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Fundamentos Teóricos e Metodológicos Márcia Teixeira Sebastiani 2.ª edição 2009 IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. © 2003-2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza- ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Inmagine CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S449f Sebastiani, Márcia Teixeira Fundamentos teóricos e metodológicos da educação infantil/ Márcia Teixeira Sebastiani. 2. ed. – Curitiba, PR: IESDE, 2009. 284 p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-0391-4 1. Educação pré-escolar – Brasil. 2. Educação de crianças. 3. Professores – For- mação. I. Título. 09-2992 CDD: 372.21 CDU: 372.3 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com bolsa sanduíche na Università Statale di Milano – Milão; Mestre em Educação pela Unicamp; Graduada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Márcia Teixeira Sebastiani Sumário Condições para a qualidade ................................................. 13 Escolhas políticas ....................................................................................................................... 14 Legislação e definição de normas ....................................................................................... 15 Financiamento e recursos ...................................................................................................... 15 Planejamento e controle ........................................................................................................ 16 Consultoria e suporte técnico ............................................................................................... 16 Profissionais ................................................................................................................................. 17 Formação e aperfeiçoamento profissional ...................................................................... 17 Estrutura física ............................................................................................................................ 18 Pesquisa e desenvolvimento ................................................................................................. 19 Integração e coordenação de serviços .............................................................................. 20 Indicadores da qualidade ...................................................... 25 Acessibilidade e utilização dos serviços ............................................................................ 25 Ambiente físico .......................................................................................................................... 25 Atividades de aprendizagem ................................................................................................ 26 Sistemas de relações ................................................................................................................ 27 Ponto de vista dos pais ............................................................................................................ 27 Comunidade (bairro) ................................................................................................................ 28 Avaliação da diversidade ........................................................................................................ 28 Avaliação das crianças ............................................................................................................. 29 Relação custo-benefício .......................................................................................................... 29 Valores éticos .............................................................................................................................. 30 A ideia de infância e a sua escola ....................................... 35 Primeira identidade: “a criança-adulto” ou a infância negada ................................... 35 Segunda identidade: a criança-filho-aluno ou a infância institucionalizada ...... 39 Terceira identidade: a criança-sujeito social, sujeito de direitos .............................. 40 Função da instituição de Educação Infantil: educar e cuidar .................................... 41 A história das creches ............................................................. 47 Surge a creche na Europa e nos Estados Unidos ........................................................... 48 Surge a creche no Brasil .......................................................................................................... 49 A organização do espaço na Educação Infantil – I ....... 63 Concepções de desenvolvimento e sua influência na organização dos ambientes ............................................................................................ 63 Elementos contextuais ............................................................................................................ 66 Elementos pessoais .................................................................................................................. 71 A organização do espaço na Educação Infantil – II ...... 75 Critérios para uma adequada organização dos espaços da sala de aula .............. 75 Funções da organização do ambiente............................................................................... 78 Uma experiência: creche em Reggio Emilia..................................................................... 79 Estudos sobre arranjo espacial ............................................................................................. 80 A rotina na Educação Infantil ............................................... 87 Atividades de organização coletiva .................................................................................... 89 Atividades de cuidado pessoal ............................................................................................. 91 Atividades dirigidas .................................................................................................................. 93 Atividades livres (isto é, menos dirigidas pelo professor) ........................................... 94 Elaboração da proposta pedagógica: Diretrizes Curriculares Nacionais ........................................ 97 Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil .......................................................107 O planejamento das atividades na Educação Infantil ..............................................................119 Itens da programação ............................................................................................................122 Laboratório da comunicação ..............................................................................................123 Laboratório do ambiente .....................................................................................................124 Laboratório da lógica .............................................................................................................124 Laboratório do corpo .............................................................................................................125 A mala do aprendiz de feiticeiro ........................................................................................126 A mala do confeiteiro .............................................................................................................126 A programação dos cantinhos ou oficinas .....................................................................127 O trabalho com projetos ......................................................133A inserção da criança na creche ........................................147 Pressupostos teóricos ............................................................................................................152 Objetivos de uma boa inserção..........................................................................................152 Estratégias (apresentadas segundo ordem cronológica em que são realizadas) ...................................................................153 O trabalho coletivo dos profissionais ...............................................................................154 Jogos e brincadeiras ..............................................................159 O que é brincar para a criança? ..........................................................................................159 O papel do professor ..............................................................................................................165 A disciplina na Educação Infantil ......................................171 Regras de convivência ...........................................................................................................171 Castigos e recompensas .......................................................................................................174 Summerhill ................................................................................................................................174 As políticas de formação de professores para a Educação Infantil .......................................................181 A formação do professor .....................................................197 Como aprender a conhecer e a pensar ...........................................................................197 Como aprender a fazer ..........................................................................................................201 Como aprender a viver com os outros ............................................................................202 Como aprender a ser ..............................................................................................................205 Conclusão ...................................................................................................................................208 A participação da família .....................................................215 Formas de trabalho da creche com a família ................................................................218 A gestão social .........................................................................229 Educação de crianças com necessidades especiais ...............................................243 Necessidade de um projeto didático ...............................................................................244 Necessidade de uma dupla reestruturação ...................................................................244 Integração da equipe .............................................................................................................245 Algumas dificuldades ............................................................................................................246 Transformação da prática pedagógica ...........................255 Gabarito .....................................................................................265 Referências ................................................................................277 Apresentação Caros alunos e alunas Pensar em Educação Infantil no Brasil é projetar e realizar a construção de base necessária ao caminho do desenvolvimento da nossa sociedade. É, portanto, uma questão fundamental, é um desafio e, como tal, é preciso acreditar e lutar. Impossível imaginar uma sociedade, hoje desenvolvida, que não tenha passado pelo caminho da construção e universalização da educação. Para isso, as sociedades definiram como prioridade a educação das suas crianças e foram necessários investimentos, em especial públi- cos, em infraestrutura física, mas, sem dúvida, o grande investimento foi o da formação de profissionais da área. E esse é o nosso propósito. Minha formação inicial em magistério de nível médio e, após, a rea- lização do curso de Pedagogia já apontavam para esse caminho. Minha prática profissional me aproximou mais da realidade da Educação Infantil. Segui trabalhando e estudando e, na Pós-Graduação, Mestrado e Douto- rado, aprofundei meus conhecimentos na área, tendo tido a oportunida- de de conhecer uma realidade social cujos avanços na Educação Infantil têm reconhecimento internacional. Hoje penso que minha tarefa como educadora e cidadã é a de repassar o conhecimento acumulado e aprender mais com a prática das pessoas com quem convivo. Temos em comum a vontade em ampliar conheci- mento na área da Educação Infantil e, com isso, avançar nas nossas prá- ticas pedagógicas. Esse é o nosso compromisso e nossa responsabilidade na construção de um país desenvolvido e com inclusão social, a começar pela formação das crianças pequenas. Um grande abraço, Márcia Teixeira Sebastiani Vamos iniciar o nosso estudo com alguns critérios que considero fun- damentais para a análise da qualidade da Educação Infantil. Minha pers- pectiva é a de alcançarmos, pelo esforço dos educadores e da sociedade, padrões mais elevados de qualidade. Inicialmente, é importante explicitar a nomenclatura usada para a Edu- cação Infantil. A Constituição Federal do nosso país definiu Educação In- fantil como sendo a primeira etapa da educação básica, atendendo crian- ças de 0 a 3 anos em creches e de 4 a 6 anos em pré-escolas. Em 6 de fevereiro de 2006, a Lei 11.274 alterou o artigo 32 da LDB e determinou: “O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão[...]” Assim, com a instituição do ensino fundamental de 9 anos de dura- ção e a sua consequente inclusão das crianças de 6 anos de idade, as pré- -escolas passaram a atender apenas crianças de 4 e 5 anos. O termo qualidade é sempre discutido e, apesar de ser reconhecida a sua importância, ainda falta clareza sobre o que realmente significa quali- dade quando se trata de Educação Infantil. Educadores europeus preocupados com as condições dos serviços para as crianças de 0 a 6 anos reuniram-se e organizaram dois eventos marcantes: o primeiro em 1986, constituindo a Rede para a Infância da Comunidade Europeia, e outro em 1990, quando realizaram o seminário Qualidade nos Serviços para a Infância. A partir daí, analisaram a qualida- de da Educação Infantil a partir de três perspectivas: a das crianças, a dos pais e a dos pesquisadores/educadores. Daquele seminário resultou a estruturação de um documento definin- do os critérios para a análise da qualidade. Como se explicita no documen- to, em outras palavras, não se trata de uma receita, de um modelo a ser seguido rigorosamente, e sim parâmetros de análise e roteiro de definição da qualidade. Condições para a qualidade 14 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil O documento divide-se em duas partes: condições para a qualidade e indica- dores da qualidade. Nessa aula, trataremos das condições para a qualidade. O grupo de educadores da Comunidade Europeia definiu como condições para a qualidade os itens que serão explicados a seguir, separadamente. É im- portante lembrar que os itens não estão colocados em ordem de prioridade e também que apresentam forte correlação entre eles, ou seja, não são questões isoladas. Parte-se do pressuposto de que a qualidade na creche corresponde “à oportunidade igual para todas as crianças com relação ao acesso a esse serviço”; reforça-se, assim, o comprometimento e a responsabilidade das estruturas pú- blicas na concretizaçãodesse direito da criança. Vamos aos critérios que corres- pondem às condições para a qualidade, analisando, em alguns itens e de forma geral, a Educação Infantil no Brasil. Escolhas políticas Esse item significa a prioridade efetiva da Educação Infantil no rol das políti- cas públicas desenvolvidas pelos governos. É, assim, questão importante para ser observada e definida como condição de qualidade. Hoje, no Brasil, a infância é sempre destaque quando se trata de diagnósticos da situação social do país, porém, há uma grande distância entre os problemas que se observam, o que se declara em realizar e o que se realiza. O assunto está continuamente na pauta de candidatos a cargos públicos, os quais declaram suas concepções e apresentam suas propostas, que nem sempre são cumpridas. Apresentam publicamente conceitos, como: o retrato da infância, mostrando o grau de importância e a compreensão que se tem das necessidades infantis; o papel da creche e da mulher na nossa sociedade; a função do setor público em relação à oferta desse serviço. A verificação da efetiva prioridade da Educação Infantil na mesma extensão das necessidades e dos compromissos políticos assumidos é, portanto, uma questão de qualidade a ser observada. O sistema de Educação Infantil no Brasil é misto: composto por iniciativas públicas e privadas que representam parte significativa na organização dos serviços para a infância. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), nas suas Disposições Transitórias, artigo 89, define que todas as creches e pré-escolas deveriam, no prazo de três anos (até dezembro de 1999), estar integradas aos seus respectivos sistemas de ensino. Isso significa que as creches e pré-escolas Condições para a qualidade 15 públicas devem ser de responsabilidade das Secretarias Municipais de Educação. Essa mudança, definida em lei, acabou acontecendo de forma lenta e ultrapas- sando em muito o prazo previamente definido. Legislação e definição de normas As Leis e Normas para a Educação Infantil devem refletir as escolhas políticas já declaradas e serem organizadas de forma não fragmentada; definir os pode- res jurídicos e responsabilidades dos níveis federal, estadual e municipal; devem fixar objetivos que possibilitem a garantia da oferta de serviços de qualidade; ser aplicadas igualmente para o setor público e privado; prever sanções quando não forem respeitadas; definir com precisão as finalidades educativas da creche/ pré-escola. Em termos de elaboração de leis, pode-se dizer que durante as décadas de 1980 e 1990 foi dado um “grande salto” e nossa preocupação agora, está voltada para o cumprimento daquilo que já foi decidido. Financiamento e recursos Assunto sempre difícil e polêmico, trata-se da definição de valores que serão aplicados em creches/pré-escolas. Qualidade exige recursos financeiros, não só para o investimento em instalações, mas também para despesas de manutenção. É certo que não basta a aplicação de grande volume de recursos financeiros, é preciso imprimir padrões de eficiência, evitando desperdícios e superposições de ações. Especificamente na rede pública, é importante que nós, como educa- dores e cidadãos, tenhamos conhecimento e acompanhemos os gastos. Quando há compartimentalização dos serviços, somada à administração, ge- ralmente pouco funcional e estruturada em moldes burocráticos, há também dificuldade para que exista planejamento, racionalização e transparência dos valores aplicados, fato muito próximo da realidade da grande maioria dos mu- nicípios brasileiros. A responsabilidade pelos gastos da creche depende de como cada uma foi organizada e por quem está sendo gerida, o que resulta em inúmeras formas de manutenção desse serviço. 16 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil Planejamento e controle Os planos são a tradução das “escolhas políticas” em práticas cotidianas. A questão do planejamento deve estar necessariamente associada ao controle. Como exemplo, podemos verificar o organograma da Secretaria responsável (que deve, pela legislação, ser a da Educação), o custo e localização da constru- ção de novas creches (ou mesmo reformas e ampliações) e o planejamento e controle dos materiais e gêneros alimentícios para a instalação e manutenção da creche. O planejamento é a transformação das ideias e compromissos em propostas organizadas e devidamente estudadas, de acordo com as possibilidades e a rea- lidade existente. Ainda, após estudos, é necessário conhecer a realidade na qual se quer atuar, analisar as condições de atuação, para, assim, definir os objetivos a serem alcançados e o prazo que levará. Também há a necessidade constante de avaliação, não apenas dos resultados, mas também do próprio processo de execução dos planos. As condições da existência desses procedimentos são pa- râmetros para observação da qualidade. Consultoria e suporte técnico Quando se visa à qualificação de todo e qualquer serviço que se realiza, é muito importante a possibilidade de contratar serviços essenciais sempre que surgem determinadas questões que requerem o envolvimento de profissionais especializados para a sua discussão e devido encaminhamento. Para a Educação Infantil, não se deve abrir exceções dessa natureza. Por exemplo, fonoaudiolo- gia, fisioterapia, arquitetura etc. Não há necessidade da inclusão de outros técnicos na creche, mas especia- listas que prestem serviços, ou seja, que contribuam no sentido de ensinar e orientar os educadores, realizando um trabalho integrado. Esses serviços não precisam ser realizados por um só profissional: é comum ocorrerem convênios, integração de diversos órgãos oficiais, por meio de progra- mas de formação e aperfeiçoamento profissional. À medida que as necessidades vão surgindo (e variam de acordo com cada realidade), vão sendo encontradas formas que possibilitam a integração de outros conhecimentos, mais específi- cos. Essa integração deve ser flexível, porém planejada, estruturada e avaliada. Condições para a qualidade 17 No Brasil, serviços de consultoria em creches não são, ainda, uma prática muito difundida. Profissionais Trata-se das pessoas que desenvolvem suas tarefas voltadas para a realização de um objetivo comum: o atendimento à criança. Têm papel fundamental os professores, mas também os profissionais que não estão ligados diretamente às crianças, como quem cozinha, limpa e vigia a creche. Essas pessoas, além do desenvolvimento da suas tarefas específicas, devem também ser consideradas como participantes no projeto educativo, devendo ter consciência das finalida- des da creche, conhecimento e compreensão dos significados das programa- ções, pois têm papel relevante na sua dinâmica. Esses profissionais devem ter identidade profissional reconhecida pelo nome, formação e função. Ter estabelecidas condições mínimas de trabalho, que são: remuneração, horas de trabalho, número de adultos por criança, processos de seleção para o cargo, oportunidade de desenvolvimento na carreira, substitui- ção, tempo de descanso etc. Formação e aperfeiçoamento profissional Ainda é frequente a equivocada concepção de que a mulher possui, natural- mente, as habilidades necessárias para a educação de crianças pequenas, por- tanto, não há necessidade de formação específica para o trabalho em institui- ções de Educação Infantil. Além da formação, e por haver um desnivelamento de conhecimentos, é de grande valor a atualização/aperfeiçoamento como prática nos sistemas de Edu- cação Infantil. Há, como em toda e qualquer profissão especializada, a necessi- dade de acompanhar a contínua revisão das teorias e das propostas, nesse caso educativas, e de estar atento às mudanças que ocorrem em nossa sociedade para poder acompanhá-las. O aperfeiçoamento deve ser encarado não como uma mera transmissãoe aquisição de conhecimentos e técnicas, mas como transformação de tais conhe- cimentos em atividades educativas. Deve fazer parte da programação, ocorren- do periodicamente, como pode também se constituir em um trabalho cotidiano, 18 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil que tem como base constantes discussões em grupo, a programação de seu pró- prio trabalho (com objetivos precisos), a avaliação dos resultados e, consequen- temente, reflexões e reformulações sempre que necessário. Nesse processo de aperfeiçoamento, a atuação da coordenação pedagógica é fator determinante na qualidade (a ideia de “formador de formadores”). Deve-se organizar os programas de aperfeiçoamento, definindo os temas, a forma como serão trabalhados e verificando constantemente a adequação da proposta. Isso requer o conhecimento das necessidades de formação quanto à satisfação dos desejos dos educadores, de forma que sejam estimulados não só os interesses explicitados como também aqueles que ainda estão latentes. Pode-se elaborar e definir planos anuais de aperfeiçoamento, prevendo tra- balhos realizados por experts no assunto, daí a importância do contato contínuo entre a coordenação pedagógica, faculdades, fundações e institutos que desen- volvem pesquisas e estudos sobre temas da Educação Infantil. A programação dos eventos de aperfeiçoamento deve ter toda a divulgação possível na comunidade, no bairro e, em particular, junto às famílias das crianças. É muito importante que se saiba do trabalho que está sendo realizado na creche, inclusive dos assuntos tratados nos cursos de aperfeiçoamento com os profis- sionais, para que a comunidade seja informada sobre o processo de qualificação que vem ocorrendo. Estrutura física A concepção do espaço físico não é fruto de uma visão neutra, mas é deter- minada e retrata a cultura e o conhecimento daqueles que a projetam. E, como outros itens, é ponto importante na perspectiva da qualidade da Educação In- fantil. O projeto arquitetônico de uma creche responde à proposta educativa que se objetiva para as crianças. Não há soluções únicas e prontas. Cada criança e cada grupo de crianças se constituem em um mundo diferente de todos os outros e, consequentemente, manifestam-se de modos diferentes. Na arquitetura dos espaços físicos da creche, deve-se observar as caracterís- ticas físicas e sociais da região, o clima, o entorno, as condições de espaço e de localização. Condições para a qualidade 19 Na condição de qualidade é importante, o projeto e sua execução partirem da discussão realizada em grupo com diferentes profissionais, como arquitetos, pedagogos, professores, administradores e outros. Porém, é primordial que eles tenham como pontos básicos a satisfação das necessidades das crianças e dos adultos, o favorecimento à integração entre adultos e crianças e entre as pró- prias crianças, a conciliação de exigências das crianças para momentos de livre exploração, de socialização e de isolamento voluntário. Não se pode apenas considerar o aspecto da construção, mas também a or- ganização interna dos espaços, como móveis, tapetes, sofás, materiais didáticos, brinquedos etc. Deve-se ter em vista o equilíbrio entre “cheio” e “vazio”, evitando espaços lotados e inviáveis, ou espaços muito vazios, anônimos, privados de es- timulação e de referências. Nos espaços externos, deve-se levar em conta a promoção de experiências e de satisfazer as diferentes exigências das crianças, considerando as condições para o movimento, a exploração, a concentração, as diversas modalidades de agregação e socialização. Pesquisa e desenvolvimento Os órgãos responsáveis pela gestão das creches precisam estar constante- mente envolvidos com execução de pesquisas, valorizando a importância da reflexão e da utilização de conhecimentos produzidos. Por ser uma instituição relativamente recente, a creche necessita de mais in- formações e de um conhecimento mais aprofundado. De outro lado, produz cul- tura e é campo privilegiado de pesquisa para estudiosos das áreas sociais e, em especial, do desenvolvimento infantil. Pesquisas baseadas fundamentalmente na observação possibilitaram a mo- dificação de algumas teorias, como, por exemplo, o desenvolvimento social da criança, as modalidades de interação entre criança-adulto e criança-criança, as relações de apego etc. Assim, reforça-se a ideia da creche como um verdadeiro laboratório ou um observatório privilegiado, lugar onde é possível colher elementos inéditos sobre o desenvolvimento infantil, e seus resultados podem ser introduzidos na própria creche visando à melhoria na qualidade do processo educacional. 20 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil Integração e coordenação de serviços É necessário adotar uma política voltada para a melhoria das condições de vida da criança, na qual os serviços direcionados à satisfação das necessidades infantis precisam estar integrados entre si para que não afetem a qualidade de vida da criança. O que se quer dizer com isso é que a política para a infância não pode estar desvinculada da política sanitária, do trabalho, da cultura etc. Entretanto, deve- -se prevenir a dispersão dos serviços que possibilitem perder o foco fundamen- tal da creche, que é a educação. Texto complementar Sugestões de critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças (ROSEMBERG; CAMPOS, 1994) Este documento compõe-se de duas partes. A primeira contém critérios relativos à definição de diretrizes e normas políticas, programas e sistemas de financiamento de creches, tanto governamentais como não governa- mentais. A segunda inclui critérios relativos à organização e funcionamento interno das creches, que dizem respeito principalmente às práticas concre- tas adotadas no trabalho direto com as crianças. Os pressupostos do documento baseiam-se em três áreas de conheci- mento e ação: dados sistematizados e não sistematizados sobre a situação concreta vivida no cotidiano da maioria das creches brasileiras que atendem à criança pobre; o estado do conhecimento sobre o desenvolvimento infantil em contextos alternativos à família, no Brasil e em países mais desenvolvi- dos, que vem trazendo contribuições importantes para o entendimento do significado das interações e das vivências da criança pequena e o papel que desempenham em seu desenvolvimento psicológico, físico, social e cultural; discussões nacionais e internacionais sobre os direitos das crianças. Condições para a qualidade 21 Os critérios foram redigidos no sentido positivo, afirmando compromis- sos dos políticos e dos educadores de cada creche com um atendimento de qualidade, voltado para as necessidades fundamentais da criança. Dessa forma, podem ser adotados ao mesmo tempo como um roteiro para implan- tação e avaliação e um termo de responsabilidade. Atingir, concreta e objetivamente um patamar mínimo de qualidade que respeite a dignidade e os direitos básicos das crianças, nas instituições onde muitas delas vivem a maior parte de sua infância, nos parece, nesse momento, o objetivo mais urgente. Este documento procura contribuir para essa meta. Critérios para políticas e programas de creche (a política de creche respeita a criança): a política de creche respeita direitos fundamentais da criança; � a política de creche está comprometida com o bem-estar da criança; � a política de creche reconhece que as crianças têm direito a um ambi- � ente aconchegante e seguro; a política de creche reconhece que as crianças têm direito à saúde; � a política de creche reconhece que as crianças têm direito à higiene e � à alimentação; a política de creche reconhece que as crianças têm direito à brinca- � deira; a política de creche reconhece que as criançastêm direito ao contato � com a natureza. Critérios para a unidade creche (esta creche respeita a criança): nossas crianças têm direito à brincadeira; � nossas crianças têm direito à atenção individual; � nossas crianças têm direito a um ambiente aconchegante e seguro; � nossas crianças têm direito ao contato com a natureza; � nossas crianças têm direito à higiene e à saúde; � 22 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil nossas crianças têm direito a uma alimentação sadia; � nossas crianças têm direito a desenvolver sua curiosidade e imaginação; � nossas crianças têm direito ao movimento em espaços amplos; � nossas crianças têm direito à proteção, ao afeto e à amizade; � nossas crianças têm direito a expressar seus sentimentos; � nossas crianças têm direito a uma especial atenção durante seu perío- � do de adaptação à creche; nossas crianças têm direito a desenvolver sua identidade cultural, ra- � cial e religiosa. Dicas de estudo Não deixe de ler o Plano Nacional pela Primeira Infância 2009-2022. Trata-se de um esboço político e técnico, elaborado pela Rede Nacional Primeira Infância para subsidiar a construção e aprovação de um Plano Nacional pela Primeira In- fância. Pretende orientar durante os próximos quatorze anos a ação do governo e da sociedade civil na defesa, promoção e realização dos direitos da criança de até seis anos de idade. Você pode encontrar a última versão no site: <www.primeirainfancia.org. br/502> ou <www.andi.org.br/_pdfs/plano_nacional_pela_primeira_infancia. pdf>. Se você deseja conhecer as ações de promoção aos direitos das crianças e adolescentes, acesse o Portal da Criança e do Adolescente que é fruto de uma parceria entre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Co- nanda) com a Rede ANDI Brasil: <www.direitosdacrianca.org.br/institucional/>. Existe ainda o site: <www.worldbank.org/children/> que comenta o desen- volvimento da primeira infância e os benefícios que as intervenções podem trazer para as crianças. Ressalta os projetos subsidiados pelo Banco Mundial. Es- crito em inglês, mas apresenta possibilidade de versão em espanhol. Condições para a qualidade 23 Atividades 1. Analisando as políticas voltadas para a infância brasileira, o que você perce- be que é declarado, mas não é realizado? 2. Justifique a importância do aperfeiçoamento/atualização para os profissio- nais da Educação Infantil. Nesta aula apresentaremos os indicadores da qualidade que determi- nam aspectos dos serviços de uma creche/pré-escola e permitem a aná- lise do nível de qualidade da instituição, servindo como parâmetros para o planejamento e intervenção. Tal como os itens relacionados às condições de qualidade, os indicado- res apresentados a seguir não guardam ordem de prioridade e têm entre si forte correlação. Acessibilidade e utilização dos serviços Indica o nível de atendimento da demanda de creches na quantidade e localização exigidas pela sociedade. Devido à situação de pobreza em que vive parcela significativa da po- pulação brasileira, em especial as crianças, a questão do acesso precisa ser vista com atenção. A creche é um direito de toda criança, mas o poder público vem tendo dificuldade em cumprir a sua obrigação constitucional e precisa, nessa circunstância, priorizar suas vagas para as crianças prove- nientes de famílias de menor poder socioeconômico. Há, assim, necessidade de planejamento com relação aos locais onde serão construídas as creches e seleção criteriosa e democrática das crian- ças que poderão ser matriculadas. Creches com modelos organizativos muito rígidos tendem a excluir as famílias que não conseguem responder às suas exigências. Ambiente físico A análise do ambiente considera as condições de luminosidade e are- jamento, a estética, a segurança, a adequação e funcionalidade dos ambi- entes de serviço e aspectos da promoção da saúde infantil. Indicadores da qualidade 26 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil Não é possível indicar categoricamente como deve ser a estruturação dos espaços da creche/pré-escola. O ambiente é um verdadeiro “organismo vivo”: nasce, cresce e muda, e ao mesmo tempo é único e “irrepetível”. Podemos relacionar critérios para que o ambiente possa proporcionar condições de desenvolvimento e segurança da criança: dimensão das salas; � organização dos materiais e dos espaços; � espaço individual para as crianças guardarem seus pertences; � organização de laboratórios/centros de interesse/cantos/áreas/oficinas/ � ateliês, sempre de acordo com a programação; ser rico em estímulos e propostas (cuidado com a poluição); � nunca fixados definitivamente; � é preciso haver trocas com os outros grupos da creche/pré-escola. � Enfim, a organização do espaço e do tempo engloba todos os momentos da crian ça durante o dia, constituindo-se em oportunidade de importantes inter- venções educativas. Atividades de aprendizagem A creche/pré-escola, considerada como espaço privilegiado de educação e desenvolvimento da criança, precisa reconhecer o valor e a importância de uma programação educativa. É fundamental a elaboração de um projeto pedagógico que contemple a concepção de creche, de criança e de seu desenvolvimento, dando atenção espe cial quanto à escolha dos instrumentos da ação educativa, dos projetos a serem desenvolvidos, dos jogos e materiais lúdicos/didáticos, e quanto às rela- ções interpessoais. Vejamos alguns indicadores que se apresentam em uma programação educativa: permanência e mudança; � privacidade e sociabilidade; � Indicadores da qualidade 27 sequencialidade e imprevisibilidade; � ação e formalização/simbolização. � Consideram-se como atividades de aprendizagem aquelas que favorecem o de- senvolvimento cognitivo, afetivo e social da criança. Portanto, todas as atividades realizadas na creche são atividades de aprendizagem, inclusive as ações de rotina. Sistemas de relações Pesquisas mostram que a criança, desde bem pequena, é capaz de estabele- cer relações com o ambiente em que vive, ou seja, com as pessoas, os objetos e os eventos. Quanto mais elaborado e rico for o sistema de relações, mais a crian- ça terá oportunidade de aprender e crescer. A creche é um universo social complexo e o equilíbrio das relações é funda- mental, bem como a qualidade das trocas e a definição dos papéis. A relação adulto-criança, em particular, não pode ser natural ou casual e pre- cisa ser considerada e prevista. O adulto é figura significativa e crucial, ponto de referência, e precisa ser um interlocutor ativo. Na relação criança-criança, por sua vez, ela aprende a estabelecer interações de prazer com outras crianças. É uma relação que dificilmente ocorre sem con- flitos e negociações, porém, permite descobrir as diferenças e as similaridades. É nessa relação que se aprende o que significa cooperação e se desfruta de impor- tantes momentos de troca. Por fim, a relação adulto-adulto envolve grande variedade de interações, po- dendo ocorrer na creche ou no ambiente familiar. Constitui o “fundo” que torna possível e conota significativamente as outras duas dimensões relacionais. Ponto de vista dos pais O termo pais não faz distinção entre pai ou mãe e também pode ser represen- tado por qualquer outra pessoa da família que se sinta e aja como responsável pela criança. A questão da relação com a família é ponto fundamental em um projeto autenticamente pedagógico. A participação dos pais é a base para que haja um conhecimento articulado e amplo sobre as crianças, nas suas diversas situações de vida. 28 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil Apesar da sua importância, essa relação entre pais e educadores é bastante complexa. Envolve expectativas, atribuições,interpretações que nem sempre são explicitadas. É comum gerar conflitos por medo de julgamentos, disputas sobre quem sabe mais sobre a criança, sentimentos de culpa (pais) e superiori- dade (educadores). É preciso maturidade profissional. O professor deve tornar possível o estabe- lecimento de uma comunicação com as famílias, cuja base está na consciência do educador a respeito do seu papel nessa relação: o colaborador, o clarificador, o comunicador atento, o ouvidor incansável. É preciso buscar permanentemente caminhos para alcançar a compreensão recíproca entre pais e educadores. Deve-se criar novas formas de encontros e o investimento na formação profissional visando a esses objetivos. Comunidade (bairro) O ambiente em que a creche está inserida é também considerado como fator integrante do processo educativo. A creche é um equipamento de educação e, portanto, incluída no contexto de um sistema formativo. Requer a sua articula- ção no bairro com as demais instituições/oportunidades/serviços, sejam esses públicos ou privados, de caráter social ou comercial. Essa articulação pode ser direta: inserção na própria programação de momentos específicos, nos quais se utilizam os recursos disponíveis de cada comunidade; e indireta: conhecimento da utilização que cada criança faz desses recursos oferecidos pela comunidade e sensibilização/estímulo aos pais e filhos para que usufruam, de maneira ade- quada, dessas ofertas. Deve-se ter como perspectiva a gestão social como forma de gerir a creche com a participação dos educadores, das famílias e dos representantes da comu- nidade. Isso contribui para a construção da imagem da creche enquanto uma instituição social e educativa de grande relevância, e também enquanto um equipamento que pertence a essa comunidade. Avaliação da diversidade Nos termos da Constituição Federal, todas as crianças de zero a seis anos têm o direito à educação. Não há qualquer discriminação com relação à origem de classe e etnia, cultura, sexo, religião ou condição física. Indicadores da qualidade 29 As diversidades existem e não devem ser ocultadas, ao contrário, precisam ser conhecidas para serem compreendidas e devidamente trabalhadas. Por exemplo, as diferenças culturais podem ser consideradas como um recurso para a educação da cidadania e deveriam ser incluídas no projeto educacional da creche. Crianças com necessidades especiais, tais como as portadoras de deficiência física, devem ter na creche todas as condições necessárias para que se desen- volvam o máximo possível e para que possam estabelecer favoráveis relações interpessoais. Há necessidade de um trabalho integrado com as famílias e com todos os recursos externos disponíveis, de acordo com o tipo de deficiência de cada criança. A creche precisa repensar a sua organização conforme as necessidades espe- ciais de cada criança. Avaliação das crianças Avaliar é saber ler e interpretar os comportamentos das crianças e, assim, melhor estabelecer as orientações da programação educativa. A avaliação é ato de conhecimento e de reconhecimento de valores e tem como base a subjetivi- dade. Portanto, não existe uma única forma de avaliar. Para que a avaliação se torne acreditável o máximo possível, pode-se definir alguns critérios: autoconsciência, saber ouvir o outro, observar, solicitar a co- laboração da criança, deixar claro as intenções, estar atento sobre o perigo dos instrumentos e o equívoco das mensurações. Uma interessante sugestão é construir um fascículo histórico pessoal de cada criança, uma linha documentada do percurso seguido pela criança na formação de sua identidade pessoal e cultural, um retrato da sua qualidade, das suas com- petências e das suas potencialidades. Relação custo-benefício O importante é analisar a relação custo-benefício de um ponto de vista mais amplo, qualitativo mesmo, e não simplesmente utilizar tabelas econômico- -financeiras, de receitas e despesas. Identificar e calcular benefícios é tarefa que demanda esforço, portanto, esse é um indicador difícil de ser determinado, mas deve ser planejado e estruturado no sentido de buscar o grau de desenvolvi- 30 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil mento das crianças, de satisfação das famílias, da comunidade e dos profissio- nais envolvidos. Valores éticos Os princípios éticos de referência e o sistema adotado para a organização e a gestão da creche/pré-escola constituem pontos de equilíbrio de todos os indi- cadores da qualidade. Quanto maior for a coerência entre programação, organização dos serviços e os valores definidos, mais fácil é alcançar bons níveis de qualidade. Devido à sua subjetividade, esse é também um indicador difícil de ser determinado. Texto complementar Pré-escola impulsiona o saber Estudo do MEC comprova a importância da educação infantil no Brasil. Crian- ças que passaram pela creche têm melhor desempenho em matemática (GAZETA DO POVO, 2008) Crianças que cursam a educação infantil têm melhores notas em matemática nas avaliações feitas pelo Ministério da Educação quando chegam à 4.ª série. O fato de frequentar a creche e a pré-escola faz com que o aluno evolua em um ano de escolaridade. Com isso, seus conhecimentos passam a equivaler ao da média dos estudantes da 5.ª série. Em algumas regiões, como no Sudeste, o efeito é ainda maior, e as crianças demonstram desempenho compatível ao da 7.ª série. Os resultados fazem parte do estudo “O Efeito da Educação Infantil sobre o Desempenho Escolar medido em Exames Padronizados”, elaborado pela consultora do MEC Fabiana de Felício e pela economista do Banco Itaú, Ligia Vasconcellos. A pesquisa – que trata de crianças entre 0 e 5 anos – é uma das primeiras no Brasil a confirmar numericamente a relevância desse nível Indicadores da qualidade 31 de ensino, defendido há anos por educadores. Efeitos semelhantes já foram identificados em outros países. Segundo Fabiana, os resultados seriam parecidos se fosse analisado o de- sempenho em português. “O impacto é ainda maior em matemática do que em português porque, de um jeito ou de outro, as crianças acabam tendo contato com a linguagem em casa”, diz a pesquisadora. O estudo analisou os resultados das crianças de 4.ª série, apenas de escolas públicas, no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e na Prova Brasil. O primeiro é um exame de matemática e português feito por amostra- gem pelo MEC há mais de dez anos. O segundo existe desde 2005 e é re- alizado com crianças de 4.ª a 8.ª séries de toda a rede pública nas mesmas disciplinas. As provas analisadas foram feitas em 2003 e em 2005. A evolução da criança em uma ou mais séries não é algo fora do normal ou além do que seria adequado para a idade. Isso porque o conhecimento demonstrado pelos alunos de 4.ª série hoje está longe de ser considerado ideal. Especialistas afirmam que aos 10 anos (4.ª série) elas deveriam ter nota equivalente ao que se registra na 8.ª série do país. “A educação infantil ajuda justamente nisso. As políticas públicas precisam dar importância a esse nível de ensino”, diz Fabiana. O estudo mostra o efeito da educação infantil não só no Saeb como também na Prova Brasil e Saeb juntos. No segundo caso, o impacto é maior. Crianças que passaram por esse nível obtiveram em média 15,9 pontos a mais que as demais. Segundo os resultados atuais nas duas avaliações, 44 pontos separam o desempenho das crianças de 4.ª série das de 8.ª, ou seja, a cada 11 pontos a mais, o aluno evolui um ano. A região Norte foi a que registrou efeito menor. Estimativas feitas na pesquisa mostram ainda que, se todas as crian- ças brasileiras tivessem frequentado a educação infantil, a média seria de 180,5 pontos: quase 15 pontos acima do desempenho que seria registrado se nenhuma criança tivesse acesso àcreche e à pré-escola. “O desenvol- vimento cognitivo, emocional, psicológico e social da criança entre 0 e 5 anos é crucial para a aprendizagem futura”, diz a coordenadora de educa- ção do Unicef no Brasil, Maria Salete Silva. Segundo ela, a educação infantil aparece em 36 das 37 redes de ensino do país selecionadas no estudo que aponta bons exemplos. 32 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil Défice Atualmente, cerca de 6,5 milhões de crianças frequentam a educação in- fantil no Brasil. O atendimento em creches equivale a só 15% da população de 0 a 3 anos – a meta no país, por lei, é chegar a 50%. Na pré-escola, são 67%. Só em São Paulo, apesar de o número diminuir a cada ano, há 120 mil crianças na fila por uma vaga. A educação infantil ganhou essa denominação a partir da Lei de Dire- trizes e Bases da Educação, de 1996. Antes disso, as creches faziam parte da assistência social dos municípios. Mas isso só começou a sair do papel perto de 2000. Em São Paulo, apenas em 2002 elas foram transferidas para a Edu- cação. As mudanças foram, em parte, influenciadas por resultados de pes- quisas científicas mostrando que é na primeira infância que ocorre o maior desenvolvimento do cérebro. Dicas de estudo Sobre critérios de qualidade, é importante você conhecer os Parâmetros Na- cionais de Qualidade para a Educação Infantil, publicados pelo MEC, em 2006. São dois volumes que contém referências de qualidade para a Educação Infantil a serem utilizadas pelos sistemas educacionais de forma a promoverem a igual- dade de oportunidades educacionais, levando em consideração diferenças, di- versidades e desigualdades do território brasileiro. Acesse o site: <http://portal. mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/eduinfparqualvol1.pdf>. Também é muito interessante conhecer o documento Integração das Institui- ções de Educação Infantil aos Sistemas de Ensino – um estudo de caso de cinco mu- nicípios que assumiram desafios e realizaram conquistas. Publicado pelo MEC, em 2002, visa subsidiar as secretarias e os conselhos na efetivação da integração das creches aos sistemas municipais de ensino, realizando um atendimento de qua- lidade às crianças brasileiras de zero a seis anos de idade. Acesse o site: <http:// www.oei.es/inicial/politica/integracion_instituciones_infantil_brasil.pdf>. Indicadores da qualidade 33 Atividades 1. Por que as creches com modelos organizativos muito rígidos tendem a ex- cluir as famílias? 2. Por que “o ponto de vista dos pais” é considerado um indicador de quali- dade? Para apresentar essa questão, vamos fazer uma breve, mas consistente, incursão na História da Infância. A referência para essa discussão é o importante historiador francês Philippe Ariès que, na sua obra História Social da Criança e da Família (1978), dedica-se às concepções de criança e de família, da Idade Média aos dias atuais. Tendo como base essa obra de Ariès, o educador italiano Franco Frabboni, em seu texto a “Escola Infantil entre a Cultura da Infância e a Ciência Pedagógica e Didáticas”, organiza o entendimento histórico da criança por meio de três identidades: Primeira identidade – Criança-adulto ou infância negada – séculos � XIV, XV. Segunda identidade – Criança-filho-aluno ou a criança-instituciona- � lizada – séculos XVI, XVII. Terceira identidade – Criança-sujeito social ou sujeito de direitos – � século XX. Primeira identidade: “a criança-adulto” ou a infância negada Philippe Ariès foi buscar nas artes e na literatura da época medieval a ideia que prevalecia sobre a criança e a infância. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo.” (ARIÈS, 1978, p. 50). O autor ainda afirma que as crianças eram desenhadas como o adulto em escala menor, com músculos e feições de adultos. A ideia de infância e a sua escola 36 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil Vamos ver alguns exemplos de como eram retratadas as crianças: Pieter Bruegel em seu quadro Visita à Quinta, confirma o que já afirmava Ariès: as feições do menino que está em pé são as mesmas de um adulto, apenas em escala menor (representa- ção de apenas uma parte do quadro). D om ín io p úb lic o. É difícil imaginar a existência, na sociedade medieval, de um sentimento de infância. A criança era ao mesmo tempo um mistério (“escondia uma natureza sagrada que o homem não podia profanar”) e um ser sem humanidade, sem conceito social preciso (“humanidade na lista de espera, como planta imperfei- ta”) que só se tornaria pessoa se “jogada e abandonada” precocemente na socie- dade dos adultos. Nesta outra imagem, que retrata um am- biente doméstico da Idade Média, há uma criança aprendendo a andar com o auxílio de um “andador”. Podemos ver que se trata mais uma vez, da fisionomia de um adulto (representação de parte da obra Miniatura de um Livro de Horas). D om ín io p úb lic o. As crianças morriam em grande número pelas precárias condições de higiene e saúde, e as que sobreviviam confundiam-se rapidamente com os adultos. Essa A ideia de infância e a sua escola 37 mortalidade infantil era considerada natural (indiferente): talvez pelo grande número de mortes, talvez porque se acreditasse que a criança pequena não tinha “alma”. Sobre a prática do infanticídio na Idade Média, assim nos ensina Ariès (1978, p. 17): [...] um fenômeno muito importante e que começa a ser mais conhecido: a persistência até o fim do século XVII do infanticídio tolerado. Não se tratava de uma prática aceita, como a exposição em Roma. O infanticídio era um crime severamente punido. No entanto, era praticado em segredo, correntemente, talvez, camuflado, sob a forma de um acidente: as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais, onde dormiam. Não se fazia nada para conservá-las ou para salvá-las [...]. O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado, mas tampouco era considerado com vergonha. Fazia parte das coisas moralmente neutras, condenadas pela ética da Igreja e do Estado, mas praticadas em segredo, numa semiconsciência, no limite da vontade, do esquecimento e da falta de jeito. De outro lado, existia um sentimento superficial da criança, a “paparicação” em seus primeiros anos de vida. As pessoas se divertiam com a criança pequena como com um animal de estimação. Ariès (1978, p. 159) dizia que “esse sentimento da infância pode ser ainda melhor percebido através das reações críticas que provocou: [...] algumas pes- soas rabugentas consideravam insuportável a atenção que se dispensava então às crianças [...]”. Vejamos um testemunho desse estado de espírito, por meio de uma canção escrita por Coulanges e dedicada aos “pais de família”: (ARIÈS, 1978, p.160-161) Para bem educar vossas crianças, Não poupeis o preceptor; Mas, até que elas cresçam, Fazei-as calar quando estiverem entre adultos, Pois nada aborrece tanto Como escutar as crianças dos outros. O Pai cego acredita sempre Que seu filho diz coisas inteligentes, Mas os outros, que só ouvem bobagens, Gostariam de ser surdos; 38 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil E no entanto é preciso Aplaudir o enfant gâté. Quando alguém vos disser por polidez Que vosso filho é bonito e bem comportado, Ou lhe der balas, Não exijais mais nada Fazei vosso filho, assim como seu preceptor, Agir como um servidor. Ninguém acreditaria que uma pessoa de bom senso Pudesse escrever Para criancinhas de três anos, Se as de quatro não sabem ler.No entanto, há pouco tempo, Vi um pai entregue a essa tola diversão. Sabei ainda, caros amigos, Que nada é mais insuportável do que ver vossos filhinhos, Pendurados na mesa como uma réstia de cebolas, Moleques que, com o queixo engordurado, Enfiam o dedo em todos os pratos. Que eles comam em outro lugar, Sob as vistas de uma governanta Que lhes ensine a limpeza E não seja indulgente, Pois não se pode com rapidez Aprender a comer com limpeza. Ainda sobre a “paparicação”, podemos dizer que mesmo atualmente tem-se um tanto desse sentimento, principalmente quando muitas escolas de Educa- ção Infantil guardam referência a essa criança relacionada a um animalzinho de estimação, um mimo dos adultos. Isso se percebe através dos nomes que são dados a essas escolas: Pirilampo, Ursinho Pimpão, Totó, Fofinhos e tantos outros. A ideia de infância e a sua escola 39 Podemos concluir que, nesse período, essa identidade da criança está defi- nida pelo não sentimento de infância, o que não quer dizer que não havia afeto pelas crianças, ou que na totalidade eram abandonadas ou desprezadas, mas sim que não havia uma consciência da particularidade infantil, ou seja, não se distinguia a criança do adulto. Segunda identidade: a criança-filho-aluno ou a infância institucionalizada Esse período compreende os séculos XVI e XVII quando inicia-se um novo episódio existencial da infância. Há, segundo Frabboni (1998), “uma virada de página”. Junto com a Revolução Industrial, há uma mudança da posição da famí- lia na socie dade. É o surgimento da família moderna. A infância torna-se o centro do interesse educativo dos adultos (sentimentos de afetividade, cuidados, reco- nhecimento, continuidade da família). Citando Ariès: Os pais não se contentavam mais em pôr filhos no mundo, em estabelecer apenas alguns deles, desinteressando-se dos outros. A moral da época lhes impunha proporcionar a todos os filhos, e não apenas ao mais velho – e, no fim do século XVII, até mesmo às meninas – uma preparação para a vida. Ficou convencionado que essa preparação fosse assegurada pela escola. (1978, p. 277) A escola é o meio de educação. Isso quer dizer que a criança deixou de apren- der a vida por meio do contato direto com os adultos. Ela foi separada dos adul- tos próximos (basicamente familiares) e mantida à distância na escola. Começa um longo processo de “enclausuramento” das crianças. Ainda Ariès (1978, p. 277): “A escola confinou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada vez mais rigoroso, que nos séculos XVIII e XIX resultou no enclausuramento total do internato”. Nesse período, as ordens religiosas torna- ram-se dedicadas ao ensino às crianças e aos jovens. Passou-se a ter interesses psicológicos e preocupações morais em relação às crianças. Era preciso conhecê-las melhor para, assim, poder “corrigi-las”. Duas ideias novas surgem ao mesmo tempo: a noção da fraqueza da infância e o sentimento da responsabilidade moral dos mestres. O sistema disciplinar que elas postulavam não se podia enraizar na antiga escola medieval, onde o mestre não se interessava pelo comportamento de seus alunos fora da sala de aula. [...] A nova disciplina se introduziria através da organização já moderna dos colégios e pedagogias com a série completa de classes em que o diretor e os mestres deixavam de ser primi inter pares, para se tornarem depositários de uma autoridade superior. Seria o governo autoritário e hierarquizado dos colégios que permitiria, a partir do século XV, o estabelecimento e o desenvolvimento de um sistema disciplinar cada vez 40 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil mais rigoroso. Para definir esse sistema, distinguiremos suas três características principais: a vigilância constante, a delação erigida em princípio de governo e em instituição, e a aplicação ampla de castigos corporais. (ARIÈS, 1978, p. 180) Em relação à família, esta tornou-se o centro de afeição entre pais e filhos, algo que não era antes. E um sentimento inteiramente novo: os pais se interes- savam pelos estudos de seus filhos e os acompanhavam com intensidade. A fa- mília começou a se organizar em torno da criança, sem a indiferença que marcou o passado. Um detalhe interessante, que pode ser percebido nas camadas sociais supe- riores, é que as crianças ganharam roupa específica que as distinguia dos adul- tos. Era uma prova da mudança ocorrida na atitude com relação a elas. Também o reduto familiar torna-se cada vez mais privado e progressivamen- te assume funções antes preenchidas pela comunidade. Observe-se que a famí- lia não é nova, mas, sim, o sentimento de família é que muda. Desse período, concluímos que a criança paga um preço alto pela conquis- ta da sua identidade de criança filho-aluno. Como diz Frabboni (1998, p. 67): é a criança institucionalizada, “[...] o direito de ser criança (de ter atenções-grati- ficações-espaços-jogos) é legitimado somente sob a condição de pertencer a este tipo de família e a este tipo de escola.” Isto é, somente na estrutura de re- lações de propriedade e de poder. “A criança existe somente como minha, tua, nossa, sua criança, ou seja, dentro de uma estreita privatização de relações e de definições”. Terceira identidade: a criança-sujeito social, sujeito de direitos Podemos começar perguntando: quem é a criança de hoje? Quando obser- vamos nossas crianças, podemos dizer que, apesar da semelhança cronológica, existem diferentes infâncias: a da criança pertencente a uma família com nível socioeconômico alto, � que brinca e estuda, mas tem uma rotina preenchida com inúmeras ativi- dades (esportes, estudo de línguas estrangeiras, artes etc.); a da criança que participa da formação de renda da família e por isso tra- � balha e nem sempre pode estudar; A ideia de infância e a sua escola 41 a da criança que, nas grandes cidades, acompanha os adultos ou até mes- � mo outras crianças, e fica pedindo esmolas ou cometendo pequenas in- frações; a da criança que ajuda o pai ou a mãe nas tarefas diárias de casa ou do � trabalho, aprendendo desde cedo uma profissão. Todas são crianças, porém suas situações de socialização, condições de vida, tempo de escolarização, de brincadeiras e de trabalho são diferentes. É funda- mental que tenhamos consciência dessas diferenças para que saibamos conhe- cer melhor as crianças com quem convivemos e com quem, como educadores, temos responsabilidades. A etapa histórica em que estamos vivendo, marcada pelo avanço tecnológi- co-científico e por mudanças ético-sociais, apresenta os requisitos necessários para que finalmente a Educação Infantil dê um salto no sentido de compreender a criança como sujeito social e, portanto, um sujeito com direitos. Essa mudança só será possível se a família e a escola forem capazes de com- preender, seguindo o pensamento de Frabboni (1998, p. 69), que a criança é: [...] séria, concentrada, empenhada em ampliar – por si mesma – seus próprios horizontes de conhecimento (através de uma constante atividade exploradora e interrogativa); [...] que possui grande voracidade ‘cognitiva’ e saboreia uma descoberta após a outra, e que escolhe sozinha seus próprios itinerários formativos, suas trilhas culturais, livre dos elos que impediam o seu crescimento; [...] sabe observar o mundo que a cerca; sabe perscrutar e sonhar com horizontes longínquos; [...] sai do mito e da fábula porque sabe olhar e pensar com a sua própria cabeça. É capaz de construir e de ler a sua realidade, é a protagonista da sua própria história, é capaz de interagir com as pessoas com quem tem referência e com outras crianças, assim como influenciar ambos significativamente. Função da instituição de Educação Infantil: educar e cuidar A partir desses conceitos de criança, perguntamos: qual seria, então, a função dainstituição de Educação Infantil? A que ela se propõe? Quem vai nos ajudar a responder a essas questões é a educadora Maria Isabel Bujes, através do texto a seguir. 42 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil (BUJES, 2001, p. 16) A educação da criança pequena envolve simultaneamente dois proces- sos complementares e indissociáveis: educar e cuidar. As crianças desta faixa etária, como sabemos, têm necessidades de atenção, carinho, segurança, sem as quais elas dificilmente poderiam sobreviver. Simultaneamente, nessa etapa, as crianças tomam contato com o mundo que as cerca através das ex- periências diretas com as pessoas e as coisas deste mundo e com as formas de expressão que nele ocorrem. Essa inserção das crianças no mundo não seria possível sem que atividades voltadas simultaneamente para cuidar e educar estivessem presentes. O que se tem verificado, na prática, é que tanto os cuidados como a educação têm sido entendidos de forma muito estreita. Cuidar tem como significado, na maioria das vezes, realizar as atividades voltadas para os cuidados primários: higiene, sono e alimentação. Quando uma sociedade faz exigências de trabalho às mães e aos pais de crianças pequenas (ou a outros adultos que sejam responsáveis por elas), tem a obri- gação de prover ambientes acolhedores, seguros, alegres, instigadores, com adultos bem preparados, organizados para oferecer experiências desafia- doras e aprendizagens adequadas às crianças de cada idade. Assim, cuidar inclui preocupações que vão desde a organização dos horários de funciona- mento da creche, compatíveis com a jornada de trabalho dos responsáveis pela criança, passando pela organização do espaço, pela atenção aos mate- riais que são oferecidos como brinquedos, pelo respeito às manifestações da criança (de querer estar sozinha, de ter direito aos seus ritmos, ao seu “jeitão”) até a consideração de que a creche não é um instrumento de con- trole da família, para dar alguns exemplos. [...] Ver os cuidados dessa forma talvez nos ajude a perceber que eles são indissociáveis de um projeto educa- tivo para a criança pequena. Por outro lado, a criança vive um momento fecundo, em que a interação com as pessoas e as coisas do mundo vai levando-a a atribuir significados àquilo que a cerca. Esse processo, que faz com que a criança passe a partici- par de uma experiência cultural que é própria de seu grupo social, é o que chamamos de educação. No entanto, essa participação na experiência cultu- ral não ocorre isolada, fora de um ambiente de cuidados, de uma experiência de vida afetiva e de um contexto material que lhes dá suporte. Texto complementar A ideia de infância e a sua escola 43 A noção de experiência educativa que percorre as creches e pré-escolas tem variado bastante. Quando se trata de crianças das classes populares, muitas vezes a prática tem se voltado para as atividades que têm por objeti- vo educar para a submissão, o disciplinamento, o silêncio, a obediência. De outro lado, mas de forma igualmente perversa, também ocorrem experiên- cias voltadas para o que chamo de “escolarização precoce”, igualmente dis- ciplinadoras, no seu pior sentido. Refiro-me a experiências que trazem para a pré-escola, especialmente, o modelo da escola fundamental, as atividades com lápis e papel ou atividades realizadas na mesa, a alfabetização ou a nu- meralização precoce, o cerceamento do corpo, a rigidez dos horários e da dis- tribuição das atividades, as rotinas repetitivas, pobres e empobrecedoras. Assim, na prática, a dimensão educativa, como acabei de descrever, tem desconhecido um modo atual de ver as crianças: como sujeitos que vivem um momento em que predominam o sonho, a fantasia, a afetividade, a brin- cadeira, as manifestações de caráter subjetivo. [...] Ao considerarmos que a Educação Infantil envolve simultaneamen- te cuidar e educar, vamos perceber que essa forma de concebê-la vai ter consequências profundas na organização das experiências que ocorrem nas creches e pré-escolas, dando a elas características que vão marcar sua identidade como instituições que são diferentes da família, mas também da escola (aquela voltada para as crianças maiores de sete anos). Enquanto se mantiver a confusão de papéis que vê na família ou na escola os modelos a serem seguidos, quem perde é a criança. Dicas de estudo Um ótimo material para consultas e leituras são os Cadernos de Pesquisa (periódico da Fundação Carlos Chagas). Trata-se de uma publicação quadrimes- tral, dedicada a divulgar a produção acadêmica sobre educação, gênero e etnia. Versão eletrônica disponível em: <www.fcc.org.br>. Outro periódico de importância é a Revista Criança que é editada, publicada e distribuída pela Coordenação Geral de Educação Infantil da Secretaria de Edu- cação Básica do MEC. É um material de disseminação da política nacional de educação infantil e de formação de professores. 44 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil Atividades 1. De forma sucinta, descreva as três identidades da criança identificadas por Franco Frabboni. 2. Com quais diferentes infâncias você convive? A ideia de infância e a sua escola 45 De acordo com o que a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) definiram, a Educação Infantil, primeira etapa da educação básica, é oferecida em creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade, e em pré-escolas para as crianças de quatro a cinco anos. Essa é uma definição dada pela lei, e que, em muitas vezes, ainda não foi totalmente assimilada por todos. Mas, em termos históricos, existem outras diferenças conceituais entre creche e pré-escola. O termo creche sempre esteve vinculado a um serviço oferecido à população de baixa renda e, portanto, com um cunho assistencial. Já a pré-escola era voltada a crianças maiores, mais próximas de frequenta- rem a escola de ensino fundamental e, assim, trabalhava mais questões pedagógicas. Também se distinguiam pelo tipo de funcionamento: a creche se ca- racterizava por uma atuação em horário integral, e a pré-escola, por um funcionamento semelhante ao da escola, em meio período. Havia ainda uma outra forma de diferenciar a creche da pré-escola: a sua vinculação administrativa. A creche se subordinava e era mantida por órgãos de caráter médico/assistencial, e a pré-escola aos órgãos vincula- dos ao sistema educacional. Essa divisão hoje não é mais permitida. A LDB deu um prazo, que foi dezembro de 1999, para que todas as cre- ches e pré-escolas existentes ou as que viessem a ser criadas se integras- sem aos seus respectivos sistemas de ensino, responsáveis pela função educação. Visto isso, vamos agora observar como foi que a creche surgiu na Europa e nos Estados Unidos, referenciais importantes dessa área. Para isso, vamos nos basear no texto escrito por Bernard Spodek e Patrícia Clark Brown: Alter- nativas Curriculares na Educação de Infância: uma perspectiva histórica. A história das creches 48 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil Surge a creche na Europa e nos Estados Unidos Tem-se que o primeiro programa concebido especificamente para crianças pequenas foi a “Escola do tricô”, fundada em 1767 pelo Padre Oberlin, na França. As crianças, a partir de dois anos, formavam um círculo ao redor da professora, que conversava com elas enquanto tricotava. Eram, geralmente, filhos de pais trabalhadores que não tinham onde deixar suas crianças durante o horário do trabalho. Dizem que o nome creche foi utilizado pelo Padre Oberlin para desig- nar essa sua instituição. A palavra creche, que tem origem francesa, significa manjedoura. Há outras experiências pioneiras no atendimento à criança pequena. Na Es- cócia, foi criada, em 1816, por RobertOwen, a “Escola Infantil”. Owen preocu- pava-se com as condições de vida e de trabalho dos seus empregados, alguns dos quais tinham apenas seis anos de idade. Ele iniciou várias reformas sociais importantes para a época, incluindo o aumento da idade mínima para trabalhar para os 10 anos. Fundou o “Instituto para a Formação do Caráter” que era orga- nizado em três níveis e atendia alunos com idade entre 3 e 20 anos. O primeiro nível era a escola infantil para crianças de 3 a 6 anos; o segundo nível atendia crianças de 6 a 10 anos e o terceiro nível era oferecido durante a noite e atendia alunos dos 10 aos 20 anos. Na década de 1820, nos Estados Unidos, criaram-se várias Escolas Infantis. Na Alemanha, em 1837, Fröbel criou o “Jardim de Infância”. Ele tinha uma visão única sobre a natureza da infância, a natureza do conhecimento e os objetivos da educação que seriam oferecidos nos jardins de infância. Fröbel deixou um enorme contributo para a Educação Infantil. Na Itália, Maria Montessori, no início do século XX, trabalhou com crianças pobres de um bairro operário, na sua Casa dei Bambini (Casa das Crianças). Ela acreditava que as crianças tinham a capacidade de influenciar o seu próprio desenvolvimento. Na Inglaterra, também no início do século XX, surgia outro programa para a primeira infância: o “Infantário”. Criado por Margaret McMillan, em parceria com sua irmã Rachel, essa instituição se preocupava com as condições insalubres em que viviam as crianças. O que podemos concluir dessas primeiras iniciativas de atendimento à crian- ça pequena? A história das creches 49 Todos esses programas tiveram um impacto importante no campo da educa- ção para a criança. Porém, cabe observar que, com exceção dos jardins de infân- cia de Fröbel, todos os outros programas foram iniciados para melhorar a vida das crianças pobres. Assim, podemos dizer que a creche surgiu como uma instituição assistencial que ocupava o lugar da família, nas mais diversas formas de ausência. Podemos também dizer que a organização da família moderna atribuía para si a responsa- bilidade pelo cuidado e pela educação da criança pequena. Portanto, somente as famílias que não conseguiam atender a essa função é que utilizavam a creche. Surge a creche no Brasil De uma forma geral, podemos falar que a creche no Brasil surge acompa- nhando a “estruturação do capitalismo, a crescente urbanização e a necessidade de reprodução da força de trabalho”, ou seja, ia desde a liberação da mulher-mãe para o mercado de trabalho até uma visão de mais longo prazo em preparar pessoas nutridas e sem doenças. Atendimento à infância até 1900 Do período colonial até o início do século XX, pouco se fez, no Brasil, em defesa das crianças que viviam na pobreza. Existiu institucionalmente a “Casa dos Expostos”, também chamada de “Roda”, segundo Moncorvo Filho em seu livro Histórico da Protecção à Infância no Brasil – 1550-1922. Tratava-se de um lugar onde eram deixadas as crianças não desejadas1. Deve-se a criação da Roda a Romão de Mattos Duarte, que, preocupado com o grande número de crianças abandonadas nas ruas e portas de igrejas das cida- des maiores, decidiu doar recursos para que a Santa Casa de Misericórdia fizesse esse atendimento. Não se sabe muito sobre esta instituição, mas há um dado que assusta: em 13 anos de funcionamento, haviam entrado nas “Rodas” aproximadamente 12 mil crianças e apenas mil tinham sobrevivido (MONCORVO FILHO, 1926). O que nos permite deduzir que as condições de atendimento eram muito precárias. 1 A roda era uma espécie de armário cilíndrico, giratório e embutido em uma parede. Era construído de tal forma que aquele que deixava a criança não era visto por quem a recebia. Assim, ao colocar a criança na roda, puxava-se uma cordinha com uma sineta para avisar o responsável na insti- tuição que um bebê acabava de ser abandonado. D om ín io p úb lic o. Roda dos Expostos. 50 Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil Podemos dizer que essas primeiras iniciativas voltadas ao cuidado das crianças tinham caráter higienista e se dirigiam contra o alto índice de mortalidade infantil. A sociedade da época achava que o grande número de mortes de crianças era devido aos nascimentos ilegítimos (frutos da união entre escravos ou entre escravos e senhores) e à falta de educação moral, física, e intelectual das mães. Podemos observar que as duas causas culpam a família, além de dizerem que os negros escravos eram portadores de doenças. Não se levava em consideração as condições econômicas e sociais das famílias e a ausência de estruturas de saúde pública. Assim, os poucos projetos desenvolvidos durante esse período tinham base no preconceito. Esses projetos eram organizados a partir de grupos privados (conjuntos de médicos, associações beneficentes de senhoras) sem a preocupação por parte do Estado pelas condições de vida da criança e seu de- senvolvimento, em especial, a da criança pobre. 1900 a 1930 Vamos passar para o início do século XX e observar alguns fatos marcantes. As fábricas passaram a absorver imigrantes europeus. Muitos deles eram traba- lhadores qualificados e politizados pelo contato com os movimentos operários que ocorriam na Europa. Organizados aqui no Brasil, os operários passaram a protestar contra as suas precárias condições de vida e de trabalho. Os empre- sários, por sua vez, procurando enfraquecer esses movimentos, começaram a conceder alguns benefícios sociais e criaram vilas operárias, clubes esportivos e também algumas creches e escolas maternais para os filhos de operários. Além disso, as grandes cidades estavam se industrializando muito rapida- mente e, como não dispunham de infraestrutura urbana suficiente, em termos de saneamento básico, moradias etc., sofriam o perigo de constantes epidemias. Assim, a creche passou a ser defendida por sanitaristas preocupados com as con- dições de vida da população operária, ou, em outros termos, com a preservação e reprodução da mão de obra operária. A literatura aponta também a existência de grupos de mulheres de classes sociais abastadas que, organizadas em associações religiosas ou filantrópicas, cria ram várias creches. Elas instruíam as mulheres das camadas populares a serem “boas donas de casa” e a cuidarem adequadamente de seus filhos. Eram convictas de que o cuidado materno era o melhor para a criança e que o cuidado em grupo (creche) era certamente um substitutivo inadequado. A história das creches 51 Também nesse período destaca-se a existência de determinados grupos pri- vados que tinham a intenção de diminuir a apatia que dominava as esferas go- vernamentais quanto ao problema da criança. Em um desses grupos foi fundado o “Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Brasil”, com sede no Rio de Janeiro. Uma das atividades realizadas por esse instituto foi a organização de “Concursos de Robustez”. O que seria isso? Com a finalidade de diminuir a mortalidade infantil, fazia-se um concurso para escolher o bebê mais saudável. A mãe do bebê vencedor, que deveria ter com- provada a sua pobreza, era premiada em dinheiro. Junto a essas atividades do instituto, foram sendo criadas creches, jardins de infância e maternidades. Em 1909, foi inaugurado o Jardim de Infância Campos Salles, no Rio de Janeiro. Em 1919, por iniciativa da equipe fundadora do Instituto, foi criado o Depar- tamento da Criança, cuja responsabilidade caberia ao Estado, mas que acabou sendo mantido pelo Dr. Moncorvo Filho, pessoa reconhecida pela sua dedicação e proteção à infância. Em 1922, o Estado começou a se preocupar com a criança: organizou o 1.º Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, mas ainda os problemas infantis foram tratados de forma demagógica e limitada. As conclusões foram as de que a creche tinha
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