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ESCOLA DE MAGISTRATURA DISTRITO FEDERAL Revista da Escola da Magistratura do Distrito Federal Nº 13 - 2011 ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS DO DISTRITO FEDERAL REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO DISTRITO FEDERAL AssociAção dos MAgistrAdos do distrito FederAl - AMAgis/dF FóruM deseMbArgAdor Milton sebAstião bArbosA PrAçA MuniciPAl, lote 1, bloco b, 10º AndAr, AlA “c” - brAsíliA-dF ceP: 70094-900 Fones: (61) 3103-7548 escolA dA MAgistrAturA do distrito FederAl issn – 1516-8514 Escola da Magistratura do distrito FEdEral rEvista da Escola da Magistratura do distrito FEdEral NÚMERO 13 - 2011 BRASÍLIA 2011 associação dos Magistrados do distrito FEdEral - aMagis/dF Presidente Juiz GILMAR TADEU SORIANO Escola da Magistratura do distrito FEdEral - EsMa/dF Diretora-Geral Desembargadora ANA MARIA DUARTE AMARANTE BRITO Coordenador da Revista Juiz MARCIO EVANGELISTA FERREIRA DA SILVA Conselho Juiz GILMAR TADEU SORIANO Desembargadora ANA MARIA DUARTE AMARANTE BRITO Juíza CARLA PATRÍCIA FRADE NOGUEIRA LOPES Juiz RENATO CASTRO TEIXEIRA MARTINS Juiz MARCIO EVANGELISTA FERREIRA DA SILVA Coordenadores Juíza CARLA PATRÍCIA FRADE NOGUEIRA LOPES Juiz RENATO CASTRO TEIXEIRA MARTINS revisão e ForMAtAção Serviço de Revista e Ementário do TJDFT Os artigos jurídicos aqui publicados são da responsabilidade de seus respec- tivos autores, resguardando-se a pluralidade de pensamento, e os conceitos emitidos não expressam a opinião dos editores. coMposição plEna do tribunal dE Justiça do distrito FEdEral E dos tErritórios - ordEM dE antiguidadE DES. LÉCIO RESENDE DA SILVA DES. OTÁVIO AUGUSTO BARBOSA DES. GETÚLIO VARGAS DE MORAES OLIVEIRA DES. JOÃO DE ASSIS MARIOSI DES. ROMÃO CÍCERO DE OLIVEIRA DES. DÁCIO VIEIRA DES. MARIO MACHADO VIEIRA NETTO DES. SÉRGIO BITTENCOURT DES. LECIR MANOEL DA LUZ DES. ROMEU GONZAGA NEIVA DESA. CARMELITA INDIANO AMERICANO DO BRASIL DIAS DES. JOSÉ CRUZ MACEDO DES. WALDIR LEÔNCIO CORDEIRO LOPES JÚNIOR DES. HUMBERTO ADJUTO ULHÔA DES. JOSÉ JACINTO COSTA CARVALHO DESA. SANDRA DE SANTIS MENDES DE FARIAS MELLO DESA. ANA MARIA DUARTE AMARANTE BRITO DES. JAIR OLIVEIRA SOARES DESA. VERA LÚCIA ANDRIGHI DES. MÁRIO-ZAM BELMIRO ROSA DES. FLAVIO RENATO JAQUET ROSTIROLA DESA. NÍDIA CORRÊA LIMA DES. GEORGE LOPES LEITE DES. ANGELO CANDUCCI PASSARELI DES. JOSÉ DIVINO DE OLIVEIRA DES. ROBERVAL CASEMIRO BELINATI DES. SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS DES. SÉRGIO XAVIER DE SOUZA ROCHA DES. ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS DES. FERNANDO ANTONIO HABIBE PEREIRA DES. JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA DES. ANTONINHO LOPES DES. JOÃO EGMONT LEÔNCIO LOPES DES. LUCIANO MOREIRA VASCONCELLOS DES. JOSÉ CARLOS SOUZA E AVILA DES. TEÓFILO RODRIGUES CAETANO NETO suMário Apresentação Juiz Marcio Evangelista Ferreira da Silva - Coordenador da Revista da ESMA/DF ..........................................................................................................9 Evolução do Conceito de Família Juíza Ana Maria Gonçalves Louzada ...............................................................11 A Sucessão Legítima do Cônjuge no Novo Código Civil Juiz Wagner Junqueira Prado ...........................................................................25 A Inconstitucionalidade do Art. 273 do Código Penal Juiz Marcio Evangelista Ferreira da Silva ........................................................39 Quem tem Medo do Racismo? Juíza Carla Patrícia Frade Nogueira Lopes .......................................................45 Incidente de Julgamento de Demandas Repetitivas no PLS 166: uma Apresentação da Proposta no Novo CPC Juíza Marília de Ávila e Silva Sampaio ...........................................................55 O Juiz-Administrador Juíza Oriana Piske de Azevedo Barbosa...........................................................61 O Dever de Informar nas Relações de Consumo Juiz Atalá Correia .............................................................................................79 Partidos e Coligações: a Sucessão dos Suplentes Juiz Rodrigo Cordeiro de Souza Rodrigues ......................................................97 Sentença Cível em Interdito Proibitório e Manutenção de Posse Juíza Ana Maria Ferreira da Silva ..................................................................103 Drawback segundo a Jurisprudência do STJ José Roberto da Silva - Ex-aluno da ESMA/DF ............................................115 Colisão de Direitos Fundamentais Alessandra Lopes da Silva - Ex-aluna da ESMA/DF .....................................167 8 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 O Contrato e o Tempo: um Suposto Embate Principiológico Rui Eduardo Silva de Oliveira Pamplona - Ex-aluno da ESMA/DF ............ 207 O Alcance da Autonomia Universitária à Luz do Artigo 207 da Constituição Federal de 1988 Jaqueline Santos Silva - Ex-aluna da ESMA/DF ..........................................245 A Comunicação Social sob o Enfoque da Constituição Federal de 1988 Mariana Caetano da Silva Souza Schwindt - Ex-aluna da ESMA/DF .........279 Fertilização in Vitro e suas Implicações no Ordenamento Jurídico Brasileiro Eduardo Navarro Pereira - Ex-aluno da ESMA/DF ......................................287 A Obrigação como Processo: um Estudo sobre a Obra de Clóvis do Couto e Silva Daphne de Carvalho Pereira Nunes - Ex-aluna da ESMA/DF .....................355 A Responsabilidade Criminal nas Atividades Desportivas: particularidades em Relação à Prática de Discriminação Racial no Futebol Bianca Fernandes Pieratti - Ex-aluna da ESMA/DF .....................................371 9Revista da Escola da Magistratura - nº 13 Apresentação Juiz Marcio Evangelista Ferreira da Silva Coordenador da Revista da Escola da Magistratura do Distrito Federal – ESMA/DF A Escola da Magistratura do Distrito Federal – com muita satisfação – apresenta a toda comunidade jurídica mais uma edição de sua revista, mantendo a tradição de ser um veículo das ideias de magistrados, professores e ex-alunos. A maior novidade é o abandono das edições impressas para a versão em CD. Tal alteração atende a orientação mundial de respeito ao meio ambiente – evitar o gasto de papel. Referida novidade além de preservar o meio ambiente e inserir a escola na era da modernidade, também faz com que a periodicidade da revista seja reduzida, pois suprimido o tempo gasto com impressão de versão impressa. No mais, após a última edição, várias foram as mudanças na Esma/DF, tanto no espaço físico como no currículo dos cursos oferecidos. Hoje há uma estrutura física a altura da história da Esma-DF, pois contamos com três salas confortáveis para as aulas, sala de estudo e secretaria para melhor atender os alunos, palestrantes e professores. A estrutura do curso também sofreu alterações em atendimento a exigências do Conselho Nacional de Justiça – Resolução n.º 75 – e hoje aos alunos são oferecidas aulas de Filosofia, Sociologia e Psicologia Jurídica. A Revista, como de costume, abriu espaço para que todos enviassem seus artigos, sendo que muitos foram recebidos e pré-selecionados. Após rigorosa escolha temática, a Esma/DF apresenta artigos que são o resultado da reflexão e do pensamento atual de ex-alunos, professores e magistrados. Variados e atuais são os temas, trazendo ao leitor um leque amplo de assuntos para refletir, cumprindo, assim, a Esma/DF, seu mister, qual seja, fazer com que chegue às mãos de todos os operadores do direito um instrumento capaz de auxiliá-lo no de- sempenho da tão nobre profissão que é aplicar o direito. Boa leitura! 10 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 11Revista da Escola da Magistratura - nº 13 Evolução do Conceito de Família Ana Maria Gonçalves Louzada Juíza “Não é a cópulaem si, mas o afeto, que constitui o matrimônio.” ULPIANO Breve panorama histórico: A humanidade sempre se portou e se mostrou de forma aglomerada, tendo em vista a necessidade do homem de viver em comunidade. É psicologicamente difícil ao ser humano a vida segregada, sem compartilhamentos, sem trocas. E a partir desta junção de pessoas começaram a se formar as famílias. A ideia de família surgiu muito antes do Direito, dos códigos, da ingerência do Estado e da Igreja na vida das pessoas. Em verdade, família é um caleidoscópio de relações que muda no tempo de sua constituição e consolidação em cada geração, que se transforma com a evolução da cultura, de geração para geração. 1 Na Antiguidade, com o advento do Código de Hammurabi, o sistema familiar da Babilônia passou a ser por lei patriarcal e o casamento monogâmico, embora admitia-se o concubinato. Esta aparente discrepância era resolvida pelo fato de uma concubina jamais ter o status ou os mesmos direitos da esposa. Ademais, o casamento dito legítimo só era válido mediante contrato. Naquela época, havia a possibilidade de casamentos entre diferentes camadas sociais, e o código regulava especificamente a herança dos filhos nascidos deste relacionamento. Também admitia-se o divórcio, onde o marido podia repudiar a mulher nos casos de recusa ou negligência em “seus deveres de esposa e dona-de-casa”. Qualquer dos cônjuges poderia repudiar o outro por mau procedimento, mas neste caso a mulher deveria ter conduta ilibada. No respeitante ao homem era, no máximo, cúmplice. Quando pegos, os adúlteros pagavam com a vida, entretanto o Código previa o perdão do marido. 12 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 O amor entre os homens era plenamente aceito entre os povos antigos, sendo, contudo, valorizado apenas o “polo ativo” da relação. Isso se explica porque o machismo, já naquela época, vislumbrava o ato sexual ativo como a postura masculina, sendo o ato sexual passivo tido como a feminina. Em outras palavras, não era analisado o sexo biológico para a qual o homem direcionava seu amor, mas o papel sexual que ele desempenhava. 2 Com relação ao amor entre mulheres, não há dados esclarecedores, uma vez que sua sexualidade era ignorada. Já no direito hebraico não havia qualquer menção à palavra matrimônio, pois este era um assunto particular entre duas famílias. Ressaltamos que todos os povos da Antiguidade admitiam o divórcio, que começou a ser proibido somente após o advento do cristianismo. Contudo, na legislação mosaica, somente os homens podiam divorciar-se, não cabendo às mulheres tal iniciativa. Além disso, deveria ocorrer algo vergonhoso na esposa para que o marido pudesse repudiá-la. Também admitia-se o concubinato. Com relação ao Código de Manu, este reiterou explicitamente a incapacidade da mulher de sozinha se reger. Apesar de também admitir o divórcio, a separação só poderia ocorrer caso a deficiência fosse da esposa, vale dizer, era o marido quem decidia sobre a mantença ou não do casamento. A fidelidade no casamento era exigida por lei. Geralmente a pena de morte era aplicada no adultério. No Direito Romano, a palavra família podia ser aplicada tanto às coisas como às pessoas. Aplicada às coisas, refere-se ao conjunto de um patrimônio. No respeitante às pessoas, pressupõe parentesco, podendo ter sentido estritamente jurídico, chamado agnatio, e outro biológico, a cognatio. O parentesco jurídico englobava todos sob o poder de um mesmo pater famílias, sendo transmitido somente pela linha paterna. Durante a evolução do Direito Romano, estes dois tipos de parentesco foram, muitas vezes, postos em contraposição, o que gerou juridicamente a prevalência do princípio do parentesco consanguíneo sobre a agnação. Os romanos distinguiam duas espécies de casamento: o cum manu e o sine manu. No primeiro caso, a mulher saía da dependência do pater famílias para a do marido e do pater famílias da família do marido. O casamento sine manu não oferecia esta possibilidade de sujeição, podendo a mulher continuar sob o poder de seu próprio pater famílias, conservando o direito sucessório de sua família de origem. Para os romanos, o casamento era um ato consensual de contínua convivência. Era um fato e não um estado de direito. Por outro lado, o casamento em Roma jamais foi indissolúvel, e desde o direito arcaico romano já previa o divórcio. No início, o divórcio somente podia ocorrer por vontade do marido. Com o passar do tempo, esta possibilidade foi estendida também às mulheres. Na Idade Média o Direito Canônico passou a ter relevante importância na sociedade, tendo em vista o domínio da Igreja neste período. Como o poder laico enfraquecia pelo declínio do poder real, em consequência do feudalismo, a jurisdição eclesiástica aumentava seu poder também em relação aos leigos. A Igreja acabou sendo a única a julgar assuntos relativos a casamento, legitimidade dos filhos, divórcio, etc. O casamento deixou de ser contrato para ser considerado sacramento. Assim, como a 13Revista da Escola da Magistratura - nº 13 Igreja só aceitava o sexo dentro do casamento e com finalidade de procriação, tudo o que se afastasse desta regra era tido como contrário a Deus. O Direito Islâmico tem na família a sua base de formação da sociedade. É o casamento que dá a concessão social para a maternidade e paternidade, sendo ele essencial, pois os muçulmanos só atingem seu apogeu depois de terem filhos. O casamento possui duas fases: primeiramente se assina um contrato entre o marido e o representante legal da mulher, sendo este seu pai ou representante masculino mais próximo. Contudo, para sua validade é imprescindível seu consentimento, bastando, para isso, seu silêncio. Após assinaturas e consentimento, ambos são considerados casados e a ruptura do contrato se iguala ao divórcio. Destacamos que o casamento só se completa após a noite nupcial, tendo sido o casamento regulado objetivamente no Alcorão. As famílias poderiam intervir diretamente no matrimônio, pois ele não era tido somente como união entre marido e mulher, mas entre duas famílias. Há a possibilidade de o homem casar-se com várias mulheres, podendo também ter várias concubinas. Em suma, o casamento é considerado como sendo o único objetivo na vida de uma mulher! Elas devem manter o pudor por completo, não exibir seu corpo, não olhar as pessoas nos olhos, devendo usar véu em público. Quanto ao divórcio, a mulher só pode ter iniciativa se houver no contrato este direito e se isso for permitido pela escola jurídica do lugar onde vive, não havendo qualquer ressalva em relação ao homem. Com o divórcio, se o marido quiser, poderá ter sua mulher de volta caso ela ainda esteja livre. A Revolução Francesa foi um marco, um divisor de águas, na busca pela igualdade entre homens e mulheres, uma vez que estas últimas ainda eram consideradas incapazes. Contudo, ainda que se buscasse a reversão desta cruel discriminação, o Código Civil de Napoleão reforçou o poder patriarcal, outorgando ao pai maiores direitos sobre os filhos. Também ressaltou que o poder patriarcal é estendido à esposa, que continua sob seu jugo. O divórcio é admitido, sendo sempre o adultério feminino considerado como uma de suas causas, sendo aceito somente o masculino se o marido levar a concubina para dentro da residência. Também há diferenciação quanto aos filhos, sendo considerados filhos legítimos e ilegítimos, esses últimos nascidos fora do casamento. Sua legitimação só poderia ocorrer com o casamento dos pais. Caso o pai já fosse casado, poderia reconhecê-lo, mas este não teria os mesmos direitos do filho legítimo 3 . Assim, mesmo a visão iluminista, que via na liberdade sexual uma forma de atingir o progresso, a ordem e a felicidade, condenou com veemência o amor homoafetivo. Acreditava-se que os homens tinham apenasuma limitada quantidade de sêmen em seu corpo. Assim, não é à toa que esse período da história fez que a sexualidade não- heterosexual passasse a ser ainda mais condenada, pois se entendia que ela “gastava” a semente da vida de forma inútil, ou seja, não-procriativa. 4 No século XIX passou-se a se afastar da dogmática religiosa, dirigindo-se para um estudo científico acerca da homossexualidade. Observa-se que primeiramente houve a definição da homossexualidade como doença, sem qualquer dado concreto. Isso fez com que tratamentos desumanos fossem abertamente utilizados, sem nenhuma punição estatal. Terapias com choque convulsivos, lobotomia e terapias por aversão foram largamente utilizadas. Queriam, a todo custo descobrir uma forma de reverter 14 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 a homossexualidade. Obviamente que não conseguiram – pois não se cura algo que não é patológico. 5 Somente ao final do século XX é que a ciência passou a aceitar a homossexualidade como forma de orientação sexual, e não mais como doença. Na pós-modernidade, muito embora ainda possamos enxergar algum ranço preconceituoso, já é possível aceitarmos a família como sendo um conjunto de indivíduos unidos por laços de afetos. Foi a Dinamarca quem primeiramente regulou as uniões homoafetivas, quando autorizou seu registro com os mesmo efeitos do casamento (com exceção apenas ao direito de adotar), nos idos de 1989. Em 1993 foi a vez de a Noruega permitir o registro destas uniões. No ano de 1995, a Suécia pronunciou-se sobre o tema, concedendo os mesmos direitos que anteriormente haviam sido deferidos pela Dinamarca. Em 1996 a Islândia oficializou o registro das uniões homossexuais. Neste mesmo ano, a África do Sul proibiu constitucionalmente a discriminação por sexo. A França, através do Pacto Civil de Solidariedade (Lei n. 99.944/99) garantiu o direito à sucessão, imigração e declaração de renda conjunta. Em 1999 a Inglaterra reconheceu o status de família aos casais homossexuais. A Argentina, notadamente Buenos Aires, no ano de 2003 passou a autorizar uniões civis entre homossexuais, acompanhada pela Cidade do México e o Uruguai no ano de 2007. Muito embora já haja o reconhecimento de uniões homoafetivas em diversos países desde 1989, somente foi possível este reconhecimento em relação ao casamento civil no ano de 2001, na Holanda. A seguir, no ano de 2003, o mesmo aconteceu na Bélgica. Em 2005, também a Espanha, o Canadá e a Grã-Bretanha passaram a admiti- -lo. Nos Estados Unidos, o estado de Massachusetts autoriza o casamento de pessoas do mesmo sexo desde 2004. Em 2006 foi a vez de a África do Sul. No ano de 2008 a Noruega veio a se juntar ao rol dos países que admitem casamento entre homossexuais. Hoje, a Argentina é o primeiro país latino-americano a reconhecer o casamento entre homossexuais em 2010. Para ilustrar, destacamos uma decisão da Suprema Corte do Estado de Massachusetts dos Estados Unidos 6 “O casamento é uma instituição social vital. O compromisso exclu- sivo de duas pessoas uma à outra nutre amor e mútua assistência; ele traz estabilidade à nossa sociedade. (...) Uma pessoa que entra em uma união íntima e exclusiva com outra do mesmo sexo e tem acesso barrado às proteções, benefícios e obrigações do casamento civil é arbitrariamente privada do acesso a uma das instituições mais estimadas e compensatórias da nossa comunidade. Essa exclusão é incompatível com os princípios constitucionais de respeito à autono- mia individual e à igualdade perante a lei”. Em sentido oposto encontra-se o direito no Irã, onde além de ser proibida a relação entre pessoas do mesmo sexo, ainda há a punição com pena de morte. 15Revista da Escola da Magistratura - nº 13 Note-se, que o que se repudia é o objeto de desejo da pessoa homossexual, demonstrando um preconceito desmedido e vergonhoso. 7 Em relação às características intrínsecas das diversas modalidades de família, que vêm se descortinando, podemos entender que convivem simultaneamente a família casamentária, a família formada por união estável, a família concubinária, a família monoparental, a família homossexual e a família formada nos estados intersexuais, que embora representem um campo farto de discussões no direito brasileiro, no plano internacional, fincam-se cada vez mais garantidas. 8 Tal digressão mostra-se necessária para ressaltar que o Direito veio a subsidiar os anseios da sociedade em cada momento histórico. Assim, com o decorrer do tempo, com a evolução do pensamento humano, com a quebra de paradigmas, não cabe mais ao legislador escudar-se atrás do véu da hipocrisia e deixar de outorgar direitos aos casais homoafetivos. É certo que a homossexualidade sempre existiu e que em épocas passadas os casais homoafetivos não possuíam direitos, tendo em vista que a sociedade ainda mostrava-se avessa em aceitar tal condição, talvez por imposição da Igreja que insiste ainda em dizer que se cuida de pecado. Dada a dependência e o desamparo emocional que é da natureza humana, a finalidade da família, embora sofra variações históricas, mantém-se essencialmente como instituição estruturante do indivíduo em função das diferenças entre os elementos que a compõem e que determinam lugares que este ocupa e funções diferentes que exerce, de acordo com o ciclo vital. 9 A família é muito mais que a um casamento estabelecido entre um homem e uma mulher. Família é comunhão de afetos, troca de amparo e responsabilidade. Conceito de Família no Direito Brasileiro: A evolução legislativa demonstra as necessidades mais pungentes da sociedade em cada época. Nota-se que a Constituição de 1824 não fez qualquer menção relevante à família, havendo como determinante, somente o casamento religioso. Naquele tempo, a Igreja assumiu um caráter delineador da moralidade, não aceitando qualquer outra forma de união que não aquela por ela definida. Assim, até 1891, as pessoas apenas podiam se unir para formação da família, através do casamento religioso. A partir de então, passou-se a admitir o casamento civil indissolúvel. A primeira constituição a se preocupar em delinear a família em seu contexto, foi a de 1934. Nesta, houve a determinação da indissolubilidade do casamento, ressalvando somente os casos de anulação ou desquite. Também foi sob sua égide que foi autorizado as mulheres votar. Já a Constituição de 1937 nos trouxe a igualdade entre os filhos considerados legítimos e naturais. A de 1946 não inovou no conceito de família e a de 1967 manteve a ideia de que família somente era aquela constituída pelo casamento civil. Em contrapartida, a emenda constitucional de 1969, que manteve a indissolubilidade do casamento, foi modificada com o advento da Lei do Divórcio de 1977, passando-se a haver aceitação de novos paradigmas. 16 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 O Código Civil de 1916 admitia unicamente o casamento civil como elemento formador da família, muito embora a doutrina, jurisprudência e leis especiais já passassem a admitir o reconhecimento das uniões estáveis. Contudo, inovou a Constituição Federal de 1988 quando, de forma exemplificativa, admitiu a existência de outras espécies de família, notadamente quando reconheceu a união estável e o núcleo formado por qualquer dos pais e seus descendentes, como entidade familiar. Ou seja, trouxe à seara constitucional outros arranjos de convivência de pessoas, que não somente aquele oriundo do casamento. E o fez erigindo o afeto como um dos princípios constitucionais implícitos, na medida em que aceita, reconhece, alberga, ampara e subsidia relações afetivas distintas do casamento. 10 Ainda que se busque identificar a possibilidade do casamento homoafetivo, há quem entenda que a união entre pessoas do mesmo sexo só pode ter tratada pelo direito das obrigações, por se tratarde uma sociedade de fato. Outros acatam somente a ideia de que se o par homossexual possui os mesmos direitos da união estável hetereoafetiva. Destacamos que na sociedade de fato as pessoas que dela fazem parte são consideradas sócias, e não companheiros, visando lucro e não comunhão de vida. Ademais, para a divisão do patrimônio comum, necessário se faz a prova de sua contribuição. Com relação à união estável, não há dúvidas de que, efetivamente, se duas pessoas do mesmo sexo se unirem por laços de afeto, de forma pública, duradoura, contínua e com objetivo de constituição de família, estabelecerão entre elas um vínculo familiar de união estável. O que se quer evidenciar é que o instituto do matrimônio civil não é privilégio dos heterossexuais. Há que haver esta possibilidade também para os homossexuais, que não podem se ver alijados de seus direitos, tendo em vista a orientação sexual que possuem. Não é crível que no dias de hoje ainda se queira impor tratamento diferenciado aos homossexuais, considerando-os como pessoas menos dignas e tratando suas uniões como de segunda categoria. O discurso não pode ser mais homofóbico, vez que sublinha a hierarquização das sexualidades. Vale dizer, o indivíduo é categorizado tendo em vista o objeto de seu desejo. Aquele que deseja pessoa do mesmo sexo é considerado uma categoria inferior de cidadão, não podendo usufruir de direitos outorgados aos heterossexuais. 11 Na esteira de subsidiar preconceito por sexo, surgiram algumas correntes que visam impedir o reconhecimento do casamento civil homoafetivo, notadamente as que defendem a ideia da impossibilidade jurídica do pedido ou de sua inexistência. Assim, o conceito de família restou flexibilizado, indicando que seu elemento formador precípuo é, antes mesmo do que qualquer fator genético, o afeto. Hoje o afeto dá os contornos do que seja uma família. Se tivermos em mente que é o afeto o elemento fundante da família, e que a Constituição Federal nos trouxe um rol exemplificativo de núcleos familiares, forçoso admitir que duas pessoas do mesmo sexo, unidas pelo afeto, formam uma família. Neste sentido Paulo Lobo 12 : “os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência 17Revista da Escola da Magistratura - nº 13 do conceito amplo e indeterminado de família, indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade”. Ainda que não haja norma expressa neste sentido, é importante refletir sobre o fato de que “o silêncio sobre a diversidade sexual é atrelado à naturalização da heterossexualidade – a heteronormatividade. Esta deixa pouco espaço para que outros sentidos da sexualidade surjam. O silêncio heteronormativo reflete visões homofóbicas de mundo, pois prioriza os discursos que ligam a sexualidade à reprodução, de maneira que a relação sexual heterossexual se torna a única possibilidade legítima. A heteronormatividade, ao silenciar sobre a diversidade sexual, acaba por não contribuir para o enfrentamento da homofobia”. 13 As formas idealizadas dos gêneros geram hierarquia e exclusão. Os regimes de verdades estipulam que determinadas expressões relacionadas com o gênero são falsas, enquanto outras são verdadeiras e originais, condenando a uma morte em vida, exilando em si mesmos os sujeitos que não se ajustam a idealizações. 14 Destarte, ainda que o discurso homofóbico muitas vezes se apresente somente nas entrelinhas do silêncio, das palavras não pronunciadas, mostra-se ainda mais perverso e dizimador, pois fere a alma, a dignidade do ser humano. Novos paradigmas devem nos levar a novas realidades, realidades estas pautadas em isonomia de tratamento. A discriminação contra o negro e a mulher, apesar de ainda persistirem em nossa sociedade, são objetos de cuidados legislativos, enquanto que a discriminação contra os homossexuais continua a ser velada, sóbria e sórdida, pois os pares homoafetivos são tratados como pessoas inexistentes, pessoas sem direitos, mas com muitas obrigações perante o fisco. Não se cuida de se fazer apologia ao não pagamento de impostos, mas prega-se, sobretudo a igualdade de condições, de oportunidades, de tratamento. Se os homossexuais possuem os mesmos deveres perante o Estado, o mínimo que se espera é que este mesmo Estado lhe estenda todos os direitos que tem os cidadãos heterossexuais. É imprescindível que a lei dialogue com as transformações sociais. Por óbvio que a união de pessoas do mesmo sexo pautadas em afeto, respeito e cumplicidade descortinam o nascimento de uma nova família. Não pode o preconceito se sobrepor à dignidade, à igualdade, e ao direito à felicidade. Família Homoafetiva: Se considerarmos e entendermos somente o casamento, a união estável e a família monoparental como elementos fundantes de entidade familiar, deixaremos desabrigados um enorme feixe de indivíduos, que destinam seus afetos a pessoas de sexos iguais ao seu. Se retrocedermos um pouco, observamos que antes somente o casamento era elemento formador de família. É dizer, havia uma separação entre os que eram casados e os que não eram e entre aqueles que tinham o direito de casar e aqueles a que estes direitos não eram reconhecidos. Para os pares homoafetivos, esta possibilidade lhes é retirada. Continuam a ser uma minoria ostracizada e privada de direitos. 18 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 A reivindicação do casamento “gay” não exprime simplesmente a aspiração, que seria o sinal de uma abdicação diante de modos de vida heterossexuais, de certos homossexuais a entrar na instituição matrimonial; ela traria, também, caso se realizasse, uma mudança profunda na própria instituição, que não poderia mais ser a mesma que antes, e isso ainda mais que, se os gays podem hoje reivindicar o direito de a ela ter acesso, é porque já não é mais o que era. É a dessacralização do casamento que torna possível a própria reivindicação de que se deva abri-lo aos casais do mesmo sexo. 15 Nota-se que a aversão à outorga de direitos a homossexuais, quer no sentido de aceitar o casamento, o reconhecimento de uniões estáveis homoafetivas, ou direito a adoção, esta a infirmar uma superioridade biológica que se desenha pela dualidade de sexos numa relação. Critica-se a alteridade e alberga-se a exclusão do outro. Não há vontade política em deferir direitos, apenas para outorgar deveres. O discurso heteronormativo ainda constitui a base do pensamento político pós-moderno no Brasil, colocando os pares homoafetivos numa situação de inferioridade simbólica no espaço social. A sexualidade é uma das dimensões do ser humano que envolve gênero, identidade sexual, orientação sexual, erotismo, envolvimento emocional, amor e reprodução. É experimentada ou expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, atividades, práticas, papéis e relacionamentos. Envolve, além do nosso corpo, nossa história, nossos costumes, nossas relações afetivas, nossa cultura. 16 A heterossexualidade se define em grande parte por aquilo que ela rejeita, da mesma maneira que, de modo mais geral, uma sociedade se define por aquilo que ela exclui, como dizia Foucult em História da Loucura. Os ordenamentos jurídicos têm influência no desenvolvimento das famílias, têm influência efetivamente afetiva, incluindo ou excluindo da pertinência à família mais ampla, o social. O tratamento que as famílias recebem deste representante paterno, que é o Estado e o Judiciário, em muito influenciará seu destino. 17 O modelofamiliar hoje, é o da família eudemonista, onde cada indivíduo é importante em sua singularidade, tendo o direito se ser feliz em seu contexto, independentemente de sua orientação sexual. Pautar direitos tendo como parâmetro o sexo a quem é destinado nosso afeto, é perverso e injusto. A família é muito mais do que reunião de pessoas com o mesmo sangue. Família é encontro, afeto, companheirismo, é dividir para somar. E o sentido de cidadania é justamente o da inclusão social. Não é humano e tampouco jurídico deixar ao desabrigo pessoas que possuem os mesmos deveres perante o Estado, mas têm subtraídos direitos. Ainda que o direito brasileiro hodierno não admita o casamento entre homossexuais, é de mister relevância que seja aceita como união estável, com todos os direitos daí advindos. A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela analogia, implica a consideração da presença de vínculos formais e a presença de uma comunidade de 19Revista da Escola da Magistratura - nº 13 vida duradoura entre os companheiros do mesmo sexo, assim como ocorre com os companheiros de sexo diferentes, valorizando sempre, e principalmente, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia, da não discriminação em virtude de sexo ou orientação sexual. 18 Neste sentido a jurisprudência de vanguarda: AÇÃO ORDINÁRIA - UNIÃO HOMOAFETIVA - ANALOGIA COM A UNIÃO ESTÁVEL PROTEGIDA PELA CONSTITUI- ÇÃO FEDERAL - PRINCÍPIO DA IGUALDADE (NÃO-DIS- CRIMINAÇÃO) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA DE UM PARCEIRO EM RELAÇÃO AO OUTRO, PARA TO- DOS OS FINS DE DIREITO - REQUISITOS PREENCHIDOS - PEDIDO PROCEDENTE. - À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princí- pios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. - O art. 226, da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, res- tritivamente, devendo observar-se os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Referido dispositivo, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoa- fetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação, o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações atuais, antes não pensadas. - A lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito. (TJMG, APC 1.0024.06.930324-6/001, rel. Desª. Heloisa Combat, j. 22.05.2007, d.p. 27.07.2007) O silêncio legislativo não pode ser interpretado como falta de direitos, e sim, como descaso institucional. Infelizmente, as minorias ainda sofrem nas mãos de alguns parlamentares que insistem em não se comprometer com medo de perderem votos para a próxima eleição. DIREITO DE FAMÍLIA - AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO HOMOAFETIVA - ART. 226, §3º DA CF/88 - UNIÃO ESTÁVEL - ANALOGIA - OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - VERIFICAÇÃO. - Inexistindo na legislação lei específica sobre a união homoafetiva e seus efeitos civis, não há que se falar em análise isolada e restritiva do 20 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 art. 226, §3º da CF/88, devendo-se utilizar, por analogia, o conceito de união estável disposto no art. 1.723 do Código Civil/2002, a ser aplicado em consonância com os princípios constitucionais da igual- dade (art. 5º, caput, e inc. I da Carta Magna) e da dignidade humana (art. 1º, inc. III, c/c art. 5º, inc. X, todos da CF/88). (TJMG, APC 1.0024.09.484555-9/001, rel. Des. Elias Camilo, 8ª Câmara Cível, j. 25.11.2009, d.p. 12.02.2010) Conclusão: Como visto, é da natureza do ser humano, da sua essência, a diversidade de orientação sexual. Veja-se que a união homoafetiva passou a ser aceita somente no ano de 1989, na Dinamarca, tendo sido reconhecido o como casamento civil apenas no ano de 2001 da Holanda. É bem verdade que em nosso ordenamento jurídico positivo, não há qualquer regra específica para o tema, quer no que diz com a união estável ou casamento. Contudo, é de se ver que a Constituição Federal, através de seus princípios, princípios estes que norteiam todos os vetores nas normas infraconstitucionais, reconhece, subsidia, ampara e autoriza o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Destacamos o princípio da dignidade da pessoa humana, onde cada um deve ser respeitado em sua individualidade. Ratificamos o fato de que nenhum indivíduo possui a faculdade de escolher com que cor de olhos quer nascer, nem sua orientação sexual. A pessoa simplesmente nasce desta ou daquela forma. Assim, mostra-se hipócrita a sociedade quando aceita o ódio entre os homens, mas recrimina o seu amor. 19 Ao depois, nunca é demais nos reportarmos aos princípios da igualdade, (que ratifica a isonomia de tratamento a todas as pessoas), da liberdade, (que embasa a livre escolha de parceiros), do pluralismo das entidades familiares (pois a Constituição ampliou o conceito de família) e da afetividade (onde o que efetivamente importa na relação familiar, muito mais do que o aspecto biológico ou sexual é o afeto que a envolve), princípios estes que direcionam todo o contexto do novo direito de família. Já é hora de deixarmos de lado o descaso, o preconceito e o desrespeito. De pararmos para refletir que o homossexual não é melhor nem pior que o heterossexual, apenas se distinguem em sua orientação sexual. É bem verdade que os mais conservadores assustam-se com o diferente, com o novo, e o inaudito. Contudo, precisamos ter coragem para tirarmos a venda da repulsa e do menosprezo, e alcançarmos direitos às relações homoafetivas. A relação de casal tem se mostrado um grande concentrado da vida psíquica familiar em qualidade e intensidade de emoções que é capaz de mobilizar. Os humanos, pelo menos desde o ingresso na adolescência, passam a ser atravessados pela conjuntura do casal, isto é, ter presente a alternativa de fazer parte de um casal. Não haverá quem fique de fora destas questões, mesmo aqueles que venham a optar pela renúncia à vida em casal, estabelecendo outras prioridades para a sua existência 20 . 21Revista da Escola da Magistratura - nº 13 Como já dito alhures, há quem sustente que as uniões homoafetivas devem ser tratadas no âmbito do direito das obrigações, uma vez que não a Constituição Federal ao mencionar o instituto da união estável teria se referido à união entre homem e mulher. Olvidam-se que se cuida de norma de caráter exemplificativo, não tendo a Constituição da República abarcado todos os tipos de relacionamento possíveis. Ademais, dizer que uma relação afetiva entre indivíduos do mesmo sexo deva ser tratada como se sócios fossem, é efetivamente elevar o preconceito em detrimento do justo. Com relação à união estável, pensamos que não há qualquer óbice para seu reconhecimento, ainda que não tenhamos lei específica para tanto. Ademais, é só nos ampararmos no texto constitucional para alcançarmos os mesmos direitos referentes às uniões estáveis heterossexuais. Mas avançamos mais: entendemos que a aceitação do casamento civil homoafetivo independe de lei específica, uma vez que a própria Constituição assim o autoriza. Não há qualquer artigo do Código Civil que faça restrição de que casamento é privilégio dos heterossexuais. É de se ter em mente também que o reconhecimento do casamento homoafetivo não traria prejuízo a quem quer que seja. Ao contrário, visaria apenas estabelecer igualdade e dignidade àqueles que possuem como objeto de seu desejo, pessoas de seu mesmo sexo. É imprescindívelque a Igreja deixe seus dogmas para seus fiéis, não devendo manifestar-se com relação a leis civis que visem à proteção de direitos de uma minoria que é por ela, reiteradamente, repudiada. Até mesmo o Superior Tribunal de Justiça, quando instado a se manifestar sobre o sentido que deve-se dar à entidade familiar insculpida na Lei 8.009/90, considerou a possibilidade de ser os irmãos solteiros que vivem juntos, o viúvo sem descendentes, o cônjuge separado, dentre outros. Ou seja, a própria Constituição Federal, albergada no princípio da dignidade da pessoa humana, ampara diferentes formas de entidade familiar. É que o amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça, sendo preciso que se enfrente o problema, deixando de fazer vistas grossas a uma realidade que bate à porta da hodiernidade, e mesmo que a situação não se enquadre nos moldes da relação estável padronizada, não se abdica de atribuir à união homossexual os efeitos e natureza dela. 21 O reconhecimento da união homoafetiva como família é apenas a consequência lógica de uma sociedade democrática, que tem por fim último a dignidade de cada pessoa, que deve ser respeitada em sua individualidade de forma integral e absoluta. Até porque nascemos para sermos felizes e há de chegar o dia em que a infelicidade será considerada apenas uma questão de prefixo, como diria Guimarães Rosa. Referências Bibliográficas: - ABRAMOVAY, M. Juventude e Sexualidade, Brasília, UNESCO Brasil, 2004; - BARROSO, Luiz Roberto, Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil, acessado no site http://pfdc.pgr.mpf.gov.br, no dia 17.7.2009 22 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 - BENTO, Berenice. O que é transexualidade. Ed. Brasiliense,São Paulo, 2008; - BUTLER, Judith, The Psychic Life of Power. Theories in Subjection, Stanford (Califórnia), Stanford University Press, 1997; - CASTRO, Flávia Lages de, História do Direito Geral e do Brasil, 7ª ed. Rio de Janeiro, Lúmen Júris:2009; - GIORGIS, José Carlos Teixeira, Direito de Família Contemporâneo, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2010; - GROENINGA, Giselle Câmara, Direito e Psicanálise – Rumo a uma nova epistemologia, coord. Giselle Câmara Groeninga e Rodrigo da Cunha Pereira, ed. Imago, 2003, Rio de Janeiro; - LÔBO, Paulo, Direito Civil – Famílias, São Paulo: ed. Saraiva, 2ª ed., 2009; - LOUZADA, Ana Maria Gonçalves, Direito das Famílias - em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira, org. Maria Berenice Dias Comentado, São Paulo, ed. RT, 2009; - MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus, Novas Modalidades de Família na Pós-Modernidade, ed. Atlas, São Paulo, 2010; - POCAHY, Fernando, OLIVEIRA, Rosana e IMPERATORI Thaís. Cores e dores do preconceito: entre o boxe e o balé, in Homofobia e Educação, Brasília: ed. UNB, 2009; - RIOS, Roger Raupp. A igualdade de tratamento nas relações de família em A justiça e os direitos de gays e lésbicas. Porto Alegre, Ed. Sulina, 2003; - TURKENICZ, Abraão, A Aventura do Casal, ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1995; - VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti, Manual da Homoafetividade, ed.. Método, Rio de Janeiro, 2008 -www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodridge.html, em julho de 2009 Notas 1 GROENINGA, Giselle Câmara, Direito e Psicanálise – Rumo a uma nova epistemologia, coord. Giselle Câmara Groeninga e Rodrigo da Cunha Pereira, ed. Imago, 2003, Rio de Janeiro, p. 125 2 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti, Manual da Homoafetividade, ed.. Método, Rio de Janeiro, 2008, p. 42 3 Dados obtidos do livro “História do Direito Geral e do Brasil”, Flávia Lages de Castro, 7ª ed. Rio de Janeiro, Lúmen Júris:2009 4 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti, ob. cit. p. 59 5 Ibidem, p.61 6 Acessado pelo www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodridge.html, em julho de 2009 7 LOUZADA, Ana Maria Gonçalves, Direito das Famílias - em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira, org. Maria Berenice Dias Comentado, São Paulo, ed. RT, 2009, p. 246 8 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus, Novas Modalidades de Família na Pós-Modernidade, ed. Atlas, São Paulo, 2010, p. 28 23Revista da Escola da Magistratura - nº 13 9 GROENINGA, Giselle Câmara, op. cit. p. 137 10 LOUZADA, Ana Maria Gonçalves, ob. cit. p. 244 11 Ibidem, p. 247 12 LÔBO, Paulo, Direito Civil – Famílias, São Paulo: ed. Saraiva, 2ª ed., 2009, p. 61 13 POCAHY, Fernando, OLIVEIRA, Rosana e IMPERATORI Thaís. Cores e dores do preconceito: entre o boxe e o balé, in Homofobia e Educação, Brasília: ed. UNB, 2009, p.118 14 BENTO, Berenice. O que é transexualidade. Ed. Brasiliense,São Paulo, 2008, p. 35 15 BUTLER, Judith, The Psychic Life of Power. Theories in Subjection, Stanford (Califórnia), Stanford University Press, 1997, p. 137 16 ABRAMOVAY, M. Juventude e Sexualidade, Brasília, UNESCO Brasil, 2004, p. 29 17 GROENINGA, Giselle Câmara, op. cit. p. 141 18 RIOS, Roger Raupp. A igualdade de tratamento nas relações de família em A justiça e os direitos de gays e lésbicas. Porto Alegre, Ed. Sulina, 2003, p. 191 19 “Na década de 70, nos Estados Unidos, um soldado que havia sido condecorado por bravura na Guerra do Vietnã escreveu ao Secretário da Força Aérea declinando sua condição homossexual. Foi imediatamente expulso da corporação, com desonra. Ao comentar o episódio, o militar produziu uma frase antológica: ‘Deram-se uma medalha por matar dois homens, e uma expulsão por amar outro’.” BARROSO, Luiz Roberto, Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil, acessado no site http://pfdc.pgr.mpf.gov.br, no dia 17.7.2009 20 TURKENICZ, Abraão, A Aventura do Casal, ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1995, p. 5 21 GIORGIS, José Carlos Teixeira, Direito de Família Contemporâneo, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2010, p. 295 ——— • ——— 25Revista da Escola da Magistratura - nº 13 A Sucessão Legítima do Cônjuge no Novo Código Civil Wagner Junqueira Prado Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB. Juiz de Direito no Distrito Federal. 1. INTRODUÇÃO O Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002), que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, trouxe diversas novidades em relação ao tema da sucessão legítima do cônjuge. O cônjuge sobrevivente que, na vigência do Código Civil anterior (Lei nº 3.071/1916), herdava apenas na ausência de descendentes e ascendentes do falecido, passou a ser herdeiro necessário e a concorrer com os descendentes ou ascendentes à herança. A participação do cônjuge como herdeiro, todavia, restou condicionada a certos fatores, como veremos no decorrer deste trabalho. Os dispositivos legais que trouxeram tais novidades, entretanto, apresentam muitas dificuldades interpretativas, gerando diversas dúvidas, o que complica sobremaneira o processo de inventário e partilha, principalmente após o art. 982 do Código de Processo Civil ganhar nova redação, dada pela Lei nº 11.441/2007, passando a permitir que o inventário e a partilha sejam realizados extrajudicialmente, desde que não haja testamento e todos os herdeiros sejam capazes e estejam concordes. Apesar dos numerosos trabalhos doutrinários existentes a respeito da matéria, não se pretende aqui realizar uma compilação das diferentes opiniões esboçadas pelos seus autores, seja para apoiar-se nelas, seja para refutá-las. A ideia é, ao contrário, obter uma interpretação própria, com base exclusivamente na legislação, mas que procure refletir uma coerência do direito sucessório legislado como um todo. Isso explica a carência de referências bibliográficas sobre obras doutrinárias que tratem do direito das sucessões. No presente trabalho, nosso objetivo é buscar uma interpretação coerente e que contempleuma visão holística do direito das sucessões em vigor, ao invés 26 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 de procurar obter uma interpretação meramente individual de cada dispositivo isoladamente, dissociada de uma visão geral, o que poderia conduzir a soluções ilógicas ou desvinculadas dos princípios sucessórios elementares expressos no próprio Código Civil 1 . Dessa forma, esperamos enfrentar as dificuldades existentes na legislação (que não são poucas) e fornecer uma solução para a maioria dos problemas práticos envolvendo a sucessão legítima do cônjuge no Novo Código Civil. 2. O DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE SOBREVIVENTE Inicialmente, vejamos os dizeres dos dois primeiros artigos do Capítulo I do Título II do Livro V da Parte Especial do Novo Código Civil: “Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão uni- versal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais. Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge so- brevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de 2 (dois) anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”. Apesar da ordem dos dispositivos no Código, é conveniente iniciar a nossa análise pelo art. 1830. Ele estipula que o cônjuge sobrevivente, separado judicialmente ou separado de fato há mais de dois anos do cônjuge falecido ao tempo de sua morte (exceto quando a convivência se tornou impossível sem culpa sua), não tem direito sucessório, mesmo na ausência de descendentes e ascendentes (hipótese em que devem herdar os colaterais). Portanto, o cônjuge sobrevivente, para participar da sucessão legítima, não pode estar (1) separado judicialmente do autor da herança nem (2) separado de fato há mais de dois anos ao tempo da morte de seu consorte. Apesar do art. 1.830 fazer referência apenas à separação judicial, o art. 1.124- A do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei nº 11.441/2007, permite que a separação consensual, não havendo filhos menores ou incapazes, seja feita extrajudicialmente. A coerência do sistema exige, portanto, que também não seja reconhecido direito sucessório ao cônjuge separado extrajudicialmente, por escritura pública. Evidentemente, a prova da separação (judicial ou extrajudicial) se faz através da certidão de casamento com a separação averbada. Já a prova do tempo de separação 27Revista da Escola da Magistratura - nº 13 de fato é mais problemática, e pode ser feita documentalmente (por exemplo, através da comprovação de que houve ajuizamento de ação de alimentos por um dos cônjuges contra o outro, motivado pela separação de fato) ou através de testemunhas. Cabe aos descendentes ou aos ascendentes, nos casos dos incisos I e II do art. 1.829, e aos colaterais, no caso de inexistência de descendentes e ascendentes do falecido (inciso III do art. 1.829), arguir a ausência de direito sucessório do cônjuge sobrevivente. Tal alegação deve ser formulada na própria petição inicial do inventário, nas primeiras declarações do inventariante (art. 993 do Código de Processo Civil) ou em forma de impugnação, nos termos do art. 1.000 do Código de Processo Civil, após as primeiras declarações. Os colaterais, que a princípio não são citados para o inventário (art. 999 do mesmo diploma legal), exceto se o inventário for promovido por um deles, ainda poderão, a qualquer tempo, desde que antes da partilha, caso o inventário seja promovido pelo cônjuge sobrevivente, pedir a sua admissão no inventário nos termos do art. 1.001 do Código de Processo Civil. Em caso de impugnação nos termos do art. 1.000 ou de pedido dos colaterais de admissão no inventário nos termos do art. 1.001 do diploma processual, deve o magistrado ouvir a respeito o inventariante e o cônjuge sobrevivente, designar audiência para colher a prova testemunhal, caso haja necessidade, e depois decidir acerca da impugnação ou do pedido. Cabe ao cônjuge sobrevivente, em sua manifestação e sendo o caso, alegar e comprovar documentalmente (ou arrolar testemunhas), na hipótese de mera separação de fato, que a convivência se tornou impossível sem culpa sua. Observe-se que a alegação de inexistência de direito sucessório do cônjuge sobrevivente não constitui matéria de alta indagação, devendo sempre ser decidida nos próprios autos do inventário, seja porque a separação judicial ou de fato pode ser comprovada documentalmente, seja porque quando a existência e data da separação de fato tiverem que ser comprovadas por testemunhas, a prova oral a ser produzida é bastante simples. Da mesma maneira, havendo alegação do cônjuge sobrevivente, em caso de mera separação de fato, de que a convivência se tornou impossível sem culpa sua, ainda que a prova não possa ser feita documentalmente, a prova oral a respeito também é de simples produção. Não há necessidade, portanto, de remessa da questão aos meios ordinários. No sistema anterior, o cônjuge era apenas meeiro, jamais concorrendo na sucessão com os descendentes ou ascendentes do autor da herança. Segundo o art. 1.611 do Código Civil anterior (Lei nº 3.071/1916), o cônjuge era herdeiro legítimo apenas na ausência de descendentes e ascendentes, se ao tempo da morte do outro não estava dissolvida a sociedade conjugal 2 , hipótese em que lhe cabia a totalidade da herança. Mas não era herdeiro necessário. Por essa razão, e na ausência de descendentes e ascendentes, o testador podia excluí-lo da herança testando todo o seu patrimônio. No novo Código Civil, passando o cônjuge a ter o status de herdeiro necessário (art. 1.845), e concorrendo na sucessão com os descendentes ou ascendentes do falecido (art. 1.829, incisos I e II), houve a necessidade de se estipular outra hipótese em que não se reconhece direito sucessório ao cônjuge sobrevivente: a da separação de fato. É que, no Brasil, principalmente nas comunidades mais carentes e com maior dificuldade de acesso à justiça, é muito comum a pessoa permanecer separada de 28 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 fato de seu cônjuge por longo período (até mesmo por décadas) sem providenciar o divórcio, mesmo depois de formar outro núcleo familiar, através da união estável. Evidentemente que, em casos tais, não seria coerente permitir que o cônjuge figurasse como herdeiro legítimo, pois inexistente qualquer vínculo afetivo entre ele e o autor da herança. Se o relacionamento (vida afetiva) do casal já estava rompido, seja pela separação judicial, seja pela separação de fato, há necessidade realmente de exclusão da qualidade de herdeiro do cônjuge. Todavia, andou mal o legislador ao exigir, para exclusão do direito sucessório do cônjuge, uma separação de fato por prazo superior a dois anos. Entendemos que seria mais coerente estabelecer simplesmente a separação de fato, sem qualquer prazo. É que, nos termos do art. 1.723, § 1º, do Novo Código Civil, mesmo casada, mas estando separada judicialmente ou de fato (independentemente de qualquer prazo), a pessoa pode constituir união estável. Portanto, no sistema em vigor, é possível que alguém, separado de fato do cônjuge há menos de dois anos, constitua união estável com terceiro, vindo posteriormente a falecer. Nessa hipótese, o texto legal do art. 1.830 permite ao cônjuge sobrevivente pleitear a qualidade de herdeiro, ao mesmo tempo em que o companheiro, nos termos do art. 1.790 do mesmo diploma legal, também está autorizado a herdar. Não há coerênciaem se permitir que essas duas pessoas (cônjuge e companheiro) figurem como herdeiros ao mesmo tempo, já que, antes de seu falecimento, o autor da herança não tinha mais vínculo afetivo com seu cônjuge, em virtude da separação de fato, vínculo esse que, à época de sua morte, existia somente em relação ao companheiro. Em nosso entender, se existe união estável com terceiro posterior à separação de fato do cônjuge, independentemente do prazo dessa separação de fato, por uma questão de coerência e integridade no direito, o cônjuge perde a qualidade de herdeiro legítimo necessário, devendo participar do inventário apenas na qualidade de meeiro dos bens comuns, adquiridos anteriormente à separação de fato. O companheiro, além de meeiro dos bens adquiridos onerosamente no curso da união estável (em virtude do regime de bens adotado na hipótese, por força do art. 1.725 do Código Civil), figuraria como herdeiro desses mesmos bens, nos termos do art. 1.790 do Código Civil. Do contrário, teríamos que aceitar a abusiva hipótese do cônjuge sobrevivente herdar parte dos bens adquiridos onerosamente pelo autor da herança na vigência de união estável posterior à separação de fato (bens particulares do falecido, em relação ao cônjuge; porém, bens comuns, em relação ao companheiro) 3 . Na inexistência de união estável posterior à separação de fato, todavia, permanece o cônjuge sobrevivente com direito sucessório, se no momento do óbito o tempo de separação de fato não era superior a dois anos. Também não se houve bem o legislador ao permitir ao cônjuge separado de fato manter o direito sucessório quando não tiver culpa na separação de fato. É que, se nem mesmo na ação de separação judicial se permite atualmente a perquirição da culpa, também não faz sentido a apuração da culpa exclusivamente para fins sucessórios. Estaria melhor o art. 1.830 se se limitasse a estabelecer a separação de fato como causa de exclusão do direito sucessório do cônjuge, sem abordar a questão da culpa do cônjuge supérstite. 29Revista da Escola da Magistratura - nº 13 Possuindo o cônjuge sobrevivente direito sucessório, nos termos do art. 1.830 do Código Civil, além da meação decorrente do regime de bens do casamento, ele ainda poderá figurar como herdeiro necessário 4 , em concorrência com os descendentes ou ascendentes do autor da herança. 3. O CÔNJUGE SOBREVIVENTE CONCORRENDO COM OS DESCENDEN- TES DO FALECIDO Voltemo-nos agora ao art. 1.829 e seu inciso I do Código Civil. Segundo tais dispositivos, a sucessão legítima defere-se primeiramente aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, desde, é claro, que o cônjuge possua direito sucessório, nos termos do já analisado art. 1.830. O inciso I do art. 1.829, porém, traz outros requisitos para que o cônjuge supérstite possa herdar, ao excluí-lo da sucessão quando: (1) casado com o falecido sob o regime da comunhão universal; (2) casado com o falecido sob o regime da separação obrigatória de bens; (3) casado com o falecido sob o regime da comunhão parcial, quando o autor da herança não houver deixado bens particulares. As duas primeiras hipóteses não comportam maior debate. No regime da comunhão universal, comunicam-se todos os bens adquiridos pelos cônjuges, antes ou depois do casamento (art. 1.667 do Código Civil). Assim, como o cônjuge supérstite já é meeiro de todos os bens adquiridos pelo falecido, ainda que anteriormente ao casamento, não há necessidade de protegê-lo na sucessão, atribuindo-lhe quinhão na herança, pois de qualquer maneira ele já é detentor de metade do patrimônio total do casal. Já no regime da separação obrigatória de bens, aplicável nas hipóteses de (1) casamento contraído com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento, (2) casamento de pessoa maior de 60 anos e (3) casamento de pessoa que dependeu de suprimento judicial (art. 1.641 do Código Civil), é a própria lei que obriga os contraentes a administrarem com exclusividade os seus bens particulares, adquiridos anteriormente ao casamento (art. 1.687 do Código Civil). Assim, não seria coerente, na dissolução do casamento pela morte de um dos cônjuges, que o outro pudesse herdar parte do patrimônio particular do falecido, já que o regime da separação obrigatória de bens tinha o objetivo oposto, ou seja, impedir que os bens particulares de um cônjuge se comunicassem ao patrimônio do outro. Vale ressaltar que o inciso I do art. 1.829 fez remissão equivocada ao art. 1.640, parágrafo único, já que as hipóteses de obrigatoriedade de adoção do regime da separação de bens estão descritas, na verdade, no art. 1.641 do Código Civil. Estranhamente, ao excluir expressamente da qualidade de herdeiro, em concorrência com os descendentes, o cônjuge supérstite casado com o falecido no regime da separação obrigatória de bens, o art. 1.829, inciso I, permite que o cônjuge casado sob tal regime não em virtude de obrigação legal, mas por opção do casal (separação convencional de bens), ocupe a qualidade de herdeiro. É uma incongruência da lei, já que, se o próprio Código Civil, em seu art. 1.640, parágrafo único 5 , permite que os contraentes optem pelo regime da separação de bens, não deveria agora, após a 30 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 morte de um dos cônjuges, aquinhoar o outro com parte na herança, em concorrência com os descendentes, já que isso obviamente contraria o objetivo do casal ao optar por aquele regime. Não cabe aqui, todavia, qualquer interpretação restritiva que possa prejudicar o cônjuge casado sob o regime da separação convencional de bens, sendo recomendável, no entanto, alteração legislativa que venha a suprimir a palavra “obrigatória” no inciso I do art. 1.829, a fim de melhorar a coerência do sistema. O ponto nevrálgico é, sem dúvida, a situação do cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial. Lembre-se que, no Brasil, na quase totalidade dos casamentos celebrados a partir da vigência da Lei nº 6.515/1977 (Lei do Divórcio), que modificou o art. 258 do Código Civil de 1916 6 , foi adotado o regime da comunhão parcial. O Novo Código Civil continua adotando o regime da comunhão parcial como regime legal de bens, na ausência de estipulação em contrário pelos cônjuges 7 . De acordo com o art. 1.829, inciso I, e apesar da péssima redação do dispositivo, acreditamos que o fator mais importante a ser analisado não é a estranha pontuação utilizada pelo legislador, mas sim a finalidade da norma, que é, sem dúvida, proteger o cônjuge sobrevivente em determinada situação, aumentando-lhe o patrimônio através da atribuição de quinhão na herança. A melhor interpretação, portanto, é a de que o cônjuge supérstite, casado com o autor da herança sob o regime da comunhão parcial, e desde que possua direito sucessório (art. 1.830), só concorre à herança com os descendentes caso o falecido tenha deixado bens particulares. Evidentemente, na ausência de bens particulares do falecido, não é necessário atribuir ao viúvo o status de herdeiro, pelas mesmas razões já expostas quando tratamos do regime da comunhão universal: é que a meação do cônjuge sobrevivente, nesse caso, já é equivalente à metade de todos os bens do casal (ou até superior, caso ele próprio possua bens particulares), não havendo necessidade de protegê-lo na sucessão. Ao contrário, havendo bens particulares do falecido (adquiridos anteriormente ao casamento, ou recebidos em virtude de doação ou sucessão), e sendo tais bens de valor significativo, a meação do cônjuge supérstite será proporcionalmente pequena em relação à totalidade dos bens do casal. Nessa hipótese, é perfeitamente justificável a intenção da lei de aquinhoar o cônjuge sobrevivente, como forma de proteção patrimonial, evitando que ele permaneça apenas com a sua meação, que poderia ser, comparada ao patrimôniototal do casal, ínfima ou desproporcional, incapaz de manter o seu padrão de vida após a viuvez. Por outro lado, todavia, caso os bens particulares deixados pelo autor da herança sejam de pequeno valor, em comparação com o montante dos bens pertencentes ao casal, ou se, ao contrário, é o viúvo quem possui bens particulares de valor significativo, o cônjuge sobrevivente ficará em vantagem despropositada na partilha dos bens, ao figurar como meeiro e herdeiro, ainda que ausente qualquer necessidade protetiva, em prejuízo, portanto, dos descendentes, que terão seu quinhão reduzido injustamente. Esse, infelizmente, é o preço a pagar pela fórmula açodada que o legislador adotou, e cujo objetivo é aumentar o amparo patrimonial do cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão parcial, mas que pode, em certos casos, aumentar indevidamente o patrimônio de quem não precisa dessa proteção. Caberá, portanto, à jurisprudência, nos casos em que a aplicação do dispositivo venha provocar uma situação contrária à 31Revista da Escola da Magistratura - nº 13 pretendida pela finalidade da norma, optar pela sua não utilização, a fim de manter a coerência e integridade do sistema. Apesar da redação do dispositivo exigir que o falecido tenha deixado “bens particulares” (no plural), entendemos que, por uma questão de coerência do sistema, basta que o falecido tenha deixado um único bem particular para que o cônjuge supérstite, casado sob o regime da comunhão parcial, possa concorrer à sucessão com os descendentes. Observe-se que um único bem particular autor da herança pode ter valor superior à totalidade dos aquestos. Nos demais regimes de bens (de participação final nos aquestos ou dotal, este último no caso de casamento celebrado sob a vigência do antigo Código Civil), o cônjuge, possuindo direito sucessório (art. 1.830), é sempre herdeiro em concorrência com os descendentes. Evidentemente, e não havendo no art. 1.829 nenhuma restrição, o quinhão de herança do cônjuge sobrevivente, da mesma maneira que o dos demais herdeiros necessários, recai sobre a totalidade da herança, formada pela meação do falecido sobre os bens comuns do casal e pelos seus bens particulares, sobre os quais o viúvo não possui meação, em decorrência do regime de bens do casamento (de comunhão parcial, de separação convencional, de participação final nos aquestos ou dotal, este último celebrado na vigência do Código Civil anterior). A interpretação realizada por parte da doutrina, no sentido de que o quinhão do cônjuge supérstite não recai sobre a totalidade do monte, mas apenas sobre os bens particulares do falecido, não encontra amparo algum na lei. Todos os herdeiros legítimos, constantes do rol do art. 1.829, participam da partilha de todos os bens do espólio, à exceção dos legados. É o que prevê o art. 1.788 do Código Civil: “Art. 1.788. Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo”. Além disso, o art. 1.832 do Código Civil 8 estipula, como regra, que concorrendo com os descendentes, caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça. Evidentemente, não será possível respeitar tal disposição atribuindo-se quinhão aos herdeiros sobre a totalidade dos bens passíveis de sucessão legítima e quinhão ao viúvo incidente apenas sobre parte daquele acervo (os bens particulares do falecido). O art. 1.829 não formulou nenhuma exceção à regra geral, de que o quinhão recai sobre todos os bens não testados, que possa ser aplicada ao cônjuge sobrevivente. Pelo contrário, a referência do inciso I à existência de bens particulares do falecido serve apenas para conferir ao viúvo, casado sob o regime da comunhão parcial, a qualidade de herdeiro concorrente, jamais para limitar o quinhão do cônjuge, qualquer que seja o regime de bens do casamento (exceto, evidentemente, os da comunhão universal e da separação obrigatória de bens, em que o cônjuge não é herdeiro concorrente por expressa disposição legal), aos bens particulares deixados pelo autor da herança. Entender o contrário seria permitir, por absurdo, que o companheiro pudesse vir a ter um tratamento mais afortunado que o cônjuge no tocante à herança 9 (quando 32 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 os bens comuns totalizarem valor muito superior aos bens particulares do falecido), já que o quinhão daquele recai exclusivamente sobre os bens comuns (art. 1.790 do Código Civil). Por esse motivo também, entendemos que o quinhão do cônjuge, casado sob regime de bens que lhe permita herdar concorrendo com os descendentes do falecido, deve incidir sobre todos os bens do espólio (comuns e particulares). Resta esclarecer que não estamos sustentando aqui que o cônjuge merece tratamento privilegiado em relação ao companheiro no tocante à sucessão, mas apenas buscando a interpretação mais coerente dentre as possíveis na hipótese. Desde a Constituição Federal de 1988, passando pelas Leis de nº 8.971/1994 e 9.278/1996, e agora pelo Novo Código Civil, a legislação tem buscado garantir, cada vez mais, os direitos daqueles que vivem em união estável. Se ainda não chegamos à situação ideal, ou se o Novo Código Civil acabou suprimindo direitos sucessórios anteriormente materializados nas Leis de nº 8.971/1994 e 9.278/1996, é possível sustentar que a legislação deve evoluir no sentido de equiparar a situação do companheiro à do cônjuge em relação aos direitos sucessórios. Não é possível, porém, a nosso ver, afirmar que, em determinadas situações, o companheiro pode receber tratamento privilegiado em relação ao cônjuge no tocante à sucessão, pois tal interpretação é portadora de inconfundível incoerência, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista sistemático, violando qualquer integridade que se pretenda atribuir ao sistema. Por fim, vale acrescentar que o legislador atribuiu ao cônjuge supérstite não somente a condição de herdeiro concorrente com os descendentes (art. 1.829, inciso I), mas também a condição de herdeiro necessário (art. 1.845). Dessa forma, não pode o intérprete trilhar o caminho de, como regra, privilegiar o interesse dos descendentes em relação ao do cônjuge (por exemplo, reduzindo o monte sobre o qual recai a herança do viúvo), sem que a lei expressamente o permita, sob pena de estar agindo na contramão do que pretendeu o legislador. Se for assim, melhor seria retornarmos ao sistema do Código Civil de 1916, em que o cônjuge, além de não ser considerado herdeiro necessário, somente herdava na ausência de descendentes e ascendentes, jamais concorrendo com eles à sucessão. Situação bem diferente é a do companheiro que, nos termos do art. 1.790, também é herdeiro legítimo (apesar da estranha localização que o legislador deu a esse dispositivo), mas seu quinhão incide apenas sobre a meação do falecido nos bens adquiridos onerosamente durante a união estável. Note-se, ainda, que como o companheiro não é herdeiro necessário (conforme o art. 1.845 do Código Civil), nada impede que o testador o exclua da sucessão legítima, dispondo da metade de seu patrimônio, se houver herdeiros necessários, ou da totalidade, não os havendo. Observe-se que, havendo herdeiros necessários, eles possuem direito, nos termos do art. 1.846 do Código Civil, à metade dos bens da herança (legítima). Se o testador dispôs da outra metade sem contemplar o companheiro, nada lhe caberá nos termos do art. 1.790, pois o companheiro não poderá ter quinhão incidindo sobre a legítima dos herdeiros necessários, sob pena de redução da legítima e violação ao art. 1.846. Essa é a solução apresentada pela conjugação dos arts. 1.790, 1.845 e 1.846 do Código Civil. Não foi boa, todavia, a opção legislativa.Seria melhor se o legislador, suprimindo o art. 1.790, incluísse o companheiro no art. 1.829, tratando cônjuge e companheiro da mesma maneira no tocante à sucessão legítima. 33Revista da Escola da Magistratura - nº 13 Não é recomendável, todavia, a inclusão do companheiro no rol dos herdeiros necessários constante do art. 1.845, mas sim a retirada dessa qualidade do cônjuge, pelas razões que ainda teremos oportunidade de expor 10 . O tema da sucessão legítima do companheiro, todavia, é matéria para outro trabalho. Sobre o tema deste item, resta analisar o art. 1.832 do Código Civil, que dispõe: “Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer”. A regra, portanto, é de que cabe ao cônjuge sobrevivente a mesma fração da herança atribuída aos demais herdeiros que sucedem por direito próprio (por cabeça). Assim, concorrendo com filhos do falecido (sejam também filhos seus ou não), caberá ao cônjuge ¼ da herança, havendo três filhos, 1/3 da herança, havendo dois filhos, e metade da herança, havendo apenas um filho. Por exceção, a parte final do dispositivo atribuiu ao cônjuge supérstite uma quota mínima de ¼ da herança, desde que ele seja ascendente de todos os herdeiros com que concorrer, ou seja, desde que não existam descendentes exclusivos do falecido concorrendo à sucessão. Nesse caso, havendo quatro filhos do casal, caberá ¼ da herança ao cônjuge, e 3/16 a cada um dos filhos; havendo cinco filhos do casal, caberá ¼ da herança ao cônjuge, e 3/20 a cada um dos filhos; havendo seis filhos do casal, caberá ¼ da herança ao cônjuge, e 3/24 a cada um dos filhos; e assim sucessivamente. Havendo, todavia, pelo menos um descendente exclusivo do falecido, não se podendo aplicar a exceção, aplica-se a regra geral da primeira parte do artigo. Não comungamos, portanto, da opinião de que o legislador esqueceu-se de prever a hipótese de existência de descendentes comuns e exclusivos do autor da herança concorrendo com o cônjuge supérstite à sucessão. Na verdade, o art. 1.832 é bastante claro ao atribuir, por exceção, uma quota mínima da herança ao viúvo somente na hipótese de concorrência à sucessão exclusivamente com descendentes comuns, não se podendo falar em quota mínima do cônjuge quando houver pelo menos um descendente exclusivo do falecido, restando ao cônjuge, nessa hipótese, a aplicação da regra geral, atribuindo-lhe quota igual a dos herdeiros que sucederem por cabeça. É princípio básico do direito sucessório que os herdeiros que ocupam a mesma categoria devem receber o mesmo quinhão na herança. O Novo Código Civil, a respeito do tema, estipula: “Art. 1.834. Os descendentes da mesma classe têm os mesmos direi- tos à sucessão de seus ascendentes”. Esse dispositivo afasta, por absoluta incoerência com o sistema, qualquer interpretação que, garantindo uma fração mínima da herança ao cônjuge sobrevivente, 34 Revista da Escola da Magistratura - nº 13 permita que os descendentes comuns e os descendentes exclusivos do falecido, ocupantes da mesma classe (filhos, por exemplo), recebam quinhões desiguais. Considerando, todavia, a possibilidade do testador destinar parte do patrimônio a título de sucessão testamentária, deve-se interpretar a palavra “herança”, constante do art. 1.832, como sendo a parte da herança sujeita à sucessão legítima. Dessa maneira, a quota mínima do cônjuge, caso concorra exclusivamente com seus descendentes, não é a quarta parte da herança, mas sim a quarta parte do montante passível de sucessão legítima. Se aplicássemos aqui uma interpretação literal, tendo o falecido testado metade da herança, e cabendo ao cônjuge sobrevivente ¼ da mesma (25% do total da herança), restariam aos filhos comuns apenas ¼ do total, para ser entre eles dividido. Em nossa opinião, não foi boa ideia estabelecer, ainda que por exceção, uma quota mínima em favor do viúvo. É que o número de descendentes comuns do casal é variável, de forma que é impossível ao legislador estabelecer uma quota fixa que reflita uma situação justa em qualquer hipótese. Seria melhor suprimir do art. 1.832 a parte final, ou seja, a exceção da quota mínima, mantendo exclusivamente a regra contida na primeira parte. 4. O CÔNJUGE SOBREVIVENTE CONCORRENDO COM OS ASCENDEN- TES DO FALECIDO Inexistindo descendentes do autor da herança, o cônjuge sobrevivente possuidor de direito sucessório (nos termos do art. 1.830) concorre na sucessão com os ascendentes (arts. 1.829, inciso II, e 1.836, ambos do Novo Código Civil). Note-se que, ao contrário da hipótese anterior (concorrência com os descendentes), o cônjuge supérstite agora herda qualquer que seja o regime de bens do casamento. Nos termos do art. 1.837 do Código Civil, se concorrer com ascendente em primeiro grau (pais do falecido), caberá ao cônjuge sobrevivente um terço da herança. Porém, se houver um só ascendente, ou se for maior aquele grau (avós do falecido), caberá ao cônjuge metade da herança. Na última hipótese, a outra metade da herança ainda deverá ser dividida entre os ascendentes da linha paterna e da linha materna do falecido (art. 1.836, § 2º, do Novo Código Civil), à razão de 25% do espólio para cada linha (já que os outros 50% cabem ao cônjuge sobrevivente). Observe-se que a divisão aqui não é por cabeça entre os ascendentes de segundo grau ou superior, mas por linha. Apenas dentro de cada linha é que a divisão é por cabeça (por exemplo, entre o avô e a avó maternos). Não existe direito de representação na classe dos ascendentes, de forma que o grau mais próximo exclui o mais remoto, sem distinção de linhas (art. 1.836, § 1º, do Novo Código Civil). Não havendo descendentes nem ascendentes do falecido no momento da abertura da sucessão, ao cônjuge sobrevivente, desde que possua direito sucessório (art. 1.830 do Novo Código Civil), caberá a totalidade da herança (arts. 1.829, inciso III, e 1.838, ambos do mesmo diploma legal). 35Revista da Escola da Magistratura - nº 13 Se o cônjuge sobrevivente não tiver direito sucessório, a totalidade da herança caberá aos colaterais até o quarto grau (art. 1.839 do Código Civil). 5. O CÔNJUGE COMO HERDEIRO NECESSÁRIO Estipula o Novo Código Civil: “Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascenden- tes e o cônjuge”. É importante ressaltar que, apesar do teor do dispositivo, o cônjuge sobrevivente nem sempre é herdeiro necessário. Somente possuirá esse status o cônjuge que tiver direito sucessório 11 (art. 1.830) e, se concorrer com os descendentes do falecido (art. 1.829, inciso I), o regime de bens do casamento também o permitir 12 . Concorrendo, ao contrário, com ascendentes do falecido, e tendo direito sucessório, nos termos do art. 1.830, independentemente do regime de bens do casamento, o cônjuge será herdeiro necessário. Portanto, não nos parece correto incluir o cônjuge no rol dos herdeiros necessários, já que, para ser herdeiro, deverá ele preencher os requisitos dos arts. 1.829, inciso I, e 1.830 do Código Civil, requisitos esses que não se aplicam aos demais herdeiros necessários. Assim, os descendentes e ascendentes sempre terão assegurada a sua participação na sucessão legítima, enquanto que a concorrência do cônjuge fica condicionada a certos fatores. Assim, seria mais lógico e coerente excluir o cônjuge do art. 1.845, já que nem sempre ele poderá participar da sucessão legítima. 6. O DIREITO REAL DE HABITAÇÃO A respeito do tema, o Novo Código Civil estipula que: “Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente
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