se com a cultura e a ciência – desempenharam o papel de complementar a educação. Misto de jornalismo e entretenimento, a revista é um veículo de comunicação feito para informar e ensinar, mas também é um produto, um negócio, uma marca; enfim, um conjunto de serviços (SCALZO, 2008). As primeiras revistas eram feitas por jornalismo especializado, isto é, aprofundavam as informações acerca de um único tema ou assunto na mesma edição. Quando as publicações começaram a abranger diferentes assuntos em suas reportagens, começou a se formar o que hoje conhecemos como revista de interesse geral. Buitoni (2013) pondera que especialização e segmentação assemelham-se e diferenciam-se em alguns pontos: ao passo que a especialização tem sentido de aprofundar temáticas – sem se ater a um público específico, a segmentação foca mais no recorte do público e menos na concentração temática. Desde seu surgimento, a revista esteve ligada à ideia de mercado. Enquanto os jornais tinham grandes tiragens, recursos e acesso às gráficas, os editores de revistas precisavam procurar caminhos alternativos, afastados do noticiário. Precisavam encontrar um diferencial que atraísse seu próprio leitor. Mesmo com sua origem relacionada a públicos específicos, foi no século XX que o formato revista investiu na segmentação. Nos anos 90, esse mercado viveu uma avalanche, com publicações superlotando as bancas. O jornalismo praticado nos jornais diários trata do fato presente, da diversidade de assuntos; direciona-se a um leitor heterogêneo; tenta representar a diversidade social; ocupa o espaço público. A revista, por sua vez, está condicionada ao privado, à intimidade, à casa do leitor. Além disso, reitera temáticas; permite estilos textuais mais criativos; valoriza o uso das imagens e do visual gráfico; é periódica e colecionável; prioriza temas de longa duração; contribui para a formação do gosto e da opinião do leitor (BENETTI, 2013). Cabe ressaltar que o jornalismo, em sua essência, estabelece o saber do contemporâneo, isto é, diz ao leitor o que é atual e mostra que, por meio de suas informações, é possível se conectar ao presente social. Nas revistas, o sentido de presente é estendido. Atual não significa novo, mas sim contemporâneo (BENETTI, 2013). Percebe- se isso mesmo em sua periodicidade, que pode ser semanal, quinzenal, mensal. “Configuram, desse modo, montagens em que se justapõem fotografias, ilustrações, informações, narrativas, materiais diversos; pequenas súmulas de imagens do contemporâneo” (VOGEL, 2013, p.17). Benetti (2013) se apoia em Fidalgo (2004) para diferenciar atualidade e novidade: enquanto atual significa algo que acontece no tempo 29 presente, novo significa tudo aquilo que o sujeito desconhecia e passa a saber. Conclui-se, portanto, que o jornalismo ajuda o sujeito na compreensão de si mesmo. Seguindo esse panorama, as revistas indicam como viver o presente, propondo novas experiências ao leitor. Vogel (2013) complementa essa discussão afirmando que, de certo modo, toda revista faz uma apresentação materialmente estável de imagens justapostas não só do presente como de qualquer tempo, isso significa que os periódicos sugerem reflexões sobre o contemporâneo, nunca representações. O sentido sobre o que é ser contemporâneo – e, portanto, sobre o que está ultrapassado e deve ser substituído – está poderosamente inscrito no jornalismo de revista. Ele diz o que importa saber agora e como deve agir, ou se imaginar agindo, o sujeito que está de acordo com o espírito de seu tempo. (BENETTI, 2013, p.46) É importante abordar, também, o fato de a revista assumir um discurso normativo. Prado (2009) escreve que os enunciadores da mídia impressa são como cartógrafos, pois tracejam mapas dos mundos da cultura midiática, indicando caminhos 12 modalizados que, se seguidos com determinação pelos leitores, internautas e espectadores, dizem levar aos lugares de pertencimento e reconhecimento desejados e anunciados como repletos de valores positivos. Segmentação remete a divisão, grupos, especificidades. Em resumo, o jornalismo de revista, obedecendo a conveniências de mercado, segmenta publicações a partir do público e seus interesses, traçando, assim, perfis mercadológicos. Gênero (feminino ou masculino), classe social (com suas divisões e subdivisões) e faixa etária (crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos) são recortes que determinam grupos específicos que partilham interesses em comum. A dinâmica atual de revista foi impulsionada pela inserção das publicidades nas publicações, pois assim foi possível aumentar as tiragens e reduzir o preço do produto final, expandindo seu alcance pelo território nacional. Nesse movimento de segmentação, o leitor passou a ser visto como consumidor em potencial, e o editor torou-se especialista em grupos de consumidores (MIRA, 2013). No contexto brasileiro, inicialmente, a revista não era tão segmentada, e funcionava como uma ferramenta de integração na “cultura brasileira” que nascia. De acordo com 12 Há uma modalização de dever fazer: o que o leitor deve fazer para conseguir alcançar os valores que proporcionam reconhecimento e pertença. São receitas, diagramas, dicas, confiados, muitas vezes, pela opinião de especialistas e cientistas. O enunciador mapeia os comportamentos a serem seguidos (PRADO, 2009). 30 Mira (2013), entre 1970 e meados dos anos 1980, um novo período na história das revistas brasileiras começava a delinear-se: com o Estado-nação enfraquecido, a preocupação em se construir uma identidade nacional desapareceu. O interesse em se comunicar com o leitor brasileiro se manteve, mas buscando mostrar o que ele tem em comum com leitoresao redor do mundo. Isso, em grande parte através da importação de títulos internacionais já consagrados, mostra que existe uma relação entre o processo de segmentação do mercado e reorganização das identidades sociais, pois, por serem fenômenos globais, tendem a formar segmentos internacionais de pessoas com experiências em comum, logo, tendem a consumir as mesmas coisas, já que consumo e construção da identidade se entrelaçam (MIRA, 2013). Assim, no decorrer dos anos, o mercado editorial de revistas expandiu e fortaleceu ainda mais a segmentação, indo além da diferenciação por classe, gênero e geração, cruzando essas três variáveis entre si com outras, que têm sido chamadas de estilo de vida. Isso qualifica a ocorrência do que Mira (2013) chama de “segmentação da segmentação”. Significa que as fronteiras entre jornalismo especializado e jornalismo segmentado estão cada vez mais amenas, no sentido de que existem publicações com sua segmentação tão definida, que o jornalista acaba, de certo modo, por se tornar um especialista em falar sobre aquele assunto, para aquela comunidade, daquela faixa etária, daquela classe social, etc. Nesse cenário, percebe-se que as publicações construídas por tematização (fotografia, jardinagem, viagem, automóveis, etc.) podem ser incansavelmente filtradas. Ao final da era das grandes revistas, ou seja, na “Era do Marketing”, é imprescindível conhecer o leitor. Um leitor que obriga todas as revistas a se reformularem constantemente; que leva as editoras a sondar seus desejos para descobrir novos nichos de mercado, num processo de segmentação da indústria cultural em geral que se acelera nos anos 70; um leitor por cuja atenção e fidelidade a competição aumentará cada vez mais. (MIRA, 2011, p.96) Uma revista bem-sucedida (em distribuição, financiamento e estabilidade) é a que sabe a quem se direciona, isto é, nesta época de fragmentação em que vivemos, conhecer os interesses, os anseios, as curiosidades do leitor-alvo é determinante para a longevidade da publicação, fidelizando tanto quem lê quanto quem anuncia. As revistas segmentadas são uma estratégia editorial para chegar a diferentes nichos de mercado. Para tal, estabelece-se uma relação com o leitor. 31 Ao contrário dos jornais, que se direcionam universalmente a um público amplo e variado, sem definir quem exatamente recebe suas informações, a revista conhece seu leitor e é com ele que se comunica, firmando um contrato entre eles. O estudioso francês Patrick Charaudeau (2006) diz que todo discurso depende, para a construção de seu interesse social, das condições específicas da situação de troca na qual ele surge, ou seja, a comunicação constitui um quadro de referência ao qual se reportam os indivíduos de uma comunidade social. Isso quer dizer que o ato de comunicar – com suas restrições de espaço, de tempo, de relação, de palavras – permite trocas sociais. O autor explica, ainda, que essas restrições se estabelecem “por um jogo de regulação das práticas sociais, instauradas pelos indivíduos que tentam viver em comunidade e os discursos de representação, produzidos para justificar essas mesmas práticas a fim de valorizá-las” (CHARAUDEAU, 2006, p.67). Isso, por conseguinte, organiza convenções e normas para os comportamentos linguísticos. Todo locutor deve submeter-se às restrições e, ainda, supor que seu interlocutor (ou destinatário) pode reconhecê-las. É a mesma situação com o leitor de um texto, que deve supor que quem se dirige a ele está consciente dessas restrições. Em suma, esse conhecimento, que é subjetivo, deve ser recíproco, concluindo-se que estão ligados por um contrato de comunicação. No caso do jornalismo (em especial o de revista), que constrói um modo de conhecimento no qual as pessoas compreendem a si mesmas e às outras (BENETTI, 2013), isso significa que, para ser reconhecido como tal, deve cumprir alguns requisitos, como o da credibilidade. Isto posto, Prado (2009) pontua que, nas mídias impressas segmentadas, o contrato comunicacional é mais intenso do que na mídia semanal, porque o enunciador, além de mapear temas como prazer, sucesso, beleza e moda, também constrói programas para o leitor realizar suas metas passo a passo. No jornalismo de revista, o contrato de comunicação conforma um discurso singular, resultado da confluência dos princípios deontológicos do jornalismo e das características materiais desse suporte (BENETTI, 2013). As relações no jornalismo são sempre entre sujeitos, portanto, respeitar os elementos 13 do contrato é a chave para que o enunciador se reconheça como alguém que oferece jornalismo e o leitor perceba que o que lê é jornalismo. Há nesse processo uma condição de identidade, que, de acordo com essa 13 Charaudeau (2006) indica cinco elementos do contrato de comunicação para a condição de troca: quem informa quem; para que informar (finalidade); sobre o que se informa; em que condições se informa e como se informa. “Respeitar os elementos” do contrato de comunicação não significa que eles sejam estáticos, imutáveis; pelo contrário, aos poucos vão se adaptando conforme ambas as partes se organizam socialmente. Ainda assim, seguem subjetivamente estabelecidos. 32 autora, transita entre o real e o imaginário, ou seja, o que os sujeitos sabem e o que imaginam sobre si e sobre o outro. Como escreve Ali (2009), revista se faz para o leitor, por isso a importância de se conhecer e compreender o público ao qual se dirige: quantos e quem são; idade; sexo; estado civil; classe social; onde moram; onde trabalham; quanto ganham; o que e quando leem; o que compram. Além de informações quantitativas, as qualitativas também são importantes: o que pensam; como se comportam; quais seus hábitos e expectativas. Traçar um perfil de leitor imaginado 14 é essencial para que toda a equipe de redação consiga estabelecer o contrato de comunicação com o público, de modo que a revista consiga ser lida, comunicada e, então, conquiste-se a lealdade do leitor. Benetti (2008) esclarece que o leitor imaginado pode ser construído por pesquisas sobre os hábitos do leitor, bem como por informações coletadas pelo jornalista em seu cotidiano, além, é claro, por meio de estereótipos socialmente construídos. Assim sendo, em consonância com Charaudeau (2006), a autora pontua que “o jornalista imagina um leitor capaz de reconhecer as regras do gênero [jornalístico], compreender seu texto e considerar válido o que é narrado” (BENETTI, 2008). O leitor imaginado, portanto, faz parte do contrato de comunicação, mas habita um universo virtual. O leitor real, quando em contato com o texto, depara-se com uma imagem de si projetada pelo enunciador, consequentemente, Nem sempre a imagem projetada pelo outro é condizente com a que ele tem de si, e nesse caso os leitores real e virtual não entram em consonância. Esse estranhamento, que não é incomum no processo de leitura e interpretação do texto jornalístico, não é suficiente para borrar as fronteiras do gênero jornalístico nem para romper o contrato de comunicação, que não está baseado apenas sobre a identidade dos sujeitos, mas certamente perturba o processo comunicacional. (BENETTI, 2008, p. 23) A lógica do jornalismo segmentado, nesse sentido, é esta: para fidelizar o leitor é preciso criar um vínculo no qual ele e a revista reconhecem seus papéis; para criar o vínculo é preciso escrever para um grupo específico (representado pelo leitor imaginado), pois ele precisa sentir que a revista fala com ele, que o conhece e entende.14 Ver Storch (2012). 33 3.2. Da nudez ao diálogo: a trajetória das revistas masculinas Mascaradas pelo rótulo de “galantes”, as primeiras revistas masculinas brasileiras escondiam seu conteúdo. Algumas, no entanto, no final do século XX, escancaravam o que eram já no título, como O Badalo, O Nabo e Está Bom, Deixa. Desse estilo, a mais famosa foi Rio Nu, que circulou entre 1898 e 1916, reproduzindo cartões-postais com fotografias eróticas. A Maçã foi a revista que impulsionou as publicações destinadas ao público masculino no Brasil. Lançada por Humberto de Campos em 1922, o semanário contava com a colaboração de textos de artistas e escritores conhecidos, seu diferencial. A inovação da publicação de Campos influenciou as outras revistas masculinas, que passaram gradualmente a substituir a pornografia pelo erotismo, ou seja, trocar o sexo vulgar pelo sexo poético. Devido à Censura imposta pelo Estado Novo, as “galantes” foram sumindo das bancas de revista. No final da década de 1950, existiam os “catecismos”,15 publicações clandestinas que entretiveram jovens até os anos de 1970. A revolução sexual vivida na década seguinte abalou tabus e preconceitos, permitindo que o erotismo e a sensualidade fossem tratados com mais naturalidade (EDITORA ABRIL, 2000). Fairplay, lançada em 1966, foi a revista brasileira que iniciou um projeto mais moderno. Os discretos nus femininos ganharam reforço de colaboradores como Vinicius de Moraes e Nelson Rodrigues. Depois de estampar a nudez das famosas Odete Lara, Betty Faria e Leila Diniz, e ter tiragem de 100 mil exemplares por mês, teve as portas fechadas pela Censura em 1971. Em 1975, a Abril lançou Homem, a versão brasileira de Playboy, pois a Censura não permitia o uso da marca criada pelo norte-americano Hugh Hefner. O título Playboy passou a ser usado em 1978, após a perda do título Homem para a Editora Três. Nove anos mais tarde, era a publicação mensal de maior circulação no Brasil. Pensando além das questões legais, o lançamento da revista feminina Cosmopolitan e da masculina Playboy com títulos em português Nova e Homem, respectivamente, indica um momento em que a globalização ainda está nascendo. “Pouco mais tarde, não haveria mais dúvida quanto à conveniência do título internacional. Quando Homem mostra que é 15 Carlos Zéfiro é conhecido como o grande artista do gênero, não exatamente pelo traço, mas pela safadeza no enredo de seus contos eróticos. Seu nome verdadeiro, descoberto depois de 30 anos, era Alcides Aguiar Caminha. 34 Palyboy, incorporando o imaginário masculino do coelho de smoking e suas coelhinhas, suas vendas disparam” (MIRA, 2013, p.99). Lado a lado, as revistas com nudez feminina estarão para os homens assim como as de comportamento estarão para as mulheres. Mira (2013) reflete que, mesmo com a estrutura familiar reorganizada e as mudanças na relação entre homem e mulher, o sexo a que o indivíduo pertence ainda é um fator que define a história de vida, demarcando preferências, ideais e hábitos, mesmo no meio urbano e modernizado. O sexo dos leitores é, ainda, determinante na escolha das abordagens dos redatores, em critérios editoriais e mercadológicos, porque as diferenças entre homem e mulher se afastam e aproximam em alguns pontos, mas não desaparecem. Olhando historicamente a obscenidade nas revistas masculinas, é importante pensar que seu significado é relativo à circunstância na qual está inserida. Playboy apresentou aos leitores uma pornografia leve, lapidada. Mesmo superada a época de repressão sexual, a pornografia pesada, explícita, continua velada. A estrutura classicista da sociedade capitalista elabora diferentes contextos: o das revistas dirigidas ao leitor de poder aquisitivo elevado, e o das destinadas a publicações populares (MIRA, 2013), depreendendo-se que A distinção entre obras eróticas e obras pornográficas, hoje, pode também atravessar a problemática questão de distinguir cultura de massa de cultura erudita. Sob o rótulo do erótico estão abrigadas aquelas obras que abordam assuntos relativos à sexualidade com teor “nobre”, “humano”, “artístico”, problematizando-os com “dignidade” estética, e de pornográfico as de caráter “grosseiro e vulgar”, que tratam do sexo pelo sexo, produzidas em série com o objetivo evidente de comercialização e de falar somente aos instintos. (MIRA, 2013, p.113) O que percebemos é que revistas masculinas classificadas como eróticas buscam alcançar um perfil homem diferenciado, que desperta interesse por uma publicação que informe e distraia, por isso a nudez não basta. Economia, política, cultura e gastronomia, por exemplo, são assuntos que permeiam sua realidade, seu estilo de vida. A segmentação por classe não se restringe ao público; atinge, também, os produtores. Como mostramos no subcapítulo anterior, a revista precisa conhecer o público a que se dirige. É vantajoso, portanto, que editores habitem a mesma atmosfera cultural que seus leitores, pois assim se torna mais fácil satisfazer as expectativas dos consumidores de suas revistas. Conhecer seus desejos, suas fantasias, suas margens culturais, é determinante para a manutenção do contrato de comunicação e garantir a sobrevivência no 35 mercado. A revista e o homem compartilham uma linguagem entre si por intermédio de texto e imagem, estabelecendo-se, assim, um processo de comunicação e cumplicidade “entre homens”, como bem escreve Mira (2013). Essa é uma relação que ainda está se harmonizando. Basta folhear as revistas masculinas para perceber que, ainda que existam, os espaços dispostos a conduzir os homens à reflexão dos seus sentimentos continuam restritos. Geralmente limitado às páginas editorialmente autorizadas – como as colunas, as crônicas e os artigos – o jornalismo opinativo funciona como lugar de discussão; acolhedor, nas publicações destinadas aos homens, convida-os a pensar questões que circundam o atual mal-estar da masculinidade. 3.3. Jornalismo opinativo: o divã da revista O jornalismo de opinião surgiu no século XVII. As publicações – que até então eram bastante comerciais – passaram a expressar diferentes ideologias, gerando polêmicas, conflitos políticos, mobilizações sociais. Em consequência, o jornalismo se tornou instrumento de divulgação de ideais, tanto para ataque quanto para defesa (MARSHALL, 2003). A imprensa, então, começa a ter poder político e econômico. Nas publicações brasileiras, muitas vezes, uma só pessoa exercia a função de demonstrar a opinião da empresa: o editor. Com o decorrer dos anos, no entanto, a imprensa seguiu outros rumos. Não mais empresa individual, tornou-se uma ampla instituição, com aumento de profissionais jornalistas e, também, de colaboradores, sendo possível a expansão do quadro de funcionários envolvidos no setor opinativo da instituição. Ainda que cada veículo possua uma linha editorial diferente, aparece aí a fragmentação da opinião – nova tendência na imprensa nacional. Marques de Melo (1994) destaca que essas mudanças são perceptíveis nos gêneros 16 opinativos através dos emissores 17 . 16 A discussão sobre a divisão do jornalismo em gêneros é extensa, não cabendo em sua totalidade neste trabalho. O conceito de “gênero” utilizado por maior parte dos pesquisadores brasileiros de comunicação segue aquele desenvolvido por Bakhtin (1981): tipos relativamente estáveis de enunciados. Para uma reflexão mais completa e atual, ver Seixas (2009). 17 José Marques de Melo (1994) elenca quatro emissores: empresa,
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