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PLANO DE ENSINO CURSO: Psicologia SERIE: 7° Semestre UNIDADE DE ESTUDO: Psicologia FenomenolOgica CARGA HORARIA SEMANAL: 3 Horas/aula CARGA HORARIA SEMESTRAL: 60 Horas I — EMENTA Introducao ao pensamento fenomenolOgico. ContribuicOes de Edmund Husserl e Martin Heidegger para a Psicologia. A Daseinsanalyse como modalidade de pratica psicologica. Compreensao da relacao e de processos psicologicos a partir do enfoque da fenomenologia-existencial. A ontologia fundamental de Heidegger como. argumento para uma compreensao dos fenomenbs psicologicos e da psicologia clinica. II — OBJETIVOS GERAIS Reconhecimento dos pressupostos epistemologicos e ontologicos do pensamento fenomenologico-existencial para promover a identificacao deste metodo e da concepcao de homem que lhe é pertinente corn o lugar e a funcao do psicblogo no trato corn o fenomeno psicologico e na promocao de saCide. Introducao Daseinsanalyse como pratica em psicologia clinica. III — OBJETIVOS ESPECIFICOS Tel competencia sera desenvolvida a partir das seguintes habilidades: Diferenciar o metodo de investigacao das Ciencias Naturais do metodo Fenomenologico de investigacao. Ler e interpreter urn texto escrito dentro da linguagem fenomenolOgico- existencial. Reconhecer as diferentes linguagens na concepcao do fenOmeno psicolOgico. Situar o lugar e a funcao do psicOlogo na perspective fenomenolOgico- existencial. IV — CONTEUDO PROGRAMATICO 1° BIMESTRE Introducao ao pensamento de Edmund Husserl. Introducao ao pensamento de Martin Heidegger. 0 metodo fenonnenolOgico na psicologia. 1 Nascimento, A. F. 276 Economia popular soliclaria Nos empreendimentos de Economia Popular Solidaria, concomitantes corn a satisfacao das necessidades basicas de sobrevivencia, os principios da solidariedade, ajuda cooperacao, entre outros, estao presentes e passam a fazer parte das relaceies sociais entre os individuos. Nesta direcao se enfatiza a contribuicao profissional dos assistentes sociais nas organizaciies economicas populares, em que estes empreendimentos constituem-se como forma de geracao de trabalho e renda aos sujeitos, diante das manifestacties da questa° social, objeto de intervencao profissional dos assistentes sociais. Destaca-se a importancia da Economia Popular Solidaria para os assistentes sociais diante da conjuntura socio-economica atual: Pela apresentagao desta realidade e pelo posicionamento efico-politico do Servico Social é que se pretende ressaltar a relevancia desse tema ao Servico Social, pois esses empreendimentos coletivos, mesmo estando inseridos no sistema capitalista, introduzem elementos que divergem da finalidade do capital (alem de gerarera renda aos trabalhadores) e, ao mesmo tempo, vao ao encontro do posicionamento e visa'o de homem e de mundo, que é concebida pela categoria profissional do Servico Social, conforme consta do Codigo de Etica de 1993 (GOERCK, 2006, p. 11). Os empreendimentos de Economia Popular Solidaria partem de awes coletivas, desenvolvidas pela populacao excluida, na contracorrente do poder. Estes empreendimentos tomam-se novas demandas profissionais aos assistentes sociais, por estarem ligados ao processo de pauperizacao da sociedade brasileira, intimamente relacionadas a orbita do trabalho, pois, "sac) as mudancas verificadas no mundo do trabalho que alteram, dimensionam e redimensionam a demanda das politicas sociais que nos, por mein do exercicio profissional, implementamos na linha de ponta da prestacao de servicos sociais" (IAMAMOTO, 2004, p. 153). Diante do crescimento das organizacOes populares solidarias, percebe-se que estas podem ser compreendidas como uma alternativa para os trabalhadores, na geracao de trabalho e renda e, tambem, urn espaco socio-ocupacional para o assistente social. 0 Servico Social pode ser uma profissao capaz de contribuir corn estas organizacoes populares12, tanto na elaboracao de projetos que visem a geracao de renda, como na assessoria, consultoria e acompanhamento aos empreendimentos da Economia Popular Solidaria, visando a autonomia destes trabalhadores diante dos processos de trabalho e o fortalecimento destes 12 0 Servico Social pode contribuir corn estas organizacOes economicas populares, pois possui como urn dos seus principios timdamentais: "Opcdo pro um projeto profissional vinculado ao processo de construcao de uma nova ordem societaria, sem dominacdo-exploragdo de classe, etnia e gesnero" (C6digo de Etica dos Assistentes Sociais, 1993). Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 264-281. jul./dez. 2007 2° BIMESTRE A Daseinsanalyse de L. Binswanger. A Daseinsanalyse de M. Boss. Compreensao e acao na clinica fenomenologico-existencial. Psicoterapia como modalidade de pratica psicologica fenomenologico-existencial. V — ESTRATEGIAS DE TRABALHO Aulas expositivas, em que serao transmitidos: historico, principais conceitos corn posterior esclarecimento de duvidas. Apresentacao de situacoes retiradas do cotidiano corn o intuito de favorecer a articulacao corn a teoria. Estas situacoes devem ser retiradas da bibliografia da disciplina e dos meios de comunicacao, literatura e filmes, explorando a articulagao entre teoria e pratica. VI — AVALIACAO Deverao realizar-se avaliacbes bimestrais — provas escritas e individuais. Serao avaliadas a assimilacao e a compreensao dos temas desenvolvidos, atraves de questbes conceituais e reflexivas, assim como da analise de casos clinicos. Os alunos deverao mostrar capacidade de interpretacao de textos e de questbes, respondendo a estes corn clareza, utilizando-se, para tanto, dos conceitos tegricos e tecnicas aprendidos. Sera seguida a seguinte sequencia para as avaliacties: ao final do 1° bimestre: uma prova composta por no minim° 12 questbes, sendo 60% da pontuagao em questbes objetivas e 40% em questoes dissertativas, referentes ao conteudo desenvolvido, corn valor de zero a dez. Essa nota corresponde a NP1. ao final do 2° bimestre: uma prova composta por no minim° 12 questoes, sendo 60% da pontuacao em questOes objetivas e 40% em questOes dissertativas, referentes ao conteudo desenvolvido, corn valor de zero a dez. Essa nota corresponde a NP2. A media do semestre sera calculada de acordo corn o Regimento da UNIP. VII — BIBLIOGRAFIA BASICA DASTUR, F. & CABESTAN, P. Daseinsanalyse: Fenomenologia e Psicanalise. 1a ed. Rio de Janeiro: Via Verita, 2015. 2 Nascimento, A. F. Economia popular solidaria 277 empreendimentos, que sejam condizentes corn os principios etico-politicos da profissao (GOERCK, 2006). Torna-se importante salientar que alem da geracao de renda e superacao da situacao de vulnerabilidade e exclusa'o social, os empreendimentos de economia popular solidaria promovem a participacao dos individuos em todo o processo decisOrio, motivando o sentimento de "pertenciamento" daqueles individuos, historicamente excluidos, em urn grupo. Para decifrar as novas possibilidades de atuacao profissional, toma-se fundamental que o assistente social esteja informado, seja crftico e propositivo. Atraves do instrumental tecnico-operativo, as awes profissionais realizadas nester empreendimentos situam-se na assessoria, consultoria, planejamento, pesquisa e acompanhamento, pautando-se na participaca'o dos individuos em todo o processo decis6rio, na formulacao da estrategia, na gestao da organizacao, no planejamento e avaliacao das acties. Paralelo a Reestruturacao Produtiva, em decorrencia da reforma do Estado, ocorre o processo de minimizacao das awes no campo social, deslocando-se para a sociedade civil a responsabilizacao por estas noes, atrav6s do apelo a solidariedade. Entretanto, o Estado permanece gerando propostas, principalmente atraves das politicasque estabelecem os minimos sociais. Alem disso, as altemativas de geracao de trabalho e renda aparecem atualmente, centradas, principalmente, em programas de qualificacao profissional. As politicas publicas de geracao de trabalho e renda sab criadas pela crenca de que o acesso a educacao e ao conhecimento implicaria em ocupacao de postos formais de trabalho (SILVA, 2002). Entretanto, o mercado de trabalho apresenta altos indices de desemprego, terceirizacao, subcontratacab, polivalencia, contratos temporarios, entre outras caracteristicas, fazendo com que poucos destes individuos consigam ser reabsorvidos pelo mercado formal. Desta forma, o apelo a qualificaca'o profissional, para os individuos excluidos do mercado formal de trabalho, nab se configura como medida suficiente para a transformacao da situacao de vulnerabilidade social em que se encontram, pois estes necessitam da criacao de alternativas para a garantia de sua subsistencia, o que se torna possivel na perspectiva da Economia Popular Solidaria. Diante deste contexto, as organizaciies economicas populares solidarias, enfrentam dificuldades para incluirem-se na sociedade. Para o fortalecimento destas experiencias de Economia Popular Solidaria destaca-se a importancia das politicas governamentais direcionadas a estes empreendimentos, tanto para oferecer apoio e financiamento, quanto para a construcao da sustentabilidade e desenvolvimento dos mesmos. Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 264-281. julidez. 2007 criativa (1907), que constitui a principal referencia filoso- fica de Minkowski. E necessario reconhecer, corn Tatos- sian, que "a impureza da fenomenologia de Minkowski", da qual ele relembra a "repugnancia a todo sistema, foi fenomenologica",6, . A. A obra fundadora de Ludwig Binswanger (1881-1966) Ludwig Binswanger foi o primeiro entre os psiquia- tras a se interessar pela fenomenologia. E na critica ao psicologismo a qual se dedica Husserl no primeiro tomo de suas InvestigagOes logicas, publicadas em 1900, e em sua definigao da consciencia em termos de intencionalidade e de sentido, que ele encontrou pela primeira vez os motivos de se opor ao naturalismo e 9.0 biologismo de Freud. Ele descobriu em seguida, gracas a leitura que fez desde 1928 de Ser e tempo, que o termo consciencia, proprio a Husserl, assim como vida, freudiano, caracterizavam o ser do homem apenas de maneira imperfeita. Binswanger designou inicialmente sua pesquisa, que se abriu a fenomenologia husserliana, "antropologia fenomenologica"; e, assim, ele se integrou a longa corrente de mesmo nome que reuniu a partir dos anos 1920, alem do proprio Binswanger, o neurologista Victor von Weizsacker, autor de 0 circulo da estrutura (1939), o neuropsiquiatria Erwin Strauss, autor de Do sentido dos sentidos (1935), o psiquiatra frances Eugene Minkowski e ainda outros que invocavam a Psicopatologia geral de Jaspers, e tambern obras de outros filosofos, entre os quais Scheller, Kierke- gaard, Brentano, Dilthey, Natorp, Lipps, Bergson, antes de se fazerem sentir as influencias decisivas de Husserl e Heidegger. De fato, o aparecimento de Ser e tempo em 1927 constituiu para Binswanger urn verdadeiro acontecimen- to, pois surge a partir dal uma nova definigao do homem compreendido como Dasein e ser-no-mundo. Binswanger, porem, decidiu-se por usar o termo "Daseinsanalise" no 161. A. Tatossian, "Eugene Minkowski ou l'occasion manquee", Psychiatrie et existence, P. Fedida e J. Schotte (editores), p. 15. lugar de "antropologia fenomenologica" muito mais tarde, por volta de 1943. E é em 1942 que ele publicou seu livro mais importante, intitulado Grundformen and Erkenntnis menschlichen Daseins ("Formas fundamentais e conheci- mento da existencia humana."). De Binswanger, conhece-se na Franca principal- mente o texto intitulado Sonho e existencia que foi tradu- zido em 1954 por Jacqueline Verdeaux e prefaciado por Michel Foucault. Em seguida empreendeu-se, nos anos seguintes a morte de Binswanger, a tradugao de nume- rosos artigos que precedem e, principalmente, seguem a aparigao de seu livro mais importante e que foram reunidos em duas colegoes: Discursos, Percursos e Freud, publicado em 1970 e Introducdo a anodise existencial, publicada no ano seguinte. Os Ultimos textos de Binswanger (dentre os quais Melancolia e Mania, publicado em 1960 e E2lirio, em 19b5) esbogam urn "retorno a Husserl" e sao guiados pela interpretacao da fenomenologia husserliana dada por Wilhelm Szilasi, fenommologo hiangaro instalado na Alemanha e autor de uma introdugdo a fenomenologia de Edmund Husserl, publicada em 1959162. Depreende-se de todos esses textos que Binswanger, homem dotado de uma cultura enciclopedica, é muito mais urn pensador que um medico. E isso que explica que a Daseinsanalise binswangeriana se caracterize, em oposicao a psicanalise que nasce de uma motivagdo propriamente terap uetica, por urn cuidado antes de tudo cientifico, proveniente da insatisfagao de ver faltar a psicopatologia urn fundamento epistemologico. E, entao, corn urn cuidado inicialmente metodolOgico que Binswanger se langa ao dominio do metodo das ciencias naturais no campo da psiquiatria. Nesse ponto, ele se apoia na "destruigao" heideggeriana do cartesianismo, isto é, da determinagao do homem como sujeito de sua relagao corn o mundo em termos de relagao sujeito-objeto, relagao essa que ele nao hesita em chamar de "cancer" da ciencia. 162. W. Szilazi, Einfiihrung in die Phoinomenologie Edmund Husserls (Intro- duccio a fenomenologia de Edmund Husserl), Niemeyer, Tubingen, 1959. A traducao desse texto apareceu em Le Cercle hermeneutique no final de 2011. 1. Elementos biograficos e bibliograficos Ludwig Binswanger nasceu no dia 13 de abril de 1881 numa familia de psiquiatras. Seu avo, tambem chamado Ludwig Binswanger, fundara em 1857 em Freu- zlingen, perto de Constanga, uma clinica particular dedi- cada ao tratamento das doer-19as dos nervos e do espirito, o sanatorio 'Bellevue". Robert Binswanger (1850-1910), seu filho, que se encarregou de seguir a obra de seu pai, construiu novas instalacoes para o sanatorio, onde nu- merosos pacientes foram recebidos, vindos certamente de muito longe e pertencentes, a maioria, a classe mais culta, como o pintor Ernst Ludwig Kirchner, o bailarino Vaslav Nijinski e o historiador de arte Aby Warburgus. E nesse context° que cresce Ludwig Binswanger. Decidido a ser sucessor de seu pai, ele escolhe estudar medicina. Ele concluiu seus estudos de medicina em Burgholzli, no hospital psiquiatrico da universidade de Zurique, do qual Eugene Bleuler foi diretor de 1898 a 1927; deste Ultimo, alias, se diz ser o introdutor dos termos "esquizofrenia" e "autismo" no vocabulario psiquidtrico. Foi ai que ele defendeu sua tese, escrita sob a orientacao de Carl Jung, em 1906, periodo durante o qual Binswanger comega a estudar os escritos de Freud, a quem ele presta uma pequena visita em Viena em margo de 1907. Essa visita deu origem a longa correspondencia que eles trocaram de 1908 a 1938164, Em seguida, ele trabalhou corn seu tio Otto Binswanger, professor da clinica psiquiatrica da Universidade de Iena, onde teve de se ocupar de Nietzsche no momento quando ele caiu na loucura. Em 1908, ele entrou para o Bellevue como colaborador de seu pai, mas, depois da morte repentina dele, em 1910, tomou a direcao Ludwig Binswanger — Aby Warburg, La gudrison infinite (A cura infinita), Histoire clinique d'Aby Warburg, trad. fr. M. Renouard e M. Rueff., Paris, Payot e Rivages, 2007. Sigmund Freud-Lugwig Binswanger, Dorrespordance 1908-1938, trad. Fr. De R Menagem e M. Strauss, Paris, Calmann-lhvy. Encontra-se no final do volume uma bibliografia bastante completa dos escritosde Binswanger. do sanatorio ate 1956. Ele morreu dez anos mais tarde, no dia 5 de fevereiro de 1966, deixando uma obra que se estende por quase sessenta anos e compreende, ao lado de uma duzia de livros, urn grande numero de artigos. Os textos mais importantes de Binswanger foram reunidos em quatro volumes editados por Herzog e Hans-Jurge Brain, Heidelberg, Roland Asanger Verlag, 1992-1994, sob o titulo "Ausgewdhlte Werke" (Obras escolhidas): Volume I Ober ldeenflucht, Zurich, Ore11-FOssli, 1933; Sur la fulte des idees (Sobre a fuga de idelas), trod. fr. de M. Dupuis, corn a colaboracto de C. von Neuss et M. Richir, Grenoble Milian, 2000 Drel Formen mlssglackten Daseins. Verstiegenhelt, Verschrobenhelt, MaWerierthelt,TObingen, Niemeyer, 1956; Trois formes manquies de la presence humalne. La presomption, La dlstorslon, Le manlerlsme (Tres formas malogradas do present, humans. A presunglo, a dlstorcdo, o ma- neirismo), trod. fr. deJ.-M. Froissart, Paris, Le Cercle Hermeneutique, 2002. Volume II Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins (Formas funda- mentals e entendimento do Dasein humano), Zurich, Niemeyer, 1942 ; 4e ed. Munich, Reinhardt, 1954. Volume III Erfahren, Verstehen, Deuten in der Psychoanalyse (1926); "Apprendre par experience, cornprendre, interpreter en psychanalyse" (Aprender com a experlencla, compreender, Interpretar em psicandlise), trod. fr. R. Lewinter, Discours, parcours et Freud, Paris; Gallimard, 1970, p. 155-172. Mein Weg zu Freud (1957); "Mon chemin vers Freud" (Meu caminho para Freud), trod. fr. R. Lewinter, Discours, parcours et Freud, Paris, Gallimard, 1970, p. 241-262. Ober PhOnomenologie (1922); "De la phenomenologie" (Da fenomeno- logia), trod. fr. J. Verdeaux e R. Kuhn, Introduction b l'analyse existentielle (Introducao b andlise existecial), Paris, E. de Mlnult, 1971, p. 79-118. Lebensfunktion und innere Lebensgeschichte (1928); "Fonction vitale et histoire interieure de la vie" (Functo vital e histdria interior da vida), trod. fr. J. Verdeaux e R. Kuhn, Introduction a l'analyse existentielle, Paris, E. de Minuit, 1971, p. 49-78. 47 Traum und Existenz (1930); Le Retie et l'Existence (0 sonho e a exis- tencia), trod. fr. J. Verdeaux, introductio de M. Foucault, Paris, Desclee de Brouwer, 1954. Traducdo republicada em Introduction a l'analyse existentielle, Paris, E. de Minuit, 1971, p. 199-226. Wandlungen in der Auffassung und Deutung des Traumes, Berlin, Springer, 1928. Das Raumproblem in die Psychopathologie (1932); Le probleme de l'espace en psychopathologie (0 problema do espago em psicopato- logia), trod. fr e pref6cio de C. Gros, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 1998. Geschehnis und Erlebnis (1931). Ober Psychotherapie (1935); "De la psychotherapie" (Da psicoterapia), trod. fr. J. Verdeaux e R. Kuhn, Introduction a ranalyse existentielle, Paris, E. de Minuit, 1971, p. 119-148. Ober die daseinsanalytische Forschungsrichtung in der Psychiatric (1945); "Sur la direction de recherche analytico-existentielle en psychia- trie" (Sabre a direc'do de pesquisa analltico-existential em psiquiatria), trod. fr. R. Lewinter, Discours, parcours et Freud, Paris, Gallimard, 1970, p. 51-84. Daseinsanalyse und Psychotherapie (1951); 'Analyse existentielle et psychiatrie'; trod. fr. R. Lewinter, Discours, parcours et Freud, Paris, Gallimard, 1970, p. 85-120. Ober den Satz von Hoffmansthal : Was Geist 1st, erfasst nur der Bedrangte (1948) Ober Sprache und Denken (1946) Volume IV Der Mensch in der Psychiatrie (1956). Der Fall Ellen West. Eine anthropologisch-klinische Studie (1944-45). Der Fall Suzan Urban. Studien zum Schizophrenie-problem, 1952; Le cas Suzanne Urban. Etude sur la schizophrenie (0 caso Suzanne Urban, Estudo sabre a esquizofrenia), trod. fr. J. Verdeaux, Brionne, G. Montfort, 1988. Einleitung zum Sammelband Schizophrenie, Pfullingen, Neske, 1957. Melancholie und Manie, Phdnomenologische Studien, Pfullingen, Neske, 1960 ; Melancolie et manie (Melancolia e mania), trod. fr. J.-M. Azorin e Y Tatoyan, revista par A. Tatossian, apresentagdo de Y. Pelicier, Paris, PUF, 1987 Wahn. Beitrage zur seiner phanomenologischen und daseinsanalytf- schen Erforschungen, Pfullingen, Neske, 1965; Dere. Contributions a son etude phenomenologique et daseinsanalytique (Del/rio. Contribui- g5es a seu estudo fenomenologico e dasainsanalltico), trod. Jr. J.-M. Azorin e Y Tatoyan, revista par A. Tatossian, Grenoble, Million, 1993. 2. A questa° do sonho Se ha urn fenOmeno humano que desde sempre pareceu dever se submeter a interpretagao, esse fenome-. no e o sonho; e isso atesta o quao pouco o homem sabe. das coisas de si mesmo e se ve obscuramente submetido a forgas que ele nao controla. Depois do aparecimento, no comego do seculo XX, da Traumdeutung (A interpreta- pew do sonho) de Freud, que ve no sonho a "via regia" da psicanalise, passou-se a acreditar estar disponivel urn novo quadro de leitura do universo onirico, nao deixando espago a nenhuma outra abordagem possivel. Mas o que Binswanger empreende no estudo hist6rico e critico que ele consagra em 1928, corn o titulo "Variagoes na apreensao e interpretagao do sonho desde os gregos ate nossos dias", a questao do sonho, é precisamente completar a "Historia da literatura cientifica do sonho" que comp5e a introdugao da Traumdeutung de Freud. Freud mesmo, a quem Binswanger enviou seu livro tao logo fora publica- do, nao se enganou ao admitir, na carta que the escreveu em 2 de abril de 1928, que ele ficou "contrariado ao ver que tantas referencias preciosas tinham sido omitidas na sua revisao dos sonhos", acrescentando que "nao este. em sua natureza ser urn homem de estudo", o que the "permite admirar sem inveja a aplicagao de Binswanger ao trabalho"165 . Em suas RecordagOes de Sigmund Freud, texto redigido em 1956, Binswanger, fazendo alusao carta citada, explica que Freud havia decidido omitir a 165. Sigmund Freud-Ludwig Binswanger, Correspondence 1908-1938, p 275. posteridade a bibliografia em seu Traumdeutung, decisao que the pareceu tanto mais "incompreensivel" quanto mais ele estivesse consciente de que sua propria bibliografia estava incompleta, ja que, "nesse dominio, nao se podia tratar de ser exaustivo",... A reagao de Freud e, na verdade, bem compreensi- vel, pois isso que Binswanger chama modestamente de seu "pequeno livro sobre o sonho" é um inventario de rara eru- digao do conjunto de textos dedicados no Ocidente a essa questao. Mas esse gosto pela literatura, pela poesia, pela arte e pela filosofia sempre demonstrado por Binswanger, gosto esse cujo inicio de meditagdo tinha sido influenciado por suas leituras e seus contatos pessoais corn filosofos artistas, nao é a Unica coisa que o separa de Freud, de quem se conhe.ce a parca estima que tinha pela filosofia. E principalmente a conclusao do livro, em que Binswan- ger apela a uma metafisica, se nao do sonho, certamente do espirito como o objetivo das pesquisas cientificas, que Freud assinala, precisando que ela o "divertiu mais do que o irritou", justamente porque ela termina corn a afir- magao segunda a qual tal metafisica so poderia conduzir ideia de Deus, "urn Deus destilado atravds da filosofia", comenta Freud, acrescentando que "aqueles que chegam a se embriagar corn alguma bebida sem alcool sempre (lhe) pareceram urn pouco bizarros"167. A embriaguez metafisica religiosa que ele descobre em Binswanger, Freud opOe, assim, sua propria sobriedade cientifica. E é sobre a questao da religiosidade, e mesmo da espiritualidade em geral, que se separam de maneira decisiva Binswanger e Freud. Isso que se desenha, entao, ja no estudo de 1928, que se expressara claramente em "Sonho e existencia", ensaio de 1930, éa rejeicao de urn simbolismo do sonho tal como o compreende Freud. No esbogo de uma histOria do sonho, da Gracia ao mundo latino e moderno, tracada por Binswanger, encontra-se, de fato, a ideia de que o sonho nao foi compreendido como uma produgao do sonhador L. Binswanger, Analyse existentielle et psychanalyse freudienne, Discours, parcours et Freud, p. 348. Sigmund Freud-Ludwig Binswanger, Correspondence 1908-1938, p. 275. sena° relativamente tarde, äo passo que anteriormente ele era compreendido como vindo do ceu ou do cosmos, de modo que cabia antes dizer que "algo sonha em mim" como o sublinha em seguida Boss, no livro que ele publi- cara em 1975 corn o titulo de "Es traumte mir vergangene Nacht", traduzido em frances por "Il m'est venu en reve.,,0166 (Veio-me em sonho). Tambem para Binswanger o sonho nos chega, ele nao é produzido por nos; e é por isso que se the pOde reconhecer urn valor "dentinal", e mesmo profetico. Eis ai a explicagao para Binswanger ressaltar, na conclusao do estudo de 1928, voltando a lei dos fres estados de Augusto Comte que the servira de esquema diretor, que ela de modo nenhum significou, no dominio da interpretagao do sonho, a vitoria definitiva da ciencia positiva, a qual nao conseguiria dar conta ,da totalidade do mundo, um mundo no qual vivemos, agimos e senti- mos, e que nao é urn mero objeto de conhecimento para nos. Apenas a tomada em consideragao, pela filosofia, da dimensao espiritual de nossa experiencia do mundo pode nos abrir verdadeiramente a porta do sonho. Sonho e existencia, que apareceu em forma de artigo em 1930 na Neue Schweizer Rundschrtu, constitui, como diz Foucault na introdugao a tradugao francesa desse texto de 1954, "o primeiro dos textos de Binswanger que pertence no sentido estrito a Daseinsanalisetbg. Na apresentagao que ele faz, em 1947, para a republicagao do texto, Binswanger deixa claro: "No ensaio Sonho e Exis- tencia, o trago de essencia fenomenologico-antropologico da ascensao e da queda e as estruturas de mundo corres- pondentes a essas duas diregoes do Dasein foram descritas pela primeira vez e isso incialmente no interior do espago afinado (gestimmtes Raumes) e do espago da tonalidade vital, tanto na vigilia quanto no sonho. (...) A influencia da obra de Heidegger publicada nesse periodo, Ser e Tempo, se manifesta claramente nesse ensaio (...). A influencia de M. Boss, "Ilm'est venu en rove... *. Aspects theoriques et pratiques sur l'activite onirique (Veio-me em sonho.... Aspectos tebricos e praticos sobre a atividade onfrica) (1975), trad. fr. Ch. Bemer e P. David, Paris, PUF, 1989. L. Binswanger, "Rove et existence", Introduction d l'analyse exis- tentielle, p. 199 e sqs. • Heidegger se manifesta aqui na tentativa de elaborar uma interpretagao existencial e biografica do sonho em ligagao corn a distingao heraclitica entre sonho e vigilia tomada no sentido de uma diferenga entre a absorcao no mundo proprio e a abertura ao mundo comum",.. Para Binswanger, trata-se, na analise fenomenolo- gica do sonho, ao contrario da Traumdeutung freudiana, de se ater ao conteUdo manifesto do sonho, como ele nota expressamente em Sonho e existencia: "Depois do memo- ravel postulado de Freud corn respeito a reconstrugao dos pensamentos oniricos latentes, tem-se fortemente a tendencia hoje em dia de relegar ao segundo piano de interesse o conteUdo onirico manifesto, pois urn estudo aprofundado desse conteUdo nos ensina a reconhecer o estreito parentesco original entre o sentimento e a imagem, humor suscitado e as imagens das quais o espirito esta. repleto",i. De fato, o essencial e nao separar o que e urn: a imagem e a tonalidade afetiva, alegria ou tristeza, que o sonho exprime espontaneamente. Comentando dois sonhos relatados pelo poeta alemao Gottfried Keller, nos quais in- tervem sucessivamente as imagens de uma aguia planando livremente no ar e de um milhano exausto que termina por sucumbir, Binswanger declara: "a imagem alegre e a alegria que sao ressentidas, a imagem triste e a tristeza que sao experienciadas nao formam senao uma coisa s6: elas sao a expressao de urn Unica e mesma onda que sobe e desce"i72. E terra que o Dasein se da no sonho que é importante, nao o que ele simboliza, e e, entao, o contetdo desse drama, dessa agao que e o sonho, que constitui seu elemento decisivoin. 0 proprio Binswanger afirma ja de inicio que "o sonho, tudo somado, nao 6 outra coisa senao uma mo- dalidade particular do ser humano"i74. Ele parte de uma L. Binswanger, .Ausgewahlte Vortrage and Aufsatze, Francke, Berna, 1947, p. 9. Ver a respeito disso o ensaio de 1935 corn o titulo: "A apreensao heraclitica do homem", Instroduction a l'analyse existentielle, p. 159-198. Ibid., p. 208. Ibid. Ibid., p. 206. Ibid., p. 204. tematica a qual ele dedica dois anos mais tarde, em 1932, urn artigo importantelm, a do "espago afinado" (gestimmter Raum), e que ele desenvolvera em 1949 num estudo soberbo dedicado ao dramaturgo noruegues Henrik Ibsenim. Na verdade, 6 gragas a Heidegger que Binswanger descobriu a relagao entre o espago, a tonalidade afetiva e o corpo. 0 espago do Dasein, do existente, se articula, por oposigao ao espago estendido e mensuravel da ciencia, de mUltiplas maneiras. Para a psicopatologia, consequentemente, nao 6 suficiente se referir ao espago geornetrico, mas the importa muito mais levar em conta o espago fisico e o espago corporal, o espago orientado ja evidenciado por outros re- presentantes da corrente fenomenolOgica em psiquiatria e aquilo que Binswanger chama de "espago afinado", Todos os grandes textos de psicopatologia de Binswanger dos anos trinta a cinquenta, os de seu periodo "heideggeriano", acentuam o problema da espa.cialidade e permitem melhor compreender essa completa metamorfose da existencia que é a psicose, pela qual o cloente tern, sobretudo, a ex- periencia de uma transformagao de seu espago afinado. Para o maniaco, por exemplo, o mundo mingua: para ele, todas as coisas sao mais prOximas, e, ao mesmo tempo, espago perde sua profundidade. Nao ha na mania nem centro nem periferia, nem lar nem estadia. Todas as coisas se tornam fugazes, e nao hil nenhuma possibilidade de levar o que quer que seja a seri°. Para a melancolia, 6 o contrario. Quanto ao esquizofrenico, ele perdeu toda a base da experiencia, e se eleva acima do mundo comum. Por essas notaveis analises da experiencia da espacialidade na L. Binswanger, Le probleme de l'espace en psychopathologic (0 proble- ma do espaco em psicopatologia), trad. fr. C. Gros, Toulouse, PUM, 1998. L. Binswanger, Henrik Ibsen et le probleme de l'auto-realisation dans l'arte (Henrik Ibsen e o problema da autorrealizacd o na arte), trad. fr. M. Dupouis, Posfacio de H. Maldiney, Bruxelles, De Boeck, 1996. Ver tambem F. Dastur, "Tache vitale et realisation de soi dans l'art: Binswanger et Ibsen", Art et Pathologies au regarde de la phenomEnologie et de la psycha- nalyse (Tarefa vital e realizacao de si na arte : Binswanger e Ibsen, Arte e pato/ogia aos olhos da fenomenologia e da psicancilise), Paris, Le Cercle Hermeneutique, 2005, pp. 45-55. No que concerne a analise binswa.n-. geriana da espacialidade, ver C. Gros, Ludwig Binswanger, Chatou -281 , Ed, De la Transparence, 2010, "Corps et espace 1930-1957", p. 2013. $ psicose, Binswanger foi o primeiro a orientar a pesquisa psicopatologica na direcao de uma apreensao global do mundo do doente enquanto forma simbOlica. 0 verdadeiro ponto de partida de Sonho e existen- cia é, entao, a analise da experiencia vivida da decepgao enquanto imediatamente compreendida como uma queda. Ha ai uma metafora? Ha ai uma transferencia analOgica de uma experiencia corporal (por exempla, o relaxamento do tonus muscular dentro da pele)a esfera psiquica ou corpo seria a expressao da alma que the constituiria sentido? Binswanger recua de suas cancel:0es teori- cas demais para se voltar para Husserl e Heidegger que propOem uma compreensao da existencia humana que nao parte da distingao entre o corpo e a alma, mas da existencia em si mesma, a qual se pretende compreender, no caso presente, a partir do existencial que é a espacia- lidade, estrutura a priori da existencia humana, como Heidegger o mostra em Ser e tempo, assim como a partir do ser-jogado na tonalidade efetiva e tambem a partir da explicitacao do compreender,177 Ascensao e queda tern, assim, para o Dasein, uma significagao existencial e nao somente somatica ou espiritual que provem da estrutura ontolOgica do Dasein, e é essa estrutura que constitui a fonte da qual se retiram a linguagem, a imaginagao poetica e o sonho... Isso porque a queda e a ascensao nao sao derivadas de outra coisa, explicaveis por outra coisa, nao sao "simbolos" de outra coisa, pois, como o sublinha Binswanger, "aqui, ontologicamente falando, tropecamos no fundo"179. Mas se queda e ascensao sao existenciais, o que é, entao, que existe? Essa questao: "nos os homens, quem somos nos e o que somos nos?, orienta, de fato, todo texto, como mostra a citagao de Kierkegaard apontada por Binswanger em Sonho e existencia: "convern antes se ater a isso que significa: ser um homem". A resposta deve ser buscada, para Binswanger, mais do lado da poesia, do mito e do sonho do que do lado da ciencia e da filosofia, L. Binswanger, Introduction a l'analyse existentielle, p. 201. Ibid., p. 202. Ibid., p. 203. pois os poetas e os sonhadores souberam que esse "nos" nao é algo que se oferece abertamente a vista, mas é o que, ao contrario, como a physis heraclitica, se esconde sob mil formas e nao pode ser reduzido ao corpo individual e a. sua forma exterior... Compreende-se que estamos por conta disso sempre a entrada do sonho, ja que o carater nao localizavel de nossa "presenca", de nosso Dasein, nos autoriza a nos reconhecer a nos mesmos nos outros entes e a nos identificar na recitacao poetica: "trata-se de mim: eu sou (ou eu poderia ser, o que aqui da no mesmo) esse passaro indefeso ferido mortalmente".. 0 sonho nao e, entao, um dominio particular se- parado do estado habitual de vigilia, mas uma modali- dade particular do ser-no-:mundo. 0 que é essencial no sonho para Binswanger e.a objetivacao em imagens de Stimungen, de tonalidades afetivas. De urn ponto de vista psicopatologico, os sonhos que inquietam os psiquiatras sao precisamente aqueles nos quais o movimento drama- tico do sonho se desenrola para deixar todo o espago ao conteUdo tonal-afetivo... Aqui, aquele que dorme se deixa cativar pelo charme estetico puramente subjetivo de seu sonho, isto é, se deixa it pelo caminho da perda do sentido da vida "que é sempre algo de intersubjetivo, de geral, de objetivo e de impessoal"... 0 puro "afeto" representa caso-limite de tal dissolucao da existencia, pois, como nota Binswanger, tal dissolucao na pura subjetividade nao existe, em sentido estrito, "enquanto o homem e homem", que implica que a existencia nao pode ser definida senao como tensao entre o subjetivo e o objetivo, entre mundo privado e mundo comum, entre sonho e vigilia. Na segunda parte de seu artigo, Binswanger se atem a consideragoes hist6ricas e mostra que la onde se constitui, segundo a perspectiva do humanismo moderno, a compreensao e a elaboragao do si enquanto estrutura fun- damental do homem, a saber, na Grecia, acha-se tambem a Ibid., p. 203. Ibid., p. 204. Ibid., p. 210. Ibid., p. 212. T estrutura ontologica da ascensao e da queda, nao referida ao individuo, mais aqueles que sao ligados pela rata ou pela familia a urn destino comum, pois "o individuo, a rata, o destino e a divindade se misturam aqui intimamente num espaco Unico"th. 0 ocaso do mundo antigo tem como resul- tado a distingao de interior e exterior, de sujeito e objeto, ao passo que, na Gracia, reina apenas a oposicao do dia e da noite, da clareza e da obscuridade e que os sonhos mesmos pertencem ao lado noturno da existencia. E se Binswanger ve na ideia expressa por Petronio, o celebre autor de Satyricon, de que os sonhos nao vem do ceu, do cosmos, mas que cada um os elabora por si mesmos, o signo patente da queda do mundo antigo e da hybris da individu- acao que caracteriza a era moderna,85, é entao porque ele considera implicitamente ao mesmo tempo que ser homem nao pode ser compreendido como uma parte destacavel do todo e que o sonho manifesta de certa maneira essa nao-autonomia do homem. E essa compreensao do sonho como fen6meno ontologico e nao simplesmente psicolOgico que ele vai desenvolver na terceira e Ultima parte do artigo. Nessa terceira parte, Binswanger poe em evidencia fato de que e sob o reino da distincao (Unterscheidung) que se elabora a concepgao do sonho: distincao do ego e do id em Freud, do inconsciente individual e do inconsciente coletivo em Jung, mas, sobretudo, entre o pensamento subjetivo (imaginacao e doxa) e a verdade, pensamento ob- jetivo (apisteme), entre individuo (ekastos) e a proximidade homens-deuses (logos). 0 individuo, compreendido como faz PetrOnio, como o criador de seus proprios sonhos, se torna um modo de ser do homem, uma maneira por meio da qual se pode ser um homem, a saber, a possibilidade nao espiritual do ser humano.6. Heraclito diz que os acordados compartilham apenas urn mundo, ao passo que cada urn que dorme tern urn mundo privado. E Binswanger quer compreender essa oposicao entre o koinon e o idiorn87 a Ibid., p. 215. Ibid., p. 217. IJ 186. Ibid., p. 218. 187. Comum e particular em grego antigo. N. T. maneira de Hegel, que tambem considera que a individu- alidade nao tern significagao espiritual. Isso porque tanto para Heraclito quanto para Hegel, o individuo isolado privado da universalidade que the propicia o seu ser em comum corn os outros e que constitui a base de sua espi- ritualidade. Para Heraclito, a vigilia é o despertar fora do pensamento individual subjetivo, fora da doxa, e a vida seguindo as regras do universal. Sonhar e, portanto, se destacar do todo: "Sonhamos apenas porque nao estamos em relacao corn o todo", explica Hegel em sua exposicao da teoria de Heraclito. 0 mal e o erro residem, assim, na separacao do universal e nessa particularizacao do pensamento que incarna precisamente essas coisas que o individuo so pode saber sozinho, como o sonho, o sentimento e a imagina- cao. Trata-se, portanto, para o homem e, em particular, para o homem doente, de saber se ele quer manter seu pensamento individual, "seu teatro interior", como diz urn dos pacientes de Binswanger, ou se ele quer acordar de seu sonho e tomar parte na vida universal. 0 medico é o mediador entre esses dais mundos e curar significa entrar, corn sua ajuda, na espiritualidade da comunida- de. Binswanger cita Goethe a esse respeito, sua fonte de inspiragao habitual, que fala em encontrar em si mesmo infinito. Isso e possivel pela submissao a. autoridade impessoal do medico e é necessario, nessa perspectiva, compreender a transferencia como o que torna possivel uma espiritualizacao autentica. Binswanger pode a partir dal voltar ao seu problema inicial. 0 sonho e da ordem do acontecimento e nao da ficcao, e ele se apresenta ao indivi- duo sem que ele saiba como. 0 individuo nao é o que esta na origem do sonho, mas é ele que o sofre passivamente. E o homem acordado jorra do que sonha no momento em que decide saber o que the acontece e intervir na marcha do acontecimento. Isso que ele faz é uma questa° historica, nao biologica: "o homem que sonha '6' uma vida biologica, ao passo que o homem acordado 'faz' uma vida historica", essa éa conclusao de Binswanger. 3. As Grundformen de 1942 Se a obra de Ludwig Binswanger é ainda hoje, mais de quarenta anos depois de sua morte, uma fonte de inspi- ragao para toda a corrente da psiquiatria fenomenolOgica, isso se da gragas aos numerosos trabalhos que precederam e, sobretudo, se seguiram a publicagao em 1942 de sua obra maior, Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins (Formas fundamentals e conhecimento do Dasein humano). Esse livro espesso de mais de 600 paginas, que teve quatro edigOes sucessivas, e que, por confissao de seus laltimos editores, contem mais uma compilagao de textos que um ensaio uniforme, permanece ainda urn material muito pouco explorado da obra de Binswangerisa, apesar de sua reedigao recentein. Numa carta a Schroeder datada de Janeiro de 1946, Binswanger explicou que urn dos objetivos fundamentals que ele buscou em seu livro foi "mostrar a que ponto o homem e e aparece completamente outro quando e interpretado a partir do amor e nao da existencia"190. 8 o amor que constitui, aos olhos de Binswanger, a forma fundamental maior sobre o fundo da qual todo o conhe- cimento e toda compreenstio do ser do homem devem se edificar, o que o leva a opor de maneira diametral o amor ao cuidado e a. existencia como Heidegger os compreende. 0 surgimento em 1927 de Ser e Tempo foi, no entanto, urn acontecimento detenninante para Binswanger, cujo pen- samento dal em diante vai se situar no interior da problem& tica do que Heidegger chamou de "Dasein". As Grundformen, que utilizam do comeco ao fim a nomenclatura heideggeriana, Ver o livro de M. Coulomb, PhenomEnologie du nous et psychopa- thologie de l'isolement, La nostrid selon L. Binswanger (Fenomenologia do nos e psicopatologia do isolamento, A nostridade segundo Binswanger), Paris, Le Cercle Hermeneutique, 2009. L. Binswanger, Ausgewahlte Werke, Band 2, Grundformen und Er- kenntnis des menschlichen Daseins (Obras escolhidas, Volume 2, Formas fundamentais e conhecimento do Dasein humano), ed. M. Herzog e H. --J. Braun, Asanger, Heidelberg, 1993 (Referido doravante apenas como Grundformen), prefacio dos editores, p. XLIV. Ibid., p. XVII. empreendem analises extremamente detalhadas e precisas de grandes partes de Ser e Tempo. Nao se pode, portanto, sem mais, acusar Binswanger de nao ter compreendido nada da analitica existencial. E, no entanto, o que parece afirmar o proprio Heidegger, que fala da "compreensao completamente falha" de seu pensamento por Binswanger nos Zollikoner Semi- flare (Seminarios de Z,ollikon)Pn. No prefacio de 1962 a terceira edigao de seu livro, Binswanger mesmo reconhece que the criticaram com justiga por nao ter compreendido a ontologia fundamental heideggerianayn, e ele admite "estar consciente da ingenuidade da critica que ali se faz a Heidegger"... Todavia, ele afirrna que essa ma compreensao de genera antropolOgi- co é "produtiva"194. E isso que explica que se ache, desde as primeiras paginas do livro, a afirmagao segundo a qual "é a teoria de Heidegger que faz nossas pesquisas avangarem"to,. Em 1962, Binswanger nao hesita em novamente dizer que "é somente o horizonte do Dasein posto em evidencia pela questao do ser e o projeto do ser de Heidegger que abriu o campo a possibilidade de uma interpretagao fenomenolOgi- ca global do amoen.. A conclusao desse ultimo prefacio é a seguinte: "o objetivo das Grundformen nao é o de ser uma refutaga.o de Ser e Tempo, mas uma fenomenologia do amoryin. Nada obstante, essa fenomenologia do amor, se ela se desenvolve por urn lado sobre o fundamento da analise existencial heideggeriana, embora interpretada de maneira antropologica, obedece por outro a outras influencias corn- pletamente diferentes, em particular aquelas exercidas sobre Binswanger pelos escritos de Martin Buber,n; alem disso, ela se nutre grandemente de fontes poeticas, no que. _ M. Heidegger, Semindrios de Zurich, p. 315; ver igualrnente p. 177. L. Binswanger, Grundformen, Prefficio, p. 5. Ibid., p. 9. Ibid., p.4. Ibid., p. 50. Ibid., p. 5. Ibid, p. 5. Recordemos que Martin Buber (1878-1965), contemporaneo de Ludwig Binswanger (1881-1966) publicou seu famoso livro Ich und Du (Eu e Tu) em 1923. r, isso que Heidegger tratou, no paragrafo que abre a primeira seccao do livro206, de delimitar cuidadosamente a analitica do Dasein em relacao a antropologia, a psicologia e a biologia, apoiando-se esses dominos de pesquisa sobre fundamentos ontolOgicos nao esclarecidos e nao respondendo claramente a. questao do modo de ser do ente que nos mesmos somos. Binswanger, a despeito de algumas afirmacoes imprudentes, nao desconhece a diferenca entre o nivel ontolOgico das analises heideggerianas e o nivel propria- mente antropologico onde ele situa as suas. Sua oposicao fundamental a Heidegger advem, como ele mesmo explica, do fato de que ele fala undo do Dasein enquanto a cada vez meu, teu ou seu, mas do Dasein humano em geral, ou do Dasein como "humanidade"207 . Eis ai o nUcleo da questa°. exatamente isso que Binswanger considera como o ponto de partida da andlise existencial, a saber, a Jemeinigkeit do Dasein a. qual, ele confessa, ainda em 1962, nao ter chegado a se adaptar... Vem dai as reiteradas criticas a Heidegger por descuidar da nostridade.9e por, a despeito de sua insistencia em fazer do Mitsein, do ser corn os outros, que constitui originalmente o ser-no-mundo do Dasein, continuar a acentuar, do ponto de vista existencial, o ser si mesmo210, como e o caso em Kierkegaard, de quem ele considera que Heidegger apenas secularizou o ideal reli- gioso da existenciwii. Para. Binswanger, ao contrario, "é apenas da nostridade que hasce' a ipseidade", a Wirkeit, a nostridade, sendo "anterior" tanto ao eu quanto ao teu.2. os poetas - de Goethe, Schiller e Rilke a Elizabeth Barret- -Browning - se mostram testemunhas e guardioes de uma compreensao autentica do amor. Binswanger pode, entao, legitimamente afirmar que "o interesse de Heidegger é de todo modo diferente do nosso"ig, partindo do fato de que suas pesquisas sao antropologicas, distinguindo-se, assim, "da intencao puramente ontologica de Heidegger"20.. Encontram- -se repetidas vezes alusoes a essa diferenca fundamental de ponto de vista, sendo o ponto de partida da analise existencial de Heidegger a Jemeinigkeit, a qualidade do que é sempre a cada vez meu, ao passo que o da antropologia binswangueriana e a Unsrigkeit, a nostridade.t. Binswanger esta plenamente consciente de que o objetivo buscado em Ser e Tempo nao e a elaboragao de uma antropologia, e ele reconhece mesmo que a maneira coma Heidegger desenvolve fundamento oculto da historicidade do Dasein no ser para a morte, a saber, a finitude da temporalidade, "é de uma consequencia e de uma demonstratividade admiraveis", altura da qual nao se eleva seu'proprio propOsito, "bem mais modesto, isto e, somente antropologico"... Ele chega a uma verdadeira autocritica, reconhecendo que sua afirmacao, segundo a qual "o amor se manteria, paralisado, no exterior da imagem heideggeriana do homem", repousa sobre urn mal-entendido, ja que Heidegger nunca teve como objetivo a elaboracao de tal imagem.3. Corn relagao a isso é necessario recordar, como o faz Binswanger em seu prefacio de 1962, que Heidegger havia deixado bem claro em Ser e Tempo que a analitica do Dasein nao tern como objetivo estabelecer as bases ontologicas da antropologia, mas tem unicamente por fim a ontologia fundamenta1204 , a saber, o estabelecimento da base ontologica, sobre o fundamento da qual as onto- logias regionais podem em seguida se estabelecer205. E por Ibid., §10. L. Binswanger, Grundformen, p. 197. Ver tambem p. 433 onde Binswanger explica quese trata, para Heidegger, "do Dasein no homem", formula que se pode encontrar em Kant e o problema da metafisica, e nao "do Dasein humano". L. Binswanger, Grundformen, Prefacio, p. 6. Ibid., p. 217. Ibid., p. 113. Ibid., 114, Ver tambem p. XXVII onde se encontra citada uma pas- sagem da carta de Binswanger escrita a M. Buber em 1936. Ibid., p. 113. Ibid., p. 24. Ibid. p. 24. Ibid., p. 49. Ibid., p. 223. Ibid., p. 5. Ver tambem p. 43. M. Heidegger, Ser e tempo, §42. R 205. Ibid., §4, p. 13. Vem dal o fato de "a questao cardinal" colocada por Binswanger ser a de saber se o amor deve ser compreen- dido a partir da temporalidade no sentido heideggeriano e, entao, a partir da estrutura do cuidado ou se, ao contrario, ele nao se temporaliza de modo nenhurwo. Se o amor nao pode ser compreendido a partir do cuidado, o que para Binswanger derive de seu proprio ponto de partida que é a nostridade, isso nao quer dizer que ele esteja de algum modo "para alem do tempo", mas que sua temporalidade "deve ser interpretada nao a partir da finitude do Dasein, mas a partir da infinitude"ata, a infinitude e a eternidade do amor, das quais encontramos testemunho nos poetas, e das quais a "pressuposictio" é, segundo Binswanger, fenome- nologicamente atestavel e imediatamente comprovavel no encontro amoroson.. A "divergencia” que, assim, o separa de Heidegger concerne ao estatuto do amor, que, de uma parte, transcende o cuidado, e de outra, se revela como um a priorino, como o que torna possivel a Erschlossenheit mesma, a abertura do Dasein ao ser 7. 0 que Binswanger afirma sem ambiguidade é "o primado fenomenolOgico do amor sobre o cuidado"n6, sem, contudo, renunciar a pensar ontologicamente o amor, sua transcendencia nao remetendo a nenhum "alem" no sentido metafisico ou religiosone. No entanto, o primado do amor so se pode compreender, paradoxalmente, sobre o fundamento da analise heideggeriana do Dasein como cuidado, nunca estando o amor na vida cotidiana senao "em uniao" corn cuidado, pois "o Dasein so pode ser enquanto infinito na medida em que ele e finito"no. Ibid., p. 46. Ibid. Ibid. p. 240, nota 1. Ibid., p. 88. Ibid., p. 87. Ibid., p. 76. Ibid., p. 87. Ibid., p. 131. Vemos, portanto, que nao se trata, corn as Grundfor- men, nem de uma replica a analise existencial, nem de uma simples extensao dela, mas sim de sua subversao interne a partir da nocao fundarriental de nostridade, corn a qual Binswanger acha que faz quebrar o quadro "solipsista" demais da concepcao heideggeriana da existencia. A opo- sicao maior este. consequentemente entre a Jemeinigkeit, sempre a cada vez meu heideggeriano, e a Wirheit, a nostridade binswangeriana, que deve muito ao Je et tu de Buberni, distinguindo-se dele, porOm, pelo fato de que ela resulta imediatamente do encontro amoroso nao pre- cedido por nenhuma busca por um tu. Tal nostridade nao remete a urn nos plural, mas a urn nos dual, no sentido linguistico do termon2, e ela nao resulta da dualidade do eu e do tu, mas, ao contrario, a precede, na medida em que urn nao existe sem o outro, de sorte que ela consiste numa verdadeira communion. Tal nostridade constitui pare Binswanger uma unidade originaria que nao pode de niodo nenhum ser derivada do si mesmo, mas que, ao contrario, torna possivel todo si mesmo e toda ipseidade. g essa unidade do eu e do tu no amor que Binswanger chama de "coracao" (Herz), no que essa palavra significa a superabundancia (Uberschwang) mesma do amor, o que nele transcende (iiberschwingt) o mundo do cuidadon.. Ha, de fato, para Binswanger uma "realidade do amor" sobre a qual ele afirma sem rodeios que constitui "o mais real de `nosso' Dasein", rompendo, assim, tanto corn Feuerbach, de quern ele se sente, por outros motivos, 221.1; necessario notar que mais ainda que Martin Buber 6 Karl Lowith que é o mais frequentemente invocado por Binswanger, enquanto aquele que soube pOr em evidencia a reciprocidade do Miteinandersein (o ser- um-corn-o-outro) em seu livro de 1928 Das Individuum in. der Rolle des Mitmenschen (0 individuo no papel do proximo). L. Binswanger, Grundformen, p. 237. Binswanger se apoia aqui na interpretacao que Humboldt da do dual, nAo como urn plural reduzido a dois, mas como um "singular coletivo". Ibid., p. 166. Ibid., p. 177 e 138; ti 83 82 7177,7,7 ik muito proximo, quanto corn Freud, que ve todos os dois, eu e o tu, no amor como estando numa ilusao226. Nero se trata certamente de ver na libido a origem do fenomeno amoroso, mesmo que se possa encontrar no amor sexual a sua realizacao mais elevada — e ha nesse ponto uma "diferenga imensa" entre o ponto de vista genetico da psica- nalise e o ponto de vista antropolOgico de Binswanger que "impede comparar sua concepgao corn a da psicanalise"227 . 0 verdadeiro porno da discordia entre Binswanger e Heidegger concerne, entao, a nocao de Jemeinigkeit, o ser a cada vez meu, corn relagao a qual é preciso lembrar que constitui uma estrutura distributiva que Heidegger nomeava inicialmente em 1924 como Jeweiligkeit, o ser cada vez transitorio do Dasein228. Pela nocao de Jemeinigkeit, de minhidade (miennete)29, nao e a "essencia" do Dasein que é definida, mas a sua maneira eminentemente temporal de ser. Abandonar o pensamento da essencia implica que se perceba ao mesmo tempo a finitude do tempo e a estrutura plural da existencia. Ser-no-mundo e ser-com-os-outros sao existenciais cooriginarios, de modo que nao se pode ter urn sem o outro, o que Binswanger nao negligencia, mas que ele nao pode aceitar, pois ele ye ai urn "salto" ilegitimo: é sobre a tese segundo a qual o Dasein é sempre enquanto autor de Gedanken fiber Tod and Unsterblichkeit (Pensamentos sobre a morte e a imortalidade) de 1830 que Feuerbach interessa particularmente a Binswanger, pois ele é "o Unico que viu na morte um fenOmeno erotic° e relacionou sistematicamente o amor e a morte", Grundformen, p. 162, 0 que configura toda a originalidade de Feuerbach nesse texto é o fato de ele abordar o problema da morte a partir da relagao entre o eu e o tu. L. Binswanger, Grundformen, p. 140. Ibid., p. 235. M. Heidegger, Der Begriff der Zeit, Niemeyer, Tubingen, 1989, p. 13. Ver a traducao francesa Le concept de temps (0 conceito de tempo), em Heidegger, Paris, L'Herne, 1983, p. 30. Jeweiligkeit nao tem aqui o sentido de "perpetuidade", termo proposto pelos tradutores, mas remete, ao contrario, ao carater essencialmente temporal e transitorio do "eu sou". M. Heidegger, ntre et temps, §9, p. 42. A traducao de F. Vezin de Jemeinigkeit por "ser-a-cada-vez-meu" se mostra aqui mais precisa que a de minhidade. Mitdasein, coexistente, que ele declara que ela "arrasta (...) atras de si ainda hoje urn enredamento de questOes nao resolvidas"230. A "minhidade" da existencia nao e, entao, de modo nenhum incompativel corn o ser-corn-os-outros, pois o iso- lamento extremo, o do ser-para-a-morte, nao é a negacao, mas a pressuposicao do ser corn os outros em geral. Isso que cada urn tem em comurn corn os outros é precisamen- te sua Jeweiligkeit, de modo que a diferenca insuperavel entre o eu e o outro e o que me torna igual a ele, e o que me separa dele e precisamente o que eu posso compartilhar corn ele. 0 erro consiste, portanto, em pensar que Heidegger parte do homem "isolado" para the atribuir apenas depois a relagao corn o outro. 8 a razao pela qual ele insiste sobre sentido existencial-ontologico do Mitsein que é "uma determinagao do Dasein a cada vez propria"... 0 ser do Dasein é o ser-com-os-outros e nao a egoidade individual do sujeito isolado, de modo que cada vez que Heidegger usa o termo Dasein, o ser-com-os-outros ester coimplicado. Sendo assim, nao se pode compreendernada de Ser e tempo se se ye no Dasein urn simples nome diferente do "sujeito" ou do "eu" e se nao se leva em consideragao o fato de que "o Dasein e essencialmente nele mesmo ser-corn-os-outros.2. Para Binswanger, Heidegger nao chegou a dar lugar ao amor em sua concepgao da relagao corn o outro, porque ele o compreende, sobre a base do cuidado, como preocupagao (FUrsorge), termo que pode ser traduzido em trances, como o faz o tradutor de Etre et temps (Ser e tempo), F. Vezin, por "souci mutuel" .(cuidado mutuo)233. Binswanger, diferentemente de Boss, nao viu o interesse que pode trazer para urn psiquiatra a distilled° heidegge- riana entre duas formas "positivas" de preocupagdo, por oposicao aos modos cotidianos de nossa relagao corn o outro que sao de uma preocupagao deficiente ou indife- rente que nao visa realmente ao outro enquanto tal, mas L. Binswanger, Grundformen, p. 6. M. Heidegger, Sere tempo, § 26. Ibid., §26, p 120. M. Heidegger, Ste et temps, §26. identifica mais ou menos corn o conjunto de utensilios de que se compOe o Umwelt239 (mundo circundante) co- tidiano. A primeira dessas formas é a da preocupagao "substitutiva", nao isenta de certa violencia, que consiste em ajudar o outro, tomando a responsabilidade de seu cuidado e o reduzindo a uma posiedo de dependencia. A segunda é a de uma preocupacao, ao contrario, "an- tecipadora" que consiste em ajudar o outro em vista de the permitir tomar ele mesmo responsabilidade de sua propria existencia. Binswanger considera essa segunda forma de preocupagao como oriunda ainda do mundo do cuidado, jd Boss ye ai, ao contrario, a descried° da relaedo terapeutica ideal, que Heidegger, alem disso, aproxima nos Zollikoner Seminare da maieutica socratica235. Desse modo, é nesse deixar-ser o outro como cuidado autentico que Heidegger ye a forma mais elevada da relagao corn outro. Eis poi-que, a Binswanger, que o critica por ter esquecido o amor, ele responde nos Zollikoner Seminare36 que é sobre o cuidado, compreendido no sentido ontologico de abertura fundamental do existente ao futuro, que se funda o amor assim como a odio. Ele acrescenta ainda: "pode-se mesmo esperar que a determinagdo essencial do amor, que busca urn fio condutor na determinacdo do Dasein possivel pela ontologia fundamental, seja mais essencialmente profunda e de uma estatura bem maior que essa (a de Binswanger) caracterizagdo do amor que ye nele algo mais elevado que o cuidado237. 4. A volta a Husserl Os ultimos textos de Binswanger esbocam um retorno a fenomenologia husserliana, em parte sob grande influenica da interpretacao que the da seu amigo Wilhelm Szilasi, a quem ele dedica precisamente em 1960, ano de 234. Entorno (N.T). 235, M. Heidegger, Seminaires de Zurich, p. 333. Ver tambem p. 57 e 199. Ibid. p. 316. Ibid. 262. aparecimento de Melancolia e Mania, um estudo na coletd- nea de homenagem que the e dedicada pelo seu septuage- simo aniversario238, e cuja interpretagdo da fenomenologia husserliana e heideggeriana3'9ele sempre considerou como extremamente esclarecedora. Mas se 6 uma volta a analise intencional e ao trans- cendentalismo husserliano que marca a ialtima decada da vida de Binswanger, este, longe de abandonar o ponto de vista da Daseinsanalise, tenta, ao contrario, conjugar os enfoques de Heidegger e Husserl, a intencionalidade corn ser-no-mundo e o transcendental corn a consideracao do factual, como o proprio Binswanger ressalta em Melancolia e mania, dizendo que sua abordagem "se ancora de urn lado na doutrina fenomenolOgica husserliana e szilaziana da intencionalidade e na heideggeriana do descolamento aprioristico do Dasein humano ou ser-no-mundo, e de outro, nas formas psiquidtricas do Dasein como facticidades psicopatologicas empiricas"240. No prefacio, Binswanger tern cuidado de indicar que o subtitulo "Estudos fenornenolo- gicos" merece explicagao e nao o "Daseinsanaliticos", pois ele sempre parte da ontologia heideggeriana — pelo menos, poderiamos acrescentar, depois de 1930 — a fim de "descre- ver as doengas mentais em sua constituiedo de ser", noutros termos, como modalidades particulares da existencia. 0 "Die Philosophic Wilhelm Szilazis und die psychiatrische Forschung" (A filosofia de Wilhelm Szilazis e a pesquisa psiquidtrica) em Festschrift fur W. Szilazi (Publicagao comemorativa para W. Szilazi), Munique, 1960. Nascido em 1889 em Budapeste e morto, ele tambem, em 1966, Szilasi estudou inicialmente quimica e filosofia na Hungria, onde ele se tornou professor. Depois conheceu Husserl nos anos de mil, novecebris e vinte e se tornou em 1947 professor em Freiburg. Seus principais livros sao Wissenschaft als Philosophic (Ciencia como filosofia) (1945), Macht und Ohnmacht des Geistes (Poder e impotencia do espirito) (1946) e Einff2hrung in die Phanomenologie Edmund Husserls (Introducao a fenomenologia de Edmund Husserl) (1959). Um capitulo de outro livro, Philosophie und Naturwissenschaft (Filosofia e ciencia natural) (1961), foi traduzido para o frances por A. Fournier, C. Maci e Y. Totoyan corn titulo "Les bases d'expdrience de la Daseinsanalyse de Binswanger"', L'art du comprendre, Etudes de Daseinsanalyse, ("As bases da experiencia da Daseinsanalise de Binswanger", A arte do compreender, Estudos de Daseinsanalise) n°5/6, Dezembro 1996, p. 155-176. 240. Ibid. p. 135. 86 87 objetivo que se bucas ali é mais claramente teorico, e nao somente descritivo, precisamente porque nao se trata de proceder a estudos clinicos da melancolia e da mania, mas de permitir "uma contribuigao a metodologia psiquidtrica", colocando, a esse propOsito, a questao do fundamento teorico da psiquiatria e a da elaboragao de seu rnetodoi. 8 preciso sublinhar que esse metodo nao é fenomenologico no sentido apenas da psicologia "descritiva" brentaniana da qual o primeiro Husserl ainda estava proximo, mas no sentido forte de ciencia transcendental concernente a. estrutura a priori da experiencia, no sentido, portanto, onde a doutrina husserliana da consciencia inten- cional constitui, como o declara Binswanger, "a Unica ciencia que nos permite realizar o que as doutrinas do organismo ou a biologia realizam para a medicina do corpo"292; e isso porque do ponto de vista metodologico, a psiquiatria deve, enquanto terapia, se apoiar na ciencia, do mesmo modo que a medicina se apoia na biologia, e porque, segundo Binswanger, é a doutrina da consciencia transcendental, isto e, a ciencia husserliana, que "reali7a para a psiquiatria que a biologia realiza para a medicina somatica", tal como ele repete na conclusao do mesmo livro143. E necessario, entao, precisar de novo que nao esta em questao para Binswanger nessa ultima fase de sua obra renunciar a Da- seinsanalise, mas sim basear a constituigao transcendental e intencional das objetividades do mundo no fundamento da ontologia do Dasein. Trata-se de procurar os momentos responsaveis pela falha da organizagao estrutural dessas formas do Dasein que sao as psicoses, interrogando a constituigao transcendental da experiencia e, por meio disso, como sublinha Binswanger, "uoltar a constituigao do mundo considerado em seus momentos estruturais constitutivos ou remeter cada objetividade constituida a uma forma essencial correlativa da intencionalidade, a que é para ele a forma constitutiva",H. Esta claro, a partir Ibid. ,p. 15. Ibid.., p. 82. Ibid., p. 135. Ibid.,p. 23. dal, que Binswanger considera a intencionalidade objetiva husserliana as situd-la sobre a base da transcendencia do Dasein, compreendido como ser que projeta o horizonte de urn mundo; e que se trata para ele de compreender a constituigao particular dos mundos psicatico, esquizofre- nico, melancolico e maniac() por meio da investigagao dos momentos estruturaisdesses universos a partir da "cone- lagao" que eles pressupOem entre a Leistung245 , a produgao transcendental do sujeito, e a objetividade assim cosntituida, produto transcendental intramundano que o sujeito se dd. Realmente nao se pode em psicopatologia tentar isolar as supostas "causas" da alteragao do comportamento, porque cada elemento do comportamento esta em inte- ragao corn todos os outros. Pode-se, entretanto, segundo Binswanger, considerar a doenga mental como uma Natu- rexperiment, uma experiencia que a natureza faria, e que mostraria as claras aquilo que costuma restar dissimulado no comportamento nao patolagico no que esse se define como a capacidade de articular a "trama" das operagoes transcendentais sobre o que poderiamos chamar, de algum modo, de a "cadeia" do horizonte de mundo projetada pelo Dasein. Eis a razao pela qual a doenga mental realiza urn tipo de epholce espontanea, isto é, ela coloca entre paren- teses a mundanidade que permite considerar apenas os momentos constitutivos fenomenologicos ou "elementos constituintes do mundo",.. Desse modo, Binswanger pode declarar: "A `trama' dos 'fios' das operagoes transcenden- tais nao se deixa compreender em nenhum lugar mais facilmente do que na falha dessas mesmas operacoes, nas `experiencias da natureza' que se chamam psicoses"247. Ve-se bem, entretanto, que nao se trata de modo nenhum para Binswanger de se manter numa simples andlise das "vivencias de consciencia", mas de ir, como faz o prOprio Husserl desde suas LicOes para uma fe- nomenologia da consciencia Intima do tempo, ate as pro- fundezas hileticas da consciencia para par as claras ali Capacidade, desempenho (N.T.). Ibid., p. 23. 247, Ibid., p. 21. is • 88 89 a articulacao desse projeto que Husserl chama de dupla intencionalidade, constituindo ao mesmo tempo, de urn lado, o objeto e, de outro, o sujeito. E essa a razao pela qual Binswanger sublinha corn rigor que, "desse ponto de vista, a 'experiencia intima' nao é urn privilegio corn relacao a experi8ncia exterior", pois a ciencia a qual ela recorre aqui "nao é uma `psicologia da experiencia intima", nao é uma psicologia da viv8ncia (psiquica) (Erlebnispsychologie) nao a uma fenomenologia do tempo vivido ou do espago vivido, mas a fenomenologia transcendental "248 . Trata- -se, na verdade, de se situar no nivel do que Binswanger Husserl chamam de "pressuposicao transcendental", ou seja, no nivel da "confianga transcendental" que nos remete a essa Urdoxa, a essa fe primordial, que neutraliza ou suspende a epokhe e que se encontra espontaneamente nadificada na esquizofrenia249 e fortemente alterada no dis- turbio maniaco-depressivo. Binswanger parte de uma frase da LOgica formal e logica transcendental que ele ja tinha citado em seu trabalho sobre A fuga em direcei o as ideias; de 1933: "o mundo real reside apenas na pressuposicao constantemente prescrita de que a experiencia continuara constantemente a se desenrolar segundo o mesmo estilo constitutivo"258. Desse modo, a consci6ncia de realidade repousa sobre uma pressuposicao ou expectativa de uma identidade de estilo constitutivo da experiencia, isto é, sobre postulado da persistencia da correlagao entre o que se apresenta no mundo e o que é antecipado pela consciencia - noutros termos, talvez mais claramente heideggeriano e que Binswanger nao usa - entre o horizonte de mundo projetado e o ente que aparece nele, entre a estrutura ontolOgica da existdncia e seu contetdo antic°. Nao é nenhuma surpresa constatar que as falhas de tal "confianca transcendental", falhas essas que poem em questao a consequencia ou a continuidade da experi8ncia nas psicoses, concernem de modo essencial a forma temporal dessa mesma experiencia no seu proprio engendramento: se, de modo penetrantt, Ibid., p. 23. Ibid., p. 22. 1,) 250. Ibid. a producao da experiencia se ve aniquilada nesse "fim do mundo" que vive o esquizofrenico, muito parecido corn aquele descrito por Husserl no § 49 das IdelaY", ela se ve tambem profundamente alterada no sentido daquilo que Szilazi chama de "relaxamento da trama" da organizacao estrutural transcendental da experiencia na mania e na melancolia que constituem, assim, segundo Binswanger, dois tipos diferentes de alteracoes da estrutura temporal intencional. Binswanger apresenta a melancolia e a mania como falhas diferentes da constituigao tempora12.2, a melancolia "urdindo" ou "organizando" a retencao corn a protencao2" de maneira tao "relaxada" que nao chega a alcancar o presente, ao passo que, corn relagao ao maniaco, esse relaxamento da estrutura temporal se caracteriza, ao contrario, pelo de- saparecimento de toda retencao e protericifto, e pelo fato de ele viver apenas na "momentaneidade". Tal caracterizacao da diferenca entre mania e melancolia como diferenca de temporalizacao poderia, como nota Binswanger, conduzir a uma analise existencial dessas psicoses, nos moldes da que conduz Tellenbach a respeito da melancolia. Os trabalhos de Tellenbach, que publicaria seu livro sobre A melancolia em 1961, urn ano depois de Melancolia e Mania, evocam muito o prOprio trabalho de Binswanger254. No entanto, Tellenbach nao faz nenhuma diferenciactio essencial entre Schwermut, o humor sombrio existencial, e a melancolia no sentido clinico do termo. Binswanger nota que a con- cepcao que ele sustenta em seu livro a "diametralmente oposta aquela de Tellenbach"735. Isso porque Verstimmung ou distimia, isto é, a alteragao do humor que se torna E necessario esclarecer que o que Husserl chama nesse § 49 de adestruicilo do mundo" nao é o desparecimento dele, mas a generalizacao do conflito interno a experiencia singular e a ausencia de coerencia do encadeamento dele. Ibid., p. 115. 0 termo em frances 8 protention. Trata-se de um neologismo que tem como base o termo retention, (retencao), cuja etimologia remete ao verbo latino retineo (reter) (N.T.). Ibid., p. 54. Ibid., p. 115. 90 91 sombria no sentido da tristeza do melancolico, nunca se deixa compreender, segundo Binswanger, a partir da dis- posicao efetiva ou do existencial que Heidegger chama de Befindlichkeit2,.. Segundo ele, a alteragao e mais profunda: nao se trata de uma alteracao da temporalizacao, isto é, do "jogo" reciproco das ekstases temporais entre elas, mas de uma alteragao da constituicao temporal aprioristica, da intencionalidade constitutiva de seu terra atual, de seu Woraber52 que, porem, nunca é redutivel a urn presente pontual. Esta é a razao pela qual a distimia melancolica nao é a origem da melancolia, mas, ao contrario, é sua expressao258. 0 distUrbio geral da temporalizacao repousa, entao, no relaxamento geral da sintese temporal, de seus "fins de trama", cujo estilo proprio a melancolia é o da perda, precisamente porque, como veremos, a protencao esta infiltrada de momentos retentivos ou, noutros termos, o futuro e percebido como ja realizado, independentemente dos desmentidos que a experiencia real possa trazer259. Distinguir o humor sombrio existencial da melan- colia no sentido clinico é essencial para o objetivo buscado aqui por Binswanger no sentido metodologico: pois seu trabalho reside "na busca de um metodo, de uma via que permita abordar a essencia das modificagOes de humor melancolico e maniaco como tais e sua antinomia, a es- sencia e nao apenas a intensidade dessas modificacOes"252. Essa distingao feita entre a essencia e a intensidade, e que recupera aquela feita entre o intencional e o existen- cial, é ela mesma problematica, ja. que Binswager parece estar dizendo aqui que considerar a melancolia como urn distUrbio da Befindlichkeit significa considers-la do ponto de vista da intensidade afetiva e nao do ponto de vista estrutural da relacao corn o objeto, doWoraber. A esse respeito pode-se perguntar se o "retorno a Husserl" que é assim esbocado na ultima fase de seu trabalho Ibid., p. 39. Ibid., p. 31. Ibid., p. 51. Ibid., p. 50. I J 260. Ibid., p. 116. nao advern de uma compreensao inadequada do carater "estrutural" dos existenciais do Dasein. Isso iria, alias, no mesmo sentido das criticas de Heidegger a aplicagao binswageriana da analitica do Dasein a psiquiatria, como a de que ela se mantern no simples nivel "existenciario", porque Binswanger compreendeu de modo radicalmente equivocado o que constitui o carater essencial do Dasein, a saber, a compreensao de ser, para considerar apenas seu ser-no-mundo, isto e, sua facticidade, ja que ele tinha falhado em compreender essa facticidade a. luz daquela compreensao. E, de fato, a compreensao de ser ou, para dize-lo mais concretamente, empregando a palavra de Aristoteles, o fato de que o Dasein é de algum modo urn ente251, aberto aos entes e coimplicado no ser que die lhes reconhece, que o impede de ser definido como uma simples interioridade, e nao o contrario, a ausencia de interioridade, que o abre ao ser em geral. E isso porque as estruturas de sua existencia, os existenciais, sao ao mesmo tempo aquelas da constituicao dos entes mesmos. No entanto, tern-se a impressao de que Binswanger volta a Husserl, para alem da existencia, para se assegurar de uma tomada da "realidade", uma realidacle que, entretanto, the escapou. E verdade que inicialmente Binswanger apresenta a mania menos como urn distUrbio da constituicao temporal que como uma falha da co-apresentagao262, porque ela se caracteriza, aparentemente, pela falha da estrutura inten- cional do ego e do alter ego, como o manifesta a declaragao de Olga Blum, paciente de Binswanger, cujo caso é exa- minado aqui. Nessa declaragao, Olga explica que "ela esta muito feli7 que Goethe tenha vivido antes dela, se nao, ela teria de escrever tudo aquilo"252. Tal declaragao supoe uma queda do nivel constitutivo da relacao intersubjetiva, que se poe aqui no nivel da coisidacle, cuja propriedade mais intima Aristateles, Peri Psyches, 431 b 21. Essa passagem é citada por Heidegger em Stre et temps, p. 37 (14), 0 termo em frances é appresentation, traducao inicialmente de Paul Ricoeur para o termo alemao usado por Husserl Appresentation. Na traducao de Meditacaes cartesianas de Husserl, Maria Goreti Lopes e Souza traduz o termo por co-apresentacao. Seguimos a traducdo de Lopes e Souza. Ibid., p. 100. e a substituibilidade, a intercambiabilidade indiferenciada, manifestando a dissolugao dos liames constitutivos no maniaco que se volta, assim, na diregao do descuido. E necessario, porem, delinear essa oposigao entre mania e melancolia, pois, na melancolia tambem, o papel do prOximo é nivelado, mesmo suprimido, deixa claro Binswanger, e nao ha aqui possibilidade de relagao autentica corn o outro. Para o melancolico, sublinha Binswanger, "o outro é antes de tudo o destinatario de suas queixas infatigavelmente repetidas, o ouvinte passivo de suas autorreprovagoes, de seus medos e de suas angustias264. E se o maniaco se dirige em seguida, diferentemente do melancolico, para o alter ego, a necessario perceber que o que sua constitui- gao do alter ego tem de falho nao pode ser compreendido senao a partir daquilo que a estrutura constitutiva de seu proprio ego tern de falho. E, portanto, necessario, em vez de se permanecer numa concepgao da melancolia e da mania compreendida como uma simples oposigao entre introversao e extroversao, determinar a diferenga entre elas como sendo de essencia eminentemente temporal e nao como estabelecendo originariamente uma alteragao da relagao corn o outro. Compreende-se, a partir dai, que Binswanger ressalte que onde falamos de uma falha da co-apresentagao, trata-se naturalmente, como na falha da presentagao (prOpria a melancolia), de urn momento de temporalizagiio. Do mesmo modo que uma presentacao nao é possivel sem apoio sobre os momentos retentivos e protentivos, assim tambem uma co-apresentagao nao é possivel sem esses apoios"265. A co-apresentagao de si mesmo ou do alter ego se funda, entao, na estrutura temporal fundamental que conjuga retengao e protengao. Consequentemente, é ela que a preciso inicialmente elucidar. Ainda que Binswanger se baseie, sobretudo, na obra de Szilazi, Introduction a la phenomenologie de Edmund Husserl (Introducao a fenome- nologia de Edmund Husserl), urn livro de 1959266, urn livro Ibid., p. 71. Ibid., p. 102. Ibid., p. 22. que trata desse assunto, ele aponta para as Lecons sur la phenomenologie de la conscience intime du temps (Licoes sobre a fenomenologia da consciencia intima do tempo) de 1905 267, curso editado em 1928 por Heidegger que ye ai "uma acentuagao do carater intencional da consciencia"268, expressao retomada em parte pelo pr6prio Binswanger que fala a respeito do mesmo curso de "esclarecimento da intencionalidade em seus fundamentos". 0 que é tratado nesse curso, na verdade, é a constituigao dos "objetos tern- porais" (Zeitobjeckte), que, em oposigao ao objeto espacial, sao intrinsecamente determinados pelo tempo, como é o caso da melodia, e isso exige que eles se situem no tempo puramente imanente e que se ponha entre parenteses o tempo objetivo da natureza269, do qual é impossivel partir para elucidar a essencia do tempo. Trata-se, entao, para Husserl, de reiterar o gesto filosofico mais fundamental, aquele da redugao de todo o transcendente, de todos os fatos, para fazer aparecer o puro fenOmeno do tempo: "a coisa real, o mundo real, nao sao um Datum fenomenolO- gico, menos ainda 8 urn Datum fenomenolOgico o tempo do mundo, o tempo coisal, o tempo da natureza no sentido das ciencias da natureza, nem, consequentemente, o da psicologia enquanto ciencia da natureza que tem por objeto o psiquiconva. 0 que é urn Datum fenomenologico e unica- mente a vivencia (Erlebnis) na qual aparece o temporal: "sac Data fenomenologicos as apreensoes de tempo, as vivencias nas quais aparece o temporal no sentido objetivo (...). De modo nenhum, porem, isso e o tempo objetivo. A analise fenomenolOgica nap permite encontrar nenhum resquicio sequer de tempo objetivo"271. De acordo corn esses textos, Binswanger tambem marca claramente o estatuto transcendental e nao psicolOgico da investigagao Ibid., p. 31. Ibid., E. Husserl, Lecons pour une phenomEnologie de la conscience intime du temps, trad. Fr. H. Dussort, Paris, PUF, 1964, Consideragoes previas do editor, p. XII. Ibid., §1. Ibid., p. 6-7. Ibid., p. 9. 94 95 fenomenolOgica: "A ciencia que trabalha corn esse metodo nao é uma (psicologia da experiencia intima", nao é uma psicologia vivida (psiquica) (Erlebnispsychologie) e nao é uma fenomenologia do tempo vivido ou do espaco vivido, mas apenas a fenomenologia transcendental"7,2. E sobre a base de tal epokhe do tempo objetivo que pode aparecer a estrutura temporal fundamental que Husserl representa em seu famoso diagrama do tempova. Porque, para isso, e necessario empreender uma analise mais "profunda" que aquela da "psicologia descritiva" cara a Brentano, a qual compreende a consciencia do tempo a partir da "associagao" do passado e do presente por intermedio da imaginagao, ao passo que, para Husserl, trata-se de fazer aparecer a retenceio continua do passado no presente, retengao essa que Husserl chama de "lem- branga primaria" por oposigao a lembranga secundaria que é a rememoragdo, a qual supoe um passado evocado no presente e nao simplesmente retino nele, como é o caso na percepgao "estendida" descrita por Husserl no §8 de suas Licoes: "Eliminamos agora toda apreensao e toda tese transcendental, e pegamos o som como puro dado hileti- co. Ele comega e cessa, e toda unidade de sua
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