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Organizadoras: Angela Paiva Dionisio (UFPE) Anna Rachei Machado (PUC-SP) Maria Auxiliadora Bezerra (UFPB) Gêneros Textuais & Ensino EDITORA LUCERNA Rio de Janeiro - 2002 TEXTO OI Gêneros textuais: 1 definição e funcionalidade Luiz Antônio Marcuschi 1. Gêneros textuais como práticas sócio-históricas )a se tornou trivial a idéia de que os g~ncros textuais sao fenômenos histó- ricos, profundamente vinculados à vida cultural c social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros conuibuem p.ua ordeMr c establliz.1f as atividades comu- nicativas do dia-a-dia. São entidades sócio-discursivas e formas de aç.1o social incontornáveis em qualquer situaçAocomunlca\lva. No entanto, mesmo apre- sentando alto poder preditlvo c Interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros n:lo ~"i o Instrumento~ c~t:m<lu<'~ c cnrijcçcciorc~ da aç~o criativa. Caracterizam-se como eventos textuais altamente malcáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades c atividades sócio- CÚiturais, bem como na relaçao com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade ele gêneros text uais hoje existen tes em relaçao a sociedades anteriores à comunlcaçno escrita . Quanto a esse último aspecto, uma simples obscrvaçao histórica do surgimento dos gêneros revela que, numa primeira fase, povos de cultura essencialmente oral desenvolveram um conjunto limitado de gêneros. Após a invenç~o da escrita alfabética por volta do século VIl A. C., multiplicam-se os gêneros, surgindo os típicos da escrita. Numa terceira f~se, a partir do século XV, os gêneros expan- dem-se com o florescimento da cuJturi'l imprcss.t~ para, na ft~sc intermediária de industrialiwção inidada no século XVIII, dar lnfclo a uma grande ampliaç~o. Hoje, em plena fase da denominada cultum tletr6rrictl, com o telefone, o gravador, o rádio, a lV e, partlcularmente o computador pessoal e sua aplicaçAo mais notável, a irrtemtt, presendamos uma explosão de novos g~ncros e novas formas de comurtlcação, tanto na oralidade como na escrita. 1 Este t~Jho. cbbondo~lmmtepu.l o prt1tnte llvro,lnC"'OJllf:. utm série de~ ~nvoMd.l$ com gnndc dtt~lhe em um Uvto de minha autod.a (Marruschi, no pK'~). q-..;c Hti stttdo fin.lllz:ado tcb o título: •GbttrOS Tt..d•ls: Coruf1n,f{410 t Pnfdc•.s S«fodl!aflf-r-: .i Jtr lanÇiidO pcl~ Editon Corta an bfn't'. ,-----------------Luiz Antômo Marcuschi 2ll Isto é rcvclndor do fato de que os gêneros textuais surgem, situam-se c integram-se funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem. Caracteri- zam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas p«uliaridades lingOlstlcas e estruturais. São de difícil dcfiniçao formal, devendo ser contemplados em seus usos e condicionamentos sócio- pragm~ticos caracterizados como práticas sócio-discursivas. Quase inúmeros em diversidade de formas, obtêm denomonaçOes nem sempre unlvocas e, assim como surgem, podem desaparecer. Esta colet3nea traz estudos sobre uma variedade de gêneros textuais relacio- nados a algum melo de comunlcaçao e analisa-os em suas peculiaridades organizacionais e funcionais, apontando ainda aspectos de interesse para o trabalho em sala de aula. Neste contexto, o presente ensaio caracteriza-se como uma lntroduç3o geral A lnvcstigaç3o dos gêneros textuais c desenvolve uma batcrla de noçOes que podem servir para a compreens!o do problema geral envolvido. Certamente, haveria multas outras persp«tivas de análise e muitos outros caminhos teóricos para a dcflnlçao e abordagem da qucstao, mas tanto o exlguo espaço como a finalidade didática desta breve introduçao impedem que se faça m longas lncursócs pela bibliografia técnica hoje disponível. 2. Novos gêneros e velhas bases Como afirmado, nao ~ dlffcll constatar que nos últimos dois s~culos foram as novas tecnologias, em especial as ligadas A ~rca da comunlcaçao, que propi• ciaram o surgimen to de novos gêneros textuais. Por certo, nao sao propria- mente as tecnologias ptr se que originam os gêneros e sim a intensidade dos usos dessas tecnologias c suas Interferências nas atividades comunicativas diárias. Assim, os grandes suportes tecnológicos da comunicaçao tais como o r~dio, a televl s3o, o Jornal, a tevlsta, a internet, por terem uma presença marcante c grande centralidade nas atividades comunicativas da realidade social que ajuda m o criar, v3o por sua vez propiciando e abrigando gêneros novos bastante característicos. Daí surgem formas discursivas novas, taiscomo editoriais, artigos de fundo, noticias, telefonemas, telegramas, telemensagens, teleconferências, videoconferências, reportagens ao vivo, cartas eletrônicas (t-mails), bate-papos virtuais, aulas virtuais c assim por diante. ~uramente, esses novos gêneros nao sJo inovações absolutas, quais cria- ções ab ovo, sem uma ancoragem em outros gêneros já existentes. O fato já fora notado por llakhtin (1997) que falava na 'transmutaç3o' dos gêneros e na assi- milaçao de um g~nero por outro gerando novos. A tecnologia favorece o surgimento de formas inovadoras, mas n3o absolutamente novas. Veja-se o caso do telefonema, que apresenta similaridade com a conversaç3o que lhe pré-existe, Gêneros textuats: definição o funcionalidade-----------, mas que, pelo canal telefônico, realiza-se com características próprias. Daí a dife- rença entre uma conversaçao face a face c um telefonema, com as estratégias que lhe sJo pecullarcs. O t-mail (correio eletrônico) gera mmsagens eletrônicas que têm nas cartas (pessoais, comerciais etc.) e nos bilhetes os seus antecessores. Contudo, as cartas eletrônicas s:!o gêneros novos com identidades próprias, como se verá no estudo sobre gêneros emergentes na mfdia virtual. Aspecto central no caso des~ e outros gêneros emergentes é a nova relaç3o que Instauram com os usos da linguagem CQmo tal. Em certo sentido, possi- bilitam a redeflnlç3o de alguns asp«tos centrais na observaç3o da linguagem em uso, como por exemplo a rclaç~o entre a oralidade e a escrita, desfazendo ainda mais as suas fronteiras. Esses gêneros que emergiram no último século no contexto das mais diversas mldlas criam formas comunicativas próprias com um certo llibrldismo que desafia as relações entre oralidade e escrita c lnvlabillza de forma definitiva a vtlha visJo dicotômica ainda presente em muitos manuais de ensino de llngua. Esses glfneros também permitem observar a mi.lor lntegraç-3o entre os vários tipos de semloses: sigrÍos verbais, sons, imagens e formas em movimento. A linguagem dos novos gêneros torna-se cada vez mais plástica, assemelhando-se a uma coreografia e, no caso das publicidades, por exemplo, nota-se uma tend~ncla a servirem-se de maneira sistcm~tlca dos formatos de g~ncros l"~vios pma objet ivos novos. Como certo< gêneros jã têm um determinado uso e funcionalidade, seu investimento em outro quadro comun icativo c funcional permite enfatizar com mais vigor os novos objetivos. Quanto a este (tltlmo ~spccto, ~bom salicn t~r que embora os gêneros tex- tuais n~o se caracterizem nem se definam por aspectos formais,,sejam eles estruturais ou llngOistlcos, c sim por ~spcctos sócio-comunicativos c funcionais, isso n3o quer dizer que estejamos desprezando a forma. Pois é evidente, como se verá, que em muitos casos s~o as formas que determinam o gênero c, em outros tantos serão os funçOes. Contudo, haverá casos em que será o próprio suporte ou o ambiente em que os textos aparecem que determinam o género presente. Suponhamos o caso de um determinado texto que aparece numa revista cient!flca e constitui um g~ncro denominado •arti,~o ciemi(rco•; imagi- nemos agora o mesmo texto publicado num jornal diário e então ele seria um "artigo dt divulgaçlfocientf{ica•. t claro que há distinções bastante claras quanto aos dois gi?neros, maspara a comunidade científica, sob o ponto de vista de suas classificações, um trabalho publicado numa revista científica ou num jornal diário n3o tem a mesma dassiOcaçJo na hierarquia de valores da produç3o científica, embora se)a o mesmo tato. Assim, num primeiro momento podemos dizer que as exprcssOes •mtsrno rolo" e "mtSmo gintro" nao são automatica. mente equivalentes, desde que n3o estejam no llltllllO suporte. Estes aspectos sugerem cautela quanto a considerar o predomlnio de formas ou funçõo-..s para a detcrmlnaç3o e ldentiflcaç3o de um g~ncro. 2t 02 ,-----------------Luiz Antônio Marcuschi ~2 3. Definição de tipo e gênero textual /Upecto teórico e terminológico relevante é a distinção entre duas noções nem sempre analisadas de modo claro na bibllograna pertinente. Trata-se de distinguir entre o que se convencionou chamar de tipo textual, de um lado, e gtlltro texntal, de outro lado. Não vamos aqui nos dedicar à observaÇilo da diversidade terminológica existente nesse terreno, pois Isso nos desviaria muito dos obJetivos da abordagem. Partimos do pressuposto básico de que é lmposslvel se comunicar verbal. mente a nõo ser por algum gênero, assim como é imposslvel se comunicar ver- l>aimcntc a n~o ser por algum texto. Em outros termos, partimos da idéia de que a comunicaç~o verbal só é possível por algum gE11cro textual. Essa posiÇilo, defendida por Bakhtin (1997] c também por Bronckart (1999) é adotada pela maioria dos autores que tratam a língua em seus aspectos discursivos e enunciativos, e não em suas peculiaridadc.s formais. Esta vis~o segue uma noção de Hngua como atividade social, histórica e cognitiva. Privilegia a natureza funcional c interativa e não o aspecto formal c estrutural da língua. Afirma o caráter de indeterminação e ao mesmo tempo de atividade constitutiva da língua, o que equivale a dizer que a língua nlo é vista como um espelho da realidade, nem como um Instrumento de reprc.sentaç:lo dos fatos. Nesse contexto teórico, a língua é tida como uma forma de açõo social e histórica que, ao dizer, também constitui a realidade, sem contudo cair num subJetivismo ou Idealismo Ingênuo. Fugimos também de um realismo externallsta, mas nao nos situamos numa vlsJio subjetivista. ruslm, toda a postura teórica aqui desenvolvida Insere-se nos quadros da hipótese sócio-Interativa da língua. É neste contexto que os gêneros textuais se: constituem como ações sócio-discursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o de algum modo. Para uma maior compreens~o do problema da distinção entre gêneros e tipos textuais sem grande complicação t~cnlca, trazemos a seguir uma defi. nlçao que permite entender as diferenças com certa facilidade. Essa disti nção ~fundamental em todo o trabalho com a produçllo e a compreensllo textual. Entre os autores que defendem uma posiçllo similar à aqui exposta estão Douglas Bíber (1988), john Swales {1990), Jean-Michel Adam (1990), Jean. Paul Bronckart (1999). Vejamos aqui uma breve dcfiniçao das duas noções: (a) Usamos a expressão tipo texnml para designar uma espécie de consrruÇilo teórica definida pela lloOITtza lillgiiísticn de sua composição (aspectos lexicais, sintâticos, tempos verbais, relações lógicas}. Em geral, os tipos texnmis abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: nmmçc1o, argumentação, exposição, descriçllo, injwrçclo. (b) Usamos a expressao gênero texnml como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida Gêneros textuais: definição e funcionalidade -----------, diária e que apresentam cnrnctcrfsticas s6cio-comwricativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo c composição caracteristica. Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros. Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: ttlt(OIItmn, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, billrett, rtportagtm jomalística, aula expositiva, reunião de condomfnio, uotfcia }omnlfsticn, horóscopo, r«t'illl culincfria, bula de remédio, lista dt compras, cnrdtfpio dt restaurante, iustnJ. çDtS de liSO, outdoor, inquérito policial, rest11lra, edital de co11Curso, piada, coHver:mção espo11tânea, corr(erência, carta elctrflllica, bate-papo por compu· tntfor, aulas vr'rtrmis c assim por di:mtc. Para uma maior visibilidade, poderíamos elaborar aqui o seguinte quadro slnópllco: TIPOS TEXTUAIS I. COtUlNC'IOS teóriCOS dd1nidos por propri«h· dos Ungubtias In~ Z. constllutm J.t'q,Oftlcbs lingüistias ou ~ qDfnda.s de cnundados e 1\Jo siO te-xtos empíricos 3 . .sua nomeaçlo abr~nge um con1unto llmJta. do de catcgoriM tt:óriea..s dete:rmlnadu por :aspectos lexlcals, slntA.ttcos, rt!l.ações lógtcas, tempo verbal; 4. dn.lgn:~~OC.s tcór1c.l..sdos tipos: narraç.,o, argu· mentaç.\o, dc.salç!o, ln)unç.lio c c.xposiç:ão GÊNEROS TEXTUAIS 1. re,ll~o~Ç'0(1 Unl(lúUc~.s concretas defini· cb.s por pr~ )Ôcio-comuniativn; Z. con.slltutm tu·tos nnpirkamente realiu· do.s CUmPflndo (unçOo em situaçôcs com uni· catlv"; 3. su.a nomtJÇ~o:lbf.,ng~ um conlunto~bet· to e prtliiC:.l.mcntc Ilimitado de dc$-i.gnações ron- cretu detcunlnadas peloca,lal. tslllo. conteú· do, compost~lo c funç:2.o: 4. txemt>IOS de g~ncro's: tc~cfonema, scrm!ío, cn.rta COIUCid31, CJI1a pc$$031, romance, bilhc· te_ aula ~xposltlva, ftunJ3o dt.condomínio, ho· róscopo, rccdta cu11n:U\;,, b\lla de ftmCdio, li_s.. t-.a de compr:n, c:udiplo, lnstruçôts de uso, outdoor, lnquMto poiiC'I~I. r<'Senha, cdl1011 de CônC\1110, pllldil, convcrsaçSo cspontinc:a, con· ferb1cl.a, carta clcuOnln, bat~papo vi.rtua.l, au· las vlrtuah: ttc. Antes de analisarmos alguns gêneros textuais e algumas questões relativas aos tipos, seria interessante definir mais uma noç3o que vem sendo usada de maneira um tanto vaga. Trata-se da expressao dominio discursivo. (c) Usamos a expressão dom(nio discursivo para designar uma esfera ou ins. t5ncia de produção discursiva ou de atividade humana. Esses tlom(nios na o são textos nem discursos, mas propiciam o surgimento de discursos bastante específicos. Do ponto de vista do.~ domínios, falamry.; ~m dis·"•;o 23 03 .-----------------Luiz Antônio Marcuschi 24 jurfdico, discurso jornallstico, discurso religioso etc., já que as atividades furldica, fornalistica ou religiosa nao abrangem um gênero em particu- lar, mas da o origem a vários deles. Constituem práticas discursivas den- tro das quais podemos Identificar um conjunto de gêneros textuais que, ~~vezes, lhe sao próprios (em certos casos exclusivos) como práticas ou rotinas comunicativas lnstituclonallzadas. Veja-se o caso das jaculat6rias, novrnas e ladainlras, que sao gêneros exclu- sivos do domlnio religioso e nao aparecem em outtos domínios. Tome-se este exemplo de uma jnculnt6ria que parecia extinta, mas ê altamente praticada por pessoas religiosas. Exemplo (I) jaculat6ria (In: Rtumos o Terço. Aparecida, Editora Snntudrio, 1977, p.54} ~nhora Aparcdda, mllagros.a pa<lrot"lra, s.t'de not.JI guiJI n~~ mortal c:antir-J! O VIrgem Apiui!'C'Ida, J.a<drlo do rt<lentor, dali almJ de$ falecida vosso podt:r e valor. O Virgem A~rcdda, Rei e t.(ltlrO norte, alcomç.aJ.ncn graças na vida, f.tvorecd-nos na mortc1 A jaculat6ria é um g!'ncro textual que se caracteriza por um conteúdo de grande fervor religioso, estilo laudatório e lnvocatório (duas seqüências lnjuntlvas ligadas na sun formulaçao Imperativa), composiçao curta com poucos enunciados, vol tada para a obtençao de graças ou perdão, a depender da circunstância. Em relaçno à.s observações teóricas acima, deve-se ter o cuidado de nao confundir texto e discurso como se fossem a mesma coisa. Embora haja muita discussao a esse respeito, pode-se dizer que ttxto ~ uma entidade concreta realizada materialmente c corporlflcadaem algum gênero textual. Discurso é aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma Instância discursiva. Assim, o discurso se realiza nos textos. Em outros termos, os textos realizam discursos em situaç~s institucionais, históricas, sociais e ideológicas. Os textos sao acontecimentos discursivos para os quais convergem ações lingüísticas, sociais e cognitivas, segundo Robert de Beaugrande (1997). Observe-se que a dcflnlçao dada aos termos aqui utilizados é muito mais operacional do que formal. rusim, para a noção de tipo tutual predo- mina a identlflcaçlo de Stqillrrcias lirrzüfsHcas típicas como norteadoras; já para • noçlo de zhrtro IUhtal, predominam os critérios de ação prática, circulação s6cio-1rist6ricn, (mrcionalidadt, corrte1ído temático, tslilo e composiciorrnlidode, sendo que os domfnios discursivos sao as grandes esferas Gêneros textuais: delinlçao e lunclonalidade -----------. da atividade humana em que os textos circulam. Importante ê perceber que os gêneros na o sao entidades formais, mas sim entidades comunicativas. Gêneros sao formas verbais de açao social relativamente estáveis realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos especHicos. 4. Algumas observações sobre os tipos textuais Em geral, a expressao •tipo dt ttxto•, muito usada nos livros didáticos e no nosso dia-a-dia, é equivocadamente empregada c n3o designa um tipo, mas sim um gintro de luto. Quando alguém diz, por exemplo, •a carta pessoal i um tipo de tuto in(omral", ele nao está empregando o termo "tipo de luto• de maneira correta c deveria evitar essa forma de falar. Uma carta pessoal que voei! escreve para sua mae é um gênero tutual, assim como um tditorial, Jror6s- copo, rtctita mMica, bula de rmrMio, poema, piada, COIIvtrSaçllo casual, e11l«Vista jornalística, artigo cientf{ico, rwmro de 11111 artigo, prefácio de um livro. É evidente que em todos estes g~ncros também se está realizando tipos textuais, podeo do ocorrer que o mesmo g!'ncro realize dois ou mais tipos. Assim. um texto ê em geral tipologicamente variado (hcterog!'nco). Veja-1e o caso da cart.1 pessoal, que pode conter umn scqo~nctn n:urac lva (contn utna historinha), umil Mgu· mentaçao (argumenta em funçao de algo), uma descriçao (descreve uma sl- tuaçao) e assim por diante. Já que mencionamos o caso da carta pessoal. tomçmos este breve exemplo de uma carta entre amigos. Aqui foram suprimidos alguns trechos e mudados os nomes e as siglas para nno idcntlflcaçao dos atores sociais envolvidos: Exemplo (2): NELFE-003 - Carta ptssoal Seqüências tipológícas Gênero textual: carta pessoal O=rttlv> ~R::;Io::•::;l::;t/.:.08::/_:t9:..:9_:t _______ _ lnluntlva Amlg01 A.P. 011 OtscrltiY.t hra str mail prt'Ciso tstou no tntu qmrto, acrcvmo na oaivani.nha. com um M'taOSystan llpdo na minlu frtnt~ (bml alto, por si.n.aJ). Expo•ltiV> E>IJ ligado na Man<h<t< FM ·ou rádio dos funkJ · N adoro funk. prindpaJmtntt com J'WO' l!lllrcadoi. Aqui nolio~oritrnodo rroo.--ne:tQ.. .. ~vott. costJ1 CO$tO tambtm de how~ c: <Wl« mwk. ""' ta!dnado pcx dbcot<ml S<mpi< vou i K.l, 25 04 ,-----------------Luiz Antônio Marcuschi Ellposltlv.J N.atrJtlva lnfuntlva lnJuntiV.J Exposltlv• Exposlllw1 Narra uva lnJunbYJ lnJunuva ontem me-.smo (suta-fd.ra ) eu fui t- cheguei quase qu.auo hor.a.s da madrugada. Dançar é multo bom. pdndpalmente em uma di.Kottca ltgal. Aqui no condomínio onde moro tfm muitos Jo~ns. somos todos muito amigos e Sempre vam<» rode» juntos. É multo ma.nrirol C. (Oi tr& vt:ta 1 X. 1.., Esti toc::J.ndo acora o "Me!õ da Mina Senw· J1'. super dtma.ls! Aqui ouço t.arr'lblm a Tr1.1mm&ia e RPC fM. E voct, qUJIS r~k>S C\Utt7 Dtmorel um tempSo pra rtspondc:r, espero slnctumente que vod n.lo ot~ja chatead.l co- migo. Eu me amanti de: vt'rdadc: em voe~ ai, do RKifc, pflndpalmente a galera da ET, voe-h ilo muito mancirml Meu maior ronho é via· Jar, ncar um tempo por ai, conhecer legal vocês •odos, sainnos juntos ... 56 que não sei ao cerco se vou re.1lmcnte no lnfclo de 1992.. Mas pode ier que di, quem iabe! / .............. / NJo stl ao certo u vou ou não, mas fique cena que !;.rei de tudo para conhecer vocés o mais r!pldo pouivel. rono te dizer uma cols.~? Adoro muito voci!s! AgOra. a mlnh.a rotina..: ls ~gunda.s, quartas e ><XfM.feiJM lnlbaU>o de 8:00 lls 17 :OOh, em Bot.úog<> . De I:\ \'00 p.1r,, o T., mlnh.l :aula vai de 18;30 às 10:4011. Cltt.'gO .:.qui em c;u.l quinze p;~r01 mcl.l• noite. EM terçasequlnw f.coOSOem F.$6dc8:00 is 12:30h. Vou p3ra oT.; b 13:30come-çao meu cuno dt Franc~ {vou me formar ano qu~ vem)~ v:al•té 15:30h. 16:00h voud>nul.lefJCOat! 17:3011. l7:40h h 18:30h !aço natação {no T. também) e Jt~ 22:40h te.nho auLI./ ... _____ .,_J Ontem cu c Slmone tiztmos td:s mtsts ck namoro; vod sabiJ que eu estava namora.ndo? Elo lllOQ aqutmemo no ((llqíY<!)) (nane do c:cndomínio). A g\"ntt se- gosta muitO. às w:zr:s ~ acho qut nunca vamos tennirw. dq:loU cu acho que o rwnoro nao v.at duaf multo. entendt? O J)fobl~ ~ que dJ t multo ciumenta. pri:ndP~-fmtnte porque eu Ji fui afim da. a. que morJ aqui ta.mb&n. Ntm pouo fal.u com a prot<t qut: S. l.i tia com diva. Gêneros textuais: dehniçao e funcionalidade-------- -- f.xposlllva Araumt:nt~Uva lnJuntln tacho que vou terminando ... tscrev.a! Fu um favor? Diga pra M., A. P. e C. que t.sptrtm, n.So demoro a escrevt:r Adoro vocts! Um btll30f Doamjgo P. P. IS:I6h ~ notável a variedade de seqüêndas tipológicas nessa carta pessoal, em que predominam descrições e exposições, o que é muito comum para esse gênero. Nao h~ espaço aqui para maiores detalhes, mas esse modo de análise pode ser desenvolvido com todos os gêneros e, de uma maneira geral, vai·se notar que há uma grande heterogeneidade tipológica nos gêneros textuais. Ponanto, entre as caraC1erfsticas básicas dos tipos textuais cst~ o fato de eles serem definidos por seus traçosllngüfsticos predominantes. Por isso, um tipo textual é dado por um conjunto de traços que formam uma seqüência e não um texto. A rigor, pode·se dizer que o segredo da cocs5o textual cstã precisa- mente na habllldade demonstrada em fazer essa "costura• ou tessitura das seqoenclas tlpológlcas como uma armaçao de base, ou seja, uma malha infra- estrutural do texto. Como tais, os gêneros s~o uma e.spécie de armadura comu· nicativa geral preenchida por seqO~nclas tlpológicas de base que podem ser bastante heterogêneas mas relacionadas entre sl.1 Quando se nomeia um certo textocomo"narratlv0 11, "dcscritlvo'1 ou Nargumcntativo", naoseestá nomC'ando o gênero e slm o predomlnlo de um tipo de seqüência de base. Para concluir essas observações sobre os tipos textuais, vejamos a sugest~o de Wcrllch (1973), que propõe uma matriz de critérios, partindo de estruturas llngüistlcas tlplcas dos enunciados que formam a base do texto. Werlich toma a base temática do texto representada ou pelo título ou pelo início do texto como adequada à formulaçao da tlpologla. Assim, são desenvolvidas as cinco bases temáticas textuais ti picas que dar3o origem aos tipos textuais (o que foi utilizado acima para a segmentaçao das seqüências observadas na carta acima analisada). Vejamos Isto na figura abaixo: • tsu fumo pos11Jodcf<ndl4.l rt<mt<m<nl< umbfm por J<•n-Ml<hd Adom (1999)qu< Julgo .., • unidade •ttn)•multohtt~pmsu~comoumamlkbdtfincüísda. Tn'-"st.poúdt:um.~m'tid.ldt camunic:Jtiva que f Q)ftSinaÍd.l com wWllda coc•~,.b<OI'\Sbtuid.as pebs sr~ ?'-!."'F"-"· 27 05 r----------------- Lutz Anlomo Marcuscht 28 Tipos tcxtuajs sc&rundo Wcrlich (1973) Bases temáticas 1. Descritiva 2. Narrôltlv.'l 3. E.xposlllva 4. Argumcntatlva S. lnjunllva Exemplos 'Sobre a mel<!havia milhares de vidros." '""'Os pa,ss.1gclre» aterrissaram em Nova York no mdo da nol· te."" (a) "'"Um:~ p:ute do cérebro é o concx. "" (b)"'"'Octrcbrotcm lO milhões de nwrónlos"". ""A Õbsc.s.sâo com a durllbillda· de nas Ali~ nAo ~permanente."" •"'parei"", ... 'seja raz.oivel!'"' Traços lingüísticos E.$tc tipo de cnuncfado tcxtuJI tem umn c.stnuura .dmples com um vctbo estático no presente ou 11'11· poerCcito, um complemento e uma lndicaç.1o circunstancial de lugar l!ste tipo de cnunclndo textual tem um verbo de mudança 1)0 p:u- sado, um dm.mstandal de u~mpo e lugar. Por sua rcfcr~nela tcmporJI c loc::al, este enunciado é designado comocnundado Indicativo de ação. Em (a) temos uma b\lsc textual dc- nomln:'ld;) de exposição sintética pelo processo dt~ composlçM. ApMccc um sujclto, um predicado (no prcsrntc) c um complemento com urn gmpo nominal. TraUHC de um enunCiado de idcntlflc3ç.'lodc fenômenos.. E.m {b) temos um.) base textual denominada de expo,iÇ'~O analitl· c., pelo processo de decomposição. Também é um;~ estl\ltur3 com um sujeito, um verbo da f:amilla do ver· bo ttr (ou vtrbos<omo: ''contém' ', ··comhte", "compreende") e um complemento que e~tabc:lcce com o sujeito uma relaçllo ~rle·todo. Trat<Hl' de um enunciado de IIS.l• ç:\o de fc:n6merlOS- . Tcm·se aqui uma forma verbal com o vtrbo ~r no pre~rHC t um complemento (que nocuo ê um ad· lcclvo). Tf~t:. .sc de um cnurlcl:ldO de ~tribulç.1o t.lc qv.lll(l.ldc. Vem representada por um vctbo no imperativo. Estes s.\o os tnund· ados incitadore.sà ação. futes textos podem .sofler certas rnodltic<~Çó-c.s ~ lgntrlc.ntlv.u na forma e usumh por exemplo a configuraç,,o mais longa onde o Imperativo é substl· tuído por um "deve". Por exem- plo; ''Todos os br~slltlros na idade de 18 ~nos do sexo masculino de· vem romp.1recer ao exército p.ua ali .uarem·s~.·· Gêneros textuais: definição e funcionalidade---------- Um elemento central na organizaçao de textos narr<~tivos ~a scq(•~ncia 06 tempora l. já no caso de textos descritivos predominam as seqüências de loca. lizaçi!o. Os textos expositivos apresentam o predomínio de seqüências anall· ticas ou ent~o explicitamente explicativas. Os textos argumentalivos se ctao pelo predomínio de scqliências con traslivas explícitas. Por fim, os textos injun· tivos apresentam o predomínio de seqüências imperativas. Se voltarmos agora ao exemplo (2) da carta pessoal apresentada acima, veremos que cada uma daquelas scqOi!ncias lá identificadas realiza os tmços lingüísticos aqui apresentados. Não é difícil tomar os gêneros textuais e analisá· los com esses critérios, identificando-lhes as seqüências. Para o caso do ensino, pode-se chamar a atençao da dificuldade que existe na organização das se· qúênclas tipológicas de base, já que elas n~o podem ser simplesmente justa· postas. Os alunos apresentam dificuldades precisamente nesses pontos e não conseguem realizar as relações entre as seqüências. E os diversos gêneros .;., seqiienclarn bases llpológicas diversas. 5. Observações sobre os gêneros textuais Como já lembrado, os gênerost~xtuais na o se caracterizam como formas estru- turais estáticas c definidas de uma vez por todas. llakhtin 119971 dizia que'" g~ncros eram tipos Nrelativamcntccstávcis'' de cnuncioKios clabor;Jdos pcl<~s m<1is diversas esferas daatívidade humana. São multo mais famílias de textos com uma série de semelhanças. Eles são eventos lingüísticos, mas n5o se definem por carac- tcristicas lingü!sticas: caracterizam.se, como já dissemos, enquanto atividades socio· discursivas. Sendo os gêneros fenômenos sócio-históricos e culturalmente sensf. veis, n5o há como fazer urna lista fechada de todos os gêneros. Existem estudos feitos por lingüistas alemães que chegoram a nomear mais de4000 gêneros, o que à primeira vista pmcce um exagero (Veja-se Adamzik, 1997). Daí a desistência progressiva de teorias com prctcns~o a uma classificação geral dos gêneros. Quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma lin· gliística c sim uma rorma de realizar lint,'\llstlcamcntc objetivos específicos em situaçocs sociais particulares. Pois, como afirmou Uronckart (1999:103), "a apro- priação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas~~, o que permite dizer que os gl. ... neros textuais opcram1 em certos contextos~ como formas de lcgilimnçi'io discursiva, já que se situam numa relação sócio-histórica com fontes de produção que lhes d~o sustentaç~o muito além da justificatíva individual. A expressão "gênero" sempre esteve, na tradiç~o ocidental, especialmente ligada aos gêneros literários, mas já não é mais assim, como lembm Swillcs (1990:33), ao di~er que "hoje, gênero é facilmente usado para referir uma cate· goria distintiva de discurso de qualquer tipo, falado ou escrito, ~om ., :•rn ,.------- ----------Luiz Antônio Marcuschi 30 a:ptraçOes liter~rias". É assim que se usa a noçao de gênero em Etnografia, Sociologia, Antropologia, Folclore, Retórica t, evidentemente, na Ungüística. Os gêneros não são entidades naturais como as borboletas, as pedras, os rios e as estrelas, mas são artefalOs culturais construidos historicamente pelo ser humano. Nao podemos defini-tos mediante certas propriedades que lhe devam ser necessárias e suficientes. Assim, um gênero pode não ter uma deter- minada propriedade e ainda continuar sendo aquele gênero. Por exemplo, uma carta pessoal ainda é uma carta, mesmo que a autora tenha esquecido de assinar o nome no final e s6 tenha dito no Inicio: "querida mamae". Uma publlclcladc pode ter o formato de um poema ou de uma lista de produtos em oferta; o que conta é que divulgue os produtos e estimule a compra por parte dos clientes ou usuários daquele produto. A titulo de exemplo, obser- ve-se este artigo de opinião da Folha de sao Paulo, que, embora escnto na forma de um poema, continua sendo um arllgo de opinião: Exemplo (3) NELFE - 350-artigo de opiniao Um novo José Josias de SoU?a C.lmajosk. A fot~ n!lo começou. il luz; nao actndeu, a noite na.o c.squcntou. o M•lan nno amoleceu, mas se voltar a pergunta: t agora Jost? Diga: ora Orummond, ,:agora Camdes.sus. Conllnu:t sem mulher, continu.1 $Cm dlsa.uso, contlnu.a sem carinho, ainda n.lo pode beber, olndl n.IO pode funur, aupir .tlnocla nJo poc:k:. a nolt< alndl f Iria. o dia .tlndl n.lo veio, o rbo .t1nd.t n.\0 \'tio, nlo vdo alOO.a a utOpia. o Malan tem miopi.t, m.u nem tudo acabou, nem tudo (ugiu, nem tudo moCou. Se volf3r a pergunta: E ~gora José? Olg;~: or1, Otummond. Agora fMI. ~ vocf grltuw. se voce gemesse, se voe~ dofml~. se voe~ ca.nmse, se voe~ morresse ... O Mal:~n nada f.ula, m1.s IA hA quem Caç-a. Alndll s6, no escuro, qu.111 bithO-dO·OtalO, .tlnda. sc:m l~gonJa., ainda sc:m J»rede nua. pu.t se mcostar, ainda sem av&lo prtto. Que fuJa a plop<. voot alndl martha..J<>s8 Se voltar 1. pagunt.t: )OS<!, pm ond<l Dig.t: on Orununond. por que: t.1nta d'ivld.l? ElementJr, elementJr, sigo pu WMhlflilon e, por favor, poct.11, nlo me chame de Josê. Me ch11mc Joscph. l'onte: Folha de sao Pauto, caderno I, pág. 2-Oplnlilo, 04/!0/!999 Gêneros textuais: definição e funcionalidade -----------, Aspecto Interessante no texto acima ~que ele apresenta uma configuração hlbrida, tendo o formato de um poema para o gênero artigo de opinião. Isso configura uma estrututa inter-gêneros de natureza altamente híbrida e uma retaçJo tntertcxtual com alusão ao poema e ao poeta autor do poema no qual se Inspira e do qual extrai elementos: "E agorajosé", de C. rios Drummond de Andrade. Essa característica pode ser analisada de acordo com a sugestão de Ursula Flx (1997:97}, que usa a expressao"lntertextualidade inter-generos• J>ara designar o aspecto da hibridizaçâo ou mescla de gêneros em que um gên('ro assume a função de outro. Esta violaçao de cnnones subvertendo o modelo global de um gênero poderia ser visuallzada num diagrama tal como este: INTERTEXTUALIDAOE TIPOLÓGICA Funç5o do .~;:êntro A / a~d~opini1o / J:orma do gêntro A rorma do gê'nuo U / poema / Funç.fio do g~nero U A ques~o da intertextualidade inter-gi'neros evidencia-se como uma mescla de funções c formas de gêneros diversos num dado gênero e deve ser distinguida da qucs~o da heterogeneidade tlpol6glca do gênero, que diz res- peito ao fato de um gênero realizar várias scqO~ncías de tipos textuais (por exemplo, o caso da carta pessoal citada). No exemplo acima, temos um gênero funcional (artigo de opinião) com o formato de outro (poema). Em princípio, Isto n~o deve trazer dificuldade interpretativa, fá que o predomínio da funçao supera a forma na determinaçao do gênero, o que evidencia a plasticidade e dlnamlcldade dos gêneros. Resumidamente, em reJaç:io aos gêneros, temos: (I) lntertcxtualidade inter-gêneros = um gênero com a funçao de outro (2) heterogeneidade tlpológica ,. um gênero com a presença d• v~.r!os tipvs 31 07 32 O exemplo do artigo de opinião analisado é um caso para a situação (1) da hibridizaçao textual com inter-gêneros; já a carta pessoal analisada anterior- mente é um exemplo para (2), com uma heterogeneidade tipol6gica muito grande. No geral, este segundo caso é mais comum que o primeiro. Contudo, se tomarmos alguns gêneros, veremos que eles são mais propensos a uma intertextualidade inter-gêneros. Veja, por exemplo, a publicidade que se carac- teriza por operar de maneira particularmente produtiva na subversão da ordem genérica lnstitulda, chamando atenção para a venda de um produto. Desenquadrar o produto de seu enquadre normal é uma forma de enquadrá- lo em novo enfoque, para que o vejamos de forma mais nltida no mar de ofertas de produtos. testa possibilidade de operaçao e maleabilldade que dá aos g~neros enorme capacidade de adaptaçno e ausência de rigidez e se acha perfeitamente de acordo com Mlller (1984:15 1}, que considera o gênero como •açao social", lembrando que uma defmição retoricamente com ta de gênero "não deve centrar-se na subs- tância nem na forma do discurso, mas na ação em que ele aparece para reallzar- sc".l'.stc aspecto vai ser central na designação de muitos gêneros que são deOnldos basicamente por seus propósitos (funções, intençOcs, interesses) c não por suas formas. Contudo, voltamos a frisar que isto nao significa eUmlnar o alto poder organiZador das formas composidonais dos gêneros. O próprio Bakhtin (1997) indicava n Nconstruç:fo composiclonal", ao lado do .,conteúdo tcmáUcoN c do "cslllo" como as três características dos gêneros. De igual modo, para Eija Vcntola {1995:7), os "gêneros são sistemas semióticos que geram estruturas particulares que em última instânda ~o cap- tadas por comportamentos lingilisticos mediante os registros•. Enquanto resul- tado convencional numa dada cultura, os g~neros se definiriam como •açOes retóricas tipificadas baseadas em situações recorrentes• (MIIIer, 1984:159). As formas tornam-se convencionais e com isto genMcas precisamente em virtude da recorr~ncia das situações em que são investidas como açOes retóricas típicas. os gêneros são, em última análise, o reflexo de estruturas sociais recorrentes e típicas de cada cultura. Por isso, em princípio, a variaÇão cultural deve trazer conseqO~ndas significativas para a variaÇão de gêneros, mas este é um aspecto que somente o estudo intercultural dos gêneros poderá decidir. 6. Gêneros textuais e ensino Tendo em vista que todos os textos se manifestam sempre num ou noutro gênero textual, um maior conhecimento do funcionamento dos gêneros textuais é importante tanto para a produç~o oom para a compreen~o. Em certo sentido, é esta Idéia básica que se acha no centro dos PCN (Parâmetros Curriculares \J~oiCIV.> U .. llo•V•.u .J. VI,. IUII ... "'"' C I ... II.,. ,..,,, .. ,, .... U'-\. - - -----------, Nacionais), quando sugerem que o trabalho com o texto deve ser feito na base dos gêneros, sejam eles orais ou escritos. E esta é taml*m a proposta central dos ensaios desta coletânea de textos que pretende mostrar como analisar e tratar alguns dos g~neros mais praticados nos diversos meios de comunicação. As observaçOcs teóricas expostas n~o s6 visam a esclarecer conceitos como taml*m a apontar a diversidade de possibilidades de observaç.~o dos gêneros textuais. Por certo, não estamos aqui em condições de nos dedic.11mos a todos os problemas envolvidos, mas é possivellndicar alguns. Em especial seria bom ter em mente a questão da relaÇão oralidade e escrita no contexto dos gêneros tex- tuais, pois, como sabemos, os gêneros distribuem-se pelas duas modalidades num continuo, desde os mais informais aos mais formais e em todos os contextos e situações da vida cotidiana. Mas há alguns gêneros que só s.1o recebidos na rorrna oral apesar de terem sido produl.ldos originalmente na rorma c..'icrita, como o caso das notícias de televisão ou rádio. Nós ouvimos aquelas noticias, mas elas foram escritaS e são Udas (oraUzadas) pelo apresentador ou locutor. Assim, é bom ter cautela com a Idéia de gêneros orais c escritos, pois essa distinção(! complexa c deve ser fci tn com clarcz~a. Vcj;,-sc o <;;1)0 :1ci ma ci t;Hio das jaculatórias, novenas c ladainhas. Embora todas tenham sido cS<:ritos, seu uso nas atividades religiosas é sempre oral. Ninguém reza por escrito e sim oralmente. Por isso ditemos que oramos e nao que escrevemos a Deus. Tudo o que estamos npontando ne-ste momento deve-se no f<lto de o~ eventos a que chamamos propriamente gêneros textuais serem artefatos lingüistlcos concretos. Esta circunstincia ou característica dos g~neros torn•- os, como já vimos, fenOmenos bastante heterog~neos e por vezes híbridos em relaç3o ~forma e aos usos. Dal dizer-se que os gnneros são modelos comu· nicativos. Servem, multas vezes, para criar uma expectativa no interlocutor c prepali-lo para uma determinada reaçao. Operam prospectiva mente, abrindo o caminho da compreensao, como muito bem frisou Bakhtln (1997). Muitas vezes, em situações orais, os interlocutores discutem a respeito do gênero de texto que cstao produzindo ou que devem produzir. Trata-se de uma negoclaçao tlpol6gica. Segundo observou o lingüista alem3o Hugo Steger (1974), as deslgnaçOes sugeridas pelos falantes n3o são suficientemente uni- tárias ou claras, nem fundadas em algum critério geral para serem consistentes. Em relaçao a isso, lembra a lingüista alemli Ellzabeth Giilich (1986) que os Interlocutores seguem em geral três critérios para designarem seus textos: a) canal/ meio de comunicaçno: (telefonema, carta, telegrama) b) critérios fom•ais: (conto, discussão, debate, contrato, ata, poema) c} natureza do conteúdo: (piada, prefádo de livro, receita culinária, bula de remédio) 33 08 :.~I -- __ .. ·-· ... ............. . Contudo, 1550 nao chega a oferecer crlténos p~ra formar uma classífícaçlio nem constituir todos os nomes. Para Douglas Olbcr (1988), por exemplo, os gêneros slo geralmente determinados com base nos objetivos dos falantes e na natureza do tópico tratado, sendo assim uma questão de uso e não de forma Em suma, pode-se dizer que os gêneros textuais fundam-se em crit~rios externos (sócio-comunicativos c discursivos), enquanto os tipos textuais fun- dam·se em crítMos internos (lingulstlcos c formais). FJizabcth Gülích (1986) observa que as sltuaçOes e os contextos em que os falantes ou escritores designam os gêneros textuais s~o em geral aqueles em que parece relevante dcsign~-los para chamar a ntençao sobre determinadas regras vigentes no caso.É assim que ouvimos pessoas dizendo: "nessa rcu- nl3o n3o cabe uma piada, mas deixem que cu conte uma para descontrair um pouco". Ou então ouvimos alguém dlz.cr: "Culnno n:lodesconfia e discursa até na hora de tomar uma cervela". Por outro lado, notamos que hâ casos Institucionalmente marcados que exigem, no inicio, a designação do gênero de texto e a informaç3o sobre suas regras de desenvolvimento. Este é o caso de uma tomada de depoimento na justiça, em que o juiz I~ as regras e cxpOc direitos e deveres de cada indivíduo. Assim, contar piadas fora de lugar é um caso de Inadequação ou violação de normas sociais relativas aos gêneros textuais. Isso quer dizer que não há só a questão da produçAo adequada do gênero, mas também um uso adequado. E.m na o é uma qucsrao de etiqueta social apenas, mas é um caso de adequação tlpológlca, que diz respeito A relação que deveria haver, na produção de cada g~ncro textual, entre os seguintes aspectos: na tu reza da informaçao ou do conteúdo veiculado; • nível de linguagem (formal, informal, dialetal, culta etc.) • tipo de situação em que o gênero se situa (públlca, privada, corriqueira, solene etc.) • relaçao entre os participantes (conhecidos, desconhecidos, nível social, formaç~o etc) • natureza dos objetivos das atividades desenvolvidas t provável que esta relação obedeça a parJmetros de relativa rigidez em virtu· de das rotinas sodais presentes em cada contexto cultural e soda!, de maneira que sua Inobservância pode acarretar problemas. Assim, numa reuniao de negócios, por exemplo, um empresário que se pusesse a cantar o Hino Nacional seria considerado um tanto esquisito e talvez pouco confiável para uma parceria de negódos. Ou alguém que, durante um culto c no melo de uma oração, come- çasse a esbravelar contra o sacerdote ou o pastor nno la ser bem-visto. Neste ueneros textua1s: oehmçao e lunc,onalldadc -------------, 35 sentido, os indicadores aqui levantados scrv1ri<lm p.,r~ idcntincar as condiç(.'"M:l de •dequaçlo genérica na produçAo dos g~ncros, especialmente os orais. Considerando que os gêneros Independem de deci>Oes individuais e não slo facilmente manipuláveis, eles operam como geradores de expectativas de compreens:to mútua. Gêneros textuais n.lo s.1o fnlto de invenções individuai~, mas formas wclalmente m<Jturadas em prátiC.1S comunicativas. ~ta cril t;un· bém a posição central de Bakhtin (1997) que, como vimos, tratava os gêneros como atividades enunciativas •relativamente estáveis". No ensino de uma maneira geral, c em .S:lli'l de aula de modo particular, pode-se tratar dos gêneros na perspectiva oqul anallsada e levar os alunos a produzirem ou analisarem eventos lingüfsticos os mais diversos, tanto escritos como orais, e ldentiricarem as caractcrfstlcas de gi!ncro em cada um. É um excrclclo que, além de instrutivo, taml*m permite praticar a produção textual. Veia-se como seria produtivo pôr na mao do aluno um jornal diário ou uma revista semanal com a seguinte tarda: "ldentiOque os gêneros textuais •qui presentes e diga quais slo as suas caractcrlstlcas centrais em termos de con· teíido, composlçAo, estilo, n!vel lingulstico e propósitos•. É evidente que essa tarefa pode ser reformulada de multas maneiras, de acordo com os inte· resses de cada situaç3o de ensino. Mas é de se cspc13r que por mais modesta que seja a análise, ela será sempre muito promissora. 7. Observações finais Em conclusão a estas obscrvaçOes sobre o tema em pauta, pode-se dizer que o trabalho com gêneros textuais~ uma extraordinária oportunidade de se lidar com a língua em seus mais diversos usos autênticos no dio·a-dia. Pois nada do que fizermos lingtiisticamentc estará fora de ser feito em algum gê· ncro. Assim, tudo o que fizermos llngOistlcamcntc pode ser tratado em um ou outro gênero. E há muitos gêneros produzidos de maneira sistemática c com grande lncldênda na vida diária, merecedores de nossa atençao. Inclusive c talvez de maneira fundamental, os que aparecem nas diversas mídias hoje existentes, sem excluir a mídia virtual, t3o bem conhecida dos internautas ou navegadores da Internet. A relevância maior de tratar os gêneros textuais acha-se particularmente situada no campo da Ungüística Aplicada. De modo todo especial no ensino de língua, lá que se ensina a produzir textos c n~o a produzir enunciados soltos. Assim, a Investigação aqui trazida é de Interesse aos que trabalham c militam nessas áreas. Uma análise dos manuais de ensino de língua portu· gucsa mostra que hâ uma relativa vMicclade de g~ncros textual< p1c~•ntrs nessas obras. Contudo, uma observaç3o mais atenta e qualificada ''· , <J. ' que 09 36 ,------ ---------- -"''- ·····'"'·"- ··· ~· ....... ....... .. a es~a variedade nao corrcsponde uma realidade analítica. Pois os gêneros que aparecem nas seçOcs centralsc básicas, analisados de maneira aprofundada sao sempre os mesmos. Os demais gêneros nguram apenas para •enfeite" e até para distraçao dos alunos. sao poucos os casos de tratamento dos gêneros de maneira sistemática. Lentamente, surgem novas perspectivas e novas abor- dagens que Incluem até mesmo aspectos da oralidade. Mas ainda não se tratam de modo sistemático os gêneros orais em geral. Apenas alguns, de modo parti- cular os mau formais, sao lembrados em suas características básicas. No entanto, nao é de se supor que os alunos aprendam naturalmente a produzir os diversos gêneros escritos de uso diário. Nem é comum que se aprendam naturalmente os gêneros orais mais formais, como bem observam Joaquim Dolz e Bernard Schneuwly (1998). Por outro lado, é de se indagar se há gêneros textuais Ideais para o ensino de língua. Tudo indica que a resposta seja nao. Mas é provável que se possam Identificar gêneros com dificuldades progressivas, do nível menos formal ao mais formal, do mais privado ao mais público e assim por diante. Enfim, vale repisar a Idéia de que o trabalho com gêneros será uma forma de dar conta do ensino dentro de um dos vetores da proposta oficial dos Par.imctros Curriculares Nacionais que insistem nesta perspectiva. Tem-se a oportunidade de observar tan to a oralidade como a escrita em seus usos cul- turais mais autênticos sem forçar a criação de gêneros que circulam apenas no universo escolar. Os trabalhos incluídos neste livro buscam oferecer su- gestões bastante claras c concretas de obscrvaçao dos gêneros textuais na perspectiva aqui sugerida c com algumas variações teóricas que cada autor dos textos adota em funçao de seus interesses c de suas sugestões de trabalho. No conjunto, a diversidade de observações deverá ser um benefício a mais para quem vier a usufruir dessas análises. lO
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