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~ I OS GENEROS DO DISCURSO 1. 0 PROBLEMA E SUA DEFINit;AO Todos os diversos campos da atividade humana esdio ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o carater e as formas desse uso sejam tao multiformes quanto os campos da ativida- de humana, 0 que, e claro, nao contradiz a unidade nacional de uma lfngua. 0 emprego da lingua efetua-se em forma de enunciados* (orais e escritos) concretos e unicos, proferidos pelos integrantes desse ou da- quele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as con- di<_;:6es espedficas e as finalidades de cada referido campo nao s6 por seu conteudo (tematico) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela sele- <_;:ao dos recursos lexicais, fraseol6gicos e gramaticais da lfngua mas, acima de tudo, por sua constrw;:ao composicional. Todos esses tres ele- "' * Bakhtin emprega o termo viskdzivanie, derivado do infinitivo viskdzivat, que significa ato de enunciar, de exprimir, transmitir pensamentos, sentimentos, etc. em palavras. 0 proprio au tor situa viskdzivanie no campo da parole saussuriana. Em Marxismo e filosofia da linguagem (Hucitec, Sao Paulo), o mesmo termo aparece traduzido como "enuncias;ao" e "enunciado". Mas Bakhtin nao faz distins;ao entre enunciado e enun· cia<;:iio, ou melhor, emprega o termo viskdzivanie quer para o ato de produ<,;5o do diSC\11'• so oral, quer para o discurso escrito, o discurso da cultura, urn I'Oillnncc j:l puhlk.1do e absorvido por uma cultura, etc. Por essa raziio, resolvcmos n!lo dcsdohm1 o 11'1'11111 (ja que o proprio auror nao o fez!) e traduzir viskdzi!JII.rlic por cnunt'imlo. (N , doT,) 262j MIKHAIL BAKHTI N mentos- o contetido tematico, o estilo, a constrw;:ao composicional - estao indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e sao igualmen- te determinados pela especificidade de urn determinado campo da co- municac;:ao. Evidentemente, cada enunciado particular e individual, mas cada campo de utilizac;:ao da lingua elabora seus tipos relativamente estd- veis de enunciados, os quais denominamos generos do discurso. A riqueza e a diversidade dos generos do discurso sao infinitas por- que sao inesgotaveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade e integral o repert6rio de gene- ros do discurso, que cresce e se diferencia a medida que se desenvolve e se complexifica urn determinado campo. Cabe salientar em especial a extrema heterogeneidade dos generos do discurso (orais e escritos), nos quais devemos incluir as breves replicas do dialogo do cotidiano (sa- liente-se que a diversidade das modalidades de dialogo cotidiano e ex- traordinariamente grande em func;:ao do seu tema, da situac;:ao e da com- posic;:ao dos participantes), o relato do dia-a-dia, a carta (em todas as suas diversas formas), o comando militar laconico padronizado, a or- dem desdobrada e detalhada, 0 repert6rio bastante vario (padronizado na maioria dos casos) dos documentos oficiais eo diversificado univer- so das manifestac;:6es publidsticas (no amplo sentido do termo: sociais, politicas); mas ai tambem devemos incluir as va.riadas formas das ma- nifestac;:6es cientificas e todos os generos literarios (do proverbio ao ro- mance de muitos volumes). Pode parecer que a heterogeneidade dos generos discursivos e tao grande que nao ha nem pode haver urn plano tinico para o seu estudo: porque, neste caso, em urn plano do estudo apa- recem fenomenos sumamente heterogeneos, como as replicas mono- vocais do dia-a-dia e o romance de muitos volumes, a ordem militar padronizada e ate obrigat6ria por sua entonac;:ao e uma obra lirica pro- fundamente individual, etc. A heterogeneidade funcional, como se pode pensar, torna os trac;:os gerais dos generos discursivos demasiadamente abstratos e vazios. A isto provavelmente se deve o fato de que a questao geral dos generos discursivos nunca foi verdadeiramente colocada. Estu- davam-se- e mais que tudo- os generos literarios. Mas da Antiguida- de aos nossos dias eles foram estudados num corte da sua especificidade artistico-literaria, nas distinc;:6es diferenciais entre eles (no ambito da literatura) e nao como determinados tipos de enunciados, que sao di- ESTETICA DA CRIA<;:Ao VERBAL 1 263 ferentes de outros tipos mas tern com estes uma natureza verbal (lin- giiistica) comum. Quase nao se levava em conta a questao lingiiistica geral do enunciado e dos seus tipos. Comec;:ando pela Antiguidade, es- tudavam-se OS generos retoricos (demais, as epocas subseqiientes pou- CO acrescentaram a teoria antiga); ai ja Se clava mais atenc;:ao a natureza verbal desses generos como enunciados, a tais momentos, por exemplo, como a relac;:ao com o ouvinte e sua influencia sobre o enunciado, so- bre a conclusibilidade verbal espedfica do enunciado (a diferenc;:a da con- clusibilidade do pensamento), etc. Ainda assim, tambem ai a especifi- cidade dos generos ret6ricos (juridicos, politicos) encobria a sua natureza lingiiistica geral. Estudavam-se, por ultimo, tambem OS generos dis- cursivos do cotidiano (predominantemente as replicas do dialogo coti- diano) e, ademais, precisamente do ponto de vista da lingiiistica geral (na escola de Saussure1, em seus adeptos modernos- os estruturalistas, nos behavioristas americanos2 e, em bases lingiiisticas totalmente dis- tintas, nos seguidores de Vossler\ ). Contudo, esse estudo tambem nao podia redundar em uma definic;:ao correta da natureza universalmente lingiiistica do enunciado, uma vez que estava restrito a especificidade do discurso oral do dia-a-dia, por vezes orientando-se diretamente em enunciados deliberadamente primitivos (os behavioristas aniericanos). Nao se deve, de modo algum, minimizar a extrema heterogenei- dade dos generos discursivos e a dificuldade dai advinda de definir a natureza geral do enunciado. Aqui e de especial importancia atentar para a diferenc;:a essencial entre os generos discursivos primarios (simples) e secundarios (complexos) - nao se trata de uma diferenc;:a funcional. Os generos discursivos secundarios (complexos - romances, dramas, pes- quisas cientificas de toda especie, os grandes generos publidsticos, etc.) surgem nas condic;:6es de urn convivio cultural mais complexo e relati- vamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o es- crito)- artistico, cientifico, sociopolitico, etc. No processo de sua forma- c;:ao eles incorporam e reelaboram diversos generos primarios (simples), que se formaram nas condic;:6es da comunicac;:ao discursiva imediata. Esses generos primarios, que integram os complexos, ai se'transformam e adquirem urn carater especial: perdem o vinculo imediato cqm a reali- dade concreta e os enunciados reais alheios: por exemplo, a replica do dialogo cotidiano ou da carta no romance, ao manterem a sua forma e 2641 MIKHAIL BAKHTIN o significado cotidiano apenas no plano do conteudo romanesco, inte- gram a realidade concreta apenas atraves do conjunto do romance, ou seja, como acontecimento artfstico-literario e nao da vida cotidiana. No seu conjunto o romance e urn enunciado, como a replica do dialogo co- tidiano ou uma carta privada (de tern a mesma natureza dessas duas), mas a diferen<;:a deles e urn enunciado secundario (complexo). A diferen<;:a entre OS generos primario e secundario (ideologicos) e extremamente grande e essencial, e e por isso mesmo que a natureza do enunciado deve ser descoberta e definida por meio da analise de ambas as modalidades; apenas sob essa condi<;:ao a defini<;:ao pode vir a ser ade- quada a natureza complexa e profunda do enunciado (e abranger as suas facetas mais importantes); a orienta<;:ao unilateral centrada nos ge- neros primarios redunda fatalmente na vulgarizas:ao de todo o problema (o behaviorismo lingiifstico eo grau extremadode tal vulgarizas:ao). A propria rela<;:ao mutua dos generos primarios e secundarios e o proces- so de forma<;:ao historica dos ultimos lans:am luz sobre a natureza do enunciado (e antes de tudo sobre o complexo problema da rela<;:ao de reciprocidade entre linguagem e ideologia). 0 estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de genero dos enunciados nos diversos campos da atividade humana e de enorme importancia para quase todos os campos da lingiifstica e da fi- lologia. Porque todo trabalho de investiga<;:ao de urn materiallingiifsti- co concreto - seja de historia da lingua, de gramatica normativa, de con- fec<;:ao de toda especie de dicionarios ou de estilistica da lingua, etc. - opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais) rela- cionados a diferentes campos da atividade humana e da comunica<;:ao - anais, tratados, textos de leis, documentos de escritorio e outros, di- versos generos literarios, cientfficos, publidsticos, cartas oficiais e co- muns, replicas do dialogo cotidiano (em todas as suas diversas modali- dades), etc. de onde os pesquisadores haurem os fatos lingiifsticos de que necessitam. Achamos que em qualquer corrente especial de estudo faz-se necessaria uma no<;:ao precisa da natureza do enunciado em ge- ral e das particularidades dos diversos tipos de enunciados (primarios e secundarios), isto e, dos diversos generos do discurso. 0 desconheci- mento da natureza do enunciado e a rela<;:ao diferente com as peculia- ESTETICA DA CRIAc;:Ao VERBAL I 265 ridades das diversidades de genero do discurso em qualquer campo da _ investiga<;:ao lingiifstica redundam em formalismo e em uma abstra<;:ao exagerada, deformam a historicidade d~ investiga<;:ao, debilitam as re- la<;:6es da lingua com a vida. Ora, a lingua passa a integrar a vida atra- ves de enunciados concretos (que a realizam); e igualmente atraves de enunciados concretos que a vida entra na lingua. 0 enunciado e urn nucleo problematico de importancia excepcional. Examinemos nesse corte alguns campos e problemas da lingiifstica. Tratemos em primeiro lugar da estilfstica. Todo estilo esra indisso- luvelmente ligado ao enunciado e as formas tfpicas de enunciados, ou seja, aos generos do discurso. Todo enunciado - oral e escrito, primario e secundario e tambem em qualquer campo da comunica<;:ao discursi- va (rietchevoie obschenie)* - e individual e por isso pode refletir a indi- vidualidade do falante (ou de quem escreve), isto e, pode ter estilo in- dividual. Entretanto, nem todos OS generos sao igualmente propkios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual. Os generos mais favoraveis da literatura de fic<;:ao: aqui o estilo individual integra diretamente o proprio ediff- cio do enunciado, e urn de seus objetivos principais (contudo, no am- bito da literatura de fic<;:ao OS diferentes generos sao diferentes possibi- lidades para a expressao da individualidade da linguagem atraves de diferentes aspectos da individualidade). As condi<;:6es menos propfcias para o reflexo da individualidade na linguagem estao presentes naqueles generos do discurso que requerem uma forma padronizada, por exemplo, em muitas modalidades de documentos oficiais, de ordens militares, nos sinais verbalizados da produ<;:ao, etc. Aqui podem refletir-se nao so os aspectos mais superficiais, quase biologicos da individualidade (e ainda assim predominantemente na realiza<;:ao oral dos enunciados desses tipos padronizados). Na imensa maioria dos generos discursivos (exceto nos artfstico-literarios), o estilo individual nao faz parte do plano ... * Obschenie, substantivo neutro, e comunica~ao, rietchev6ie e deriva~ao de rietch, que e discurso, fala, em alguns aspectos linguagem, mas aqui, na acep~ao ba:khtiniana, e discurso, dai traduzirmos rietchev6i como "discursivo" e rietchev6ie obschen(e como co- munica~ao discursiva, porque e esse o sentido do pensamento de Bakhtin. (N. doT.) 2661 MIKHAIL BAKHTIN do enunciado, nao serve como urn objetivo seu mas e, por assim dizer, urn epifenomeno do enunciado, seu produto complementar. Em dife- rentes generos podem revelar-se diferentes carnadas e aspectos de uma personalidade individual, o estilo individual pode encontrar-se em di- versas relac;:oes de reciprocidade com a lingua nacional. A propria ques- tao da lingua nacional na linguagem individual e, em seus fundamen- tos, o problema do enunciado (porque so nele, no enunciado, a lingua nacional se materializa na forma individual). A propria definic;:ao de - estilo em geral e de estilo individual em particular exige urn estudo mais profundo tanto da natureza do enunciado quanto da diversidade de generos discursivos. A relac;:ao organica e indissoluvel do estilo como genero se revela ni- tidamente tambem na questao dos estilos de linguagem ou funcionais. No fundo, OS estilos de linguagem ou funcionais nao sao outra coisa senao estilos de genero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicac;:ao. Em cada campo existem e sao empregados generos que correspondem as condic;:oes espedficas de dado campo; e a esses gene- ros que correspondem determinados estilos. Uma determinada func;:ao (cientffica, tecnica, publidstica, oficial, cotidiana) e determinadas con- dic;:oes de comunicac;:ao discursiva, espedficas de cada campo, geram determinados generos, isto e, determinados tipos de enunciados estilis- ticos, tematicos e composicionais relativamente esraveis. 0 estilo e in- dissociavel de determinadas unidades tematicas e - 0 que e de especial importancia- de determinadas unidades composicioniJ.is: de determi- nados tipos de construc;:ao do conjunto, de tipos do seu acabarnento, de tipos da relac;:ao do falante com outros participantes da comunicac;:ao discursiva- com os ouvintes, os lei to res, os parceiros, o discurso do ou- tro, etc. 0 estilo integra a unidade de genero do enunciado como seu elemento. lsto nao significa, evidentemente, que o estilo de linguagem nao possa se tornar objeto de urn estudo especial independente. Seme- lhante estudo, ou seja, a estilfstica da lingua como disciplina auto noma, tarnbem e possfvel e necessario. No en tanto, esse estudo so sera corre- to e eficaz se levar permanentemente em coma a natureza do genero dos estilos lingi.ifsticos e basear-se no estudo previo das modalidades de ge- neros do discurso. Ate hoje a estilistica da lingua tern sido desprovida de semelhante base. Daf a sua fraqueza. Nao existe uma classificac;:ao dos ESTETICA DA CRIA<;:Ao VERBAL 1 267 estilos de linguagem que tenha reconhecimento geral. Os auto res das clas- sificac;:oes freqi.ientemente deturpam a principal exigencia logica da classificac;:ao - a unidade do fundamento , As classificac;:oes sao suma- mente pobres e nao diferenciadas. Por exemplo, numa grarnatica aca- demica da lingua russa recentemente publicada sao apresentadas as seguintes variedades estilisticas da lingua: o discurso do livro, o dis- curso popular, o discurso abstrato-cientffico, tecnico-cientffico, jorna- listico-publidstico, oficial, familiar cotidiano, discurso popular vulgar. Paralelamente a esses estilos de linguagem, figuram como modalida- des estilisticas palavras dialeticas, palavras arcaicas, expressoes profis- sionais. Semelhante classificac;:ao dos estilos e absolutamente casual, baseia-se em diferentes prindpios (ou fundamentos) de divisao em es- tilos. Alem disso, essa classificac;:ao e tambem pobre e pouco diferen- ciada*. Tudo isso e resultado direto da incompreensao da natureza de genero dos estilos de linguagem e da ausencia de uma classificac;:ao bern pensada dos generos discursivos por campos de atividade (bern como da distinc;:ao, muito importante para a estilfstica, entre generosprimarios e secundarios). A separac;:ao dos estilos em relac;:ao aos generos manifesta-se de for- ma particularmente nociva na elaborac;:ao de uma serie de questoes his- toricas. As mudanc;:as historicas dos estilos de linguagem estao indisso- luvelmente ligadas as mudanc;:as dos generos do discurso. A linguagem literaria e urn sistema dinamico e complexo de estilos de linguagem; 0 peso espedfico desses estilos e sua inter-relac;:ao no sistema da linguagem literaria estao em rnudanc;:a permanente. A linguagem da literatura, cuja composiyao e integrada pelos estilos da linguagem nao literaria, e urn sistema ainda mais complexo e organizado em outras bases. Para enten- der a complexa dinamica historica desses sistemas, para passar da descri- c;:ao simples (e superficial na maioria dos casos) dos estilos que estao pre- sentes e se alternam para a explicac;:ao historica dessas mudanc;:as faz-se necessaria uma elaborac;:ao especial da historia dos generos discursivos ... . * Classificas;6es igualmente pobres, vagas e sem urn fundamento bern pensatlo dos estilos de linguagem sao apresentadas por A. N. Gv6zdiev em seu livro Ensaios de ·i:1tilo da lin- gua russa (Moscou, 1952, pp. 13-5). Essas classificas;6es se baseiam numa assimilas;ao acdtica das nos;6es tradicionais de estilos de linguagem. (N. da ed. russa.) 2681 MIKHAIL BAKHTIN (tanto primarios quamo secundarios), que refletem de modo mais ime- diato, preciso e flexfvel todas as mudan<;:as que transcorrem na vida so- cial. Os enunciados e seus tipos, isto e, os generos discursivos, sao correias de transmissao entre a historia da sociedade e a historia da linguagem. Nenhum fenomeno novo (fonetico, lexico, gramatical) pode imegrar o sistema da lingua sem ter percorrido urn complexo e longo caminho de experimemac,:ao e elaborac,:ao de generos e estilos*. Em cada epoca de evoluc,:ao da linguagem literaria, o tom e dado por determinados generos do discurso, e nao so generos secundarios (literarios, publidsticos, ciemfficos) mas tambem primarios (determi- nados tipos de dialogo oral- de salao, fmimo, de drculo, familiar-co- tidiano, sociopolftico, filosofico, etc.). Toda ampliac,:ao da linguagem literaria a custa das diversas camadas extraliterarias da lingua nacional esta intimamente ligada a penetrac,:ao da linguagem literaria em todos OS generos (literarios, ciemfficos, publidsticos, de conversac,:ao, etc.), em maior ou menor grau, tambem dos novos procedimentos de genero de construc,:ao do todo discursivo, do seu acabamento, da inclusao do ou- vime ou parceiro, etc., o que acarreta uma reconstruc,:ao e uma renova- c,:ao mais ou menos substancial dos generos do discurso. Quando re- corremos as respectivas camadas nao literarias da lingua nacional estamos recorrendo inevitavelmente tambem aos generos do discurso em que se realizam essas camadas. Trata-se, na maioria dos casos, de diferentes tipos de generos de conversac,:ao e dialogo; daf a dialogizac,:ao mais ou menos brusca dos generos secundarios, o enfraquecimento de sua com- posic,:ao monologica, a nova sensac,:ao do ouvinte como parceiro-inter- locutor, as novas formas de conclusao do todo, etc. Onde ha estilo ha genero. A passagem do estilo de urn genero para outro nao so modifica o som do estilo nas condic,:6es do genero que nao lhe e proprio como destroi ou renova tal genero. Desse modo, tanto os estilos individuais quanto os da lingua satis- fazem aos generos do discurso. Urn estudo mais profundo e amplo des- 'Y * Essa nossa tese nada tern a ver com a de Vossler acerca do primado do estilistico sobre o gram:itico. Nossa exposi<;ao subseqiiente o mostrar:i com plena clareza. (N. da ed. russa.) ESTETICA DA CRIA<;:Ao VERBAL 1 269 tes e absolutamente indispensavel para uma elaborac,:ao eficaz de todas as quest6es da estilfstica. Contudo, tanto a questao metodologica de prindpio quanto a ques- tao geral relativa as relac,:6es redprocas do lexico com a gramatica, por urn lado, e com a estilfstica, por outro, baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos generos do discurso. A gramatica ( e o lexico) se distingue substancialmente da estilfstica 1 (alguns chegam ate a coloca-la em oposic,:ao a estilistica), mas ao mesmo tempo nenhum estudo de gramatica (ja nem falo de gramatica norma- tiva) pode dispensar observac,:6es e incurs6es estilisticas. Em toda uma serie de casos e como se fosse obliterada a fronteira entre a gramatica e a estilistica. Ha fenomenos que uns estudiosos relacionam ao campo da gramatica, outros, ao campo da estilistica. Urn deles eo sintagma. Pode-se dizer que a gramatica e a estilfstica convergem e divergem em qualquer fenomeno concreto de linguagem: se o examinamos ape- nas no sistema da lingua estamos diante de urn fenomeno gramatical, mas se o examinamos no conjunto de urn enunciado individual ou do genero discursivo ja se trata de fenomeno estilistico. Porque a propria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante e urn ato estilistico. Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo fenomeno concreto da lingua nao devem ser mutuamente impenetraveis nem sim- plesmente substituir mecanicamente urn ao outro, devendo, porem, combinar-se organicamente (na sua mais precisa distinc,:ao metodolo- gica) com base na unidade real do fenomeno da lingua. 56 uma con- cepc,:ao profunda da natureza do enunciado e das peculiaridades dos generos discursivos pode assegurar a soluc,:ao correta dessa complexa questao metodologica. 0 estudo da natureza dos enunciados e dos generos discursivos e, segundo nos parece, de impord.ncia fundamental para superar as con- cepc,:6es simplificadas da vida do discurso, do chamado "fluxo discursi- vo", da comunicac,:ao, etc., daquelas concepc,:6es que ainda dominam a nossa lingiifstica. Alem do mais, o estudo do enunciado como unidade real da comunicariio discursiva permitira compreender de tnodo mais correto tambem a natureza das unidades da lingua (enquanto. sistema) - as palavras e orac,:6es. E para essa questao mais geral que passamos agora. 270 I M IKHAIL BAKHTI N 2. 0 ENUNC IADO COMO UNIDADE DA COMUNICAc;:AO DISCURSIVA. DIFERENc;:A ENTRE ESSA UNIDADE E AS UNIDADES DA LfNGUA (PALAVRAS E ORAc;:OES) A lingiiistica do seculo XIX, a come<;:ar por Wilhelm Humboldt, sem negar a fun<;:ao comunicativa da linguagem, procurou colod-la em segundo plano, como algo secundario; promovia-se ao primeiro plano a fun<;:iio da forma<;:iio do pensamento, independente da comunicaflio. Daf a famosa formula de Humboldt: "Sem fazer nenhuma men<;:ao a neces- sidade de comunica<;:ao entre os homens, a lingua seria uma condi<;:ao indispensavel do pensamento para o homem ate mesmo na sua eterna solidiio."* Outros, por exemplo os partidarios de Vossler, colocavam em primeiro plano a chamada fun<;:ao expressiva. A despeito de toda a diferen<;:a na concep<;:ao dessa fun<;:ao por teoricos particulares, sua essen- cia se resume a expressao do mundo individual do falante. A lingua e deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se, de objetivar-se. A essencia da linguagem nessa ou naquela forma, por esse ou aquele caminho se reduz a cria<;:ao espiritual do individuo. Propunham-se e ainda se prop6em varia<;:6es urn tanto diferentes das fun<;:6es da lingua- gem, mas permanece caracteristico, senao o pleno desconhecimento, ao menos a subestima<;:ao da fun<;:ao comunicativa da linguagem; a lingua- gem e considerada do ponto de vista do falante, como que de um falan- te sem a rela<;:ao necessdria com outros participantes da comunica<;:ao dis- cursiva. Se era levado em conta o papel do outro, era apenas como papel de ouvinte que apenas compreende passivamente o falante. 0 enun- ciado satisfaz ao seu objeto (isto e, ao conteudo do pensamento enuncia- do) e ao proprio enunciador. Em essencia, a lingua necessita apenas do falante - de urn falante - e do objeto da sua fala, se neste caso a lingua pode servir ainda como meio de comunica<;:ao, pois essa e a sua fun<;:ao secundaria,. que nao afeta a sua essencia. Urn grupo lingiiistico, a mul- tiplicidade de falantes evidentemente nao pode ser ignorada de manei- ra nenhuma quando se fala da lingua; no entanto, quando se define a " * Humboldt, W ilhelm. Sobre a diftrenra entre os organismos da linguagem humana e a influencia dessa diferenra no desenvolvimento mental da humanidade. Sao Petersburgo, 1859, p. 51. (N. da ed. russa.) ESTETICA DA CRIA<;:AO VERBAL I 271 essencia da lingua, esse momento nao se torna necessaria e determic nante da natureza da lingua. As vezes o grupo lingiifstico e visto como uma certa personalidade coleriva, "o espirito do povo", etc., e se lhe da grande importancia (entre os representantes da "psicologia dos povos"), mas tambem neste caso a multiplicidade de falantes, dos outros em re- la<;:ao a cada falante dado, carece de substancialidade. Ate hoje ainda existem na lingiifstica ficfoes como o "ouvinte"* eo "entendedor" (parceiros do "falante", do "fluxo unico da fala'', etc.) . Tais fic<;:6es dao uma no<;:ao absolutamente deturpada do processo com- plexo e amplamente ativo da comunica<;:ao discursiva. Nos cursos de lingiiistica geral (inclusive em alguns tao serios quanto ode Saussure4), aparecem com freqiiencia representa<;:6es evidentemente esquematicas dos dois parceiros da comunica<;:ao discursiva - o falante eo ouvinte (o receptor do discurso); sugere-se urn esquema de processos ativos de dis- curso no falante e de respectivos processos passivos de recep<;:ao e com- preensao do discurso no ouvinte. _Nao se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que nao correspondam a determinados momentos da realidade; contudo, quando passam ao objetivo real da comunica<;:ao discursiva eles se transformam em fic<;:ao cientffica. Neste caso, o ou- vinte, ao perceber e compreender o significado (lingiiistico) do discurso, ocupa simultaneamente em rela<;:ao a ele uma ativa posi<;:ao responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usa-lo, etc.; essa posi<;:ao responsiva do ouvinte se for- ma ao Iongo de todo o processo de audi<;:ao e compreensao desde o seu infcio, as vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante. Toda compreensao da fala viva, do enunciado vivo e de natureza ativa- mente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensao e prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensao pas- siva do significado do discurso ouvido e apenas urn momento abstrato da compreensao ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subseqiiente resposta em voz real alta. E claro que nem sempre ocorre " * 5/Uchatiel, derivado de sluchat (ouvir); ponimdiuschi, derivado de ponimtit, enrender, compreender. (N. doT.) 272 / MIKHAIL BAKHTIN imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo de- pois de pronunciado: a compreensao ativamente responsiva do ouvido (por exemplo, de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na as;ao (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execus;ao), pode permanecer de quando em quando como compreen- sao responsiva silenciosa (alguns generos discursivos foram concebidos apenas para tal compreensao, por exemplo, os generos liricos), mas isto, por assim dizer, e uma compreensao responsiva de efeito retardado: cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subseqtientes ou no comportamento do ouvinte. Os generos da complexa comunicas;ao cultural, na maioria dos casos, foram con- cebidos precisamente para essa compreensao ativamente responsiva de efeito retardado. Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente, mu- tatis mutandis, ao discurso escrito e ao lido. Portanto, toda compreensao plena real e ativamente responsiva e nao e senao uma fase inicial preparatoria da resposta (seja qual for a for- ma em que ela se de). 0 proprio falante esta determinado precisamente a essa compreensao ativamente responsiva: de nao espera uma com preen- sao passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma con~ordancia, uma participa<;ao, uma objes;ao, uma execus;ao, etc. (os diferentes generos discursivos pressu- p6em diferentes diretrizes de objetivos, projetos de discurso dos falantes ou escreventes). 0 empenho em tornar inteligivel a sua fala e apenas o momenta abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante. Ademais, todo falante e por si mesmo urn respondente em maior ou menor grau: porque ele nao e 0 primeiro falante, 0 primeiro a ter vio- lado o eterno silencio do universo, e pressup6e nao so a existencia do sistema da lingua que usa mas tambem de alguns enunciados antece- dentes - dos seus e alheios - com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relas;6es (baseia-se neles, polemiza com des, simplesmen- te os pressup6e ja conhecidos do ouvinte). Cada enunciado e urn elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. Desse modo, o ouvinte com sua compreensao passiva, que e repre- sentado como parceiro do falante nos desenhos esquematicos das lin- gtiisticas gerais, nao corresponde ao participante real da comunicas;ao discursiva. Aquilo que o esquema representa e apenas urn momento abs- ESTt:TICA DA CRIA<;:Ao vERBAL 1 273 trato do ato pleno e real de compreensao ativamente responsiva, que gera a resposta (a que precisamente visa o falante). Por si mesma, essa abs- tras;ao cientifica e perfeitamente justificada, mas sob uma condis;ao: a de ser nitidamente compreendida apenas como abstra<;ao e nao ser apre- sentada como fenomeno pleno concreto e real; caso contririo, ela se transforma em fics;ao. E exatamente o que acontece na lingtiistica, uma vez que esses esquemas abstratos, mesmo nao sendo apresentados dire- tamente como reflexo da comunicas;ao discursiva real, tampouco sao completados por alusoes a uma maior complexidade do fenomeno real. Como resultado, o esquema deforma o quadro real da comunica- s;ao discursiva, suprimindo dela precisamente os momentos mais subs- tanciais. Desse modo, o papel ativo do outro no processo de comunica- s;ao discursiva sai extremamente enfraquecido. 0 mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no processo da comunicas;ao discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impreciso e ambiguo de termos como "fala'' ou "fluxo da fala''. Esses termos deliberadamente imprecisos habitualmente deveriam designar aquilo que e submetido a uma clivi- sao em unidades da lingua, concebidas como cortes desta: unidades fonicas (fonema, sflaba, cadencia da fala) e significativas (oras;ao e pa- lavra). "0 fluxo da fala se desintegra ... ", "nossa fala se divide ... "- e as- sim que nos cursos gerais de lingtifstica e gramatica, bern como nos es- tudos especiais de fonetica e lexicologia, costumam introduzir as par- tes dedicadas ao estudo das respectivas unidades da lingua. Infelizmente, ate a nossa gramatica academica recentemente lans;ada emprega o mes- mo termo indefinido e ambfguo "nossa fala''. Veja-se como se introduz a respectiva parte da fonetica: "Nossa fola se divide antes de tudo em oras;6es, que por sua vez podem decompor-se em conibinas;oes de pa- lavras e palavras. As palavras se dividem nitidamente em unidades fo- nicas mfnimas - as silabas ... As sflabas se dividem em sons particulares da fala ou fonemas ... "* 0 que vern a ser "fluxo da fala'', "nossa fala''? Quale a sua exten-sao? Terao prindpio e fim? Se tern duras;ao indefinida, qu~ corte deles " * Gramdtica da lingua russa, p. l, Moscou, 1952, p. 51. (N. da ed. russa.) 274 / MIKHAIL BAKHTIN nos tomamos para dividi-lo em unidades? A respeito de todas essas quest6es reinam a plena indefini<;:ao e a reticencia. A palavra indefini- da rietch ("fala, [discurso]"), que pode designar linguagem, processo de discurso, ou seja, o falar, urn enunciado particular ou uma serie inde- finidamente longa de enunciados e urn determinado genero discursivo ("ele pronunciou urn rietch [discurso]"), ate hoje nao foi transformada pelos lingiiistas em urn termo rigorosamente limitado pela significa<;:ao e definido (definivel) (fen6menos anilogos ocorrem tambem em ou- tras linguas). Isto se deve a quase completa falta de elabora<;:ao do pro- blema do enunciado e dos generos do discurso e, conseqiientemente, da comunica<;:ao discursiva. Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significa<;:6es (exceto com a ultima). Mais amiude su- bentende-se por "noss.a fala" qualquer enunciado de qualquer pessoa; alem do mais, essa compreensao nunca e sustentada ate o fim*. Entretanto, se e indefinido e vago o que dividem e decomp6em em unidades da lingua, nestas tambem se introduzem a indefini<;:ao e a confusio. A indefini<;:ao terminol6gica e a confusio em urn ponto metodo- l6gico central no pensamento lingiiistico sao o resultado do desconhe- cimento da real unidade da comunica<;:ao discursiva - o enunciado. Porque o discurso s6 pode existir de fato na forma de enuncia<;:6es con- cretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. 0 discurso sempre esta fundido em forma de enunciado pertencente a urn determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma nao pode existir. Por mais dife- rentes que sejam as enuncia<;:6es pelo seu volume, pelo conteudo, pela constru<;:ao composicional, elas possuem como unidades da comunica- <;:ao discursiva peculiaridades estruturais comuns, e antes de tudo limi- T *Alias nem ha como sustenra-la. Uma enuncia-;:ao como ''Ah!" (replica de urn dialogo) nao pode ser dividida em ora-;:6es, combina<;:6es de palavras, sflabas. Conseqi.ienremen- te, nem toda enuncia<;:Jo serve. Demais, dividem a enuncia<;:ao (a fala) e chegam a unidades da lingua. Com muita freqi.iencia a ora<;:ao e definida como o enunciado mais simples, logo, ja nao pode ser uma unidade da enuncia<;:ao. Pressup6e-se em silencio a fala de urn falanre, desprezando-se os sons harm6nicos dialogicos. Em comparas:ao com os limites dos enunciados, todos os demais limites (entre ora<;:6es, combina<;:6es de palavras, sinragmas, palavras) sao relativos e convencionais. (N. da ed. russa.) ESTfTICA DA CRIA<;:Ao VERBAL I 275 tes absolutamente precisos. Esses limites, de natureza especialmente subs- tancial e de prindpio, precisam ser examinados minuciosarhente. Os lirnites de cada enunciado concreto. como unidade da comuni- ca<;:ao discursiva sao definidos pela alterndncia dos sujeitos do discurso, ou seja, pela alternancia dos falantes. Todo enunciado- da replica su- cinta (monovocal) do diilogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientifico- tern, por assim dizer, urn prindpio absoluto e urn fim abso- luto: antes do seu inicio, os enunciados de outros; depois do seu terrnino, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos urna cornpreensao ativarnente responsiva silenciosa do outro ou, por ultimo, uma a<;:ao responsiva baseada nessa compreensao). 0 falante termina o seu enun- ciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar a sua cornpreensao ativamente responsiva. 0 enunciado nao e uma unidade convencional, mas uma unidade real, precisamente delimitada da alternancia dos su- jeitos do discurso, a qual termina corn a transmissao da palavra ao ou- tro, por mais silencioso que seja o "dixi" percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou. Essa alternancia dos sujeitos do discurso, que cria lirnites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida, de- pendendo das diversas funs;6es da linguagem e das diferentes condi<;:6es e situa<;:6es de comunica<;:ao, e de natureza diferente e assume forrnas varias. Observamos essa alternancia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no dialogo real, em que se alternarn as enun- cia<;:6es dos interlocutores (parceiros do dialogo), aqui denorninadas replicas. Por sua precisao e simplicidade, o diilogo e a forma classica de comunica<;:ao discursiva. Cada replica, por mais breve e fragmenraria que seja, possui urna conclusibilidade espedfica ao exprimir certa po- si<;:ao do falante que suscita resposta, ern rela<;:ao a qual se pode assumir uma posis;ao responsiva. Essa conclusibilidade espedfica do enunciado sera objeto de nosso exame posterior (trata-se de urn dos tras;os funda- mentais do enunciado). Ao rnesmo tempo, as replicas sao interligadas. Mas aquelas rela<;:6es que existem entre as replicas do dialogo- as rela<;:6es de pergunta-resposta, afirmas;ao-obje<;:ao, afirma<;:ao-conconJancia, pro- posta-aceita~ao, ordem-execu<;:ao, etc. - sao impossiveis entre unidades da lingua (palavras e ora<;:6es), quer no sistema da lingua (no C<orte ver- tical), quer no interior do enunciado (no corte horizontal). Essas rela- 276 I MIKHAIL BAKHTIN c;:6es espedficas entre as replicas do di<ilogo sao apenas modalidades das relac;:6es espedficas entre as enunciac;:6es plenas no processo de comu- nicac;:ao discursiva. Essas relac;:6es so sao possfveis entre enunciac;:6es de diferentes sujeitos do discurso, pressup6em outros (em relac;:ao ao fa- lame) membros da comunicac;:ao discursiva. Essas relac;:6es entre enun- ciac;:6es plenas nao se prestam a gramaticalizac;:ao, uma vez que, reitere- mos, nao sao possfveis entre unidades da lingua, e isso tanto no sistema da lingua quanto no interior do enunciado. Nos generos secundarios do discurso, particularmente nos retoricos, encontramos fenomenos que parecem contrariar essa nossa tese. Mui- to amiude o falante (ou quem escreve) coloca quest6es no ambito do seu enunciado, responde a elas mesmas, faz objec;:6es a si mesmo e refuta suas proprias objec;:6es, etc. Mas esses fenomenos nao passam de repre- sentac;:ao convencional da comunicac;:ao discursiva nos generos prima- rios do discurso. Essa representac;:ao caracteriza os generos retoricos (lato sensu, incluindo algumas modalidades de popularizac;:6es cientfficas), conti.rdo todos os outros generos secundarios (artfsticos e cientfficos) se valem de diferentes formas de introduc;:ao, na construc;:ao do enun- ciado, dos generos de discurso primarios e relac;:6es entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformac;:6es de diferentes graus, uma vez que nao ha uma alternancia real de sujeitos do discurso). E essa a natureza dos generos secundarios*. Entretanto, em todas essas manifestac;:6es, as relac;:6es entre generos primarios reproduzidos, ainda que eles estejam no ambito de urn enunciado, nao se prestam a gramaticalizac;:ao e con- servam a sua natureza espedfica essencialmente distinta da [natureza] das relac;:6es entre as palavras e orac;:6es (e outras unidades da lingua - grupos de palavras, etc.) dentro do enunciado. Aqui, com base no material do dialogo e das suas replicas, e neces- sario abordar previamente 0 problema da orarao como unidade da lin- gua em sua distinc;:ao em face do enunciado como unidade da comunica- rao discursiva. (A questao da natureza da orac;:ao e uma das mais comple- xas e diffceis na lingtifstica. A !uta de opini6es em torno dessa questao continua em nossa ciencia ate os dias de hoje. Nao e tarefa nossa, eviden- "' *As cicatrizes dos limites estao nos generos secundarios. (N. da ed. russa.) ESTETICA DA cRrA<;:Ao VERBAL I 277 temente, revelaressa questao em toda a sua complexidade; nossa inten- c;:ao e abordar apenas urn aspecto, mas tal aspecto nos parece de impor- tincia substancial para toda a questao. Para nos importa definir com precisao a relac;:ao da orac;:ao com o enunciado. lsto ajudara a elucidar com mais clareza o enunciado, de urn lado, e a orac;:ao, de outro.) Posteriormente trataremos dessa questao, por ora observamos ape- nas que os limites da orac;:ao enquanto unidade da lingua nunca sao de- terminados pela alternancia de sujeitos do discurso. Essa alternancia, que emoldura a orac;:ao de ambos os !ados, convene-a em urn en uncia- do pleno. Essa orac;:ao assume novas qualidades e e percebida de modo inteiramente diverso de como e percebida a orac;:ao emoldurada por ou- tras orac;:6es no contexto de urn enunciado desse ou daquele falante. A orac;:ao e urn pensamento relativamente acabado, imediatamente cor- relacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado; ao termino da orac;:ao, o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subseqtiente, que da continuidade, completa e fundamenta o primeiro. 0 contexto da orac;:ao e o contex- to da fala do mesmo sujeito do discurso (falante); a orac;:ao nao secor- relaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situac;:ao, o ambiente, a pre-historia) nem com as enun- ciac;:6es de outros falantes, mas tao-somente atraves de todo o contexto que a rodeia, isto e, atraves do enunciado em seu con junto. Se, porem, a orac;:ao nao esta cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante, ou seja, se ela e urn enunciado pleno e acabado ( uma replica do dialogo), entao ela estara imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciac;:6es dos ou- tros; depois destas ja nao vern a pausa, que e definida e assimilada pelo proprio falante (pausas de toda especie, como manifestac;:6es gramati- cais calculadas e assimiladas, so sao possfveis dentro do discurso de urn falante, isto e, dentro de urn enunciado; as pausas entre as enunciac;:6es nao sao, evidentemente, de natureza gramatical e sim real; essas pausas reais - psicologicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstancias ex- ternas - podem destruir tambem urn enunciado; nos genere? ardstico- literarios secundarios, tais pausas sao levadas em conta pelo .artista, o diretor de cena, o ator, mas elas sao diferentes por prindpio t~nto das pausas gramaticais quanto das pausas estilisticas - por exemplo, entre 278 / MIKHAIL BAKHTIN os sintagmas- no interior do enunciado); depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensao responsiva de outro falante. Semelhante oras;ao, tornada enunciado pleno, ganha uma validade semantica especial: em rela<;:ao a ela pode-se ocupar uma posi<;:ao responsiva, com ela se pode concordar ou discordar, execura-la, avalia-la, etc.; no contexto, a oras;ao carece de capacidade de determinar a resposta; ela ganha essa capacidade (ou melhor, familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado. Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas per- tencem nao a propria oras;ao, que se tornou enunciado pleno, mas pre- cisamente ao enunciado, traduzindo a natureza dele e nao a natureza da oras;ao: elas se incorporam a oras;ao completando-a ate torna-la enun- ciado pleno. A oras;ao enquanto unidade da lingua carece de todas es- sas propriedades: nao e delimitada de ambos OS !ados pela alternancia dos sujeitos do discurso, nao tern contato imediato com a realidade (com a situas;ao extraverbal) nem relas;ao imediata com enunciados alheios, nao disp6e de plenitude semantica nem capacidade de determinar ime- diatamente a posis;ao responsiva do outro falante, isto e, de suscitar res- posta. A oras;ao enquanto unidade da lingua tern natureza gramatical, fronteiras gramaticais, lei gramatical e unidade. (Examinada em urn enunciado pleno e do ponto de vista desse todo, ela adquire proprie- dades estilisticas.) Onde a oras;ao figura como urn enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa. Quando esquecemos esse pormenor na analise de uma oras;ao, detur- pamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambem a natureza do enun- ciado, gramaticalizando-o). Muitos lingiiistas e correntes lingiiisticas (no campo da sintaxe) sao prisioneiros dessa confusao, e o que estudam como oras;ao e, no fundo, algum hibrido de oras;ao (de unidade da lin- gua) e de enunciado (de unidade da comunicas;ao discursiva). Nao se intercambiam oras;6es como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido lingiiistico) e grupos de palavras; intercambiam-se enunciados que sao construidos com o auxilio das unidades da lingua: palavras, combinas;6es de palavras, oras;6es; ademais, o enunciado pode ser cons- truido a partir de uma oras;ao, de uma palavra, por assim dizer, de uma unidade do discurso (predominantemente de uma replica do dialogo), mas isso nao leva uma unidade da lingua a transformar-se em unidade da comunicas;ao discursiva. ESTETICA DA CRIA \:AO VERBAL I 279 A ausencia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicas;ao discursiva redunda em uma distins;ao imprecisa da ora- s;ao e do enunciado e freqiientemente total_ confusao dos do is. Voltemos ao dialogo real. Como ja dissemos, trata-se da forma mais simples e classica de comunicas;ao discursiva. A alternancia dos sujei- tos do discurso (falantes), que determina os limites dos enunciados, esta aqui representada com excepcional evidencia. Contudo, em outros campos da comunicas;ao discursiva, inclusive nos campos da comuni- cas;ao cuitural (cientifica e artisrica) complexamente organizada, ana- tureza dos limites do enunciado e a mesma. Complexas por sua construs;ao, as obras especializadas dos diferen- tes generos cientificos e artisticos, a despeito de toda a diferens;a entre elas e as replicas do dialogo, tambem sao, pela propria natureza, uni- dades da comunicas;ao discursiva: tambem estao nitidamente delimi- tadas pela alternancia dos sujeitos do discurso, cabendo observar que essas fronteiras, ao conservarem a sua precisao externa, adquirem urn ca- rater interno gras;as ao faro de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - ai revela a sua individualidade no estilo, na visao de mundo, em rodos os elementos da ideia de sua obra. Essa marca da individualidade, jacente na obra, e 0 que cria prindpios interiores es- pedficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicas;ao discursiva de urn dado campo cultural: das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia, de outras obras da mesma corrente, das obras das correntes hostis combatidas pelo autor, etc. A obra, como a replica do dialogo, esta disposta para a resposta do outro (dos outros), para a sua ativa compreensao responsiva, que pode assumir diferentes formas: influencia educativa sobre os leitores, sobre suas convics;6es, respostas criticas, influencia sobre seguidores e conti- nuadores; ela determina as posis;6es responsivas dos outros nas com- plexas condis;6es de comunicas;ao discursiva de urn dado campo da cultura. A obra e urn elo na cadeia da comunicas;ao discursiva; como a replica do dialogo, esta vinculada a outras obras- enunciados: com aque- las as quais ela responde, e com aquelas que lhe respondem; ao mesmo tempo, a semelhans;a da replica do dialogo, ela esta separaqa daquelas pelos limites absolutos da alternancia dos sujeitos do discurso. Desse modo, a alternancia dos sujeitos do discurso, que etnoldura o enunciado e cria para ele a massa .firme, rigorosamente delimitada 280 I MIKHAIL BAKHTIN dos outros enunciados a ele vinculados, e a primeira peculiaridade cons- titutiva do enunciadocomo unidade da comunica<_;:ao discursiva, que o distingue da unidade da llngua. Passemos a segunda peculiaridade do enunciado, intimamente vinculada a primeira. Essa segunda peculiari- dade e a conclusibilidade especifica do enunciado. A conclusibilidade do enunciado e uma especie de aspecto interno da alternancia dos su- jeitos do discurso; essa alternancia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momenta ou sob dadas condi<_;:oes. Quando ouvimos ou vemos, percebemos nitida- mente o fim do enunciado, como se ouvissemos o "dixi" conclusivo do falante. Essa conclusibilidade e especifica e determinada por categorias especificas. 0 primeiro e mais importante criteria de conclusibilidade do enunciado e a possibilidade de responder a ele, em termos mais pre- cisos e amplos, de ocupar em rela<_;:ao a ele uma posi<_;:ao responsiva (por exemplo, cumprir u,ma ordem) . A esse criteria corresponde tambem a pergunta sucinta do cotidiano, por exemplo, "Que horas sao?" (a ela pode-se responder), eo pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido, o discurso cientifico com o qual podemos concordar ou nao concordar (inteiramente ou em parte), eo romance ficcional, que pode ser avaliado no seu conjunto. Alguma conclusibilidade e necessa- ria para que se possa responder ao enunciado. Para isso nao basta que o enunciado seja compreendido no sentido de lingua. Uma ora<_;:ao ab- solutamente compreensivel e acabada, see ora<_;:ao e nao enunciado cons- tituido por uma ora<_;:ao, nao pode suscitar atitude responsiva*: isso e compreensivel mas ainda nao e tudo. Esse tudo - indicia da inteireza do enunciado- nao se presta a uma defini<_;:ao nem gramatica nem abs- . trato-semantica. Essa inteireza acabada do enunciado, que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensao responsiva), e determinada por tres ele- ... * Bakhtin emprega o termo "reas;ao responsiva" (otvietnaia redktsiya). Em russo, como nas linguas latinas (a palavra em q.Lsso e uma aproprias;ao do latim), reas;ao (redktsiya) e resposta (otviet) sao sin6nimos, mas a primeira vista, no plano superficial, nao criam redundancia. Ja em portugues sua contigi.iidade cria uma redundancia meio estranha, razao por que resolvi substituir reas;ao responsiva por atitude responsiva, ja que a substituis;ao conserva plenamente o sentido do conceito bakhtiniano. (N. doT.) ESTETICA DA CRIA<;:Ao VERBAL I 281 memos (ou fatores) intimamente ligados no todo organico do enun- ciado: 1) exauribilidade do objeto e do sentido; 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante; 3) formas dpicas composicionais e de genera do acabamento. 0 primeiro elemento- a exauribilidade semantico-objetal do tema do enunciado- e profundamente diverso nos diferentes campos da co- munica<_;:ao discursiva. Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as quest6es de natureza puramente factual, bern como as respostas factuais a elas, os pedidos, as ordens, etc.), em alguns campos oficiais, no campo das ordens militares e pro- dutivas, isto e, naqueles campos em que OS generos do discurso Sao de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo esra ausente qua- se por completo. Nos campos da cria<_;:ao (particularmente no cientifico, evidentemente), ao contrario, so e possivel uma unica exauribilidade semantico-objetal muito relativa; aqui so se pode (alar de urn minima de acabamento, que permite ocupar uma posi<_;:ao responsiva. 0 objeto e objetivamente inexaurivel, mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo, de urn trabalho ciendfico) ele ganha uma relativa conclusibi- lidade em determinadas condi<_;:oes, em certa situa<_;:ao do problema, em urn dado material, em determinados objetivos colocados pelo autor, isto e, ja no ambito de uma ideia definida do autor. Desse modo, depa- ramo-nos inevitavelmente com 0 elemento que esra intimamente liga- do ao primeiro. Em cada enunciado - da replica monovocal do cotidiano as gran- des e complexas obras de ciencia ou de literatura - abrangemos, inter- pretamos, sentimos a intenriio discursiva de discurso ou a vontade dis- cursiva do falante, que determina o todo do enunciado, o seu volume e as suas fronteiras. Imaginamos o que o falante quer dizer, e com essa ideia verbalizada, essa vontade verbalizada (como a entendemos) e que medimos a conclusibilidade do enunciado. Essa ideia determina tanto a propria escolha do objeto (em certas condi<_;:oes de comunica<_;:ao dis- cursiva, na rela<_;:ao necessaria com os enunciados antecedentes) quanta os seus limites e a sua exauribilidade semantico-objetal. Ele ,determina, evidentemente, tambem a escolha da forma do genera na quafsera cons- truido o enunciado (ja se trata do terceiro elemento que abord.aremos adiante). Essa ideia - momenta subjetivo do enunciado - se combina 282j MIKHAIL BAKHTIN em uma unidade indissoluvel com o seu aspecto semintico-objetivo, res- tringindo este ultimo, vinculando-o a uma situa<;ao concreta (singular) de comunicas:ao discursiva, com todas as suas circunstincias individuais, com seus participantes pessoais, com as suas interven<;6es- enunciados antecedentes. Por isso os participantes imediatos da comunicas:ao, que se orientam na situas:ao e nos enunciados antecedentes, abrangem facil e rapidamente a intens:ao discursiva, a vontade discursiva do falante, e desde o inicio do discurso percebem o todo do enunciado em desdo- bramento. Passemos ao elemento terceiro e mais importante para nos - as formas estaveis de genero do enunciado. A vontade discursiva do falan- te se realiza antes de tudo na escolha de um certo genero de discurso. Essa escolha e determinada pela especificidade de urn dado campo da co- munica<;ao discursiva, por considera<;6es semintico-objetais (tematicas), pela situa<;ao concreta da comunicas:ao discursiva, pela composi<;ao pessoal dos seus participantes, etc. A intenyao discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, e em seguida aplicada e adap- tada ao genero escolhido, constitui-se e desenvolve-se em uma deter- minada forma de genero. Tais generos existem antes de tudo em todos os generos mais multiformes da comunicas:ao oral cotidiana, inclusive do genero mais familiar e do mais intimo. Falamos apenas atraves de determinados generos do discurso, isto e, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaveis e dpicas de constru~iio do todo. Dispomos de urn rico repertorio de gene- ros de discurso orais (e escritos). Em termos prdticos, nos os empregamos de forma segura e habilidosa, mas em termos tedricos podemos desconhe- cer inteiramente a sua existencia. Como o Jourdain de Moliere, que fa- lava em prosa sem que disso suspeitasse, nos falamos por generos diver- sos sem suspeitar da sua existencia. Ate mesmo no bate-papo mais des- contraido e livre nos moldamos o nosso discurso por determinadas formas de genero, as vezes padronizadas e estereotipadas, as vezes mais flexiveis, plasticas e criativas (a comunica<;ao coridiana tambem disp6e de generos criativos). Esses generos do discurso nos sao dados quase da mesma forma que nos e dada a lingua materna, a qual dominamos li- vremente ate comeyarmos o estudo teo rico da gramarica. A lingua mater- na- sua composi<;ao vocabular e sua estrutura gramatical - nao chega ESTETICA DA CRIA<;:Ao VERBAL I 283 ao nosso conhecimento a partir de dicionarios e gramaticas mas de enuncia<;6es concretas que nos mesmos ouvimos e nos mesmos repro- duzimos na comunicayao discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. Nos assimilamos as formas da lingua somente nas formas das enuncia- <;6es e justamente com essas formas . As formas da linguae as formas tf- picas dos enunciados, isto e,OS generos do discurso, chegam a nossa ex- periencia e a nossa consciencia em con junto e estreitamente vinculadas. Aprender a falar significa aprender a construir enunciados (porque fa- lamos por enunciados e nao por ora<;6es isoladas e, evidentemente, nao por palavras isoladas). Os generos do discurso organizam o nosso dis- curso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaticas). Nos aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de genero e, quando ouvimos o discurso alheio, ja adivinhamos o seu ge- nero pelas primeiras palavras, adivinhamos urn determinado volume (isto e, uma extensao aproximada do conjunto do discurso), uma de- terminada construs:ao composicional, prevemos 0 fim, isto e, desde 0 inicio temos a sensas:ao do conjunto do discurso que em seguida ape- nas se diferencia no processo da fala. Se os generos do discurso nao exis- tissem e nos nao OS dominassemos, Se tivessemos de cria-Jos peJa pri- meira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primei- ra vez cada enunciado, a comunicas:ao discursiva seria quase impossivel. As formas de genero, nas quais moldamos o nosso discurso, dife- rem substancialmente, e claro, das formas da lingua no sentido da sua estabilidade e da sua coers:ao (normatividade) para o falante. Em linhas gerais, elas sao bern mais flexiveis, plasticas e livres que as formas da lingua. Tambem neste sentido a diversidade dos generos do discurso e muito grande. Toda uma serie de generos sumamente difundidos no cotidiano e de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivi- dual do falante so se manifesta na escolha de urn determinado genero e ainda por cima na sua entonas:ao expressiva. Assim sao, por exemplo, os diversos generos cotidianos breves de sauda<;6es, despedida, felicita- <;6es, votos de toda especie, informas:ao sobre a saude, as crians:as, etc. A diversidade desses generos e determinada pelo fato de que eles sao diferentes em fun<;ao da situas:ao, da posis:ao social e das rel~<;6es pes- soais de reciprocidade entre os participantes da comunicas:ao: lia formas elevadas, rigorosamente oficiais e respeitosas desses generos, paralela- 284j MIKHAIL BAKHTIN mente a formas familiares, e alem disso de diversos graus de familiari- dade, e formas intimas (estas sao diferentes das familiares)*. Esses gene- ras requerem ainda urn cerro tom, isto e, incluem em sua estrutura uma determinada entona<;:ao expressiva. Esses generas, particularmente os elevados, oficiais, possuem urn alto grau de estabilidade e coa<;:ao. Ai, a vontade discursiva costuma limitar-se a escolha de urn determinado ge- nera, e so !eves matizes de uma entona<;:ao expressiva (pode-se assumir urn tom mais seco ou mais respeitoso, mais frio ou mais caloraso, intra- duzir a entona<;:ao de alegria, etc.) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional). Mas tambem ·aqui e possivel uma reacentua<;:ao dos generos, caracteristica da comunica<;:ao discursi- va em geral; assim, por exemplo, pode-se transferir a forma de genera da sauda<;:ao do campo oficial para o campo da comunica<;:ao familiar, isto e, emprega-la com uma reacentua<;:ao ironico-parodica; com fins analogos pode-se misturar deliberadamente os generas das diferentes esferas. Paralelamente a semelhantes generas padranizados, existiam e exis- tem, e clara, generas mais livres e mais criativos de comunica<;:ao dis- cursiva oral: os generas das conversas de salao sobre temas do cotidiano, sociais, esteticos e similares, os generas das conversas a mesa, das con- versas intimo-amistosas, intimo-familiares, etc. (por enquanto nao existe uma nomenclatura dos generos do discurso oral e tampouco esta clara o principia de tal nomenclatura). A maioria desses generos se presta a uma reformula<;:ao livre e criadora (a semelhan<;:a dos generas artisti- cos, e alguns talvez ate em maior grau), no entanto o uso criativamen- te livre nao e uma nova cria<;:ao de genera - e preciso dominar bern OS generas para emprega-los livremente. Muitas pessoas que dominam magnificamente uma lingua sentem amiude total impotencia em alguns campos da comunica<;:ao precisa- mente porque nao dominam na pratica as formas de genera de dadas esferas. Freqiientemente, a pessoa que domina magnificamente o discur- so em diferentes esferas da comunica<;:ao cultural, sabe ler 0 relatorio, de- " * Esses fenomenos e OUtfOS anaJogos interessam aos Jingiiistas (predominantemente OS historiadores da lingua) no corte meramenre esrilistico, como reflexo, na lingua, de formas de etiquera historicamenre mutaveis, de genrileza, decencia. Cf., por exemplo, F. Brunor'. ESTETICA DA CRIA<;:Ao VERBAL 1 285 scnvolver uma discussao cientifica, fala magnificamente sobre quest6es sociais, cala ou intervem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana. Aqui nao se trata de pobreza vocabular nem de estilo tornado de maneira abstrata; tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertorio dos generas da con versa mundana, a uma falta de acervo su- ftciente de no<;:6es sobre todo urn enunciado que ajudem a moldar de forma rapida e descontraida 0 seu discurso nas formas estilistico-com- posicionais definidas, a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo, de come<;:ar corretamente e terminar corretamente (nesses generas, a composi<;:ao e muito simples). Quanto melhor dominamos os generas tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso e possivel e necessaria), refletimos de modo mais flexivel e sutil a situa<;:ao singular da comunica<;:ao; em suma, rea- lizamos de modo mais acabado o nosso livre prajeto de discurso. Desse modo, ao falante nao sao dadas apenas as formas da lingua nacional (a composi<;:ao vocabular e a estrutura gramatical) obrigatorias para ele, mas tambem as formas de enunciado para ele obrigatorias, isto e, OS generas do discurso: estes sao tao indispensaveis para a COffi- preensao mutua quanto as formas da lingua. Os generas do discurso, comparados as formas da lingua, sao bern mais muraveis, flexiveis e plasticos; entretanto, para o individuo falante eles tern significado nor- mativo, nao sao criados por ele mas dados a ele. Por isso urn enunciado singular, a despeito de toda a sua individualidade e do carater criativo, de forma alguma pode ser considerado uma combinar;lio absolutamente livre de formas da lingua, como o sup6e, por exemplo, Saussure (e mui- tos outras lingiiistas que o secundam), que contrap6e enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da lingua como fe- nomeno puramente social e obrigatorio para o individuo*. A imensa " * Saussure define a enuncia~ao (fa parole) como "ato individual da vontade e da com- preensao, no qual cabe distinguir: I) combina~6es, com auxilio das quais o sujeito fa- lame usa o c6digo lingiiiscico com o objetivo de exprimir o seu pens;upento pessoal; e 2) mecanismo psicofisico que !he permite objetivar essas combina~6es. (Saussure, Ferdinand de, Curso de lingiiistica geral. Moscou, 1933, p. 386.) Assim, Sau~sure igno- ra o faro de que, alem das formas da lingua, existem ainda as formas de combinafoes dessas formas, is to e, ignora os generos do discurso. (N. da ed. russa.) 286 1 MIKHAI L BAKHTIN maioria dos lingiiistas, se nao na teoria, na pd.tica esta na mesma posi- ~ao: veem no enunciado apenas uma combina~ao individual de formas puramente da lingua (lexicas e gramaticais), e na pratica nao enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa. 0 desconhecimento dos generos do discurso como formas relati- vamente esraveis e normativas de enunciado deveria levar necessaria- mente os lingiiistas a ja referida confusao do enunciado com a ora~ao, deveria levar a umasitua~ao (que, e verdade, nunca foi defendida coe- rentemente) em que os nossos discursos so se moldam em formas esta- veis de ora~ao que nos foram dadas; no entanto, o numero de tais ora- ~6es interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (terminamos) sao assunto que se deixa ao pleno arbftrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de urn mf- tico "fluxo da fala'' . Quando escolhemos urn determinado tipo de ora~ao, nao o esco- lhemos apenas para uma ora~ao, nao o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada ora~ao; escolhemos urn tipo de ora~ao do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta a nossa imagina~ao discursiva e determina a nossa escolha. A concep~ao sobre a forma do conjunto do enunciado, isto e, sobre urn determinado genero do discurso, guia-nos no processo do nosso discurso. A ideia do nosso enunciado em seu con junto pode, e verdade, exigir para sua rea- liza~ao apenas uma ora~o, mas pode exigi-las em grande numero. 0 ge- nero escolhido nos sugere os tipos e os seus vfnculos composicionais. Uma das causas do desconhecimento lingiifstico das formas de enunciado e a extrema heterogeneidade destas no tocante a constru~ao composicional e particularmente a sua dimensao (a extensao do dis- curso)- da replica monovocal ao grande romance. Uma diferen~a acen- tuada nas dimens6es tambem ocorre no ambito dos generos do discurso oral. Por essas raz6es, os generos do discurso se afiguram incomensura- veis e inaplicaveis na condi~ao de unidades do discurso. Por isso, muitos lingiiistas (principalmente pesquisadores do cam- po da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam interme- diarias entre a ora~ao e o enunciado, que possuam conclusibilidade como o enunciado, e ao mesmo tempo comensurabilidade como a ora- ~ao. Assim sao a "frase" (por exemplo,em Kartzevski7), a "comunica~ao" ESTETICA DA CRIAc;:iio VERBAL I 287 (Chakhmato0 e outros). Entre os pesquisadores que empregam essas unidades nao existe identidade na sua concep~ao, porque na vida da llngua a elas nao corresponde nenhuma realidade definida e nitida- mente delimitada. Todas essas unidades artificiais e convencionais sao indiferentes a alternancia dos sujeitos do discurso, que ocorre em qual- quer comunica~ao discursiva viva e real, por isso se obliteram os limi- tes mais substanciais em todos os campos da a~ao da lingua- os limites entre os enunciados. Dai (conseqiientemente) desaparece o criteria central de conclusibilidade do enunciado como unidade autentica da comunica~ao discursiva - a capacidade de determinar a ativa posi~ao responsiva dos outros participantes da comunica~ao. Para concluir esta se~ao, cabem ainda algumas observa~6es sobre a ora~ao (faremos urn resumo a respeito no final do nosso trabalho) . A ora~ao enquanto unidade da lingua e desprovida da capacidade de determinar imediata· e ativamente a posi~ao responsiva do falante. So depois de tornar-se urn enunciado pleno, uma ora~ao particular ad- quire essa capacidade. Qualquer ora~ao pode figurar como enunciado acabado, mas, neste caso, e completada por uma serie de elementos muito substanciais de indole nao gramatical, que lhe modificam a na- tureza pela raiz. E e essa circunsrancia que serve de causa a uma aber- ra~ao sintatica especial: ao analisar-se uma ora~ao isolada, destacada do contexto, inventa-se promove-la a urn enunciado pleno. Conseqiien- temente, ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta. Como a palavra, a ora~ao e uma unidade significativa da lingua. Por isso, cada ora~ao isolada, por exemplo "o sol saiu'', e absolutamen- te compreensivel, isto e, nos compreendemos 0 seu significadolingiiis- tico, o seu papel possivel no enunciado. Entretanto, nao e possivel ocu- par uma posi~ao responsiva em rela~ao a uma posi~ao isolada se nao sabemos que o falante disse com essa ora~ao tudo o que quis dizer, que essa ora~ao nao e antecedida nem sucedida por outras ora~6es do mes- mo falante. Mas neste caso ela ja nao e uma ora~ao e sim urn enuncia- do plenamente valido, constitufdo de uma so ora~ao: ele e~ra emoldu- rado e delimitado pela alternancia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situa~ao) extraverbal. Esse enunCiado sus- cita resposta. 288 j MIKHAIL BAKHTIN Contudo, se essa oras;ao esta envolvida pelo contexro, ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto, isto e, apenas no enun- ciado inteiro, e uma resposta so e poss!vel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo e a referida oras;ao. 0 enunciado pode, por exem- plo, ser tambem assim: "0 sol saiu. E hora de me levantar." A compreen- sao responsiva (ou a resposta em voz alta): "Sim, realmente est<!. na hora." Entretanto, o enunciado pode ser tambem assim: "0 sol saiu. Mas ain- da e muito cedo. Preciso dormir mais urn pouco." Aqui, o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele sao outros. Essa oras;ao pode fazer parte ate da composis;ao de uma obra de arte como elemento da paisagem. Aqui a atitude responsiva- impressao ardstico-ideologica e avalias;ao - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu con junto. No contexto de outra obra, essa oras;ao pode ganhar significas;ao simbolica. Em todos os casos semelhantes a oras;ao e o elemento significativo do con junto de urn enunciado, e ela adquiriu o seu sentido definitivo ape- nas nesse conjunto. Se nossa oras;ao figura como enunciado acabado, ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condis;6es concretas de comunicas;ao discursiva. Assim, ela pode ser uma resposta a pergunta do outro: "Sera que o sol ja saiu?" (E claro que em certas circunsrancias que justifiquem essa pergunta.) Aqui esse enunciado e a afirmas;ao de urn determinado faro, afirmas;ao que pode ser verdadeira ou falsa, com a qual podemos concordar ou nao. A oras;ao, afirmativa em sua forma, torna-se afirma- s;ao real apenas no contexto de urn determinado enunciado. Quando se analisa semelhante oras;ao isolada costuma-se interpre- ra-la como enunciado acabado em alguma situas;ao simplificada ao ex- tremo: o sol realmente saiu eo falante constata: "0 sol saiu"; o falante esra vendo que a grama e verde e declara: "A grama e verde." Semelhan- tes "comunicas;6es" sem sentido costumam ser consideradas franca- mente como casos classicos de uma oras;ao. Em realidade, porem, toda informas;ao semelhante dirige-se a alguem, e suscitada por alguma coisa, rem ~gum objetivo, ou seja, e urn elo real na cadeia da comunicas;ao discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida. · Como a palavra, a oras;ao possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical, mas essa conclusibilidade de sig- nificado e de indole abstrata e por isso mesmo tao precisa: e 0 acaba- ESTETICA DA cRIAC;:Ao vERBAL I 289 mcnro do elemento mas nao o acabamento do todo. A oras;ao como unidade da Hngua, a semelhans;a da palavra, nao tern autor. Ela e de uinguem, como a palavra, e so funcionando como urn enunciado pie- no ela se rorna expressao da posis;ao do falante individual em uma si- IUas;ao concreta de comunicas;ao discursiva. lsto nos leva a uma nova, a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relas;ao do enunciado como proprio falante (autor do enunciado) e com outros participan- tcs da comunicas;ao discursiva. Todo enunciado e urn elo na cadeia da comunicas;ao discursiva. E a posis;ao ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do sen- Lido. Por isso cada enunciado se caracteriza, antes de tudo, por urn de- rcrminado conteudo semantico-objetal. A escolha dos meios lingi.ifsti- cos e dos generos de discurso e determinada, antes de rudo, pelas tare- fas (pela ideia) do sujeito do discurso (ou autor) centradasno objeto e no sentido. E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estilfstico-composicionais. 0 segundo elemento do enunciado, que lhe determina a compo- sis;ao e 0 estilo, e 0 elemento expressivo, isto e, a relas;ao subjetiva emo- cionalmente valorativa do falante com o conteudo do objeto e do sen- tido do seu enunciado. Nos diferentes campos da c~municas;ao discur- siva, 0 elemento expressivo tern significado vario e grau vario de fors;a, mas ele existe em roda parte: urn enunciado absolutamente neutro e impossfvel. A relas;ao valorativa do falante como objeto do seu discur- so (seja qual for esse objeto) tambem determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado. 0 estilo individual do enunciado e determinado principalmente pelo seu aspecto expres- sivo. No campo da estilfstica pode-se considerar essa tese universalmen- te aceita. Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso. Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso urn fenome- no da lingua como sistema? Pode-se falar de aspecto expressivo das uni- dades da Hngua, isto e, das palavras e oras;6es? A estas perguntas faz-se necessaria uma resposta categoricamente negativa. A Hngua como sis- tema possui, evidentemente, urn rico arsenal de recursos lingi.ifsticos - lexicais, morfol6gicos e sintaticos - para exprimir a posis;ao efnocional- mente valorativa do falante, mas rodos esses recursos enquantor.ecursos da lingua sao absolutamente neutros em relas;ao a qualquer avalias;ao 290 I MIKHA IL BAKHTI N real determinada. A palavra "benzinho" - hipocoristica tanto pelo sig- nificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma, como unidade da lingua, e tao neutra quanto a palavra "longes". Ela e apenas urn recurso lingiifstico para uma possfvel expressao de rela~ao emocionalmente va- lorativa com a realidade, no entanto nao se refere a nenhuma realida- de determinada; essa referencia, isto e, esse real jufzo de valor, so pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto. As palavras nao sao de ninguem, em si mesmas nada valorizam, mas podem abastecer qualquer falante e os jufzos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes . A ora~ao enquanto unidade da lfngua tam bern e neutra e em si mes- ma nao tern aspecto expressive; ela o adquire (ou melhor, comunga com ele) unicamente em urn enunciado concreto. Aqui e possfvel a mesma aberra~ao. Uma ora~ao como "Ele morreu" pelo visto incorpora uma determinada expressao, e a incorpora ainda mais uma expressao como "Que alegria!". Em realidade, nos percebemos a~6es dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situa~ao dpica, isto e, numa especie de generos do discurso dotados de expressao dpica. En- quanto ora~6es elas sao desprovidas dessa expressao, sao neutras. Depen- dendo do contexto do enunciado, a ora~ao "Ele morreu" pode traduzir tambem uma expressao positiva, de alegria e ate de jubilo. E a ora~ao "Que alegria!", no contexto de urn determinado enunciado, pode as- sumir tom ironico ou amargamente sardstico. Urn dos meios de expres- sao da rela~ao emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala e a entona~ao expressiva que soa nitidamente na execu~ao oral*. A entona~ao expressiva e urn tra~o constitutive do enunciado9• No sis- tema da lingua, isto e, fora do enunciado, ela nao existe. Tanto a pala- vra quanto a ora~ao enquanto unidades da lingua sao desprovidas de entona~ao expressiva. Se uma palavra isolada e pronunciada com ento- na~ao expressiva, ja nao e uma palavra mas urn enunciado acabado ex- presso por uma palavra (nao ha nenhum fundamento para desdobra-la em ora~ao) . Na comunica~ao discursiva, existem tipos bastante padro- nizados e muito difundidos de enuncia~6es valorativas, isto e, de gene- , * N6s, evidenremente, a assimilamos como fator estilistico e na leitura muda de urn dis- curso escrito. (N. da ed. russa.) ESTETICA DA CRIA(AO VERBAL I 291 ros valorativos de discurso que traduzem elogio, aprova~ao, extase, es- l . I "6 . " "B " "M 'lh " " ' h " tfmu o, msu to: umo! , ravo! , arav1 a! , E uma vergon a! , "Porcaria!", "Uma besta!", etc. As palavras que, em determinadas con- di~6es da vida polftico-social adquirem urn peso espedfico, tornam-se cnunciados exclamativos expressivos: "Paz!", "Liberdade!", etc. (Trata- sc de urn genero de discurso polftico-social espedfico.) Em certa situa- s:ao a palavra pode adquirir urn sentido profundamente expressive na forma de enunciado exclamativo: "Mar! Mar!" (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte.) 10 Em todos esses casos nao estamos diante de uma palavra isolada como unidade da lfngua nem do significado de tal palavra mas de urn cnunciado acabado e com urn sentido concreto11 -do conteudo de urn dado enunciado; aqui, o significado da palavra refere uma determina- da realidade concreta em condi~6es igualmente reais de comunica~ao discursiva. Por isso aqui nao so compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da lfngua como ocupamos em rela~ao a ela uma ativa posi~ao responsiva- de simpatia, acordo ou desacordo, de cstfmulo para a a~ao. Desse modo, a emona~ao expressiva pertence aqui ao enunciado e nao a palavra. E ainda assim e muito difkil abrir mao da convic~ao de que cada palavra da lingua tern ou pode ter por si mesma "urn tom emocional", "urn colorido emocional", "urn elemento axiologico", uma "aureola estilfstica'', etc. e, por conseguinte, uma ento- na¢ao expressiva inerente a ela enquanto palavra. Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado e como se nos guiassemos pelo tom emocional proprio de uma palavra isolada: sele- cionamos aquelas que pelo tom correspondem a expressao do nosso cnunciado e rejeitamos as outras. E precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e e precisamente as- sim que o estilista (por exemplo, a "experiencia estilfstica'' de Pech- kovski'2) interpreta esse processo. E, apesar de rudo, isso nao e assim. Estamos diante da ja conheci- da aberra~ao. Quando escolhemos as palavras, partimos do conjunto projetado do enunciado*, e esse con junto que projetamos e criamos e . , * Quando construimos o nosso discurso, sempre rrazemos de anremao o todo da nossa enuncia-;:ao, na forma tanto de urn determinado esquema de genera quanto de proje- 292 j MIKHAIL BAKHTIN sempre expressive e e ele que irradia a sua expressao (ou melhor, a nos- sa expressao) a cada palavra que escolhemos; por assim dizer, contagia essa palavra com a expressao do conjunto. E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo nao e expressive maspode ou nao cones- ponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras, isto e, em face do conjunto do nosso enunciado. 0 significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determina- das condis;6es reais de comunicas;ao discursiva gera a centelha da ex- pressao. Ora, e precisamente isto que ocorre no processo de crias;ao do enunciado. Repetimos, so o contato do significado lingiifstico com a realidade concreta, so o contato da lingua com a realidade, o qual se da no enunciado, gera a centelha da expressao: esta nao existe nem no sis- tema da lingua nem na realidade objetiva existente fora de nos. Portanto, a emos;ao, o juizo de valor, a expressao sao estranhos a palavra da lingua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em urn enunciado concreto. Em si mesmo, o significado de uma palavra (sem referencia arealidade concreta) e extra-emocional. Ha pa- lavras que significam especialmente emos;6es, juizos de valor: "alegria", "sofrimento", "belo", "alegre", "triste", etc Mas
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