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46 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV Unidade IV 7 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Uma reflexão sobre a argumentação no contexto do gênero discursivo jurídico não pode prescindir de um olhar cuidadoso sobre as circunstâncias de enunciação e sobre as condições de produção que cercam o fato. As circunstâncias de enunciação são próximas ao fato em si, têm relação imediata com ele, envolvem coisas, pessoas e valores, são explícitas e podem ser de fácil percepção por parte dos sujeitos e interlocutores. As condições de produção, por outro lado, não são imediatas, encontram‑se distantes do fato, mas ocupam considerável zona de influência sobre o discurso que se instaura. As condições de produção desafiam a percepção dos sujeitos enunciadores e interlocutores porque não são explícitas, na realidade, elas estão na esfera do discurso no qual o sentido se instaura sob domínio ideológico, exercendo importante influência sobre a condição de significar e interpretar. Para que o sujeito enunciador conquiste a adesão dos interlocutores, é imprescindível que seu discurso faça sentido para eles e seja aceito como possível. Para alcançar esse objetivo, o particular e o universal – constitutivos do imaginário, da memória, das formações ideológicas e do inconsciente dos interlocutores – precisam estar em sintonia com o que o sujeito enunciador propõe. Em síntese, as circunstâncias de enunciação são próximas do contexto do fato – inimigos, relações amorosas, última pessoa com quem a vítima falou, condições financeiras etc. –, ou seja, é o contexto geral da vida da pessoa. Ex.: “A vítima estava enfrentando um processo de separação litigiosa. O marido não se conformava com o fim da relação e com o divórcio”. Trata‑se de uma informação de fácil acesso porque é circunstancial, pertence ao contexto da vítima. As condições de enunciação são distantes do contexto do fato – o que as pessoas pensam de um acontecimento de tal natureza, como ele agride a sociedade, como a mídia trata a questão etc. Ex.: “O crime causou grande impacto na sociedade. Ninguém podia aceitar que um filho fosse capaz de matar os próprios pais pela herança”. Trata‑se de um valor, de um verdadeiro dogma, preso ao fato de que os pais merecem todo respeito por parte de seus filhos. Compreender o que vem a ser particular e universal exige que se considere que o particular abarca a história de vida do sujeito, seja ele enunciador ou interlocutor, envolve a sua existência desde a vida intrauterina e todo o seu percurso de vida, todos os valores que o constituem – sejam estes morais, éticos e religiosos – e experiências vividas, aprendidas ou simplesmente observadas. Veja a seguir: 47 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA • Particular: próprio da história de vida do sujeito. Ex.: “O sujeito foi abandonado pela mãe e nunca conheceu o pai”. Trata‑se de uma particularidade ter sido abandonado. • Universal: próprio da formação ideológica, conceitos gerais que formam a história dos sujeitos daquela sociedade. Ex.: “O sujeito pertence a uma classe social que sofre preconceito na sociedade”. Naquela sociedade, por uma questão ideológica, as pessoas que pertencem a uma determinada classe social sofrem preconceito por parte das pessoas que pertencem às classes mais privilegiadas. Nossa história é constitutiva ainda pelas memórias que nos acompanham, por essa razão, temos de abrir um espaço para falar sobre elas com mais detalhes, pois serão valiosas para nossa interpretação e produção. No que concerne ao universal, temos a memória coletiva, que é a memória ancestral da humanidade, aquela que se constrói ao longo de toda história. Não está relacionada exclusivamente à história de nossos antepassados diretos, aqueles que formam a nossa árvore genealógica, mas sim à história de nossos antepassados indiretos, pertence a toda humanidade desde os tempos mais remotos. A seguir, os tipos de memória: • Memória discursiva: linguística (verbal e não verbal). Forma‑se na vida intrauterina e permanece em formação ao longo da vida do sujeito. Ex.: “Todas as vezes que alguém comentava sobre a beleza dela, ficava muito perturbada, como se não gostasse do elogio. Na verdade, quando criança, todos a comparavam à irmã mais velha, que era um modelo de beleza. Nessas horas, sua mãe costumava acentuar que ela também era bonita, porque temia que se sentisse inferiorizada”. Fica registrado na memória discursiva que ela não era bela, mas sim sua irmã. Logo, qualquer elogio a sua beleza lhe soava como um gesto de misericórdia. • Memória histórica: factual. Forma‑se ao longo da vida do sujeito. Está relacionada a fatos vividos, aprendidos pela formação escolar e dos quais se toma conhecimento por relatos de terceiros. Ex.: “Viveu até os 10 meses de idade na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, época em que as pessoas se refugiavam em abrigos subterrâneos. A família, que era rica, fugiu para o Brasil, onde tiveram uma vida boa e feliz. Todas as vezes que se dirige ao metrô e que se vê descendo as escadas, sente falta de ar, por vezes desmaia”. A experiência de vida na Alemanha em um período de guerra formou sua memória histórica com as diversas vezes nas quais seus pais se refugiavam no porão da casa para se proteger dos bombardeios. Na fase adulta, em circunstâncias completamente diferentes, exceto pelo direcionamento a um subsolo, a memória história instaura os sentidos de perigo. • Memória coletiva: ancestral da humanidade. Não se relaciona à história individual do sujeito, mas sim à história de toda humanidade desde os tempos mais remotos. Ex.: “A mulher tem uma visão mais holística de um problema, enquanto o homem tem uma visão focada do mesmo problema”. Esse aspecto é próprio da memória coletiva, as mulheres não saiam do meio em que viviam, razão pela qual estavam sempre atentas a tudo e precisavam ser cuidadosas porque tinham muitos filhos. Os homens, ao contrário, distanciavam‑se porque iam à caça e se envolviam em guerras 48 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV distantes. Em um ambiente hostil, desenvolveram a visão focada. Mesmo decorridos milhares de séculos, homens e mulheres mantêm a mesma habilidade de ver os problemas que o cercam. Lembrete Na memória discursiva guardamos um arsenal de informações linguísticas. É tudo que chega aos nossos ouvidos desde a vida intrauterina. Ao longo da vida, essa memória continua sendo alimentada pelo que continuamos ouvindo e lendo, inclusive. Na memória histórica guardamos os fatos ocorridos conosco, aqueles que presenciamos, que nos chegam por relatos de amigos ou ainda aqueles que passamos a conhecer nas salas de aula. Essa memória começa na vida intrauterina e continua a ser formada ao longo de toda a nossa existência. É importante compreendermos que não temos consciência de quais valores são mobilizados quando significamos ou interpretamos, isso porque o que chega à nossa consciência é apenas parte de um todo que constitui o que somos, independentemente de ocuparmos o lugar social de locutor, enunciador, autor ou interlocutor. O sujeito não é isento de toda influência do contexto que o cerca, tampouco da sua história. É atravessado pelo inconsciente e perpassado pela ideologia, que, por sua vez, representa o eterno conflito de poder entre as classes sociais. No gênero discursivo jurídico, as circunstâncias de enunciação, bem como as condições de produção constitutivas de cada caso, precisam ser criteriosamente avaliadas para que se construa uma estrutura argumentativa eficiente, sobretudo em funçãodas dificuldades próprias de um discurso que se realiza em um contexto de grande tensão, em função do conflito que o constitui e devido à divergência de posições entre as partes. A argumentação envolve um debate de cunho social, no qual o principal objetivo é conquistar a adesão do interlocutor, ocupando o lugar social de oponente ou de quem se posiciona a partir da explanação de dois sujeitos enunciadores, cujas propostas, ainda que sobre os mesmos referentes, pressupõem posições diferentes. Uma estrutura argumentativa sólida não pode prescindir de raciocínio lógico, na medida em que se estrutura em premissas. Contudo, o sucesso desse percurso requer uma criteriosa análise que se paute pela condição de o sujeito enunciador prever os possíveis contra‑argumentos que seu oponente poderá levantar contra a tese apresentada. Da mesma forma, o sujeito enunciador deverá prever os possíveis argumentos que o seu oponente usará para defender a própria tese. A argumentação é um jogo discursivo, um jogo de inteligência. Pode ser considerada uma marca de civilidade que dá a entender que um indivíduo respeita o ponto de vista de seu oponente porque se dispõem a ouvi‑lo, quando, na verdade, deseja apenas legitimar sua vitória sobre o outro. A argumentação 49 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA constitui uma batalha diferenciada que pressupõe a habilidade de os sujeitos enunciadores saberem fazer uso de estratégias eficientes de forma rápida e pontual. As armas apenas se transformam em palavras. A inteligência, a arguta sensibilidade e a competência linguística continuam sendo meios eficientes para conquistar a adesão. Nesse jogo, não há espaço para empate, só há espaço para um vencedor. Nesse sentido, a comunicação jurídica encontra perfeito esteio para sua realização. Na argumentação, sobretudo na jurídica, as provas são o esteio da conquista da adesão. Contudo, não podemos pensar que as provas que o sujeito enunciador apresenta sejam incontestes, porque elas podem não produzir necessariamente o sentido pretendido. Basta que o sujeito enunciador cometa o deslize de apresentá‑las no momento errado – ou sem que estejam acompanhadas de um comentário capaz de dirigir a interpretação dos interlocutores – para que suas palavras sejam ignoradas e se percam como se nunca tivessem sido pronunciadas. Por vezes, o sujeito enunciador se vale de alusões, deixando no ar o complemento do que postula, já contando que o interlocutor irá interpretar a favor da tese apresentada. Ledo engano. É preciso deixar de lado as hipóteses otimistas de que o interlocutor concordará plenamente com os argumentos que lhe chegam. O interlocutor deve ser transformado em um coenunciador. Dizendo de forma bem simples, é preciso fazer com que o interlocutor passe a ver com os olhos do sujeito enunciador. Trata‑se da conquista de um cúmplice discursivo. É necessário seduzir o interlocutor, e isso é um processo muito complexo, principalmente porque o oponente (a outra parte) irá trabalhar seu discurso na mesma direção. Desse modo, uma argumentação bem estruturada leva em consideração, a partir das formações imaginárias que determinam o discurso que se instaura, o lugar de onde seus protagonistas falam, a saber: • Lugar de enunciação de onde se fala (lugar físico). • Lugar social do sujeito e do interlocutor (posição que ocupam na sociedade, o que lhes confere legitimidade e credibilidade). • Lugar social do referente (aquele de quem se fala, o que lhe confere valor). • Formações imaginárias que cercam sujeitos, interlocutores e referentes. Observação Um dos maiores erros que tanto o sujeito enunciador/promotoria quanto a defesa podem cometer é o de subestimar seu oponente, acreditar que o caso por si só já está ganho por ser fácil demais. Ledo engano. Quando se trata de Plenário do Tribunal do Júri, temos juízes leigos, que podem ser influenciados por um percurso argumentativo surpreendente. A questão é preparar sempre a tese, consolidá‑la como se o caso fosse o mais difícil que enfrenta. 50 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV Não podemos propor uma reflexão sobre o discurso que se inscreve no gênero discursivo jurídico sem que nos ocupemos da questão da verdade. O Direito se ocupa de aplicar a lei, que, por sua vez, garante ao Estado mecanismos para que ele venha a cumprir seu papel interventor na sociedade e reestabelecer a ordem sempre que haja um conflito a ser resolvido. Em outras palavras, na iminência de um conflito, o Estado determina, na voz do juiz de Estado, qual é o direito que deve prevalecer. Desse modo, busca‑se que o julgamento seja o mais justo possível, que o cumprimento da lei seja dado à luz da observância do que é verificável como verdadeiro. Essa característica do discurso jurídico orienta que as partes se fundamentem em provas, evidências, testemunhos, investigações, laudos periciais, laudos necroscópicos e documentos, enfim, em tudo que torne o dizer verossímil, de modo que a verdade e a lei sejam o esteio da formação da convicção jurídica do magistrado. A argumentação que norteia o discurso constitutivo do gênero discursivo jurídico trabalha com os valores constitutivos das formações imaginárias que não podem ser ignoradas pelo sujeito enunciador, na medida em que a imagem que o sujeito enunciador e o interlocutor têm um do outro e que ambos têm do referente exerce significativa força na escolha da tese que lhes é apresentada. As imagens são impregnadas de valores que se formam e se acumulam ao longo da história, construindo sentidos que funcionam na capacidade de significar ou interpretar do sujeito enunciador e dos interlocutores. O valor lógico que é o norte da busca pela razão em sua constante procura pela verdade não pode ser definitivamente encontrado porque todos argumentos estão sempre sujeitos à influência do imaginário, da memória e do inconsciente daqueles que interpretam o discurso enunciado pelo sujeito enunciador e que, da mesma forma, influenciam as escolhas do próprio sujeito enunciador. Não são considerados valores os conteúdos do conhecimento humano, mas, sim, a verdade que encerram e que pode satisfazer à natural necessidade de saber. A humanidade não se contenta com qualquer conhecimento, quer o que corresponda ao real de algum modo, sob algum aspecto e em algum tempo. Em outras palavras, quer a verdade. Os valores éticos correspondem à carência humana pelo bem moral. Ao seu anseio por respeito e justiça. Por liberdade, lealdade, honestidade, responsabilidade e por todos os demais valores decorrentes do princípio da moralidade que exige que se faça o bem e evite o mal. Hierarquias de valores correspondentes às necessidades do ser humano do que entende por justo. Isso é variável não só no tempo e no espaço, mas ainda de acordo com as circunstâncias. Percebe‑se que o valor igualdade, pelo menos teoricamente, está no topo da escala. O respeito pelo outro, seja ele quem for e que modalidade de vida tenha escolhido, e a prática da justiça social são valores almejados atualmente como nunca antes tinham sido. Constata‑se uma reordenação dos valores de modo que seja dada maior ênfase, pelo menos teoricamente, à igualdade, ao respeito e à justiça. Ao mesmo tempo, pode‑se constatar a descida na escala de outros valores como: a fidelidade, a constância, o espírito de sacrifício, a humildade, a obediência. As diversas classificações de valores que os diferenciam pela modalidade de atendimento às necessidades humanas não implicam em nenhum escalonamento. Vêm‑se então os valores materiais que correspondem às necessidades físicas de bem‑estar e saúde, os valores lógicos, os éticos,os estéticos, 51 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA os afetivos, os sociais, os religiosos. A hierarquização não se prende à modalidade, mas à capacidade de satisfazer com maior plenitude e durabilidade aos anseios humanos. Embora se possa reconhecer a existência de uma hierarquia de valores, não é fácil definir com clareza qual a melhor nem a mais perfeita. O processo de hierarquização vai depender do critério adotado. É extremamente difícil demonstrar a objetividade dos valores. Mais fácil é perceber as necessidades universais do ser humano, o que naturalmente levaria a uma escala de valores que pudesse satisfazê‑las, segundo o seu nível de exigência e prioridade. O subjetivismo tem seu foco no processo de valoração, na interferência do homem no processo, cuja interpretação se dá a partir de uma leitura atravessada por sua história. O objetivismo, ao contrário, parte das necessidades humanas e aceita a independência dos valores como o modo ideal de supri‑las. Para as doutrinas subjetivistas, o sujeito cria o valor e não apenas o aprende. A personalidade engloba valores e contra valores que se estruturam de modo a fazê‑la original, própria, individual, diferente uma da outra. Há sempre a necessidade da opção por valores e, ao mesmo tempo, em que essa opção decorre da personalidade, ela a forma e a constitui. Logo, é preciso que o sujeito enunciador esteja ciente de que o seu discurso somente surtirá o efeito que deseja se for ao encontro do que os interlocutores entendem, ao menos, como plausível. Nesse sentido, ficamos na dependência não apenas do que dizer, mas, sim, como dizer, não basta selecionar bons argumentos, é preciso saber o momento, a ordem e, principalmente, como apresentá‑los. Daí a importância fundamental da retórica. Ao refletir sobre a nova retórica, Perelman (1982, p. 14) afirma que a argumentação não se limita à dedução de consequências a partir de determinadas premissas, mas, sim, à árdua missão de aumentar a adesão da audiência às teses que são submetidas à sua apreciação. O autor enfatiza que “a audiência deixa de ter papel passivo quando a argumentação tem por objetivo a adesão; ao contrário, a audiência passa a assumir uma posição ativa quando a persuasão não pode deixar de ser contemplada”. Segundo o autor, “negligenciar a reação da audiência significa incorrer em falhas graves”. A especificidade da audiência, para o autor, advém principalmente do fato de ser ela constituída de “leigos”, o que viabilizaria a persuasão por meio do “apelo emocional”. Concordamos com o autor quando este afirma que o ato de persuadir leva à ação, mas entendemos que a ação resulta de um processo que não se sustenta apenas no “apelo emocional” ou no fato de o locutor ter uma “audiência de leigos”. Se pensadas as considerações do autor no contexto do gênero discursivo jurídico, o fato de os interlocutores jurados serem leigos ao conhecimento técnico jurídico, a argumentação do discurso do júri se resumiria no apelo emocional, quando, na realidade, o apelo emocional é recurso argumentativo, mas não um fim, pois a lógica é um dos recursos mais usados para o comprometimento da legitimidade das provas. De acordo com nossa perspectiva, os interlocutores a quem o discurso é endereçado são definidos pelo mesmo locutor no próprio ato da elaboração do discurso, a partir das formações imaginárias. 52 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV Como vimos, tais formações permitem ao sujeito selecionar argumentos que podem levá‑lo a conquistar adesão às propostas que vier a submeter aos interlocutores previamente determinados. Por outro lado, não poderíamos deixar de considerar que, de maneira a obter a adesão de seus interlocutores, o sujeito da enunciação do Tribunal do Júri tem de trabalhar sentidos capazes de mobilizar mecanismos que envolvem o ato de dissuadir, que, aliás, Perelman (1982) não chega a discutir, mas que, a nosso ver, se trata de um ato constitutivo da estrutura argumentativa, em função das condições de produção do discurso que tem o Tribunal do Júri como lugar de enunciação. O ato de dissuadir, conforme pudemos depreender do próprio contexto em que se insere o discurso sobre o qual nos debruçamos neste estudo, também se realiza a partir dos valores constitutivos da formação ideológica e das formações discursivas nas quais se inscrevem determinados interlocutores. Trata‑se de um ato que, em nosso entender, antes de buscar a adesão de determinados interlocutores, tem como principal objetivo “bloquear” pré‑julgamentos feitos sob a influência da mídia e de grupos da convivência dos jurados. Consideramos que a conquista do objetivo do sujeito enunciador promotor ou defensor implica uma mudança de posicionamento, principalmente, no que se refere à tese da defesa. Afinal, o homem é educado para não matar alguém, condena a priori essa ação em relação a determinados valores constitutivos da formação imaginária e ideológica, bem como dos elementos constitutivos da memória do sujeito. Assim, tendo em vista que a necessidade de conquistar a adesão é determinante na enunciação do júri, o sujeito enunciador promotor e o defensor, legitimados pelo rito, buscam, muitas vezes, a possibilidade de vir a silenciar seu oponente, ao refutar, antecipadamente, os possíveis contra‑argumentos de seus interlocutores jurados e oponente em seu próprio espaço discursivo. Lembrete Pensar a dificuldade do percurso argumentativo do plenário do Tribunal do Júri não permite que se preveja a reação dos membros do Conselho de Sentença, porque tudo pode acontecer em função de um novo fato que pode ser a última cartada que o sujeito enunciador/promotor apresenta na réplica ou o sujeito enunciador/defesa apresenta na tréplica. Segundo pudemos depreender das considerações dos autores, as propostas não podem ser vistas como elementos isolados da comunidade de interlocutores, cabendo, portanto, ao sujeito prever os possíveis contra‑argumentos e relevar cuidadosamente seu interlocutor virtual a partir das formações imaginárias no momento em que se dedica à escolha dos argumentos que deverão sustentar sua estrutura argumentativa, e, finalmente, garantir a conquista da adesão de seus interlocutores às propostas que submete à apreciação dessa comunidade de interlocutores. Para justificar as razões que nos levaram a sustentar que a argumentação no discurso jurídico se apoia na retórica, e não somente na argumentação formal, calcada na lógica, passamos a discutir os 53 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA mecanismos argumentativos que estruturam as bases desse discurso que tem no rito e no referente – crime – conflito maior. A retórica é a liga entre pessoas e ideias. Ela estabelece uma relação aparentemente lógica que, por vezes, é aceita como verdade, na medida em que o homem, enquanto ser social, é vulnerável pelo fato de a argumentação, sobretudo no Tribunal do Júri, estar relacionada ao homem enquanto ser social. O sujeito enunciador dirige sua atenção para a argumentação e a considera ligada a uma finalidade pragmática situada no ouvinte. Entendemos que o discurso jurídico, especialmente o enunciado no Tribunal do Júri, igualmente se ajusta a esse perfil discursivo, pois “o ato de argumentar constitui uma espécie de operação que visa fazer com que o ouvinte não apenas se inteire da imagem que o locutor faz do referente, mas, principalmente, que o ouvinte aceite essa imagem” (OSAKABE, 1979, p. 82). O autor dedicou‑se à argumentação e estabeleceu três atos de argumentaçãoque são muito orientadores de nossas reflexões. Ainda que Osakabe (1979) tenha se debruçado sobre o discurso político do presidente Getúlio Vargas, suas considerações são elucidativas para todos os gêneros discursivos, sobretudo ao jurídico. O ato de promover é o primeiro ato que o autor elenca. Segundo nos orienta, por esse ato, o sujeito eleva à instância do poder seu interlocutor e conquista sua adesão à proposta que lhe apresenta. Nossa interpretação do ato de promover, sob a ótica discursiva, justifica‑se pelo desejo de poder que é inerente a todo ser humano, desejo este que é mobilizado sob os efeitos de sentido que o discurso elogioso instaura. Consideramos que o interlocutor experimenta a confirmação do poder que acredita ter ou a fantasia do poder que deseja ter, pois não compete ao sujeito lhe conferir poder algum. Ex.: Primeiramente, gostaria de externar minha imensa satisfação em trabalhar sob a presidência de Vossa Excelência, cujo nome é sempre associado à ética e à observância da lei, sob as lentes de uma visão humanista. O juiz sabe que tem o poder de ser a voz do Estado, portanto, não é o elogio do advogado que lhe confere qualquer poder. Contudo, os efeitos de sentido dos elogios são agradáveis na medida em que significam o reconhecimento da sua dedicação. Não se pode dizer que julgará a favor da tese que o advogado lhe apresentar, mas tende a ser mais receptivo às suas propostas. Veja o exemplo a seguir: Exemplo de aplicação Em um estacionamento, após o horário limite: Cliente: “Senhor, por favor, me desculpe por lhe fazer este pedido, mas meu atraso se deve ao fato de o presidente da comissão ter se estendido muito na reunião. Se eu saísse antes iria me prejudicar”. Manobrista: “Fechamos às 23h, são 23h45. Se eu abrir, quem se prejudica sou eu”. Cliente: “Pelo amor de Deus, senhor. Eu sei que o senhor é responsável por todos os carros aqui, sei que tem muita responsabilidade. Eu lhe peço mais uma vez, por favor, tenho que ir para Rio Preto 54 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV amanhã às 5h, vocês não terão aberto ainda. Se eu passasse a noite sentado na calçada até vocês abriram às 7h, ainda assim, não adiantaria. Às 7h, tenho de estar na fábrica para começar a reunião às 7h30. Meu futuro está em suas mãos, sei que o senhor me entende. É um homem sensato, um excelente funcionário, tanto que tem a responsabilidade de tomar conta deste estacionamento. Por isso, eu lhe peço, por favor, abra esta exceção e eu lhe serei grato o resto dos meus dias”. Os efeitos de sentido do discurso que se instaura trabalham a fantasia de poder do interlocutor, pois o único poder que ele tem nessa enunciação é o de abrir a porta e liberar o carro. No entanto, sente‑se bem ao ver que o sujeito enunciador reconhece que está nas mãos dele. Tudo indica que acabará abrindo a porta para liberar o carro. Osakabe (1979) avança em suas reflexões e complementa o ato de promover que acabamos de estudar, acrescentando o ato de envolver como um eficiente ato de argumentação. De fato, somos obrigadas a confirmar que o ato de envolver, sobretudo quando reunido ao ato de promover, alcança resultados singulares. O ato de envolver reúne uma impecável competência argumentativa e linguística. Consiste na capacidade de o sujeito prever os possíveis contra‑argumentos que seu interlocutor poderá levantar contra a tese que lhe apresenta. É por meio do seu imaginário, pelas condições de produção que nos permite prever os valores constitutivos de nossos interlocutores que podemos antever os contra‑argumentos que podem ser um risco para nossas propostas. As circunstâncias de enunciação, igualmente, reforçam nosso campo de previsibilidade, porque o lugar social que nosso interlocutor ocupa, o lugar de enunciação de onde se fala e de onde ele nos ouve serão determinantes do seu modo de interpretar e reagir em relação aos nossos objetivos. Enfim, o sujeito enunciador pode prever o que o interlocutor levantará contra sua proposta. Assim, antecipadamente, rebaterá tais contra‑argumentos e responderá antecipadamente às dúvidas, deixando seu oponente esvaziado de argumentos, o que o enfraquecerá, deixando‑o de mãos atadas. Da mesma forma, poderá prever os possíveis argumentos que o interlocutor poderá usar para defender a tese que ele apresenta. Esse movimento permitirá que o sujeito enunciador destrua por antecipação o que sustenta a tese do seu oponente. Cabe ainda acentuar que essa habilidade poderá favorecer a imagem do sujeito enunciador porque se mostrará mais informado e, portanto, muito mais qualificado como orador por conhecer os dois lados da questão. Um orador com esse perfil mostra‑se sedutor pela eloquência de sua exposição, pela inteligência que confirma por ser um conhecedor dedicado do que defende, como no exemplo: Exemplo de aplicação “É sabido que o pai deve acompanhar o desenvolvimento da criança, assim como a criança precisa da presença do pai. Questiona‑se que o pai tem um bom emprego em São Paulo. De fato, a transferência 55 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA para Manaus não é uma questão de necessidade, não é sua única chance, destacando‑o entre muitos. Mas, há que se considerar que, se ele não aceitar a transferência, perderá uma excelente promoção, com significativo aumento, com o qual terá melhores condições para garantir uma pensão ainda melhor para a criança. Quanto ao pai ter dificuldades para vir de Manaus a cada 15 dias para visitar a filha, é compreensível devido à imensa responsabilidade do seu trabalho que exige sua presença constante. O colega, certamente, alegará que se, mãe tiver de levar a criança para ver o pai, a própria mãe nunca terá um único fim de semana para si. Entretanto, se Vossa Excelência me permitir, submeto à vossa apreciação a sugestão de Sra. Margarida levar a criança para ver o pai uma vez por mês e o Sr. Luiz Carlos vir para São Paulo uma vez por mês, mantendo, assim, as visitas regulares, sem que a criança perca o contato com o pai, pois o bem‑estar da criança deve estar acima de tudo, como Vossa Excelência também defende”. Podemos observar que o percurso argumentativo antecipa os argumentos a serem apontados pelo advogado da mãe da criança, bem como por ela própria, o pai e o juiz. Nesse encontro de argumentos e contra‑argumentos, ele consegue envolver todos por antecipação e lança a solução que beneficia seu cliente. Finalmente, Osakabe (1979), apresenta‑nos o ato de engajar, recurso eficaz, cujo uso é mais raro porque ele implica que o sujeito enunciador venha a persuadir seu interlocutor com tal propriedade que este, posteriormente, passará a atuar como se fosse seu coenunciador, defendendo uma proposta que sequer é sua. No contexto brasileiro do Tribunal do Júri, esse ato não se concretiza entre os membros do Conselho de Sentença pelo diálogo sobre o caso objeto do júri porque aos jurados não é permitido falar a respeito do caso, pois segundo as normas do Direito Processual Penal, os jurados não podem trocar informações sobre o caso. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse ato é plenamente aplicável, porque os jurados discutem quando se reúnem para decidir o veredicto. Poderíamos considerar que, a partir do momento que o interlocutor aceita a tese que o sujeito enunciador lhe submete, ele (interlocutor) vota a favor da tese do sujeito enunciador, passando a ser seu coenunciador. Entendemos que coenunciador parece‑nos ser a palavra correta, na medida em que o interlocutor passa a ter o mesmo discurso que o sujeito enunciador. Em outras palavras, podemos dizer que o completo sucesso do sujeito enunciador se dá no momento em que ele seduzo interlocutor, engajando‑o, fazendo dele seu coenunciador. 8 ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS Para que possamos construir um percurso argumentativo sólido e capaz de estruturar um discurso eficaz, temos de considerar que possíveis estratégias eficientes se fazem necessárias e quais são as mais ajustadas aos propósitos do sujeito enunciador. Consideradas as condições de produção e as circunstâncias de enunciação – a complexidade que cerca o sujeito enunciador e os interlocutores no tocante ao imaginário, à memória, à formação ideológica e ao valor desse todo que se mistura e acaba por dar sentido ao que se diz –, cabe a avaliação das possibilidades que se abrem. 56 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV 8.1 Argumento de autoridade O argumento se sustenta pela citação de uma fonte confiável, como um especialista no assunto, dados de instituições de pesquisa, frase dita por alguém que se tornou uma referência na área ou, mesmo que não seja da mesma área, alguém que tenha se tornado uma autoridade de notório saber a ponto de fundamentar argumentos enunciados de outras áreas em função da credibilidade de que desfruta – doutrinadores, autores, pensadores, professores, cientistas, membros da Igreja, instituições de pesquisa universitária, tribunais, fontes governamentais, jornalísticas etc. As citações de doutrina são os exemplos mais claros do argumento de autoridade. Tais citações têm duplo efeito: • Fazer presumir como certa a conclusão, porque tem a legitimidade e a credibilidade da autoridade citada, que é de notório saber. • Revelar que o argumento do sujeito enunciador, respaldado pela autoridade que retoma, apresenta‑se como imparcial, porque o argumento retomado não é da autoria do sujeito enunciador, mas sim da autoridade citada. Observação A legitimidade conquistada pela especialidade, titulação, experiência, bem como pelo aspecto legítimo institucional, são a base da credibilidade do sujeito enunciador. Ao fazer uma citação para retomar o discurso de autoridade, o sujeito enunciador deve seguir as orientações a seguir: • Citação literal ou direta de até três linhas: citar no parágrafo, entre aspas, no mesmo padrão e tamanho da fonte do texto padrão. • Citação literal ou direta de mais de três linhas: citar no recuo de quatro centímetros da margem esquerda, em espaçamento 1,0 cm e na fonte 10 ou 11, conforme orientação, sem aspas e sem usar itálico. • Citação não literal ou indireta: o sujeito enunciador, ao citar um argumento de autoridade, relata o texto citado com suas palavras, parafraseando‑o, porém, ao final, deve mencionar o sobrenome do autor e o ano da publicação. Caso o sobrenome seja composto por: Filho, Júnior, Neto, Sobrinho, Primo, essas referências devem acompanhar o sobrenome. No entanto, o número da página não deve ser mencionado em citação indireta ou não literal. Dados sobre o número da página e o volume da obra não acompanham citações não literais ou indiretas. • Citação com mais de três autores: cita‑se apenas o primeiro, seguido da expressão et al. ou et alli. 57 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA • Citação de citação: quando encontramos o texto que desejamos citar em outra obra, devemos obedecer à seguinte ordem: apontamos o autor da citação seguido do ano e do número da página da obra original, em seguida, usamos a expressão latina apud, seguida do nome do autor da obra na qual encontramos a citação, ano de publicação e número da página. Nas referências bibliográficas, citaremos apenas a obra consultada. • Destaques: se houver algo em negrito ou sublinhado no texto original, por iniciativa do autor do texto, escreva (grifo do autor). Contudo, se partiu de quem faz a citação, com a intenção de destacar algo, escreva (grifo nosso). Essa observação deverá ser feita no final da citação, após a identificação do autor e entre parênteses. • Correções de trechos citados: não corrija, apenas use (sic). • Referências bibliográficas: a fonte de referência (com tribunal, câmara, relator, número do recurso, data de publicação e repertório autorizado, se houver), livro, dissertação, tese ou artigo, segundo as normas de citação da ABNT. • Citações diretas longas: limite‑se a 10 ou 12 linhas; se for maior que isso, interrompa a citação, contextualize em um novo parágrafo e retome a citação no parágrafo ou no recuo, conforme o número de linhas. • Quantidade de citações: não exagere. • Jurisprudência: utilizada como paradigma para recursos especial ou extraordinário, além de mencionar o texto, estabeleça a relação, pois esse é o seu argumento. • Leitura de decisão judicial: leia antes de citar. Faça um breve resumo apenas para contextualizar e mencione a referência completa na nota de rodapé, anexando o texto na íntegra. • Texto oral: mencionar rapidamente a fonte, o ano e a página. Este último, apenas se julgar necessário. No texto escrito, deverá fazê‑lo obrigatoriamente, segundo as normas da ABNT. • Pular trechos do texto: caso o sujeito enunciador queira pular determinada parte do texto retomado, deverá inserir reticências entre parênteses (...). Observação Não deixe de citar. O sujeito enunciador deverá deixar claro que está retomando o discurso de outro. Não pode simplesmente retomar a voz do outro sem fazer qualquer comentário, porque esse procedimento fará com que o interlocutor entenda que ele (sujeito enunciador) é o autor do que é dito. Isso pode levar à perda do valor do que foi retomado. Ao dispensar a identificação da voz que retoma, o argumento de autoridade será desperdiçado, e o sujeito enunciador estará fazendo plágio. 58 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV 8.2 Argumento de causa e consequência Este argumento é usado para comprovar uma tese. O sujeito enunciador pode buscar as relações de causa (os motivos e os porquês) e de consequência (os efeitos). Argumentos dessa natureza são persuasivos porque têm a peculiaridade de instaurar efeitos de conclusão lógica. Ex.: “Se a vítima não tivesse agido de forma tão provocativa, o réu não teria se lançado a ato tão impensado, descarregando o revolver nela”. Observa‑se que o advogado tenta levar os interlocutores a entender que o réu somente atirou na vítima como consequência da provocação que ela fizera. 8.3 Argumento de exemplificação ou ilustração Argumento que trabalha a exemplificação e consiste no relato de um fato (real ou fictício). Esse recurso argumentativo é amplamente usado quando a tese defendida é muito teórica e carece de esclarecimentos com mais dados concretos. Contudo, há que se agir com muita cautela para não enveredarmos em digressões desnecessárias. Na digressão o sujeito abandona o foco do texto que enuncia e retoma outro assunto com o objetivo de promover um melhor entendimento para o interlocutor. Contudo, antes de se lançar a essa estratégia é necessário que o sujeito enunciador oriente o interlocutor de que um outro assunto será retomado a título de ilustração, de exemplificação. Esse tipo de estratégia deve ser rápido, por ter como fim ilustrar alguma coisa, por isso, o sujeito enunciador não deve se alongar, pois isso leva o interlocutor a dispersar‑se ou se afastar muito do foco principal. Ex.: “De maneira a ilustrar nosso ponto de vista, tomaremos como exemplo ocorrido no contexto...”. Ao sinalizar que irá interromper a sequência para recorrer a um exemplo de modo a esclarecer a questão, os interlocutores acompanham o raciocínio. A ausência da sinalização leva o interlocutor a perder a concentração quando o sujeito enunciadorcomeça a fazer referência a um assunto que ele (interlocutor) não conhece. Ao concluir o que retoma, o sujeito enunciador deve apresentar suas considerações a respeito, fazendo as conclusões que deseja para o interlocutor. Não é aconselhável deixar que o interlocutor tire suas conclusões sozinho. É ideal que tudo deva ser concluído em conformidade com os interesses do sujeito enunciador. Ex.: “Como podem ter percebido no exemplo citado...”. Se o sujeito enunciador não fizer a conclusão, o recurso da digressão que deveria ser esclarecedor pode não ter o efeito esperado. Será desperdiçado. As digressões desnecessárias devem ser evitadas para que se evitem sérios problemas de compreensão. Levam os interlocutores a se afastarem do texto principal, que é o foco. Sem qualquer orientação prévia ou análise posterior o sujeito enunciador corre o risco de que a tese se perca, como se não tivesse sequer sido mencionada. 59 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA 8.4 Argumento de provas concretas ou princípio Buscamos evidenciar nossa tese porque determinadas provas têm como esteio informações extraídas da realidade. Podem ser usados dados estatísticos ou fatos notórios (de domínio público). É o argumento que versa sobre os elementos de fato, buscando realçar algum aspecto da prova já colhida no processo. Pode referir‑se à prova testemunhal, à prova técnica ou à prova documental. Deve‑se dar preferência ao texto literal, fazendo, portanto, uso de citação direta, ou seja, nas palavras exatas da pessoa citada, para que haja mais impacto. No que diz respeito à prova técnica, deve‑se ter em mente que é, apenas, o ponto de partida do raciocínio jurídico. O resultado do exame técnico deve nascer das conclusões jurídicas, e não o contrário. 8.5 Argumento por analogia Argumento que pressupõe que a Justiça deve tratar de maneira igual, situações iguais. As citações de jurisprudência são os exemplos mais claros do argumento por analogia, que é bastante útil porque o juiz será, de algum modo, influenciado a decidir de acordo com o que já se decidiu, em situações anteriores. A seguir, itens importantes na citação jurisprudencial: • Referências bibliográficas: a fonte de referência (Tribunal, Câmara, relator, número do recurso, data de publicação e repertório autorizado, se houver); livro, tese, dissertação ou artigo, segundo as normas de citação da ABNT. • Jurisprudência: utilizada como paradigma para recursos especial ou extraordinário. Além de mencionar o texto, estabeleça a relação com o texto, pois este é o seu argumento. • Leitura de decisão judicial: leia antes de citar. Faça um breve resumo para contextualizar e mencione a referência completa na nota de rodapé, anexando o texto na íntegra. 8.6 Argumento de mudança de foco Argumento de que se vale o sujeito enunciador/advogado para escapar à discussão central, na qual seus argumentos poderão sucumbir aos do seu oponente. Ele apela, em regra, para a subjetividade. Veja a seguir: Exemplo de aplicação “Estamos aqui para julgar os atos de Antônio Marcos Nascimento, mas não estamos levando em consideração o homem que ele é, que todos afirmam que ele sempre foi – bom filho, bom irmão, bom amigo, bom chefe, bom marido, trabalhador, responsável, cordato, leal, companheiro, fiel, gentil com todos e, completamente, apaixonado por Lúcia Helena Nascimento, mulher a quem ele dedicou seu amor desde os seus 15 anos, com quem idealizou uma vida perfeita, com quem se casou por amor e que, de repente, chegou para ele e, sem nenhum cuidado, sem o menor respeito, lhe pediu o divórcio, 60 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV alegando que não o amava, que estava apaixonada por outro homem, que, diante da sua negativa, disse‑lhe que se sentia mal quando ele a tocava. Que homem conseguiria manter o perfeito equilíbrio diante de tanta frieza? Ele, como tenente, andava armado. Ficou atormentado, perdeu o foco. Pedia que ela se calasse, mas ela insistia, até que ele pegou o revólver e atirou. Não queria matá‑la, jamais lhe faria mal, queria apenas fazer com que ela parasse de ferir seus mais puros sentimentos. Então, atirou contra ela, atirou na própria dor que as palavras dela lhe causavam.” O sujeito enunciador defensor enaltece o caráter do réu lembrando o interlocutor de suas qualidades e do amor que sentia pela vítima para construir o perfil de um homem de caráter, que jamais cometeria tal ato, a menos que tivesse sido provocado pela vítima. Esse percurso leva o interlocutor a entrar em empatia com o réu (coloca‑se em seu lugar) e a compreender que ele teve muitas razões para cometer o crime. 8.7 Argumento por absurdo Argumento que rebate outro, evidenciando a falta de cabimento ao contrariar a evidência. Ex.: “Como poderia a mulher ter alvejado o marido, se o laudo necroscópico atesta que a morte dela se deu em um horário, e o do marido se deu duas horas depois? Não poderia ter matado o marido quando já estava morta. O assassino é uma terceira pessoa”. O sujeito enunciador desconstrói o argumento contrário, expondo ao ridículo o seu oponente. 8.8 Argumento por exclusão Argumento que apresenta várias premissas e as elimina uma a uma. Ex.: “A defesa alega que o réu é inimputável por retardamento mental. É oligofrênico moderado – QI 58. Poder‑se‑ia afirmar que o réu não é capaz de controlar os seus atos por ter elevado comprometimento cognitivo. Deveria ser considerado inimputável devido ao baixo QI que possui. A promotoria contesta que o réu é acusado de homicídio triplamente qualificado por emboscada, impossibilidade de defesa da vítima e uso de meio insidioso (ter dado veneno de rato à vítima, que sofreu morte lenta e sofrida por horas). É inviável que alguém com baixa inteligência tenha feito tudo isso sozinho”. O sujeito enunciador/promotor consegue provar o absurdo das alegações de seu oponente. 8.9 Argumento de causa e efeito Argumento que relaciona causa e efeito com o objetivo de evidenciar as consequências imediatas de determinado ato (retirado das provas) praticado pelas partes. Ex.: “Já que a vítima não possui automóvel e trabalha até tarde como vendedora em um shopping que fica a uma hora e meia da sua casa, não poderia ela estar no local dos fatos na hora em que a vizinha ouviu os tiros e chamou a polícia”. Argumento de causa e efeito trabalha com efeitos de lógica. Dizemos efeitos porque não temos como provar a falsidade do argumento. No caso em que explanamos, se a pessoa tivesse ido de táxi, teria condições de estar no local no momento do crime. 61 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA 8.10 Argumento de prova Argumento que explora a prova testemunhal. É mais persuasivo quanto maior for a credibilidade e a isenção de interesses do testemunho prestado. A prova técnica, quando aceita como verdadeira, transforma‑se em prova concreta. Em geral, ela não consegue resolver tudo. Ex.: “Ninguém viu o acusado pulando o muro da sua casa, tampouco ouviu‑se o grito da menina, o que comprova a improcedência da acusação feita ao réu”. Quando utiliza argumento retirado da prova testemunhal, é importante lembrar que se deve ter segurança na credibilidade da testemunha arrolada. Pode ser informante (que ouviu dizer) ou a testemunha do fato em si. É importante que o sujeito enunciador defina se usará as palavras da testemunha chamando‑a diante do Conselho de Sentença ou se retomará suas palavras constitutivas dos autos. No caso da segunda opção, deve se ocupar em detalhar a informação, dando detalhes que possam serverificados para dar veracidade e consequente credibilidade às informações. Deve‑se indicar o local onde a informações se encontram, mencionando as folhas dos autos. 8.11 Argumento de mudança de foco Argumento que, na impossibilidade de o sujeito enunciador revidar à altura os argumentos de seu oponente, trabalha no sentido de desviar a atenção dos interlocutores das questões principais, para confundir os interlocutores, desviando o foco para outras premissas que acabam por inverter os papéis. O uso dessa estratégia deve ser comedido, pois há forte tendência a confundir o relatório. Ex.: “O advogado habilidoso que, por não ter como negar o crime do réu, enfatiza que ele é bom filho, bom marido, trabalhador etc. Para justificar a ação de o marido ter assassinado sua mulher, alega que ela o atormentava, sendo agressiva e negligente, irônica e infiel”. Observação A estratégia de mudança de foco é a mais adequada em casos de crimes passionais. Na impossibilidade de absolvição, a defesa tenta homicídio privilegiado por injusta provocação da vítima. 8.12 Argumento de comprometimento de legitimidade da prova pericial Argumento por meio do qual o sujeito enunciador questiona uma prova obtida por perícia. Nesse caso, ele deve considerar que uma prova pericial pode chegar a ser inconteste, o que, geralmente, faz com que sejam aceitas como objetivas, em função de terem sido validadas pela autoridade do perito, portanto, por sua legitimidade e consequente credibilidade. 62 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV É preciso que o sujeito enunciador compreenda que refutar a verdade, atacando a pessoa do perito que foi responsável pela perícia realizada, não é de bom tom. Assim sendo, é preferível que o sujeito enunciador ataque algo relativo à perícia em si ou em relação à credibilidade do perito. É preciso que se evidencie que a crítica é absolutamente técnica e imparcial. Ex.: “O perito que realizou a perícia não poderia tê‑la feito por ser irmão do namorado da vítima. Por essa razão, faz‑se necessária uma nova perícia. Não se trata de uma questão de competência, mas pela indispensável falta de total isenção que se faz indispensável em uma avaliação dessa natureza”. O questionamento da prova em função da aptidão não seria de bom tom, mas o comprometimento da isenção de fatores emocionais é procedente. Afinal, o perito teve de periciar a cena do crime na qual sua ex‑futura cunhada fora morta. 8.13 Argumento por imagem: retórica imagética É sabido que a imagem tem força persuasiva indiscutível, fica gravada na memória de modo inenarrável, imagens e sons ficam para sempre, costuma‑se dizer, e não é sem causa. Tal estratégia pode ser apresentada de cinco formas, a saber: 8.13.1 In loco Temos nesta especial estratégia argumentativa a condição de trabalhar a imagem diretamente, sem qualquer reparo, o que tem força de verdade e instaura credibilidade, na medida em que não parece ter sido manipulada. Ex.: “A condição de trazer a vítima de tentativa de homicídio que sofreu sequelas significativas para o plenário do júri tem excelente força persuasiva. A condição de os jurados apreciarem in loco os efeitos da conduta crime lhe permite avaliar a extensão do dano causado, daí a força persuasiva dessa estratégia”; “A condição de mostrar a arma do crime, como arma branca suja de sangue, barra de ferro e martelo, caco de vidro de uma garrafa usada para degolar a vítima, apresentando marcas de sangue e fios de cabelo, pode causar impressões significativas nos interlocutores que se tornam enunciadores ao ocuparem o lugar social de jurados para proferir o veredicto. Imagens dessa natureza podem fortalecer muito a tese da promotoria”. Ao mostrar as consequências que a vítima terá para sempre devido ao ato do réu, ao mostrar a arma suja de sangue com a qual a vítima foi morta, a barra de ferro, na qual há cabelos da vítima grudados, o sujeito enunciador trabalha sentidos de repúdio e indignação junto aos interlocutores. A própria arma de fogo pode ser impressionável, conforme a habilidade retórica da promotoria em valer‑se dessa imagem. Ex.: “Foi empunhando esta arma, mirando para a cabeça da vítima, que tirou friamente a vida da mãe dos seus filhos, disparando à queima‑roupa três tiros”. 8.13.2 Fotos Fotos também guardam importante valor persuasivo, na medida em que podem transportar os interlocutores/jurados à cena que traduzem as imagens, causando sensações capazes de fortalecer a tese da promotoria. Fotos da cena do crime, da vítima ou do exame necroscópico são significativamente persuasivas. 63 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA No caso Isabella Nardoni, o enunciador/promotor Francisco Cembranelli exibiu, no telão do plenário do júri, fotos da necropsia da referente/vítima, na qual se podia observar claramente que a referente/vítima estava cianótica (lábios roxeados, dedos das mãos inchados e unhas roxeadas), consequência natural da asfixia mecânica que sofrera antes de ser arremessada do sexto andar do Edifício London, apartamento 62, na Zona Norte de São Paulo, onde se encontrava pela visita quinzenal ao seu pai. A habilidade de o sujeito enunciador reconstruir fatos por meio de fotos propicia‑lhe a definição do percurso argumentativo ideal para a conquistar a adesão dos interlocutores à sua tese. Ao final da réplica, Cembranelli exibiu no telão a imagem da referente/mãe e da referente/ vítima, na qual as duas trocavam um beijinho nos lábios, conhecido como “selinho”. Essa imagem despertou muita emoção da plateia, porque era o mesmo que dizer que em função dos atos desmedidos dos referentes/réus Ana Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni, a referente/vítima Isabella Nardoni e a referente/mãe Ana Carolina de Oliveira haviam sido roubadas de uma vida inteira de amor e felicidade, porque a imagem projetada jamais poderia se repetir. Essa imagem, somada à oratória que sustentou todo percurso argumentativo do sujeito enunciador/promotor conquistaram adesão dos interlocutores/enunciados/jurados quando do pronunciamento do veredicto, ao considerarem os referentes/réus como condenados. A revista Veja, na edição de 23 de abril de 2008, publicou uma matéria de capa sobre o caso Isabella Nardoni, que ainda estava sob investigação no inquérito policial e teria 30 dias para ser concluído. A revista, no entanto, publicou na capa a imagem do caso sob o título: “Para a polícia, não há mais dúvidas sobre a morte de Isabella Nardoni: ‘foram eles’”, quando o inquérito seria concluído apenas no dia 29 de abril. O discurso da capa, apesar de violar o princípio constitucional de presunção de inocência, afirmou, por meio da imagem e do contexto, que o casal Nardoni era culpado, exercendo assim grande influência sobre a opinião pública. Lembrete A retórica imagética tem significativa eficácia no percurso argumentativo. Para o sujeito enunciador/promotor, interessa levar os interlocutores/jurados a entrar em empatia com a vítima a ponto de imaginarem seu sofrimento e, consequentemente, acabarem condenando o réu. Para o sujeito enunciador/defesa, interessa levar os interlocutores/jurados a entrar em empatia com o réu a ponto de imaginarem o seu sofrimento ao ouvir as duras palavras que a vítima lançara sobre ele, o que os faz acatar a tese de injusta provocação da vítima. 64 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV Figura 1 – Capa da revista Veja de 23 de abril de 2008 8.13.3 Filmes Esta estratégia é pontual como prova porque, muitas vezes, regista as cenas do crime, como é caso das câmerasde segurança em estabelecimentos e edifícios. O mesmo acontece quando se deseja mostrar imagens de uma vida tranquila ou agitada das partes – vítima e réu – ou até mesmo como prova de atos de corrupção, chantagem, coação, extorsão, ameaça e adultério que, apesar de ter deixado de ser crime, ainda é causa justa de pedido de separação. 8.13.4 Desenhos Neste caso, os desenhos estão presentes como retratos falados, croquis e imagens que imitam possíveis sequências dos fatos. Este recurso pode ser apresentado em quadrinhos para simular hipótese da sequência dos fatos, com o objetivo de fornecer uma ideia do que possa ter ocorrido na cena do crime. 8.13.5 Narrativa descritiva Esta estratégia pode ser considerada uma das estratégias mais completas, porque pode ser usada no texto oral ou escrito, constituindo textos formais ou informais. Cabe salientar que na falta das demais estratégias vistas anteriormente, a narrativa descritiva revela‑se a estratégia mais viável. 65 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA Há que se salientar que a estratégia da retórica imagética pela narrativa descritiva exige domínio linguístico, diversificação de vocabulário, capacidade de dramatização, criatividade para trabalhar entoação e provocar emoções significativas nos interlocutores. Se enunciada pelo sujeito enunciador/promotor de justiça, no Tribunal do Júri, levará os interlocutores/jurados a ter empatia com o referente/vítima de modo a fazê‑los viver emoções semelhantes às da vítima, aderindo, ao final, à proposta que pede condenação. É comum que o sujeito enunciador/defesa se valha dessa estratégia no Tribunal do Júri quando um homicídio é cometido por motivo passional. Ao deslocar a atenção para o comportamento da vítima, o sujeito enunciador/defesa procura levar os interlocutores/jurados a estabelecer empatia com o referente/réu de maneira a concluir que a referente/vítima contribuiu de forma significativa para que o referente/réu perdesse o controle sobre suas emoções a ponto de cometer o crime. Essa possibilidade fortalece a tese de homicídio privilegiado por injusta provocação da vítima. Conclui‑se, portanto, que as chances de êxito aumentam significativamente se o sujeito enunciador construir um percurso argumentativo decorrente de uma criteriosa leitura dos fatos que constam nos autos, selecionando os argumentos mais adequados e ampliando as chances de conquistar adesão à tese submetida aos interlocutores. Saiba mais Para analisar o percurso argumentativo e observar as diferentes estratégias que consolidam o discurso enunciado no plenário do Tribunal do Júri, assista: UM CRIME de mestre. Dir. Gregory Hoblit. Alemanha/EUA: New Line Cinema, 2007. 113 minutos. 8.14 Argumento pelo discurso do outro: intertextualidade A intertextualidade nos apresenta um texto constituído por outros textos, construindo o dizer a partir de um jogo de vozes que ora se completam, ora se contradizem, partilhando de um mesmo espaço discursivo na construção do dizer do sujeito. Essa particularidade confirma que não existe um texto realmente homogêneo, porque outros textos constituem o discurso do sujeito, seja de forma marcada, seja por apagamentos que se concretizam por razões conscientes e convenientes, tornando o texto heterogêneo. Por vezes, o sujeito enunciador se vê obrigado a demarcar o discurso por diferentes razões. Em outros momentos, um sujeito simplesmente retoma o outro, sem qualquer cuidado com a demarcação. Quando o sujeito se vê obrigado a demarcar o discurso do outro, temos o mecanismo da heterogeneidade marcada. 66 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV 8.14.1 Heterogeneidade marcada Consideramos que o sujeito demarque o discurso do outro movido pelo desejo de atribuir maior credibilidade ao seu próprio dizer e, assim, tornar irrefutável seu argumento, valendo‑se da credibilidade daquele a quem retoma, em função da aceitabilidade que o outro possa ter perante o seu interlocutor virtual. Entendemos a pertinência de estabelecer algumas articulações teóricas entre a heterogeneidade discursiva marcada e outras teorias, de maneira a elucidar como este mecanismo argumentativo se mostra muito eficaz como estrutura argumentativa do discurso jurídico enunciado no Tribunal do Júri. A seguir, articulações teóricas entre a heterogeneidade discursiva marcada e outras teorias, que, em nosso entender, permitem compreender melhor como se organiza a solidez do discurso que se instaura. As várias vozes que estruturam o percurso discursivo das partes formam a heterogeneidade marcada, que, por sua vez, se manifesta de várias formas, tais como: • Discurso direto: retomando as palavras da testemunha: “Meu irmão foi um militar comprometido, um professor dedicado, um filho e irmão sem igual, um marido apaixonado e um pai inteiramente devotado”. • Discurso indireto: segundo a testemunha, seu irmão era um militar comprometido, um professor muito dedicado, um filho e um irmão perfeito, um marido apaixonado e um pai devotado demais. • Outros discursos: vale‑se de um discurso poético. “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. • Discurso oposto: “Justificar um ato que, simplesmente, toma a vida do outro como um ato de amor é uma aberração inaceitável”. • Aspas: “Não desconheço o fato, mas nego ter participado”, disse o réu na delação premiada. • Itálico: Não desconheço o fato, mas nego ter participado. Disse o réu na delação premiada. • Língua estrangeira: como se diz no bom inglês: “Leave me alone”. • Ratificação: “De fato, confirmo e acredito no que fiz”. • Retificação: “Ele deixou a casa muito magoado, ou melhor, decepcionado”. • Remissão: “Estivesse eu preparada para aquele feito, teria me controlado e evitaria ao máximo a emoção”. • Figuras de linguagem: “A senhora alega que não falava com a vítima há mais de dois meses. Estranho, porque o seu celular falava. No dia do fato, ele ligou sozinho para a vítima e falou com ela por 18 minutos. Seu celular falou, veja a senhora”. 67 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA No discurso jurídico, sobretudo o enunciado no Tribunal do Júri, o sujeito enunciador retoma o dizer do outro pela forma marcada quando remete a voz das testemunhas em momentos anteriores, nos quais, quer na fase de inquérito, quer na fase judicial, a testemunha tenha feito declaração divergente. Nesses casos, o ato de repetir ganha uma nova direção de sentidos porque reafirma a tese daquele que inquere a testemunha. Há outros momentos nos quais as partes retomam o dizer de grandes personalidades, o que lhes permite mostrar erudição e, ao mesmo tempo, dar maior credibilidade ao seu argumento. 8.14.2 Princípio da autoria A demarcação que o sujeito faz em relação ao discurso do outro no seu espaço discursivo permite entender que ele esteja regulado por normas preestabelecidas. Nesse aspecto, encontramos respaldo nas normas imputadas pelo princípio de autoria, que, segundo proposta de Orlandi e Guimarães (1988), não permitem ao sujeito se apropriar da palavra de outro sem demarcá‑lo em seu espaço discursivo. No tocante ao discurso jurídico enunciado no Tribunal do Júri, há que se considerar que o princípio da autoria é, igualmente, regulador do dizer de todos que têm o direito a voz nesse particular lugar de enunciação, uma vez que todos são regulados pela responsabilidade do seu dizer, na medida em que as consequências decorrentes do que é dito em um tribunal dessa ordem são norteadoras do veredicto ao qual osjurados devem chegar ao final dos trabalhos. Entendemos que a tensão própria da enunciação do Tribunal do Júri aumenta o conflito a ser superado pelas partes (promotoria e defensoria) na conquista da adesão dos jurados às suas teses. Quanto maior o conflito, mais heterogêneo o discurso se mostra, porque o sujeito enunciador recorre a toda sorte de argumentos para estruturar o percurso que escolhe para atingir o fim desejado, qual seja a conquista da adesão de seus interlocutores à tese que lhes submete. Se pensarmos na forma do argumento de autoridade, o discurso que carrega credibilidade para o fio discursivo do sujeito exige que a identificação de autoria seja imprescindível à medida que a credibilidade decorre da legitimidade que está atrelada à identidade do sujeito cujo discurso é retomado. O sujeito enunciador submete‑se, portanto, a normas institucionalizadas na medida em que não lhe é conveniente perder a credibilidade que a voz do outro confere ao argumento no tocante à conquista de adesão dos interlocutores. Ex.: “Segundo declaração do médico legista – o Prof. Dr. Laércio dos Santos de Menezes, que procedeu ao exame necroscópico da vítima, a Sra. Doroty Caroline Young –, a vítima agonizou durante horas antes de ir a óbito porque as lesões causadas pela tortura feita pelo réu levaram a vítima a uma morte lenta e sofrida”. Ex.: “Na visão dos pesquisadores em criminologia que avaliaram o acusado, um homem diagnosticado como fronteiriço pode ter um comportamento tido como ajustado até que um determinado evento acione o que pode ser o gatilho que dispara sua ira, sua total agressividade e até perversidade, que, depois de saciada, parece desaparecer, fazendo‑o voltar à condição tranquila e serena que sempre pautaram seus atos”. 68 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV A retomada do argumento de autoridade e sua respectiva identificação detalhada são elementos verificáveis que conferem legitimidade e credibilidade ao argumento, fortalecendo, assim, o percurso argumentativo do sujeito enunciador. 8.14.3 Heterogeneidade não mostrada É certo que, por vezes, como interlocutores, identificamos outros discursos constitutivos do discurso que o sujeito enunciador nos apresenta. Isso acontece simplesmente porque os reconhecemos, não porque o sujeito tenha se ocupado de demarcá‑los de alguma forma, mas sim porque os identificamos por meio do repertório que temos registrado em nossa memória discursiva e histórica, bem como na memória coletiva que nos constitui. Trata‑se da heterogeneidade constitutiva, que pode ser entendida como a constante presença do outro no discurso do sujeito que o retoma como seu, sem se preocupar em encontrar alguma forma de demarcá‑lo para apresentar aos seus interlocutores. Não podemos deixar de considerar que isso pode se dar porque o sujeito enunciador por vezes ignora que o faz, ou ainda se encontra sob os efeitos de um apagamento desse processo, na medida em que sua experiência de vida sempre o coloca na fronteira com o dizer do outro, que passa a constituir o seu discurso. É próprio do discurso enunciado no Tribunal do Júri o apagamento de fatos sempre em conformidade com a tese que o sujeito defende. Quando o sujeito enunciador/promotor enuncia, observam‑se apagamentos de depoimentos e dados que possam atenuar a ação do réu. São, por outro lado, acentuados detalhes que confirmam a culpabilidade e as possíveis qualificadoras. Quando o sujeito defensor enuncia, observam‑se apagamentos de elementos que enfatizam a ação do réu, qualificadoras, perversidade ou premeditação. Saiba mais Para saber mais sobre o funcionamento da arte de falar bem, leia o Capítulo V, “Condicionantes do discurso jurídico”, da obra a seguir: CHALITA, G. A sedução no discurso: o poder da linguagem nos tribunais do júri. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Podemos pensar que o gênero discursivo jurídico deveria apresentar mais objetividade no discurso enunciado, principalmente no Tribunal do Júri, que é marcado pelo texto oral. Longos discursos, carregados de detalhes e informações, atravessados por uma retórica elaborada e enunciados durante intermináveis horas – por vezes dias –, podem se tornar enfadonhos para os interlocutores que ocupam o lugar social de interlocutores/jurados. 69 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO JURÍDICA Resumo É muito acentuada a complexidade de um texto prioritariamente argumentativo, como é o caso do texto que se inscreve no discurso jurídico e que, portanto, constitui o gênero discursivo jurídico. As condições próprias do texto dissertativo são muito peculiares e merecem nossa atenção. As formações imaginárias são fundamentais para o sucesso das propostas apresentadas, porque não é raro que o sujeito cometa um deslize que conflite com o do seu oponente, e a condição para reverter o processo pode ser complexa ou infrutífera. Esse cuidado deverá orientar não apenas a escolha de argumentos, como também toda escolha lexical, levando em consideração a audiência particular e a universal. Consequentemente, nesse momento, tudo passa a funcionar em conjunto, como em uma sinfonia, mobilizando as memórias coletiva, discursiva e histórica. As relações do sujeito com seu interlocutor no planejamento do percurso argumentativo por meio das formações imaginárias propiciarão condições essenciais para o uso dos atos argumentativos. É a partir da relação que se estabelece entre sujeito enunciador e interlocutor que poderemos fazer um uso eficiente dos atos da argumentação: promover (caráter elogioso), envolver (argumentar por antecipação) e engajar (transformar o interlocutor em coenunciador). Assim, o interlocutor, seduzido pelos elogios pontuais do sujeito enunciador, busca corresponder às expectativas dele (sujeito enunciador) e acaba aderindo à proposta que lhe é apresentada. Percebendo‑se esvaziado de contra‑argumentos, devido à habilidade de o sujeito enunciador antecipar os argumentos (ato de envolver) que teria para questionar a tese em questão, o interlocutor parece atingido na sua capacidade crítica e abre espaço para aceitar a tese que lhe é submetida. No ato de engajar, temos a sedução, que leva o interlocutor a enunciar a favor da tese que lhe é submetida, na medida em que passa a defender a proposta para a qual se inscreveria como interlocutor. Na construção do percurso argumentativo, o sujeito se vê obrigado a enfrentar inúmeros desafios. A tensão constitutiva das condições de enunciação é extremamente alta, elevando os níveis do filtro afetivo (ansiedade) do sujeito, o que pode atingir significativamente o estado de alerta, que deve manter o sujeito atento às oscilações das condições favoráveis à conquista de adesão à tese que submete aos interlocutores. 70 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Unidade IV Devemos ter em mente que a habilidade de argumentar com propriedade decorre de uma prática reiterada composta por dois momentos. O primeiro é o da análise de contexto de confrontos, e o segundo é o do próprio exercício de argumentar. Dizendo de outro modo, assistir a situações nas quais podemos observar a argumentação de terceiros é de grande ajuda na formação sólida da habilidade de um competente orador. E colocar em prática o que aprendemos nos permite consolidar o conhecimento. Se quisermos, podemos fazer de sessões de entretenimento verdadeiras lições de argumentação. Enquanto assistimos a um filme de júri ou de investigação criminal temos a oportunidade de observar diferentes mecanismos que decorrem da prática de um sujeitoajustar a estratégia certa ao momento certo. Somos capazes de fazer isso porque já nos conscientizamos do funcionamento da construção de um percurso argumentativo eficiente. Quando afirmamos que a habilidade de argumentar decorre de observação e prática, não podemos deixar de considerar que, nas duas etapas, devemos analisar cuidadosamente o resultado dos percursos argumentativos. O processo de conscientização é de fundamental importância para as escolhas que fazemos ao construir o percurso de argumentação que deverá estruturar nossas teses em toda prática, mesmo quando atingimos um nível de excelência, porque estamos sempre expostos à habilidade argumentativa do nosso oponente. 71 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 FIGURAS E ILUSTRAÇÕES Figura 1 REVISTA VEJA. São Paulo: Abril, n. 2057, 23 abr. 2008. Capa. REFERÊNCIAS Audiovisuais UM CRIME de mestre. Dir. Gregory Hoblit. Alemanha/EUA: New Line Cinema, 2007. 113 minutos. JFK: a pergunta que não quer calar. Dir. Oliver Stone. França/EUA: Warner Bros, 1991. 189 minutos. Textuais ANJOS, F. Português instrumental. 2013. Disponível em: <http://www.ifcursos.com.br/sistema/admin/ arquivos/09‑47‑28‑apostilaportuguesinstrumental.pdf>. Acesso em: 3 maio 2018. ARRUDÃO, B. Juridiquês no banco dos réus. [s.d.]. Disponível em: <https://www.estrategianaadvocacia. com.br/artigos2.asp?id=156#.WusvzKQvyM8>. Acesso em: 3 maio 2018. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: Secretaria da Educação Básica, 2000. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/ seb/arquivos/pdf/14_24.pdf>. Acesso em: 10 out. 2018. CHALITA, G. A sedução no discurso: o poder da linguagem nos tribunais do júri. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. DUGAICH, C. M. Estrutura do discurso argumentativo: uma análise da heterogeneidade discursiva do pronunciamento de posse do presidente John Fitzgerald Kennedy. Dissertação (mestrado em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1993. ___. O marketing político americano da Guerra Fria: discurso, mistificação e mídia. Tese (doutorado em Linguística). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. ___. O percurso argumentativo do plenário do Tribunal do Júri: uma análise do caso Isabella Nardoni. Pesquisa desenvolvida pela Pró‑reitoria de Pesquisa e Pós‑graduação da Universidade Paulista. 2012. ELUF, L. N. A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres – de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. HALLIDAY, T. L. O que é retórica. São Paulo: Brasiliense, 1990 (Coleção Primeiros Passos). 72 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 O PARÁGRAFO e a redação jurídica. Disponível em: <http://www.ebah.com.br/content/ABAAAfpSEAH/ z‑ok‑aula‑5‑paragrafo‑a‑redacao‑juridica>. Acesso em: 10 maio de 2018. ORLANDI, E. P.; GUIMARÃES, E. J. Unidade e dispersão: uma questão do texto e do sujeito, Cadernos PUC, n. 31, São Paulo, Educ, 1988. OSAKABE, A. Argumentação e discurso político. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1979. PERELMAN, C. L’empire rhétorique. Paris: Vrin, 1982. PETRI, M. J. C. Manual de linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. TEXTO descritivo. Norma Culta. 2018. Disponível em: <https://www.normaculta.com.br/ texto‑descritivo/>. Acesso em: 7 maio 2018. TEXTO dissertativo‑argumentativo. Norma Culta. 2018. Disponível em: <https://www.normaculta.com. br/texto‑dissertativo‑argumentativo/>. Acesso em: 9 maio 2018. TEXTO narrativo: estrutura e elementos da narrativa. Norma Culta. 2018. Disponível em: <https://www. normaculta.com.br/texto‑narrativo/>. Acesso em: 9 maio de 2018. 73 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 74 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 75 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 76 Re vi sã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 1 1/ 10 /1 8 Informações: www.sepi.unip.br ou 0800 010 9000
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