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Artigo Bird Box - Versão final formatado

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA
LAIDE DAIANE COSTA CAMPOS
MARIA CHRISTINA MONTEIRO VIEIRA
BIRD BOX: UM RETRATO DA CONTEMPORANEIDADE 
CUIABÁ - MT
2019
LAIDE DAIANE COSTA CAMPOS
MARIA CHRISTINA MONTEIRO VIEIRA
BIRD BOX: UM RETRATO DA CONTEMPORANEIDADE 
Trabalho teórico apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - Mestrado/IL/UFMT – campus de Cuiabá, como requisito para avaliação na disciplina Seminário Avançado de Grupo de Pesquisa: Banalidades Cotidianas (Baco-UFMT).
Profa. Dra. Juliana Abonizio e Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite.
CUIABÁ - MT
2019
BIRD BOX, UM RETRATO DA CONTEMPORANEIDADE
RESUMO
O objetivo deste artigo é contribuir com as discussões sobre a configuração do mundo contemporâneo e globalizado a partir das teorias pós-modernas, das de pós-modernidades e das artes contemporâneas, considerando a estrutura e abordagem da disciplina Seminário Avançado de Grupo de Pesquisa: Banalidades Cotidianas (Baco-UFMT), cuja realização se deu no segundo semestre de 2018, a qual propôs a reflexão de vários temas a partir da exibição de obras cinematográficas conhecidas e inquietantes. Partindo desse pressuposto, escolhemos o longa Bird Box, para analisarmos de que forma essas obras de grande aceitação pelo público se relacionam com determinados valores e imperativos que fundamentam a normatividade da vida social contemporânea, tais como: o temor e a romantização do tema “fim da civilização”, o medo construído em nossas mentes e os males da contemporaneidade como: depressão e suicídio. Assim, a partir de uma leitura sociológica, buscamos mostrar que o filme Bird Box pode ser entendido como uma expressão crítica sobre o modo de vida contemporâneo. 
Palavras chave: Medo. Depressão. Suicídio. Contemporaneidade.
1 INTRODUÇÃO
O filme Bird Box é um filme americano, pós-apocalíptico, lançado em 2018, dirigido por Susanne Bier, escrito por Eric Heisserer e baseado no livro homônimo, de 2014, de Josh Malerman. Ele pode ser interpretado como um profundo diagnóstico social do presente, ao abordar temas como depressão, suicídio, medo e a questão das escolhas difíceis que temos que tomar para seguir em frente. A diretora dinamarquesa abarca, na obra, um considerável número de problemas que afligem a sociedade atual. No início da trama, a protagonista Malorie (Sandra Bullock) apresenta-se em um estado de apatia, que parece advir da recente separação do namorado/marido. Grávida de um bebê que demonstra não desejar, ela vive uma vida reclusa, pintando quadros inacabados e obscuros que retratam a sua falta de conectividade com as pessoas e com o mundo. Malorie representa a pessoa que quer viver isolada de tudo, a qual evita, ao máximo, sair da sua casa, o que nos permite perceber que só ali se sente bem.
Tal retrato não é muito diferente dos passarinhos presos em uma gaiola, os quais surgirão no meio do filme, o que tornará a situação de ambos uma metáfora: do aprisionamento que todos vivem na pós-modernidade. Voltando à Malorie, a única coisa que a traz alegria e força de viver, inicialmente, é a sua irmã. A forma como a trama é apresentada nos faz acreditar que, na verdade, a única coisa que faria Malorie sair do estado quase catatônico em que se encontra seria algo trágico e de grandes proporções, que é justamente o que o roteiro apresenta. Na trama, logo, o conflito se inicia. As pessoas, em sua maioria, ao enxergarem algo inexplicável, começam a se machucar e a cometer suicídio. O filme todo mostra a luta das pessoas para continuarem vivos, as quais passam a desenvolver mecanismos de sobrevivência. Ao final, percebemos que Bird Box apresenta uma história de contaminação repentina, incessante e gigantesca, a qual não foi apresentada a origem, que traz inúmeras mortes e instala um caos na sociedade, cujos sobreviventes, nesse contexto pós-apocalíptico, precisam encontrar meios para sobreviverem e terem acesso às coisas básicas como comida, água e segurança. 
Diferentemente do que se vê em filmes sobre contágio e mundo pós-apocalíptico, Bird Box retrata a saga de uma protagonista, que precisa salvar a si mesma, para manter vivos o seu bebê e outra criança que surge em sua vida no decorrer do enredo. Não há qualquer indício da existência de outros familiares, amigos e pessoas amadas, tão pouco se estabelecesse presunção quanto ao retorno de uma suposta ordem. O filme, na verdade, privilegia a partir do caos coletivo, a sobrevivência individual de quase todos as personagens, exceto Malorie, que tem outras motivações para continuar viva. 
Centrando-se na protagonista e nas crianças, o filme nos traz sentimentos paradoxais como a claustrofobia a céu aberto, a dificuldade de efetuar qualquer coisa com os olhos fechados, causando momentos de tensão, associados com imagens de paisagens belíssimas e do olhar parcialmente bloqueado pelas vendas. É nesse cenário que questões como: medo, suicídio, individualismo, depressão e difíceis escolhas vão surgindo, em um longa que abusa das idas e vindas (passado e presente) para culminar num desfecho surpreendente e inquietante.
2 O MEDO CONSTRUÍDO DENTRO DE NÓS
 
O filme trabalha muito bem a questão do medo, aquele que se forma dentro de nossas mentes, por algo nunca visto, apenas (pres)sentido, reforçando a ideia de que o medo se refere sempre mais ao que construímos em nossa mente do que daquilo que efetivamente vemos, como o vento que se transforma em entidade sobrenatural e invisível em Bird Box. O “monstro” é representado por sombras, ventos e folhas, que anunciam a sua presença, sem mostrá-lo como efetivamente é. Tal representatividade serve como analogia à depressão, já que não possui forma material, mas pode levar as pessoas a cometerem o suicídio.
A não-aceitação da gravidez pela protagonista, bem como a forma com que ela identifica as crianças como “garoto e garota” retratam a rejeição de sua condição maternal e da realidade em que se encontra, trazendo novamente a questão do medo à tona, visto que essa fuga se dá pelo temor que ela possui de vivenciar algo desconhecido e dantesco como a maternidade, tirando-lhe a (falsa) impressão de controle absoluto que possuía, até então, sobre a sua vida. A casa na qual a protagonista e as outras personagens sobreviventes ficam abrigadas, no começo do enredo, também pode ser vista como um local seguro, todavia, para que assim o seja, ela precisar estar totalmente fechada, sem visão para o exterior, reforçando a ideia do medo de se inteirar do mundo e das coisas que o integram, podendo, ainda, ser comparada metaforicamente às mentes humanas, que preferem o conforto do pensamento comum e isolado (a sua verdade única) a questionar o que se vê: o caos social nos quais se habitam.
Percebe-se, pois, em Bird Box, que a ameaça existente é focada na espécie humana, e mesmo assim, restringe-se a apenas um determinado tipo de pessoas: os considerados “normais”. Animais, comida, água etc., nada mais é afetado pela entidade maligna. Outro destaque que é dado ao filme é quanto ao fato de que as pessoas loucas também não são contaminadas, o que nos leva a questionar qual é a principal diferença entre um indivíduo louco de uma pessoa normal. A resposta que encontramos é a inexistência de limites, fazendo com que eles (‘loucos’) nas sintam medo do desconhecido, o que lhes permite olhar para a entidade, achando-a linda e usando da força para que os “normais” a enxergue, provocando suas mortes por meio do suicídio. 
Mas, de acordo com a lógica do filme, os demais indivíduos, corroídos por uma autodestruição provocada devido ao fluxo excessivo de consciência (sentimento de culpa?), eram levados ao suicídio. A necessidade que temos de jogar fora tudo que já não nos serve mais é demasiadamente complexa e o longa nos apresenta um predador, que é nocivo apenas às pessoas que têm algoa perder. Assim, a ideia do suicídio, talvez, se faça presente devido ao choque da revelação que a pessoa tem ao olhar para a entidade, como se ali houvesse um espelho e o que visse fosse algo tão representativo em sua vida que a pessoa não suportasse perdê-las, como é o caso de uma personagem que, ao olhar para o “monstro” viu a sua mãe, morta há mais de 10 anos. 
Todos nós, seres humanos, somos debilitados. Rejeitar a realidade e tentar moldá-la é a estratégia que adotamos. Para nós, as fatalidades são de difícil aceitação, não sabemos ao certo como lidar com isso, buscamos evitá-las e desconsideramos o que de maior e pior possa vir como consequência, diferentemente da natureza, que busca em seus desastres naturais uma forma de encontrar o equilíbrio. Queremos parar o tempo para obter nosso conforto. E nesse sentido de controle, o mal acaba sendo o que nos faz perder algo. 
A Entidade do filme Bird Box entristecia profundamente todas as pessoas tidas como ‘normais’, pois, para todos que a fitavam, acontecia uma coisa muito diferente que não conseguimos codificar ou descrever, gerando uma paralisia, aterrorizando a pessoa e levando-a ao suicídio, mas por outro lado deixava os loucos felizes. O comportamento dos loucos nos remete ao possível fato de que a questão do medo supremo, que é o medo do desconhecido, já foi por eles superada. De acordo com Tavares (2010, p. 10):
 
No cenário do mundo contemporâneo, o predomínio de determinadas psicopatologias (assim designadas) é fruto direto das novas configurações simbólicas forjadas pelos discursos sociais vigentes, discursos estes que atravessam os sujeitos, produzindo, assim, determinadas formas de subjetivação características de nosso tempo.
Michel Foucault (2003) foi um dos autores que sustentou a relação entre loucura e genialidade no período renascentista, a partir da concepção de uma experiência trágica e transgressiva da loucura. De acordo com o filósofo, na chamada ‘experiência trágica da loucura’, o louco é aquele que denuncia a insensatez do mundo e, em tal experiência, a loucura não é entendida como fato exterior, como decorre com a doença mental na modernidade. Em vez de separação, na experiência trágica renascentista, a loucura é interna à própria razão, de modo que uma acessa e se comunica com a outra, fortalecendo assim, o entendimento do autor de que a presença de uma transcendência imaginária da loucura conduz o homem à sabedoria.
Nesse sentido, faz-se necessário também refletirmos sobre determinados fenômenos socioculturais da atualidade compreendida como “Pós-Modernidade”, de forma a entendermos a contemporaneidade como condição para uma maior incidência da depressão sobre a sociedade. Com isso, o filme, ao abordar a questão da depressão, nos remete à reflexão sobre a necessidade de compreendermos o processo dessa depressão, como um mal difundido na atualidade e que tem sido perpetuado e esquecido até que se veja inserido em um contexto real, ou ainda simbólico, como promovido pela trama.
Estudar o comportamento humano e seus desdobramentos a partir da relação cinemaliteratura-leitor nos auxilia a perceber os sistemas de valores, regras sociais, padrões de condutas, ética e tendências culturais em relação à época em que se efetua a análise. É também, em consequência desses dispositivos, que se produzem determinadas formas de subjetividade, tanto individuais quanto sociais/coletivas. Nas palavras de Robert Stan (2017), devemos adotar uma metodologia de texto que nos permita “analisar textos verbais e audiovisuais em relação à diferentes perspectivas, cineastas, escritores e as pessoas propriamente ditas envolvidas nesse enredo. “[...] uma visão mais ampla, não tão restrita, como o próprio Roch chamou de escrita polifônica”.[1: Entrevista disponível em http://www.scielo.br/pdf/interc/v40n2/1809-5844-interc-40-2-0203.pdf.]
Só assim poderemos verificar os efeitos que os filmes nos causam e o que eles visam refletir sobre a sociedade contemporânea. Por exemplo, os filmes de comédia ajudam a esquecer os problemas e a melhorar a sensação de bem-estar e diminuem os hormônios do estresse. Em contrapartida, os filmes de terror e suspense costumam oferecer àqueles que gostam desse gênero a oportunidade de experimentar situações que não aconteceriam na sua vida. Todavia, em pessoas mais suscetíveis ao medo, desencadeiam recordações de eventos traumáticos já experimentados. O que se pretende aqui é demonstrar que, em filmes como Bird Box, a romantização do fim apocalíptico da humanidade se dá a partir do processo de dessensibilização do espectador em relação à violência, o que cria um impacto no comportamento da pessoa e a ajuda a ficar menos sobressaltada quando enfrenta situações complicadas na vida real.
De acordo com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (1995), a modernidade exauriu em definitivo as suas possibilidades emancipatórias e adentrou em um período transitório de esgotamento psicossocial completo que pode durar muito tempo. Para ele:
(...) o paradigma da modernidade é um projeto sócio-cultural muito amplo, prenhe de contradições e de potencialidades que, na sua matriz, aspira a um equilíbrio entre a regulação social e a emancipação social. A trajetória social deste paradigma não é linear, mas o que mais profundamente a caracteriza é o processo histórico da progressiva absorção ou colapso da emancipação na regulação e, portanto, da conversão perversa das energias emancipatórias em energias regulatórias, o que em meu entender se deve à crescente promiscuidade entre projeto da modernidade e o desenvolvimento histórico do capitalismo particularmente evidente a partir de meados do século XIX (SANTOS, 1995, p. 137).
A partir dessa perspectiva, Santos (1995), ao se aprofundar nas questões sobre a ciência e as epistemologias modernas, afirma que a própria realidade e seu movimento deixam de ser os critérios de verdade e, com isso, ela passa a ser uma questão de argumentos e de sua concatenação lógica. A realidade deixa de ser a referência para a produção do conhecimento. A “representação simbólica” do real ocupa o lugar da chamada “realidade objetiva”. Consequentemente, a preocupação intelectual desloca-se para o “discurso” e para as “práticas discursivas”, fazendo com que um filme, que antes era visto apenas como um objeto de distração, passe a figurar como um transmissor de mensagens e de sentidos sobre questões que, por vezes, a sociedade ainda não se sente pronta para discutir. 
3 DEPRESSÃO: O MAL DO SÉCULO
A depressão sempre esteve relacionada à escuridão, ao isolamento e ao sombrio. Com efeito, originada do latim, a palavra depressão vem de depressio, de deprimere, “apertar firmemente, para baixo” e, assim, ao mal provocado pelo sentimento sombrio da solidão. Mas um interessante deslocamento provocado pelo filme Bird Box é a atualização de um sentido hoje perdido: o de um possível saber depositado no depressivo, aquele que já está pronto para partir, que não foge mais dos seus problemas. 
Dizemos isso pois a história do filme é bastante direta. Num futuro próximo, uma entidade misteriosa surgirá no planeta. Ela fará com que as pessoas se tornem extremamente agressivas, posteriormente, triste e, por fim, suicidas. Isso porque ela consegue manipular a mente e tomar a forma dos maiores medos de quem o vê. O que se segue na trama é a destruição da sociedade como a conhecemos, fazendo do mundo uma terra pós-apocalíptica, onde os humanos lutam para sobreviver, sem encarar ‘o real problema’, esse é o nome mais adequado à entidade ameaçadora. Para não sucumbir ao mal, as pessoas devem simplesmente fechar os olhos, no filme, de forma literal, andando com vendas, as quais não podem enxergar nem quando acordam.
As personagens, para sobreviver, devem viver na escuridão. Ainda que desconheçam a tal Entidade (ou problema), o medo que sentem é fortalecido pela sugestão e não pela literalidade: sentimos mais pavor do que não vemos do que daquilo que enxergamos. Tal assertiva se faz, tendo em vista que é notório o fatode que enxergar nos proporciona uma ilusão de controle muito forte e, a partir disso, buscamos sempre prever tudo, fazendo com que a venda nos olhos simbolize o descontrole, porque, com ela, o indivíduo fica totalmente vulnerável com apenas a crença de que está protegida contra o mal que está assolando o planeta. Com a venda, acredita-se na possibilidade de sobrevivência, manutenção da identidade e da sua vida, ainda que para isso tenha que lidar com a mórbida curiosidade ou desabnegado heroísmo, que, por vezes, os assola a retirar a venda, ainda que sofrendo uma ameaça de morte.
Todavia, a mesma escuridão que leva as pessoas à depressão, também, pode ser entendida, a partir do filme em análise, como porto-seguro, um abrigo. E isso não está longe da realidade obscura da depressão, pois, em qualquer perda, as pessoas se abrigam na escuridão da tristeza, encontrando ali um lugar confortável para liberar, sem luz, sem julgamento, sem palco, toda a sua tristeza, todo o seu medo, fazendo com que aparente ser lógico, num cenário apocalíptico, o primeiro refúgio ser a escuridão.
4 HISTERIA EM MASSA: DO COLETIVO AO INDIVIDUAL
Várias são as possibilidades acerca do que seja a entidade. Uma vez que abordamos o enfoque do filme sob a ótica do medo e da depressão, partindo do coletivo para o individual, compete-nos abordar aqui a questão da histeria em massa. Trata-se de uma ocorrência real que está presente em nosso mundo, desde a epidemia do riso Tanganica, em 1962, ou a praga que dança em Estrasburgo, em 1518, e pode ser definida como "a rápida disseminação de sinais e sintomas de doenças que afetam membros de um grupo coeso" (tradução nossa), o que nos induz a levantar como hipótese formulada para o filme a ideia de que eventos atuais ou a ameaça da mudança climática global tenham perturbado tanto a psique que levou a humanidade a uma espécie de surto. [2: Disponível em: https://nerdist.com/article/5-theories-about-the-creatures-in-bird-box/ (último acesso em 12/02/2019).]
De acordo com Lyotard (2002, p. 28), ao trabalhar sobre a questão de histeria em massa, “Os grandes relatos perdem seu valor com o advento da ciência, e a consequência desta decomposição é a dissolução dos vínculos – a transformação dos grupos sociais em um estado de massa composta por átomos individuais desordenados”. Retomando Foucault (2003, p. 529-530) quanto à temática, tem-se que:
 [...] através da loucura, uma obra que parece absorver-se no mundo, que parece revelar aí seu não-senso e aí transfigurar-se nos traços apenas do patológico, no fundo engaja nela o tempo do mundo, domina-o e o conduz; pela loucura que a interrompe, uma obra abre um vazio, um tempo de silêncio, uma questão sem resposta, provoca um dilaceramento sem reconciliação onde o mundo é obrigado a interrogar-se. [...] Doravante, e através da mediação da loucura, é o mundo que se torna culpado (pela primeira vez no mundo ocidental) aos olhos da obra; ei-lo requisitado por ela, obrigado a ordenar-se por sua linguagem, coagido por ela a uma tarefa de reconhecimento, de reparação; obrigado à tarefa de dar a razão desse desatino [déraison], para esse desatino [déraison]. [...] Artifício e novo triunfo da loucura: esse mundo que acredita avaliá-la, justificá-la através da psicologia, deve justificar-se diante dela, uma vez que em seu esforço e em seus debates ele se mede por obras desmedidas como a de Nietzsche, de Van Gogh, de Artaud. E nele não há nada, especialmente aquilo que ele pode conhecer da loucura, capaz de assegurar-lhe que essas obras da loucura o justificam[grifos do autor]. 
A partir desses termos, o filme Bird Box provoca um deslocamento em relação à percepção contemporânea da depressão como sendo um estado de espírito patológico. Ao associar o estado depressivo das pessoas que se entregam à entidade e ao suicídio, a diretora Susanne Bier desmonta a concepção do depressivo contemporâneo, marcado tão somente pelas ideias de incapacidade, improdutividade, desmotivação e inutilidade, para atos de enfrentamento e, posteriormente, de suicídio, o que segundo nosso entendimento demanda ato de coragem. 
Se considerarmos, ainda, o fato de que a depressão assume em nossos dias uma dimensão planetária que ameaça a vida dos homens, considerando que, desde o final do século XX, esse transtorno - como é considerado pela psiquiatria contemporânea - se tornou além de um problema da medicina: social e econômico de primeira ordem, uma vez que, atualmente, a depressão aparece “como a principal causa de incapacitação em todo o mundo e situa-se em quarto lugar entre as dez principais causas da carga patológica mundial” (OMS, 2001, pp. vi -vii). Diante desse cenário, a depressão deve se tornar, muito em breve, um problema mundial de ordem epidêmica, ficando atrás apenas da doença isquêmica cardíaca (OMS, 2001, p. 28).
Nesse sentido, Tavares (2010, p. 27) ainda afirma que:
É na passagem da Modernidade para a nossa atualidade pós-moderna (Bauman, 1998) que podemos perceber com mais clareza todas as nuances e sutilezas produtoras de “mal-estar” a que estamos submetidos no nosso cotidiano. O conceito de “mal-estar” a que nos referimos aqui diz respeito ao formulado por Freud (1930; 1992), quando este reconhece o homem ocupando um lugar de eterna incompatibilidade entre suas necessidades individuais frente às exigências sociais e culturais. 
Se, durante o século XIX e começo do XX, a histeria era a forma mais evidente de sofrimento, no século XXI esse espaço foi tomado pela depressão. Cada época, cada cultura, produz os seus sintomas desse transtorno. O mal-estar se instaura por diversos motivos: a não-autoaceitação da sexualidade, da vida social, das situações repentinas que acontecem, aparece, ainda, como forma de resistência a uma sociedade de consumo, a uma sociedade voltada para as performances: o homem de sucesso, que é capaz de brilhar na sua carreira, quando tudo vira um grande acontecimento, os referenciais morais, da instituição familiar, que “pareciam” muito estáveis e eram dados de fora para dentro. A realidade contemporânea hoje foi demolindo essas categorias e as referências passaram a ser internas: cada um decide o que é bom e o que é mau. Isso não está mais fora do sujeito, está dentro dele e nem todos sabem lidar com isso. Há uma dimensão de solidão, de contradição, de inquietação no mundo atual que desencadeiam o medo, causando esse mal-estar prejudicial ao ser humano, em que, infelizmente, tem causado a depressão e, em muitos casos, têm levado ao suicídio, que não deixa de ser um ato de extrema coragem, se olharmos para dentro da situação como um todo, na tentativa de se libertar daquilo que aflige.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando nos atentamos para a importância que o cinema adquiriu – tanto como objeto de estudo, quanto no nosso cotidiano – percebemos que enquanto representação, todo filme passa uma mensagem que não é nula de significado. O cinema se substancia de várias formas como: técnica, cultura, arte, divertimento, indústria etc., e para examinar o cinema em relação a um contexto dinâmico e enquanto prática social, Turner (1997, p. 122) observa: “[...] o significado do filme não é simplesmente uma propriedade de seu arranjo específico de elementos; seu significado é produzido em relação a um público, e não independentemente.” Dessa forma, uma produção cinematográfica é coletiva, de caráter ficcional, que passa uma mensagem e expressa valores, ideias e sentimentos. 
A partir de toda essa contextualização, verificou-se que, da leitura do filme Bird Box, inúmeras situações relacionadas aos sintomas depressivos e sentimento de infelicidade, em especial, na protagonista da trama (Malorie). Assim, torna-se possível relacionarmos a história do filme ao período em que vivemos, na qual considera a depressão como o “mal do século”.
O longa nos apresenta “o problema”, representado por uma entidade invisível que está se alastrando rapidamente pelo mundo, a qual ninguém está imune, exceto se não a encaram e, para isso, exige-se certaloucura. Esse mal que se espalha faz uma analogia à sociedade contemporânea, que está adoecida, e as pessoas estão, cada dia mais, se isolando umas das outras com medo de serem contaminadas, enquanto que para o tratamento deveria se fazer exatamente o contrário.
Esse adoecimento contemporâneo pode ser vislumbrado pela grande quantidade de indivíduos diagnosticados com transtornos mentais (depressão, pânico, ansiedade), além do isolamento social, da crescente dependência tecnológica, uso de drogas e consumismo. Esses sofrimentos estão levando as pessoas ao suicídio, muito bem representado no filme. E a única forma de não se “contaminar” é vendar os olhos, o mesmo que, por vezes, praticamos, ao fechar nossos olhos para os problemas que nos causam dor, no intuito de continuarmos a sobreviver neste mundo contemporâneo, cheio de questionamentos, adversidades e inquietações que exige de nós um posicionamento. A obra cinematográfica passa a mensagem, a nosso ver, que para continuar existindo, é preciso reinventar uma forma de viver, vendando os olhos para certas situações e tendo que fazer difíceis escolhas. 
Outro ponto importante e destacado em nossa análise é a questão das pessoas tidas como “loucas” no filme, que fazem alusão aos transtornos mentais inerentes em todo ser humano, o qual ninguém está imune e que surpreendentemente são as pessoas que não tem medo da entidade. Aqui, como em toda a análise, fica em aberto propositadamente uma questão: devemos viver com medo, fechando os olhos para os nossos “monstros” ou devemos ser um pouco loucos para enfrentá-los e ver a beleza que existe ao redor a ponto de arriscarmos o nosso futuro, a nossa segurança e estabilidade?
Por fim, este trabalho quis apresentar a metáfora construída em todo o enredo, o qual apresenta cenas marcantes de suicídios, em que pessoas em pânico representam a fragilidade humana, e o desespero interno que a contemporaneidade vivencia nos dias atuais, levando-nos a uma reflexão sobre a depressão e suas consequências. Por fim, e não menos importante, analisamos, ainda, a questão dos pássaros engaiolados, cujas gaiolas representam a escravidão evidenciada no filme, a qual foi confirmada, ao final, pela salvação da protagonista, que passou a morar dentro de uma “gaiola” (um abrigo de cegos), demonstrando, assim, que a humanidade ainda está muito longe de alcançar a tão sonhada liberdade. 
REFERÊNCIAS 
FOUCAULT, M. Ditos e Escritos, Vol. IV: estratégia poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003
LYOTARD, J-F. A Condição Pós-Moderna. José Olympio: Rio de Janeiro, 2002.
SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez Editora, 1995.
TAVARES, L. A. T. A depressão como "mal-estar" contemporâneo: medicalização e (ex)sistência do sujeito depressivo [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 
TURNER, G. Cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997.

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